Jornal Comunicação

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comportamento

Co:::unicação junho de 2008

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CRUELDADE O que leva alguém a cometer atos que chocam a sociedade?

O crime sem motivos aparentes Movie Book/Editora Taschen

Cenas de violência não são raras. Elas estão nas esquinas de nossas ruas, no telejornal diário, em um país do outro lado do mundo. Os comentários a respeito dessas cenas costumam relacioná-las a meios para algum fim. Há, por mais mundano que seja, um motivo. O assaltante agrediu o assaltado para tomar-lhe algum dinheiro, os ladrões tentaram alvejar os policiais para que pudessem escapar de um tiroteio, um latrocínio foi cometido para eliminar a hipótese de testemunhas. Mas como justificar as torturas sistemáticas sofridas por uma garota de 12 anos, em Goiânia, e descobertas em março deste ano? Ou a idéia de atear fogo em um indígena, colocada em prática por estudantes brasilienses em 1996? Há um mês, chegando em casa depois do trabalho, a empregada doméstica Vânia encontrou seu neto Rafael (os nomes são fictícios para preservar a identidade das fontes), de 3 anos, sentado de forma torta no sofá. A criança, que mora com a mãe e os avós maternos, costuma passar todos os finais de semana com Vânia, a avó No filme Em nome do Pai, de Jim Sheridan, Gerry Conlon (Daniel Day-Lewis) é torturado para confessar um crime que não cometeu paterna. “O Rafael é muito ativo, sapeca, então comecei a ficar preocupada quando ele não queria sair do sofá”, recorda a avó. Para explicar o que gera a crueldade, de 15 a 20 horas diárias, e sabe-se que O ex-perito criminal Sérgio Gavassi Depois de muita insistência, o garoto Carlos Roberto Bacila expõe duas teorias muitas das penas aplicadas àqueles que contabiliza quase quatro mil casos em concordou em se levantar – mas, ao fazêantagônicas. A primeira preconiza o livreinfringiam as leis envolviam flagelo físico”, seu currículo policial. Em meio a tantos lo, não conseguiu abafar os gritos de dor. arbítrio: de acordo com ela, a pessoa já afirma. Bacila destaca que hoje em dia plantões, entretanto, ainda guarda na “Vi que na calça dele tinha uma mancha nasce com conhecimento do bem e do mal ninguém argumentaria a favor da volta das memória um caso específico, que julga de sangue”, conta Vânia, que perguntou ao e pode, então, optar por praticar um deles. extenuantes jornadas de trabalho ou da como o mais cruel que presenciou. “Vi neto o que havia acontecido. “Ele falava, A segunda é determinista: os indivíduos tortura como forma de punição, “mas no uma mãe atear fogo nela e em seu bebê, meio atrapalhado, que o avô materno tiestão destinados a praticar certos atos por passado essas práticas eram consideradas vi um homem atropelado por um trem, nha ‘furado’ suas nádegas com os dedos”, fatores que não dependem de sua vontade. perfeitamente aceitáveis pela maior parte mas essas cenas extremamente violentas diz Vânia. Ela e o filho, pai de Rafael, foram “Segundo esta teoria, o ser humano é uma da população”. não me marcaram tanto quanto aquele correndo à casa da mãe da criança e pressoma de fatores biológicos, psicológicos Foi com a Declaração dos Direitos caso que, comparado a elas em termos sionaram o agressor, que negava qualquer e sociais, ou seja, é um produto do meio”, Humanos, no período pós-iluminista do de violência, pode parecer banal”, explica. acusação. Foram necessários 15 dias, um explica o advogado. século XVIII, que a sociedade deu seus Em uma madrugada na cidade de Marília, exame de corpo delito e um boletim de primeiros passos em direção a um melhor um vigia noturno preparava café em sua ocorrência para provar a culpa do avô, que, Quando punir e quando tratar entendimento do que é a crueldade. O figuarita, com a porta aberta. Do lado de enfim, assumiu vir a tempos cultivando tal lósofo Sérgio Czajkowski Júnior esclarece: fora, dois adolescentes tinham acabado comportamento. A troco de quê? Denunciado à polícia, o avô do garoto “Ocorreu uma revalorização do homem. de obter, de forma ilegal, uma pistola. Ao A violência gratuita provoca estarreciRafael recebeu intimação e apresentou-se Ela gerou discussões sobre formas de ver o vigia de costas, um deles não pensou mento e comoção pública – e passa a ser em depoimento. Ele levou à delegacia as estabelecer relações entre as pessoas, sem duas vezes antes de apertar o gatilho midita cruel quando não há, para ela, outra caixas do antidepressivo que toma reguque essas relações causem malefícios ao rando em sua nuca, para ‘testar’ a arma. “O explicação cabível. Seria essa larmente. “Parece que o remédio era de outro”. A idéia que temos atuala definição de crueldade? Há tarja preta, bem forte. Então fizeram uma mente de crueldade é uma leialgo por trás do comportaavaliação mental nele e ainda não houve tura bastante compatível com a mento violento sem motivos? punição. Nos mandaram esperar pela deconcepção iluminista, mesmo A crueldade decorre do Segundo o psiquiatra Élio cisão”, conta Vânia, descrente. “Não acho não sendo partilhada por todos Luiz Mauer, alguns indivíduos uso conscientemente desnecessário exatamente da mesma maneira, que um remédio ou um teste justifique o possuem uma “herança geneque ele fez”, explica. garante Czajkowski. Segunda violência, desconsiderando o ticamente estabelecida” que Segundo Bacila, o Direito pende suas dedo ele, essa ótica, entretanto, lhes confere maior tendência cisões baseado na corrente do livre-arbítrio. apresenta uma falha: ela parte tormento da vítima” à agressividade. “A crueldade, “Se as pessoas têm liberdade para optar por da premissa de que o homem é porém, é uma variante do compraticar a crueldade, devem ser punidas de um ser racional. “Mas o desejo Sérgio Czajkowski Júnior, portamento humano que tem acordo com seus atos”, sugere. Quando é mestre em Filosofia é o senhor do destino do hocomponentes muito mais signicomprovado que o indivíduo apresenta altemem, e não a razão”, ressalta. ficativos: o cultural e o social”, rações mentais graves, entretanto, o desenroO filósofo explica que o ser ressalva o doutor, dizendo que a pessoa lar do caso é outro, explica o psiquiatra Élio humano é parcialmente governado pelo filho da mãe tirou a vida de um homem, cruel possui valores distorcidos que fogem Mauer. “Não são todas as doenças psíquicas instinto e pela impulsividade: o que o tirou-o do convívio da família, para ter o ao alcance da genética e da fisiologia. que interferem na consciência do portador, diferencia dos outros animais é a presença prazer de atirar. Isso é má índole, é pura De acordo com o professor de Ética mas se estivermos falando sobre quadros de do superego, uma camada sócio-cultural crueldade”, desabafa Gavassi. da UFPR e mestre em Filosofia, Sérgio transtorno de personalidade, normalmente consciente que regula as funções psicolóCzajkowski Júnior, a crueldade seria um o indivíduo não é punível”, esclarece. “Não gicas humanas. “Quando o lado impulsivo A crueldade através dos séculos abuso de poder que caminha paralelamenhá como responsabilizar essa pessoa pelo do indivíduo o impele à certas práticas, te a algum tipo de agressão. “Ela decorre crime porque ela não tem consciência do o encargo do superego é coibi-las, e se Doutor em Direito pela UFPR e dedo uso conscientemente desnecessário da sofrimento da vítima, e é essa consciência algo desencadeia uma atitude que não legado da Polícia Civil do Paraná, Carlos violência por parte de certo indivíduo, que que caracteriza a crueldade”, completa. é reprimida de maneira eficaz, um dos Roberto Bacila defende que o ‘cruel’ é um desconsidera o tormento físico ou simbólidesdobramentos possíveis é a crueldade”, conceito cunhado socialmente. “Na Idade co experimentado pela vítima”, explica. conclui Czajkowski. Média, o trabalhador cumpria uma carga Ana Lopes


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