Contraponto 127 - EDIÇÃO MARÇO/ABRIL

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Trecho da música “Portas Abertas, Caixão Fechado”

Novo álbum de LEALL traz inovação musical ao retratar a violência e desigualdade presente nas favelas Por Sarah Catherine Seles

A

rthur Leal, 19, mais conhecido como LEALL, criado na zona norte do Rio de Janeiro, no bairro Marechal Hermes, começou a se destacar na cena musical em 2019 com a produção de singles e, neste ano, lançou “Esculpido a Machado”, seu primeiro álbum. © Reprodução

Homicídio me parece uma arte cultural Uma espécie de ensino natural

Onde a criança aprende a olho nu A travar e destravar um parafal

Capa do álbum “Esculpido a Machado”

Em entrevista à Folha de S.Paulo, LEALL afirma que “quis passar a violência como algo cotidiano. As crianças estão ali [na capa do disco] de forma sutil, brincando, e a violência está em torno delas. Na minha mente, a capa gira muito mais em torno das crianças do que de mim e das armas. É sobre eles estarem nesse meio, brincando e estudando, enquanto tudo isso acontece.” Além da mescla de estilos, – principalmente do Grime, Drill e Funk – LEALL se inspira em muitas fontes que vão desde o Mano Brown e Skepta até Jorge Aragão e Ed Motta. O rapper também traz referências da literatura e do cinema na construção de suas letras. Para compreender melhor as inspirações do rapper na mudança dos beats e na forma de rimar, é necessário entender que o Grime e o Drill são considerados estilos violentos, como reflexo direto da realidade das periferias e bairros vulneráveis economica e socialmente, onde o crime é presente. Os cantores falam sobre suas realidades, medos e experiências. Ao ser perguntado sobre a violência em suas letras, em entrevista à gravadora KOPO, LEALL afirma que a música é um reflexo da realidade. “Você não vai fazer uma música falando de coisas lindas, de viagens maravilhosas se você não fez viagens maravilhosas e vive uma realidade massacrante”, afirma ele. A música é uma saída, “é uma maneira que a gente encontra de retratar nossa realidade e fazer isso ser bonito. Pra mim isso que é arte”.

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O álbum conta uma história em ordem cronológica, desde o interlúdio “Na barriga da miséria” que é uma introdução à narrativa, até a última faixa “Pela minha área” que olha com ternura para seu lugar de origem – “A minha área é minha escola // Eu sou espelho pra esses jovens”. A estrutura é inspirada em outros cantores que criam letras parecidas com crônicas, como o MV Bill e Racionais Mc ‘s. Após contextualizar o ouvinte por meio de dados sobre a realidade das periferias brasileiras, a frase final do interlúdio avisa: “A história que você vai ouvir agora é uma história que acontece com pelo menos 2 em cada 10 jovens do meu bairro, que na barriga da miséria nasceram brasileiros” e em seguida homenageia silenciosamente a centenas de jovens assassinados, vítimas da violência. A segunda faixa intitulada “Pedro Bala” faz referência direta a obra de Jorge Amado, “Capitães da Areia” e reflete sobre sua realidade que se assemelha à guerra. Ele também reflete sobre qual é seu destino em meio a violência e como estar imerso na situação te faz não enxergar além e ficar preso na bolha. Ao explicar a letra de “Pedro Bala” para a Genius Brasil, o cantor se identifica com a analogia presente nas seguintes estrofes: “Eu sou o pino da granada (Bala) A culpa é minha se ela explodir? Como se eu escolhesse destruir Se esqueceram por quem que eu fui feito Minha função é sempre ser o suspeito E eu só entro se arma não suprir Que eu dependo de mãos pra existir Meu país é a porra de um dedo” O pino da granada é resultado do sistema e é gerada e executada por ele. “Se você não me colocasse numa granada, eu não explodiria” – explica LEALL. O último verso responsabiliza o país por acionar a granada, “é o nosso país que planta o caos, planta a desordem no meio do povo”, completa o cantor. As duas próximas faixas “Duas Pistolas” e “Desfile Bélico” retratam o tráfico e a violência policial presente dentro das periferias. O que se relaciona diretamente a realidade brasileira. Como apontam os dados divulgados pelo Atlas da Violência de 2019, realizado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e pelo FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), em 2017 o país atingiu a taxa de 31,6 mortes violentas a cada 100 mil habitantes e a maior parte das vítimas são homens negros e periféricos de 15 a 29 anos, sem ensino médio completo.

“Eles falam que é pra pacificar Nós sabe bem que é pra oprimir O Iraque é aqui! Operação na hora de estudar” O rapper passa ainda pela insatisfação e banalização da realidade e o que é vivenciar o crime e a violência diariamente com as trocas de tiro constantes nas comunidades cariocas. De acordo com o IPS (Instituto de Segurança Pública), na favela Rio das Pedras, que é dominada por milicianos, as mortes decorrentes de intervenções da polícia representam 78,5%. Já na Rocinha 86,6% das mortes representa os homicídios dolosos que, de acordo com pesquisadores e autoridades do Rio Janeiro, é resultante da guerra que ocorre entre facções do tráfico. “Bala perdida, alma jogada Mais um corpo caído na calçada” Com grande destreza e como alguém que vê de perto o crack consumindo famílias, o MC conta a história de destruição resultante do vício em drogas na música “Pedras Amarelas”. A faixa também critica a falta de políticas públicas que de fato auxiliem dependentes químicos. “Nas comunidades ela fez estrago Tipo as operações feitas pela polícia E você preferia vender ou comprar? E a saúde pública se nega a enxergar que quanto mais abandonar, mais a merda alastra (...) Literalmente um genocídio, pedras amarelas” A música “Cadeia ou morte?” reflete sobre os únicos dois futuros possíveis e qual deles é o “menos pior”, quando não há outra saída visível. Em sequência, “Posso mudar meu destino” fala sobre o racismo e sobre uma esperança no meio de todos os problemas de que o destino dos jovens negros não precisa ser cadeia ou morte. “Sem desespero jovem negro Você pode escolher seu caminho” A última faixa, “Pela minha área”, segue o tom esperançoso e reforça que ele é menos uma estatística e que outros jovens podem seguir o mesmo caminho. “Eu sou menos um na estatística Menos um na estatística homicida do estado Menos um negro que não passou dos 18 anos” “Esculpido a machado” é um marco na cena do Grime/Drill brasileiro e LEALL é um artista novo que já mostrou muitas coisas e ainda tem muito para entregar.

CONTRAPONTO Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo – PUC-SP


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