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Histórias Datilografadas
Por Victoria Nogueira
Sebos são formigueiros de velharias que por dias, meses e anos, buscam novos lares. São Paulo está repleta deste segmento de loja em suas calçadas centenárias do centro.
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Juntamente dos verdadeiros mundos que se escondem por trás das fachadas, os comércios de usados são palcos para o contar de histórias, e não me limito às escritas por Machado de Assis e Dostoiévski.
Me refiro às proferidas silenciosamente pelos objetos que não trazem consigo palavras letradas tampouco emanam canções, e que estão igualmente presentes no espaço cuja sinalização pode ser um tanto imprecisa aos inexperientes descobridores, pois bastam dois passos para sair da seção de literatura e entrar, ainda que por engano, na de Medicina.
Às vésperas de meu aniversário de 19 anos, eu me via perdida entre os discos de vinil de um sebo que sequer existe mais. Não perdida, no sentido de não saber aonde ir, mas de não conseguir assimilar tamanha variedade que era me dada em um roteiro que eu poderia escolher de Mozart a Tom Jobim, Janis Joplin e Cazuza.
No entanto, nenhum dos encartes com suas fotos perfeitas me chamaram mais a atenção que a grande estrela daquele dia: a velha máquina de escrever, uma Olivetti Lettera 35i, que hoje é moradora do décimo nicho da estante do meu quarto.
“Linda, linda!”, falava a voz em minha mente que contrastava com o brilho nos olhos. Naturalmente, a engenhoca apresentava marcas do tempo, tal como uma senhora da mesma idade. Nada que lhe tirasse a beleza e elegância. Ao contrário, o seu teclado incompleto e que traçava o desenho de um sorriso desdentado demonstrava que a não faltaram folhas a serem datilografadas.
Ali, talvez tenham tocado as mãos de jornalistas, escritores apressados, funcionários de um escritório de contabilidade. Ou, simplesmente, uma carta de amor nunca correspondida, um telegrama que expressava a saudade do filho pela mãe que deixara no Nordeste.
Aquele objeto que, para o dicionário, era a “coisa material percebida pelos sentidos”, carregava em seu corpo metálico uma memória que era desconhecida por todos, inclusive por ele. Era, afinal, “apenas” uma “coisa”.
A minha imaginação sonhadora, anos após a sua compra, insiste em encenar a imagem de um escritor compondo ao ritmo da inconfundível trilha sonora do “tuc, tuc”, orquestrada a cada dedilhar na máquina. Ah! E quantos poderiam ter sido! Ferreira Gullar, Jorge Amado, Lygia Fagundes Telles, Rachel de Queiroz...
A única pista acerca de seu passado é que foi fabricada ao engatinhar da década de 80. Logo, foi testemunha do dia marcado pela queda do Muro de Berlim, e do aguardado 15 de janeiro de 1985 quando João Baptista Figueiredo, enfim, se tornou ex-presidente do Brasil.
Agora, ela permanece muda frente ao ano que mal se inicia. Está cansada e já não funciona como antes. Provavelmente os pesares da idade chegaram. Ou são os meros resquícios da fadiga provocada pelas reportagens que, do quarto, ela escuta embasbacada.
E mesmo a Olivetti, que viu o declínio de governos autoritários e, quem sabe, ajudou a escrever a promessa de que tempos melhores viriam, se pega posta em uma realidade capaz de colocar em xeque o valor daquelas palavras. Está farta dos que não aprenderam com a história que tão bem ela viu.
Substituída pelos computadores como em um passo de mágica, o destino da máquina de escrever não poderia tê-la levado a um caminho diferente ao da loja de usados. É para o sebo, aliás, que geralmente seguem as antiguidades de homens e mulheres quando partem desta para uma melhor. E quantas Olivetti’s não estarão órfãs? As de Aldir Blanc, Rubem Fonseca, Nicette Bruno, Moraes Moreira, certamente estarão.