© Acervo pessoal
No céu, as pipas parecem se abraçar
Mundo pela janela Por Victoria Nogueira
Ao inÍcio do mÊs de maio, manter-se isolado permanecia sendo necessário. Assim, os dias se arrastavam norteados pelo mesmo roteiro, expectativas, picos de esperança. Estávamos de costas para o mundo, escondido pelas cortinas. A janela era uma das poucas saídas com a possibilidade de apreciá-lo sem botar os pés para fora. Se a televisão, computadores e celulares cumprirem papel equivalente nesta realidade tão moderna, não tenho medo em dizer que, em termos de beleza, o cenário proporcionado pela janela ganha com suas cores, por si só capazes de transmitirem a sensação de se estar realmente vivo, ainda que envolto por quatro paredes. Pois a janela, dona de bordas cinzas e coberta por trapos de pano que rotineiramente mudam de estampas, é uma velha conhecida, seja minha ou dos demais moradores da casa. Afinal, como ela passaria despercebida? Ela, a única passagem dos raios solares para dentro do cômodo. Também era a entrada para o suspiro trazido pelo vento que, com sua ousadia, acalmava os ânimos aflitos ocasionados pelo verão escaldante, que há pouco se despedira do Hemisfério Sul. Faça chuva ou calor, o quadrado nunca era poupado da ação da natureza. De tantas tardes idas e vindas, a pintura mostrava-se enferrujada e ligeiramente descascada. Nenhum passarinho ousaria pousar ali. Perante a vista, existe um muro, feio e sem graça, que tampa a visão para o horizonte. Ao longo das madrugadas, ele se
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tornava ponto de encontro para gatos boêmios que exclamavam serenatas aos seus novos amores. Contudo, apesar das limitações impostas pela placa de tijolos, bastava olhar para cima para descobrir outra passarela: o próprio céu. E quantas vezes aquele azul excessivo nos ganhou matéria de importância para além do pôr do sol? Alguns minutos foram suficientes para que eu avistasse periquitos verdes bailando pela paisagem. Lembravam a Mata Atlântica. Eles seriam sucedidos pelos aviões, guiados por trilhos invisíveis, e que contrapunham as aves anteriormente observadas. Porém, um elemento em comum: ambos enfatizavam a presença de vida na cidade. Duas pipas, discretamente, davam as caras. De lados opostos, sabe lá a identidade das pessoas que as empinavam. Brigavam, digladiando para ver quem cairia primeiro. Outrora, a “guerra de pipas”, como nomeei o episódio, não viria a ser assistida pelos meus olhos já condenados à miopia. Entretanto, com a sorte de portar uma câmera no momento que as observei, apontei-lhes a lente que passou a enxergar por mim. Coloridos, os “papagaios” travavam uma disputa digna de deixar o mais valente dos romanos com inveja da elegância e desenvoltura empregadas em prol da derrota do inimigo. Antes do final da batalha, como bons adversários, elas pareciam se cumprimentar. Com suas linhas entrelaçadas, se tocavam no céu. E eu, apoiada sobre a janela, não pude parar de pensar: depois de tanto tempo, finalmente, um abraço. CONTRAPONTO Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo – PUC-SP