Ocupação Paulo Herkenhoff

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Expediente

Coordenação editorial

André Furtado, Carla Chagas e Kety Fernandes Nassar

Conselho editorial

Angélica Pompílio, Bianca Selofite, Caio Meirelles Aguiar, Felipe Albert, Juliano Ferreira, Leno Veras, Matias Monteiro, Renata Baltar, Sofia Fan, Tânia Rodrigues e Thaissa Lamha

Pesquisa e produção e edição de texto

Heloísa Iaconis e Icaro Mello

Tradução

Denise Yumi (terceirizada)

Transcrição

Nelson Visconti (terceirizado)

Produção editorial

Bruna Guerreiro

Supervisão de revisão de texto

Tatiane Ivo

Revisão de texto

Karina Hambra e Rachel Reis (terceirizadas)

Projeto e produção gráficos

Yoshiharu Arakaki

Fotos

Acervo Paulo Herkenhoff, Folhapress, Leno Veras e Letícia Vieira

Colaboração

Adriana Madeira Coutinho, Giselle Parno, Iris Mara Guardatti Souza, Rosangela Gomes e Vânia Leal

São Paulo, 2025

Sumário

Editorial

Pergunta como resposta: o pensamento esférico de Paulo Herkenhoff por Leno Veras

Arrancando possibilidades de interpretação: Paulo Herkenhoff autor 1922, um ano sem arte moderna

Brasília: a densa história curta da arte (apontamentos para uma história da arte necessária)

A voz afro-brasileira nas artes

Introdução geral

O fogo nas partes

Um léxico de Tempo

Amorosidade amazônica: curadoria viva! por Vânia Leal

A Universidade das Quebradas e o Museu de Arte do Rio: escuta, travessia e arte por Adriana Madeira Coutinho, Giselle Parno, Iris Mara Guardatti Souza e Rosangela Gomes

Ficha

Editorial

Paulo Herkenhoff é um construtor: de coleções, exposições, publicações e instituições. Intelectual, curador e crítico, seu trabalho é marcado pela investigação profunda da história da arte, da cultura e dos seus protagonistas; pela tessitura de redes de saber; e pelas ações estruturantes em museus e organizações nas quais atua, sempre preocupado com o fortalecimento das bases que sustentam as instituições culturais, garantindo sua perenidade e permanência. Como gestor e crítico, engaja-se na construção de coleções e análises críticas que representem, de fato, a multiplicidade que constitui o país, e na transmissão de seus saberes inerentes. Paulo, contador de histórias por excelência – suas e de outrem –, une a coragem de construir, a generosidade de compartilhar e a liberdade de imaginar.

Nascido em Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo, ele cresceu imerso em uma escola criada e gerida por sua família. Ali, começou a trabalhar na biblioteca aos 10 anos, ministrou aulas aos 14 e montou sua primeira curadoria, uma mostra dedicada ao estado da Paraíba, aos 16 anos. Em 1950, frequentou a Escolinha de Arte de Cachoeiro de Itapemirim, fundada por Isabel Braga, e na década de 1970 foi aluno de Ivan Serpa. Foi como aluno de Serpa, inclusive, que Paulo começou a carreira artística. Sua receptividade foi imediata, sendo premiado no Salão Universitário da PUC Rio, no Salão de Verão, na exposição Valores novos e na VII Jovem Arte Contemporânea. Ainda na década de 1970, participou da Bienal de Veneza (Itália) e da Bienal de Paris (França).

Seu sonho, desde a juventude, era trabalhar com diplomacia, o que o levou ao curso de direito. No entanto, a paixão pela cidade do Rio de Janeiro, com sua paisagem “azul marinhada”, redirecionou sua carreira para a advocacia e o ensino: “Não gosto de morar numa outra cidade que não seja o Rio de Janeiro”.1 A pressão política da ditadura, porém, o removeu da docência – na PUC Rio – e, insatisfeito com a advocacia, ele se voltou para a área que julgava realizar apenas por prazer: a arte. Sua trajetória na cultura tem passagens pela Fundação Nacional de Artes (Funarte), pelo Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio), onde foi curador-chefe, pela Fundação Eva Klabin Rapaport, pelo Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), pelo Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro (MNBA),

pelo Museu de Arte do Rio (MAR), onde foi diretor cultural, e pela FGV Arte. Foi, ainda, consultor da Coleção Cisneros (Caracas, Venezuela) e da 9ª Documenta de Kassel (Alemanha), além de responsável por curadorias emblemáticas, como as da 24ª Bienal Internacional de São Paulo, conhecida como a “Bienal da Antropofagia”, do pavilhão brasileiro da 47ª Bienal de Veneza, do Salão Arte Pará, em dezenas de edições, e das mostras Tempo, no MoMA, e Vontade construtiva na Coleção Fadel, no MAM Rio, entre outras.

Sua ação estruturante nas instituições pelas quais passou é atestada pelo trabalho no MAM Rio, uma vez que foi responsável por reestruturar o museu após um incêndio em 1978 – que destruiu quase a totalidade de seu acervo –, resultando no comodato de aproximadamente 4 mil obras da Coleção Gilberto Chateaubriand para a organização. Durante a gestão do MNBA, trabalhou para a melhoria de sua infraestrutura e a ampliação do acervo. Paulo ainda atuou na criação de instituições, como o Museu de Arte do Espírito Santo (Maes) e o MAR.

Sua história com o Itaú Cultural (IC) – e com a Fundação Itaú – também é longa e profícua. Entre as exposições que curou estão Investigações: o trabalho do artista (2000), Trajetória da luz na arte brasileira (2001), Caos e efeito (2011), Modos de ver o Brasil: Itaú Cultural 30 anos (2017) e Sandra Cinto: das ideias na cabeça aos olhos no céu (2020).

É com essa potência criadora que a 71ª edição da Ocupação Itaú Cultural sobrevoa a trajetória de Paulo Herkenhoff, desvendando os caminhos circulares e reverberantes de seu pensamento por meio de seus inúmeros cadernos de anotação, suas exposições, seus livros, seus catálogos, suas fotografias e seu legado na gestão cultural. Com curadoria de Leno Veras e da equipe do IC, a mostra percorre três eixos fundamentais – e indissociáveis – do trabalho do homenageado: coleção, exposição e publicação. Nas páginas deste livro, você encontra uma apresentação curatorial de Leno Veras; textos publicados por Paulo em diferentes épocas e contextos; um depoimento da curadora e historiadora da arte Vânia Leal sobre o trabalho dele como curador no Salão Arte Pará; e um ensaio das pesquisadoras Adriana Madeira Coutinho, Giselle Parno, Iris Mara Guardatti Souza e Rosangela Gomes sobre a parceria que Paulo e Heloisa Teixeira construíram entre o MAR e a Universidade das

Quebradas. Além da exposição e desta publicação, a Ocupação Paulo Herkenhoff conta com um site que reúne conteúdos exclusivos. Acesse em itaucultural.org.br/ocupacao.

Itaú Cultural

1. Depoimento de Paulo Herkenhoff ao Museu da Pessoa, 2005.

O crítico de arte Paulo Herkenhoff em seu apartamento, no Rio de Janeiro, 2009 imagem: Folhapress

Pergunta como resposta: o pensamento esférico de Paulo Herkenhoff

Como em uma viagem por caminhos que se bifurcam, desbravar as cartografias mnemônicas de Paulo Herkenhoff exige coragem diante do desconhecido, navegando via espacialidades e temporalidades raramente já avistadas, e vontade de encontrar novos mundos, conectados via buracos de minhoca que erigem mapas para perder-se.

Seu raciocínio, cuja lógica é sempre entrópica, busca conectar universos, operando em escalas múltiplas, capazes de arvorar sinapses que conectam microrganismos a macrocosmos, sempre para que as convergências orquestrem sentidos distintos e diversos, como se fiando via cruzes e pontos. O final, por sua vez, é sempre um começo.

Quando catedrático pelo Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA/USP), em parceria com o Itaú Cultural (IC), Paulo propôs uma jornada de conhecimento cujo arco contemplava do neocolonialismo ao espaço sideral, um amplo escopo gerado a partir do encontro entre artistas e cientistas: do “retorno à Terra plana” ao “pensamento esférico”.

Nesta homenagem, que celebra sua obra e vida, amalgamadas ao longo da tessitura de décadas de trabalho (imparável, como se predestinado a ascender por órbitas desconhecidas entre galáxias iconológicas), constelamos alguns dos pontos luminosos do desenho que apenas começa a tomar uma forma definida, a de sempre se metamorfosear.

Tal sorte de costura invisível que alinhava seus horizontes – estas linhas tênues entre passados e futuros, como as que anunciam os galos ao amanhecer, já cantadas pelo poeta, em suas costuras cósmicas – justapôs as nossas estradas, tornando porto o cais: é tempo de comemorar que, ao recobrarmos a memória, haja tanta história para contar.

Leno Veras

Arrancando possibilidades de interpretação: Paulo Herkenhoff autor

A contribuição de Paulo Herkenhoff para a história e a crítica de arte é marcada por uma produção textual intensa e profunda. Nesta seleção, reunimos textos que registram a complexidade, a amplitude e a atualidade de seu pensamento crítico:

“1922, um ano sem arte moderna”, publicado no catálogo da exposição Arte brasileira na Coleção Fadel, de 2002, questiona a centralidade da Semana de Arte Moderna de 1922 na historiografia oficial da arte brasileira. O texto destaca a diversidade do pensamento e das expressões artísticas da época e atesta o comprometimento de Herkenhoff com a formação, a ampliação, a pesquisa e a difusão de acervos públicos e privados.

“Brasília: a densa história curta da arte (apontamentos para uma história da arte necessária)”, publicado em 2025 no catálogo da exposição Brasília, a arte da democracia, reflete sobre a fundação da capital federal à luz das lutas contemporâneas em defesa da democracia. O texto representa a atuação recente de Herkenhoff à frente da FGV Arte, da Fundação Getulio Vargas, e reafirma a vitalidade de sua produção crítica.

“A voz afro-brasileira nas artes” integra a produção da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência, do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA/USP), coordenada por Herkenhoff e pela bioquímica Helena Nader entre 2019 e 2020. O projeto promoveu diálogos entre arte e ciência, com seminários interdisciplinares, abordando temas como raça, gênero, neocolonialismo e o espaço sideral como metáfora simbólica.

“Introdução geral”, publicado no catálogo do núcleo histórico Antropofagia e histórias do canibalismo, da XXIV Bienal de São Paulo, de 1998, apresenta sua abordagem crítica que questiona leituras eurocêntricas da história da arte. A curadoria da mostra, realizada por Herkenhoff e com Adriano Pedrosa como curador adjunto, consolidou-se como um marco na história do pensamento curatorial brasileiro.

“O fogo nas partes”, texto originalmente publicado no material gráfico de sua exposição Geometria anárquica, a má vontade construtiva e nada mais, de 1980, relaciona-se com sua produção artística das décadas de 1970 e 1980, e exemplifica o uso do humor e da ironia como estratégias políticas. Nele, Herkenhoff denuncia o descaso do poder público em relação à cultura, considerando o incêndio no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro MAM Rio ocorrido em 1978.

“Um léxico de Tempo” [A Tempo Lexicon] é o texto de apresentação do catálogo da exposição Tempo, realizada no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) em 1999, sob curadoria de Herkenhoff e com assistência de Miriam Basilio e Roxana Marcoci. A mostra explorou diferentes formas de representação do tempo em obras das Américas, da Europa, da Ásia e da África.

Os textos aqui reunidos mantêm a estrutura e o estilo das publicações originais, tendo passado apenas por revisão gramatical.

1922, um ano sem arte moderna

por Paulo Herkenhoff

Texto publicado originalmente no livro Arte brasileira na Coleção Fadel: da inquietação do moderno à autonomia da linguagem (2002).

1922 é um ano quase sem arte moderna no Brasil. O paradoxo mais curioso é que, no ano da Semana de Arte Moderna, não havia nenhum artista moderno em São Paulo que merecesse tal classificação sob o ângulo do “Modernismo”, isto é, do ideário da Semana de Arte Moderna, 1922 foi um ano magro. Anita Malfatti havia dado para trás há muito tempo, abatida com as críticas severas de Monteiro Lobato, que Ihe custaram a pulsão expressionista. Já em 1917 perdera a vitalidade com Tropical. Estavam em Paris em 1922: Joaquim e Vicente do Rego Monteiro, Antonio Gomide, Victor Brecheret como pensionista oficial. Flávio de Carvalho retorna da Inglaterra. Volta engenheiro e longe do vorticismo. Na melhor tradição inglesa, é um retratista eventual e autor de delicadas aquarelas, como as de Ana Vasco. Lasar Segall vivia na Europa. O Brasil não estava em seu horizonte. Em 1922, Tarsila do Amaral e Di Cavalcanti não tinham linguagem definida, porque alunos de Georg Elpons.

Em 1922, a obra moderna mais radical produzida no Brasil foi a Esplanada do Castelo, a reforma urbanística haussmanniana do Rio de Janeiro, que dava continuidade à abertura da Avenida Central em 1905 e de outros boulevards. Prosseguia a construção da grande cidade moderna brasileira, a capital para o século XX. Frente a essa modernidade de cunho social, Le Corbusier exclamou: “Desejo colocar no frontispício das conferências do Rio o nome do prefeito Passos, o grande prestidigitador. Passos fez do Rio uma cidade que é um milagre, um espetáculo admirável. Ele o conseguiu com muito pouca coisa do ponto de vista dos meios técnicos. Mas sua grandeza de visão o conduzia. [...] Estamos numa época em que é necessário ter grandeza de visão. Na França nós ainda somos iluminados pela luz, vivemos ainda das realidades mais verdadeiras daqueles que tiveram uma grandeza de visão: Luís XV, Napoleão, Haussman”.1 A Semana exibia projeto de “taperinha”.

Em 1922 se inaugurou o Hotel Glória, a primeira construção de cimento armado em grandes dimensões no Brasil, e se construía o Copacabana

Palace, marcos de uma obra de arquitetura sóbria. Mário de Andrade sempre teve dificuldades em ler a modernidade tranquila do Rio de Janeiro, uma modernidade sem sua ansiedade pessoal de modernista. 1922, um ano de engenharia e urbanismo moderno no Rio de Janeiro, uma cidade já em processo de verticalização. O século XIX havia projetado uma grande novidade urbanística para a centúria seguinte: Belo Horizonte, a cidade planejada.

Em 1922, para organizar a Semana de Arte Moderna, ficou claro, faltava arquiteto modernista em São Paulo. Os arquitetos da Semana de Arte Moderna, com seus bolos de noiva estilizados, sem obra moderna construída, foram Antonio Garcia Moya (um neocolonial!) e Georg Przyrembel, que virou arquiteto de igrejas. Não houve na Semana arquiteto mais interessante que Victor Dubugras ou Antonio Virzi. Por que não foram incluídos?

Em 1922, uma das melhores pinturas feitas no Brasil é Praça Floriano, de Oswaldo Teixeira. Sua pincelada é mais moderna do que qualquer outra no país nesse momento. O caminho antimoderno de Oswaldo Teixeira não foi tão diferente do de Malfatti. Em 1922, ninguém poderia prever o futuro de Teixeira para discriminá-lo, mas todos já conheciam o presente de Malfatti para entender sua decadência.

Em 1922, a Semana, como a academia, ignorou o cinema e a fotografia. “Arte não é fotografia, nunca foi fotografia! Arte é expressão, símbolo comovido”, proclama Oswald de Andrade em 1921.2 “Fujamos da natureza! Só assim a arte não se ressentirá da ridícula fraqueza da fotografia... colorida”, reforça Mário de Andrade no “Prefácio interessantíssimo” de Pauliceia desvairada em 1921-1922. Enquanto isso, em 1922, Augusto Malta continuava sua monumental obra fotográfica sobre o Rio de Janeiro, uma ação de cidade moderna.

Em 1922, a poesia de Manuel Bandeira foi apupada em São Paulo.

Em 1922, a Semana não apresentou novidades musicais. Desde 1920, já havia a pequena história da música moderna no Rio de Janeiro por Darius Milhaud, com elogios a Ernesto Nazareth e referências a Villa-Lobos.3 Milhaud discutia a música que era a linguagem corrente no Rio, e que seria vaiada na Semana

Em 1922, Mário de Andrade, musicólogo e etnomusicólogo, comete o etnocentrismo e hierarquiza a música numa pianolatria de conservatório. Em 1922, havia outra música excluída da Semana, um evento que atende às necessidades de representação simbólica da oligarquia rural, classe dominante nesse momento. O maxixe era símbolo de conquista de novos comportamentos modernos, que já haviam arrombado as portas do Palácio do Catete com Nair de Teffé, e se fazia presente na arte, como em Baile à fantasia, de Rodolfo Chambelland. Pixinguinha, em fevereiro de 1922, já estava na Europa moderna tocando a música ignorada pelos modernistas brasileiros. A música popular é excluída da Semana por um preconceito tão oficioso como o chefe de polícia de Pelo telefone.

Em 1922, a Semana toma o fulgor da caricatura do Rio de Janeiro, arte livre das constrições acadêmicas, e empresta a pulsão viva da linguagem, convidando Ferrignac, caricaturista inexpressivo, e deixando J. Carlos de fora. Por que os grandes caricaturistas do Rio não foram convidados? O lado geopolítico da Semana impedia a inserção de outras modernidades. Em 1922, J. Carlos era mais moderno do que os modernistas da Semana. Desde o início do século a caricatura educava o olhar brasileiro para o desenho moderno.

Em 1922, o suíço John Graz, chegado ao Brasil em 1920, caiu de paraquedas na Semana de Arte Moderna, processo com o qual não tinha qualquer relação. Em 1921, Antonio Gomide se adapta ao meio parisiense pintando em estilo cubista, um novo cânon. A torsão dos corpos na Descida da cruz (c. 1923) da Coleção Mário de Andrade e o jogo de dobras das roupas das freiras em Oração na igreja revelam a captura de movimentos pela pintura de Gomide. O modo como o meio paulistano ávido de modernidade absorveu Graz e Gomide foi convertendo-os em artistas decoradores. Sua pintura perdeu em severidade para um caráter decorativista art déco. Em 1922, já havia há muito as artes decorativas de Eliseu Visconti.

Os grandes painéis Baianas (c. 1930) e Floresta tropical, de Graz, são alegorias inocentes para ambiente doméstico. São visões idealizadoras do mundo. Se o painel Banhistas remete a Cézanne, Matisse, Picasso e Derain, entretanto, pontua o espaço arcádico com nus que parecem escultura mais que corpos vibrantes da obra dos europeus. Baianas tem todos os elementos (mulheres, marinheiros, vegetação tropical,

barcos) da ponta-seca Dois marinheiros acompanhados, de Segall, da mesma época (1929). A imagem de Graz parece uma inocente dança de quadrilha, indicativa de seu destino de pintura para o lar. Toda insinuação de desejo nivela mulheres, marujos e velas de jangada como valores visuais dispostos em ritmos formais para cumprir o movimento admitido no décor. Mais crua e direta, a gravura de Segall não esconde o que querem marinheiros desembarcados nem o que oferecem essas mulheres. Entre eles, os olhares não se cruzam. Na obra de Graz, marinheiros e baianas alinham-se em poses disciplinadas e fingem que não têm sexo.

Em 1922, a conferência de Graça Aranha na Semana resume sua A estética da vida, publicada em 1921 no Rio de Janeiro. Mesmo brigados, Oswald teve que citá-lo na Sorbonne em 1923. Reconhecer que A estética da vida lançou as bases do Modernismo, inclusive de “Pau-Brasil” e da “Antropofagia”, significa entender as transformações culturais como um processo que foi obra do país, não apenas de São Paulo. Por isso, filósofos não comprometidos com o discurso etnocêntrico de São Paulo reconhecem aquele fato.4

Em 1922, Vicente do Rego Monteiro está em Paris empenhado no primeiro projeto brasileiro modernista de cor, depois de desenhar objetos da arqueologia amazônica no Museu Nacional do Rio de Janeiro (1920). Seus desenhos, como Índia e guardiã (1920), sobre lendas indígenas,5 exibidos no Rio de Janeiro em 1921, são um marco inicial do processo de formulação da brasilidade e revogam o modelo de índio de Chateaubriand. A obra de Rego Monteiro incorporou valores plásticos da cerâmica amazônica, como paleta, volume, forma e redução da figura. As cores evocam terra cozida e a pintura em engobe. Suas figuras têm a vontade de volumetria e o código anatômico definidos a partir das cerâmicas pré-cabralinas. É mesmo possível retraçar a relação entre peças de cerâmica específicas copiadas e a reelaboração formal em sua pintura. Na tela Fuga para o Egito (1924) o menino sai de uma cerâmica Santarém de base lunar. As cabeças dos seus personagens na série religiosa, como Fuga para o Egito e A descida da cruz (1924), inspiram-se nas tampas em forma de cabeça das urnas Tapajós-Trombetas de Miracanguera, copiadas no museu carioca. A cerâmica mais complexa no Brasil é proveniente da Amazônia. Insistimos em que, se para Hegel a selva era espaço fora da história, para os artistas brasileiros seria a única possibilidade para afirmar uma

história autóctone, anterior à colonização, no projeto político moderno de emancipação cultural.

Em 1922, Victor Brecheret era a melhor promessa da Semana. Não era ainda o escultor moderno que teríamos. Em 1922, sem nenhuma comoção, mostravam-se na Exposição internacional no Rio duas esculturas do dinamarquês moderno Utzon-Frank, Afrodite (1914) e Atalanta (1919). Brecheret é um fenômeno especial para o Brasil. Para evitar que se quebre, sua Dançarina (c. 1925) sustenta o peso do mármore com a forma triangular à base da perna. É a solução acadêmica para dissimular casos iguais no século XIX, extraída da escultura clássica, que está nas vestes de Vênus Capitolina ou no golfinho da Vênus de Médici. O volume é desnecessário à versão em bronze de Dançarina (c. 1925), na Coleção Mário de Andrade.6 Compare-se a dançarina em forma de T de Brecheret, sem qualquer notação de dança precisa, com Arabesque, com a perna direita e o braço esquerdo alinhados, de Degas. É um estratagema não admitido por Brancusi frente à plena consciência da autonomia do volume, e, na fenomenologia de sua posição no mundo, essa Dançarina brasileira tem relação com a instrumentista de Cordas distantes (1918), de Ivan Meštrović. Ambas as figuras estão em posição quase forçada. Para o equilíbrio físico e visual de Cordas distantes, a perna se apoia num volume retangular, semelhante ao triângulo de Dançarina. A escultura moderna, desde Rodin, introduziu uma anatomia ilógica, como nesse Brecheret. Na obra de Meštrović, os braços fazem ângulos forçados, enquanto a perna direita está levantada a uma altura exagerada, em posições que apontam para as torções de Dançarina, que se assemelham a um movimento da dança moderna concentrado nos braços e na cabeça. No entanto, tal esforço antianatômico de torsão do peito e seu alinhamento paralelo com os pés se refere aos relevos da antiguidade egípcia. Essa posição tão estranha do braço que monta e desce por trás da cabeça é exatamente uma imagem invertida da banhista de Cézanne ao fundo de Cinco banhistas (1885-87, Basileia). Essa imagem migrou para o Nu azul: memória de Biskra (1907), de Matisse. Entretanto, a Dançarina de Brecheret tem um tônus contraído que não está nos dois precedentes. Sua grande referência para o gesto seria a figura central de Les demoiselles d’Avignon (1907), de Picasso. Já o ritmo de desdobramento ascendente da figura por volumes curvos é devido a Nus cariátides (1913), de Amedeo Modigliani. Essa escultura

testemunha a articulação de um conhecimento da história da arte por Brecheret depois de seus estudos na Itália e na França.

Em 1922, era impossível ser moderno no Brasil. Poucos artistas aprenderam isso tão rapidamente quanto a “senhorinha” Malfatti. Era, sobretudo, impossível ser moderna em São Paulo em 1917 ou 1922. Mário de Andrade queria trazer para a Semana o impacto da exposição de Malfatti em 1917. Anita não tinha obra nova. Mário já sabia, como se lê em seu artigo de 1921.7 Em 1922, Anita não tinha obra moderna para mostrar na Semana. Quase tudo era produção de seu período norte-americano, como A onda (1915-17). Em arte, 1922 não repetiu 1917. A estratégia não funcionou.

1922 é o ano de disputa entre Malfatti e Tarsila. Começam disputando o modelo Mário de Andrade. Daí saem vários retratos. Em 1922, Tarsila era uma pós-impressionista com Chapéu azul e o Autorretrato de 3 de outubro. Nesse mesmo mês, faz o Retrato de Mário de Andrade em azuis e amarelos. Sua operação é marota: estiliza seu pós-impressionismo com elementos vagamente cubistas (delineia o queixo em ângulo, mas os lábios permanecem veristas, preenche o fundo com retas e curvas) e pinta um Mário amarelo, evidentemente extraído de O homem amarelo (1915-6), de Malfatti. Por sua vez, Anita estava na defensiva. Mário vinha Ihe cobrando um retorno a seu Expressionismo, condenara publicamente a “fraqueza” de sua mostra de 1920.8 A artista, entretanto, já havia arruinado sua arte desde a castração de 1917, com o artigo de Monteiro Lobato.

Os retratos de Mário de Andrade por Malfatti são uma negociação com o influente intelectual. Malfatti ainda tenta algum efeito expressionista de cor, mas já sem a pincelada vigorosa e os contrastes cromáticos da década de 1910. Ambiciosamente, Tarsila projetava seu espírito de competição sobre Anita numa carta de 1923 em Paris: “Acha-se também aqui o Di Cavalcanti, pintor do Rio muito considerado. Ele e Anita disputarão a mim o primeiro lugar na pintura moderna brasileira. [...] Ela me deu, no nosso primeiro encontro no hotel, a noção de que, em vez de uma amiga, tenho uma rival”.9 Simbolicamente, o Retrato de Mário de Andrade (c. 1922) por Malfatti poderia ser a obra mais importante de 1922 entre os modernistas. A cor, em sua obra, explodiu fulgurante em Nova York (1915-1917) para esmaecer no Brasil. Não há mais as ousadias de O homem amarelo

Paradoxalmente, morre a cor nos trópicos. Em 1922, Malfatti seria tanto a mártir involuntária do Modernismo quanto uma espécie de índice da impossibilidade de ser moderna em sua terra.

1922 deixou-nos um indiscutível legado, mas o Brasil só compreenderá melhor seu processo de modernização no dia em que desconstruir a animação autocondescendente dos próprios modernistas e rever o discurso ufanista de Mário de Andrade e sua continuidade em dada historiografia dominante. Ou omitiram um Brasil que estava à vista em 1922 ou falaram de um “resto” do Brasil que não conhecem nas recentes décadas.

1922 era muito tarde na América Latina.10

HERKENHOFF, Paulo. 1922, um ano sem arte moderna. In: HERKENHOFF, Paulo. Arte brasileira na Coleção Fadel: da inquietação do moderno à autonomia da linguagem. Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson Estúdio Editorial, 2002. p. 30-44.

Notas

1. CONFERÊNCIA DE LE CORBUSIER, Rio de Janeiro, 1929. Grandeza de visão na época dos grandes empreendimentos. In: BARDI, P. M. Lembrança de Le Corbusier. Atenas, Itália, Brasil. São Paulo: Nobel, 1984. p. 121.

2. ANDRADE, Oswald de. Questões de arte. Jornal do Commercio, São Paulo, 25 jul. 1921.

3. MILHAUD, Darius. Brésil. La Revue Musicale, Paris, ano 1, n. 1, p. 60-61, 1920.

4. Ver: NUNES, Benedito. Prefácio. Obras completas de Oswald de Andrade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. v. VI, p. XXXII. MORAES, Eduardo Jardim de. A brasilidade modernista. Sua dimensão filosófica. Rio de Janeiro: Graal, 1978.

5. Vários de seus desenhos foram utilizados para ilustrar Légendes, croyances et talismans des indiens de l’Amazonie. Paris: Éditions Tolmer, 1923. Adaptação de P. L. Duchartre.

6. A coleção guarda ainda um desenho de estudo para essa escultura de 1924.

7. ANDRADE, Mário de. Anita Malfatti. Jornal dos Debates, 1921. In: BATISTA, Marta Rossetti (org.). Mário de Andrade: cartas a Anita Malfatti. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 1989. p. 25.

8. Ibidem, p. 26.

9. Carta à família de 29 de setembro de 1923. Ver: AMARAL, Aracy A. Tarsila: sua obra e seu tempo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1975. v. I, p. 96.

10. Essa compreensão cronológica é importante sobretudo porque a historiografia do Modernismo brasileiro, por razões geopolíticas, tornou-se uma busca do “quem faz primeiro”. Nisso, o Brasil tem um Modernismo muito atrasado com respeito à América Latina em geral.

Brasília: a densa história da arte (apontamentos para uma história da arte necessária)1

Texto publicado originalmente no livro Brasília, a arte da democracia (2025).

Quando Brasília foi inaugurada, em 1960, concluía-se o último grande ato da modernidade brasileira. Logo, a nova capital seria também palco de decisivas manifestações de consolidação das tendências pós-modernas no país. A construção da nova capital federal coroava um processo radical da cultura brasileira representado por desenvolvimento e eclosão. O urbanismo e a arquitetura de Brasília se implantam no bojo do mesmo processo nacional de criação em que surgem a Bossa Nova, o Cinema Novo, o Neoconcretismo, o design industrial, o móvel moderno, a televisão, as novas teorias sobre educação e a industrialização sob o modelo de substituição de importações, entre outros saltos qualitativos.

O presente ensaio não se propõe a fazer uma cronologia, mas a se constituir como uma narrativa fundada em histórias transversais da arte em Brasília na década de 1960 com reflexos ao longo da história da cidade. Os percursos unívocos, unitários e evolucionistas da arte são aqui descabidos. Não serão consideradas possíveis conjecturas, tais como indagar sobre o que teria sido de Brasília como experiência social se o urbanismo fosse de outra ordem. O que teria sido de Brasília se seu processo tivesse sido uma ampla celebração da arquitetura moderna brasileira, com projetos de Affonso Eduardo Reidy, Flávio de Carvalho, Vital Brazil, Vilanova Artigas, Severiano Mário Porto, Maurício Roberto, Paulo Mendes da Rocha e Lina Bo Bardi, entre outros, sobrepondo-se ao poderoso monopólio de Oscar Niemeyer? É muito rala a presença de outros arquitetos, quase invisível, como o caso excepcional dos projetos do mastro da Praça dos Três Poderes e do Centro de Convenções de Brasília por Sérgio Bernardes, em 1972.2 Brasília seria ideologicamente outra sem o apartheid político e social que se constituiu a partir do modelo de implantação do Plano Piloto? Este ensaio se sustenta na avaliação de algumas questões da arquitetura de Brasília desenhada por Oscar Niemeyer, no papel de Athos Bulcão na integração entre arte e arquitetura e no

desenvolvimento do fundo religioso na produção de Rubem Valentim. Em termos da história da arte no espaço geográfico-humano, Brasília guarda alguns paralelos com o caso da Califórnia: na década de 1960 constituíram uma densa história curta da arte sobre uma tradição inexistente (ou quase...). A força conceitual da arte norte-americana das últimas sete décadas deve muito ao ambiente californiano. Foi lá que Bruce Nauman descobriu a obra de Marcel Duchamp e Samuel Beckett.3 A lista de artistas seria imensa: John Baldessari, Ed Ruscha, Chris Burden (migrante de Boston para Topanga Canyon) e muitos outros. Na Califórnia imperava a inquietação política, o experimentalismo, a contracultura e a construção de uma nova moral; em Brasília se confrontaram utopia desenvolvimentista e entropia política com o trauma do real: a ditadura de 1964, batismo de fogo da nova capital, inclusive como centro de produção de cultura.

Ocorreu um choque das diferenças entre: (a) o cosmopolitismo da cidade nascente da diplomacia e da qualidade internacional de seus prédios públicos, como o Itamaraty; e (b) um Brasil rural, adormecido, circundante e a multidão de candangos pobres e esperançosos, a força do trabalho na construção da cidade.

Numa história da arte de Brasília de poucas décadas, serão aqui analisados três temas da cultura visual brasileira que se condensam a partir da capital federal sob a audácia incomensurável de Juscelino Kubitschek: (a) a arquitetura e o urbanismo, observados sob pontos de vista simbólicos e históricos, inclusive com o caso específico do edifício do Congresso Nacional; (b) a contribuição revolucionária e afável das relações entre arte e arquitetura a partir da contribuição de Athos Bulcão; e (c) a obra de Rubem Valentim como paradigma de uma relação entre arte construtiva de viés ocidental e os padrões plásticos e éticos dos cultos das religiões ancestrais africanas.

Os três casos se referem à conclusão de alguns processos da modernidade brasileira em Brasília. Há outras questões, como a arte em espaço público. Com duas esculturas no Palácio da Alvorada e no edifício do Itamaraty, Brasília foi a cidade que melhor acolheu a obra de Maria Martins no espaço coletivo. Mencione-se ainda o ensino da arte no projeto original da Universidade de Brasília (UnB) com Milton Ribeiro, Hugo Mund e Rubem Valentim, entre outros, ao lado do impacto geral da repressão da ditadura de 1964 sobre a UnB e, em particular, sobre os departamentos vinculados às artes. Em 13 de abril

de 1964, com a intervenção militar e a cassação de 200 professores da universidade e a exoneração do reitor Anísio Teixeira, 35 professores de arte pediram demissão, entre os quais Alfredo Ceschiatti, Ana Mae Barbosa, Athos Bulcão, Cláudio Santoro, Elvin Dubugras, Glênio Bianchetti, Hugo Mund, Jean-Claude Bernardet, Luis Humberto, Maciej Babinski, Marília Rodrigues, Nelson Pereira dos Santos, Paulo Emílio Salles Gomes, Rogério Duprat e Rubem Valentim.

Se Brasília concluiu processos da modernidade, também abriu o campo da pós-modernidade, com suas dúvidas, desafios e transformações da linguagem da arte. E sua contribuição é digna de nota. Lá se aglutina, na década de 1960, um grupo de jovens artistas como Alfredo Fontes, Cildo Meireles, Guilherme Vaz e Luiz Alphonsus, entre outros.4 A atividade de Nicolas Behr da performance à literatura, como no livro Braxília, é um segredo guardado pela cidade. Brasília também foi o lugar de um dos mais importantes trabalhos de crítica institucional no processo do país: o Happening da crítica ou o Porco empalhado, de Nelson Leirner, inscrito no 4º Salão do Distrito Federal, em 1967.5 Todas essas questões abrem possibilidades para outros capítulos da densa história curta da arte de Brasília.

Em paráfrase de Goethe, diga-se que o caráter absoluto, sublime, majestoso de Brasília é uma instância da arte que permanece sempre infinita para nosso entendimento – e muito mais para este historiador. Não se pode buscar a totalização dos significados de Brasília, muito menos sem a vivência cotidiana do Plano Piloto e das demais comunidades do Distrito Federal, sem a experiência completa dos meandros de seus principais prédios. De novo com Goethe, para este historiador, Brasília só pode ser a intuição da infinitude.

Oscar Niemeyer e a arquitetura de Brasília: discussões extemporâneas

Este ensaio se concentra em questões pontuais entre o interdito e o não dito: o papel do Rio de Janeiro na formulação de Brasília, a frustração do experimento social da cidade planejada e o falocentrismo arquitetônico na capital federal. A cidade de Brasília é produção arquitetônica e urbanística do Rio de Janeiro. É filha estética do Rio e do arrojo de JK. A nova capital federal tem mais a ver com a arquitetura moderna sensual carioca do que com o racionalismo internacionalista e o brutalismo paulistanos ou

qualquer outra arquitetura. Compare-se com o importante Palácio dos Bandeirantes, residência oficial do governador de São Paulo, que foi projetado em 1938 pelo arquiteto italiano Marcello Piacentini e cuja construção, iniciada em 1954, foi quase contemporânea ao Palácio da Alvorada, a primeira grande construção de Brasília. A concepção delicada de Niemeyer, que propõe colunas sensuais e curvas em mármore para uma caixa de vidro, difere muito do vetusto teatro do poder pseudoneoclássico de Piacentini. É que Brasília, como de resto o Brasil, estava condenada ao moderno, como afirmou Mario Pedrosa.

Desde que se tornou capital do Vice-Reino que a pródiga capacidade do Rio de Janeiro de produzir símbolos, por mais que a historiografia uspiana tente desconstruir o significado e o papel da cidade na formulação da nação brasileira, tem sido incessante. Brasília compõe o impacto geral do pensamento urbanístico moderno consolidado no Rio desde o final do Império, como os parques públicos desenhados por Auguste Glaziou a partir de 1864, as reformas urbanísticas do prefeito Pereira Passos (1903-1906), a audaciosa derrubada do morro do Castelo, a abertura da Esplanada do Castelo (1922) e o Plano Agache (1925-1930), entre outros. O Rio produziu cidades. Os planos urbanísticos de Belo Horizonte, Goiânia e Brasília no desenvolvimento do Brasil central partiram da antiga capital federal. Os grandes símbolos do redimensionamento urbanístico de Belo Horizonte (Pampulha) e de São Paulo (Ibirapuera e Edifício Copan) são também produtos da modernidade carioca. Toda essa tradição desemboca em Brasília para alcançar a admiração do mundo, de intelectuais que acorreram à capital em construção para compreender o novo inaudito, de Le Corbusier a Clarice Lispector, de Alberto Moravia a Fulvio Roiter, entre muitos outros.

Em 1953, Mario Pedrosa escreve A arquitetura moderna no Brasil, que soa como o desafio premonitório de Brasília: “a questão não era descobrir ou redescobrir o país. Este sempre estivera lá, presente com sua ecologia, seu clima, seu solo, seus materiais, sua natureza e tudo o que nele há de inelutável”. E aduz: “Os jovens arquitetos foram os verdadeiros revolucionários [...]. No Brasil, a primazia no plano artístico coube à arquitetura, o importante era criar algo novo, ali onde o solo era ainda virgem”.6 Daí Brasília surgir como a mais radical realização da modernidade brasileira. Antes da trindade Juscelino

Kubitschek, Lucio Costa e Oscar Niemeyer já havia Pedrosa pensando um modelo político, ecológico e funcional para a arquitetura no Brasil, similar ao que teria regido a invenção de Brasília.

A vida é mais importante do que a arquitetura. (Oscar Niemeyer)

Brasília se friccionou com a expectativa brasileira de modernidade e justiça investida por Mario Pedrosa na arquitetura ao comentar o conjunto residencial do Pedregulho, no Rio, projetado por Affonso Eduardo Reidy, que, “por sua solução audaciosa no campo da habitação, fez-se obra social. Abre às realizações de um novo caminho” (p. 260). Pedrosa estava mais próximo do sonho messiânico do candango em busca da Terra da Promissão no Planalto Central. Pensada para o poder, Brasília oscilou entre um plano de exclusão, dimensão da higiene social da futura capital federal, e uma acrítica visão utópica do desenvolvimento que legitimasse a grandiosidade de seu projeto. O sonho acabou em pesadelo com o golpe de 1964.

A distribuição das classes sociais no traçado físico-político de Brasília pouco diferia do fato de que algo entre 5 mil e 10 mil pessoas estavam internadas em instituições psiquiátricas no Rio nos anos 1950 como estratégia de “higienização” das ruas da capital federal, isto é, estarem fora de circulação e da vista, fora dos espaços do poder e de sua burocracia. Assim, o apartheid social se transfere da Velhacap para a Novacap como disciplina de distribuição social dos corpos na cidade-sede da República e de suas cidades-satélites sob um regime escópico próprio. As graves contradições da estrutura da sociedade brasileira, mais visíveis nas favelas do Rio, não sendo resolvidas pelo modelo utópico, acabaram sendo ainda mais mascaradas na nova sede do mando político. Em 1958, Pedrosa respeita a posição de Niemeyer, mas não deixa de apontar contradições nas “esperanças messiânicas” equivocadas do arquiteto filiado ao Partido Comunista (“como se o comunismo de Stálin fosse o comunismo de Lênin e Trotsky”) e, sem enunciar, deixa entrever o que reputava um equívoco no processo de formulação de Brasília: “engajou-se numa máquina política acreditando ter-se engajado numa radiosa utopia”. Pedrosa reivindicava unidade entre o estético e o ético, como Trotski proporia.7 Portanto, Brasília não surgiu imune aos embates das esquerdas do país. Apesar da diferença ideológica, o trotskista Mario Pedrosa não deixou de reconhecer valor em Oscar Niemeyer, um stalinista fiel ao

modelo soviético pós-Lênin. Pedrosa foi capaz, ainda, de levar para Brasília uma parte do Congresso da Associação Internacional de Críticos de Arte (Aica), realizado no Brasil em 1959.

O filme The belly of an architect [A barriga do arquiteto] (1987), de Peter Greenaway, discute Étienne-Louis Boullée, que inspirou Albert Speer, o arquiteto de Hitler. Com desenho neoclássico, o Cenotáfio para Newton (1784), de Boullée, se conceitua como “arquitetura parlante” porque sua estrutura formal (esfera) expressa a função de homenagem ao físico. Os contornos da questão da “arquitetura parlante” na obra de Niemeyer se encontram em seu projeto mais antropomórfico: o dito “Olho”, pavilhão do Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba, que enuncia a relação entre forma anatômica do prédio (um olho) vinculada a sua função de ver arte. Irônico, Flávio de Carvalho projetou casas com cara de gente na Alameda Lorena, em São Paulo, em 1933. Em The monumental impulse, George Hersey diz que “há muito tempo a raça humana tem tido uma queda para o uso do pênis como um paradigma arquitetônico”.8 Entenda-se que o termo inglês impulse, no título de Hersey, se origina do conceito de Trieb em Freud, que indica “pulsão” em português, a carga energética que leva o organismo a tender para um alvo. O psiquiatra analisou as pulsões sexuais, do ego e de autoconservação. A “arquitetura parlante” se iguala à escancarada exposição genital da pintura A origem do mundo (1866), de Gustave Courbet. O exemplo-mor de retórica da forma parlante é o projeto de Claude-Nicolas Ledoux para um prostíbulo parisiense (1790), cuja planta baixa tinha a forma de um falo, que designava as atividades de dispêndio de energia sexual envolvidas no prédio. A ideia de gênero é inevitável na obra de Niemeyer. Ele mesmo sexualiza sua arquitetura ao anunciar nexos entre as formas neobarrocas de seus projetos e as curvas do corpo feminino.9 Tal arquitetura do “feminino” remete às condições suscitadas por Hersey sobre os espaços das cavernas paleolíticas com passagens e “câmaras biomórficas” que “evocam a complexidade da anatomia interior feminina”.10 Nesse sentido, é possível afirmar que Brasília tenha traços paleolíticos modernos.

Não se trata de ceder a um imperativo falocêntrico na arquitetura, mas de reconhecer a ocorrência de seu viés de gênero e interpretar sua possível função simbólica. O citado Hersey vê o “paradigma do pênis” em obeliscos e torres, já que alusões a ereções “expressam

fatos específicos sobre territórios, herança de gênero e status” em arquitetura (p. 135). A coluna de Napoleão em Paris, modelada na coluna de Trajano, celebra a vitória em Austerlitz. Feita com os canhões dos exércitos vencidos, foi removida durante a Comuna de Paris, por sugestão de Gustave Courbet, que alegava falta de valor artístico e perpetuação de ideais de guerra e conquista. Para Émile Gros-Kost, Courbet “arrancou o assassinato e o despotismo, jogou no chão aquele pedaço de bronze presunçoso”.11 O pintor, no entanto, não mencionou o fator falocêntrico da coluna. Na verdade, ele próprio já havia explicitado os órgãos genitais femininos em foco frontal na sempre referida tela A origem do mundo. Hersey entende haver traços masculinos em dadas representações do poder político, econômico ou administrativo. Ele observou que o pênis ereto e testículos estão conjugados na Ypsilanti Water Tower (1890), em Michigan, entre abundantes exemplos. Cogite-se ad argumentandi que o monumental edifício do Congresso Nacional em Brasília, desenhado por Niemeyer, também se classificasse na lógica desse paradigma fálico. Entre os inúmeros monumentos de igual teor fálico estão o projeto (1939-1947) de PIínio Botelho do Amaral para a sede do Banco do Estado de São Paulo (adaptado para se parecer com o Empire State Building, de Nova York) e a torre dita Gherkin, projetada por Norman Foster na Londres neoliberal. Quadros e prédios podem se tornar sexualmente carregados como na arquitetura de Ledoux, em A origem do mundo, de Courbet, ou na escultura Íris, a mensageira dos deuses (1895), de Rodin. Niemeyer agora parece, portanto, concordar com Loos, que diz: “toda arte é erótica”.12

“Arquiteturas parlantes” não são ingênuas. São projetadas para funções retóricas e seguem a intencionalidade, em termos de Edmund Husserl. Para não as reduzir apenas à expressão do poder machista e patriarcal, deve-se pensar o prédio do Congresso Nacional de Brasília como centro legiferante na ordem do Estado e, nesse confronto, buscar o primado do significante da linguagem arquitetônica. Sua dimensão fálica é proposta ao dispositivo físico para a função de um poder constitucionalmente estabelecido no paradigma iluminista de O espírito das leis (1748), de Montesquieu. Assim, a Praça dos Três Poderes no Plano Piloto representa a separação dos poderes defendida por Montesquieu. A análise do edifício pode, então, oscilar entre a reiteração da utopia desenvolvimentista de JK, a crítica marxista à sociedade capitalista

e a dimensão psicanalítica de um edifício de parlamento. No campo da “arquitetura parlante”, prédios, como o Congresso Nacional, atuam como máquinas produtivas, máquinas desejantes, máquinas esquizofrênicas, em toda espécie de dinâmica social.13 Em suas cercanias, a forma do Senado pode remeter a um seio. À distância, pode ser interpretada como um falo. Mais precisamente, o edifício do Congresso Nacional se revela ser a arquitetura para simbolizar o Poder Legislativo, a Lei do Pai, a lei do falo. Portanto, a linguagem da arquitetura projeta máquinas desejantes. O improdutivo, o sem gênero, o inconsumível, o inconfessável nos edifícios públicos permanecem longe da cena, ficam na ob-scena das verdades, meias-verdades e a linguística da mentira. Palavras e signos materiais não mentem sozinhos, afirma Harald Weinrich.14

Nessa linha de reflexão, o edifício do Congresso suscita discussões sobre masculinidade e castração. A partir de Totem e tabu, de Freud, revelam-se simetrias entre gêneros, poder, desejo e discurso psicanalítico. Na cadeia de significantes, fica difícil pensar que a tal devoração canibal do pai pelos filhos fosse a realização mecânica em que a “identificação com ele [o pai, se fosse ele o Estado e seu poder] e cada um deles [os irmãos] adquirisse uma porção de sua força”.15

Jacques Lacan, teórico do fetiche paterno, oferece a interpretação do Pai a partir da homofonia entre as locuções “nome-do-pai” (nom-du-père) e “não do pai” (non du père) como significante da função do pai simbólico. “É no ‘Nome-do-pai’ que devemos reconhecer o suporte da função simbólica que, na alvorada da história, identificou sua pessoa com a figura da lei”, escreveu.16 É nessa alvorada que o edifício do Congresso Nacional desponta portentoso na Esplanada dos Ministérios.

Numa competição fálica, Sergio Bernardes projeta o mastro da Bandeira Nacional na Praça dos Três Poderes em 1972. Lá, a bandeira brasileira – a representação emblemática da nação – tremula sobre os espaços do Estado. Trata-se de notar um regime escópico da arquitetura que tece a teoria constitucional da representação política a partir do jogo do visível. O prédio do Congresso Nacional produz uma torção: de um lado, domina a Praça dos Três Poderes, sobre o Palácio do Planalto, sede do Poder Executivo, e, do outro, o edifício do Supremo Tribunal Federal, órgão máximo do Poder Judiciário. Superando os três poderes, ergueu-se em 1972, no apogeu

da ditadura militar, o mastro com cem metros de altura. Noutra face, o prédio do Congresso Nacional domina e preside o espetáculo da Esplanada dos Ministérios, isto é, o locus da ação empírica do Executivo, da burocracia e do dispêndio do orçamento federal. Sobre essa paisagem-cena montada pelo urbanismo e pela arquitetura se lança o voraz regime escópico do Congresso. Seu edifício é descortinado da Rodoviária, sendo o alvo maior de chegada dos que acorreram a Brasília atrás de seus sonhos individuais e ponto onde diariamente milhares de trabalhadores, oriundos das cidades-satélites, refazem a distribuição das classes sociais no Plano Piloto. Desse ângulo e distância, o prédio do Congresso Nacional não é seio, mas falo.

De 2008 para 2009, o Brasil piorou no ranking mundial no desempenho dos países em termos de desigualdade entre os gêneros, segundo o Fórum Econômico Mundial. Passou de 73º (2008)17 para 81º (2009)18 e 133º lugar (2023). Em termos de participação de mulheres no Congresso Nacional, o país ocupava a 109ª posição entre 134 países. Em 2024, o Senado contava com 15 mulheres numa composição de 81 membros, e, na Câmara dos Deputados, dos 513 parlamentares, 91 são mulheres, cifra que representa certo aumento da presença feminina no Congresso. Tais fatos reiteram o destino falocrático da arquitetura do Parlamento brasileiro. Na utopia formal das instituições de Brasília, a configuração plástica da arquitetura para suas instituições e o desempenho político real confluem para a situação totêmica falocrática de Totem e tabu: “o pai primal violento tinha sido sem dúvida temido e invejado por cada um da companhia dos irmãos”.19 Édipo supõe uma fantástica repressão da máquina desejante, afirmam Gilles Deleuze e Félix Guattari em Anti-Oedipus. 20 Na atualidade não há correspondência absoluta entre o desempenho totêmico do Congresso, instância do Estado, e sua percepção pela sociedade como o Moloch contemporâneo. Se o Pai primal violento é o Estado, o que o consome não é a cidadania emancipada, mas parlamentares em voragem corrupta e de assalto à esfera pública, como butim político, pelos interesses privados dos parlamentares dos quatro cantos da República no desempenho de uma lógica às avessas da democracia. É a gestão política da metonímia da democracia: a simbiose entre anódinos, a coalescência perversa e a fusão entre partidos. É lá, no caldeirão da (in)governabilidade perversa, que se cozinha o festim canibal do Leviatã brasileiro.

Arte e arquitetura em Brasília – malgrado Oscar Niemeyer

Desde sua construção, Brasília parecia associada à oposição à arte abstrata, graças ao poder decisório de Oscar Niemeyer na implantação de obras de arte nos espaços públicos e na ornamentação de edifícios da Novacap. No Brasil, a querela paroquial “figurativos versus abstratos” fora superada desde os anos 1940.21 Mario Pedrosa defendia o Abstracionismo desde 1945, em sua coluna do Correio da Manhã, no Rio de Janeiro. Cicero Dias pintou um mural abstrato para a Secretaria da Fazenda do Estado de Pernambuco, no Recife, em 1948, e Franz Weissmann inaugurou no Rio o Monumento à liberdade de expressão do pensamento (1954), uma coluna concretista. O primeiro debate sobre o Abstracionismo foi na sede da Companhia Sul América, em 1949, no Rio. Pedrosa argumentou que “os artistas foram os primeiros a ter a intuição do esfacelar das velhas noções espaciais, e, confiantes, entregaram-se a novas percepções”.22 Sabidamente, Niemeyer foi hostil à arte abstrata. Alfredo Ceschiatti afirmou que deixou suas pesquisas de formas semiabstratas, como parecia indicar a escultura Peixe (1953, Coleção MAM Rio), por temer perder encomendas pelo arquiteto.23 Partícipe de uma geração ortodoxa do Partido Comunista Brasileiro (PCB), Niemeyer padeceu da abstractofobia que acometia a agremiação. A construção de Brasília é contemporânea ao desenvolvimento do Neoconcretismo, que foi mantido ao largo da capital federal. Como teria sido se Brasília tivesse se encontrado com esse movimento-chave da arte do século XX? Niemeyer, no entanto, nunca concordaria com o arquiteto vienense Adolf Loos, para quem “ornamento é crime”.24 Dois indivíduos, com refinada capacidade de negociação, desempenhariam um decisivo papel na ruptura do cerco stalinista de Niemeyer à arte abstrata em Brasília: o embaixador Wladimir Murtinho e o polissêmico Athos Bulcão.

A grandeza cultural do rio das pedras pequenas. O embaixador

Wladimir Murtinho foi o formulador maior do programa geral de funções e necessidades do prédio do Palácio Itamaraty, sede do Ministério das Relações Exteriores em Brasília. A pauta do plano estético, simbólico e político-diplomático da sede do Itamaraty estruturada por Murtinho incorporava pinturas, esculturas, painéis em mármore, madeira ou mosaico, tapeçarias, prataria, oratórios coloniais, mobiliário barroco, design moderno que resultou numa

síntese de espaços apropriados para a ação formal diplomática e no acervo museológico, que definia uma versão da identidade brasileira de Frans Post às audácias arquitetônicas da escadaria projetada por Niemeyer e calculada por Joaquim Cardozo. Wladimir Murtinho não pensava em mera “decoração de interior”, mas num projeto que se provou ser o paradigma de justeza e discernimento da função simbólica da arte, em sua condição de expressão coletiva, no espaço público em Brasília para a apresentação da cultura multissecular do país aos representantes diplomáticos de outras nações na capital federal. O embaixador Murtinho soube articular magistralmente arquitetura, arte e design no espaço de um órgão do Estado para representar a sociedade por meio da diversidade de seus artistas, da variada história da arte brasileira de prataria colonial à mais complexa escultura de Maria Martins. Com a aquisição das esculturas abstratas de Franz Weissmann e de Mary Vieira e a encomenda dos relevos murais de Rubem Valentim, Emanoel Araujo e Sergio Camargo, o Itamaraty rompeu com a abstractofobia de Oscar Niemeyer.25 Os jardins e a imensa tapeçaria de Burle Marx (que, com seus 25 metros, evoca a tapeçaria de Bayeux), o mobiliário Dom José I, as cadeiras de Joaquim Tenreiro, Sergio Rodrigues e Bernardo Figueiredo, o mural a têmpera de Alfredo Volpi, as esculturas de Maria Martins, Marianne Peretti e Bruno Giorgio e o Políptico do Itamaraty, de Fayga Ostrower, exemplificam uma brasilidade jubilosa com Brasília. Abrigando artistas de vários pontos do Brasil, migrantes de todo o mundo, o Itamaraty arremata sua vocação simbólica regida por refinado discernimento estético, mas que, sobretudo, testemunha a rica formação social do país. O embaixador Wladimir Murtinho parece ter ido fundo no significado do substantivo itamarati na língua geral setentrional, formado pela junção de ita (pedra), mirim (pequeno) e ty (rio), isto é, “rio de pedra pequena”. O que esperar de um rio de pedras pequenas senão diamantes, que o garimpeiro Murtinho faiscava como obras de arte da mais profunda significação, com o que buscava conformar o eidos do Brasil.

Athos Bulcão ou a arte de sabotar Oscar Niemeyer

Havia na azulejaria de uma secreta memória da divisão material dos azulejos orientando o desenvolvimento da razão calculante de um novo espaço.

(Ruben Navarra)26

Bulcão foi um artista múltiplo. Sua obra implica exemplar relação entre arte e arquitetura. O que seria do Teatro Nacional de Brasília sem relevo externo? Mutatis mutandis. Bulcão adotou a já referida ars combinatoria de Leibniz ao preencher a parte externa da forma piramidal do teatro com cubos e paralelepípedos alvos que remetem às pedras bem organizadas das grandes pirâmides do Egito. Foram os relevos de Bulcão que permitiram ao artista chinês Tseng Kwong Chi (1950-1990) se autofotografar numa das faces do Teatro Nacional, como parte de sua série East meets West, em que se retrata vestindo sempre um terno à Mao diante de conhecidos monumentos do mundo: do Empire State Building, em Nova York, ao Cristo Redentor, no Rio de Janeiro. “Eu sou um viajante curioso, uma testemunha do meu tempo e um embaixador ambíguo.”

Na década de 1940, o azulejo foi revivido no Brasil por duas vertentes. O casal europeu Maria Helena Vieira da Silva e Árpád Szenes se refugia no Rio de Janeiro durante a Segunda Grande Guerra. Na pintura de Vieira da Silva, um mundo em extrema desagregação pelo conflito mundial se rearticula no quadro História trágico-marítima ou Naufrágio (1944). Athos Bulcão, amigo do casal de exilados, deve ter visto como a malha cubista tensiona espaços modulados de tabuleiros de xadrez (O jogo de xadrez, 1943), jogos de cartas (Le jeu de cartes, 1942), bibliotecas e cômodos azulejados (Couloir sans limites, 1942-1948). O desbordamento do espaço moderno se finca a partir dessa apropriação do “real”. Vieira da Silva, que planejara azulejos para uma parede do metrô de Lisboa (1942), transpôs esse gosto lusitano contemporâneo para painéis em azulejaria para o refeitório da Universidade Rural do Rio de Janeiro (1943). Ruben Navarra observou “o equilíbrio de uma razão plástica onde é possível conciliar o azulejo e as touches de Cézanne com planos de Uccello sem perder de vista a ótica do mosaico”.27

A segunda vertente da azulejaria envolve os painéis de Candido

Portinari no novo prédio do Ministério da Educação (1936-1945), ápice da arquitetura moderna brasileira. Quase toda essa azulejaria foi em azul e branco, padrão básico do Brasil colonial, que conduz uma cadeia de fontes e passagens que atravessam Portugal e Holanda e, mais remotamente, atravessam a China e o Islã. A leveza visual se associa à herança barroca das cidades costeiras. A construção ideológica identitária do Modernismo no Brasil implicou projetar

o futuro também por meio da recuperação da nossa história. Daí os modernistas terem se envolvido tanto na implantação do serviço de proteção ao patrimônio histórico quanto em iniciativas como a retomada da tradição colonial da azulejaria, uma das grandes marcas do Modernismo brasileiro.

Artista e historiador da arte brasileira, Carlos Zilio observa que é nas cenas de mar dos azulejos de Portinari para o prédio do Ministério da Educação no Rio que “a experiência pós-cubista de Portinari atinge sua maior plenitude, constituindo-se não só a obra mais importante do artista, como também uma das mais expressivas do Modernismo. Nessa obra, o talento de Portinari finalmente se libera dos fantasmas da temática. [...] No mergulho, na alegre sensualidade das águas, surge a imensidão do espaço”.28 Além de Portinari, Athos Bulcão, Burle Marx, Djanira, Waldemar Cordeiro, Antonio Maluf, Alfredo Volpi, Mario Zanini, Carybé, Frans Krajcberg e Aluísio Carvão também produziram painéis de azulejaria.29 Bulcão foi o nexo entre aquelas duas vertentes da azulejaria modernista. Membro do círculo carioca do casal Vieira da Silva e Szenes, notou que: “nenhum dos dois se entrosou muito bem com o ambiente brasileiro, e isto, talvez, porque não procuraram se aproximar de Portinari, que era, então, a figura centralizadora da arte brasileira”.30 Em 1945, Portinari convidou Bulcão para auxiliá-lo nas pinturas da Igreja de São Francisco, na Pampulha (BH), projetada por Niemeyer. Em 1958, Niemeyer levou-o para trabalhar em Brasília. Desde essa experiência, Bulcão trabalhou com arquitetos como João Filgueiras Lima (Lelé), Ana Maria Niemeyer, Ítalo Campofiorito e Elvin Dubugras.

O lugar de Athos em Brasília

Vivendo em Brasília desde o início do erguimento da cidade, Athos Bulcão desenvolveu um sistema de relações entre arte e arquitetura, simultaneamente produtivo e lúdico, singular no Modernismo brasileiro. Na desafiante construção da Novacap, ele compreendeu que a azulejaria não se reduz a um suporte para o desenho, mas se constitui em estrutura em si mesma, podendo cada azulejo ser relacionalmente autônomo na estrutura do painel, com os demais quadrados. Bulcão sabe que malha quadriculada (a grid que controlaria o espaço pictórico da arte moderna) azulejada não se elimina totalmente do campo do visível, pois subsiste no inconsciente

A arte é para quem não tem medo.”

Paulo Herkenhoff em entrevista para o projeto Ocupação, em 2025

ótico. O artista entendeu o azulejo como unidade concreta constitutiva da carnalidade do muro. Azulejaria não é simples decoração de prédios nem recompõe a pele da alvenaria. Para seus experimentos, Bulcão compreende ser necessário problematizar a aplicação dos azulejos, transgredir o espaço então restrito a regras e jogos de inscrição do signo novo na linguagem da arquitetura. Daí a malha se desamarrar para potencializar o assentamento daqueles objetos.

A crítica de Bulcão ao meio técnico representa um projeto político ímpar de requalificação da “vontade material”, que aqui se refere a um conceito de Gaston Bachelard.31 Reconhecer que a manipulação dos azulejos pudesse implicar desejo e vontade dos operários sobre o material leva Bulcão a repensar sua própria práxis da arte. O que é o saber nesse caso? Quem é que sabe? Será que a gente se dá conta que é o Outro?32 Bulcão parece responder a essas perguntas de Lacan sob o ponto de vista materialista na reorganização da produção.

Na perspectiva do materialismo histórico, alienação e mais-valia rondam os ateliês dos artistas. Os operários que assentam os azulejos não foram ignorados por Athos Bulcão como sujeitos da criatividade, nem o valor agregado pelo trabalho deles na feitura da obra de arte. Um novo método de trabalho responderá às contradições próprias do modo de produção capitalista. No contrato social de Bulcão com os pedreiros, não há mais um sujeito hegemônico (o artista) sobre a abstração do trabalho de azulejamento. Ele passou a criar apenas o desenho abstrato do azulejo e abdicou de definir a conformação final do conjunto assentado. A composição do painel cabe aos operários que afixam as peças, que devem decidir livremente o posicionamento de cada azulejo sem seguir qualquer sugestão do artista. A única regra é que os azulejos com curvas não podem conformar um círculo nem os ângulos podem se fechar num quadrado. Uma forma abstrata – uma curva, por exemplo – pode ser posta em qualquer das quatro posições admitidas por um azulejo. O olhar dos pedreiros se emancipa, pois Bulcão reconhece neles a condição de sujeito de decisões estéticas. O artista se liberta da “composição” e o trabalho se livra da pré-visualização das regras de combinação. A desalienação proposta por Bulcão é o diagrama de relações de alteridade social que reconhece incondicionalmente a potência e o saber do Outro.

Na razão instituída por Bulcão, os operários trabalham como articuladores semiológicos ativos, modulam a escritura e contribuem

para a conformação do traço poético mediante a articulação de sintagmas visuais em ordem virtual e imprevisível, com a falência do paradigma. Em certas instâncias, essa intervenção desejante do Outro aproxima o método de Bulcão da recuperação da presença do sujeito no objeto proposto por Lygia Clark (Bicho, 1960) e outros artistas neoconcretos. Na azulejaria de Bulcão e nos Bichos de Clark, a obra permanece incompleta sem o investimento do desejo pelo Outro. Indubitavelmente, poderia se pensar que Athos Bulcão, a seu modo, aderiu inconscientemente ao programa conceitual do Neoconcretismo.

Política, ótica e sabotagem

A obra de Athos Bulcão explicita a contribuição do fator trabalho na constituição do objeto, portanto, também do valor de troca. No processo de circulação, o valor de troca abstrai a contribuição do trabalho na produção de bens. Bulcão reivindica a constituição de uma força de trabalho cognitivo, a arte como atividade inventiva e não apenas mercadoria.33 Bulcão oblitera a cisão entre valor de troca e valor de uso. Abdica do poder hegemônico do artista, e o arranjo da azulejaria provém do acaso, das escolhas imprevisíveis e individuais de cada operário e não de leis de causa e efeito ou das leis da boa continuidade de uma forma. Não recompõe a totalidade, como um mosaico ou puzzle. Antes, torna visível o desejo na justaposição dos quadriláteros, ação antiedipiana de “objetos parciais essencialmente fragmentários e fragmentados. O desejo faz circular, circula e corta”, proclamaram Gilles Deleuze e Félix Guattari.34

Enquanto Décio Pignatari argumentou que ao Concretismo de São Paulo faltaram “estruturas estocásticas”, isto é, resultantes do acaso,35 Bulcão leva à pane as leis da Gestalt da percepção experimentadas em seus painéis de azulejos: o olhar dança sem marcação. O ritmo visual que surge da ação dos pedreiros substitui a lógica gráfica da já abordada ars combinatoria da azulejaria por um frenético movimento das formas resultante do improviso, do aleatório e do alógico no assentamento das peças. Altera seu curso a cada momento. A noção de norma está subvertida, o olhar se libera da malha. Cabe então aplicar a Athos Bulcão o aforismo de Mario Pedrosa: “a arte é o exercício experimental da liberdade”.36

O projeto ético e político de Athos Bulcão era harmonizar sua própria obra com os prédios, torná-la necessária à arquitetura como fator de integração estética e social. Assim, provou-se o mais acertado parceiro de Niemeyer, pois soube conferir à relação entre arte e arquitetura a adequação e a justeza que fazem a dignidade de cada um dos dois componentes e a harmonia da totalidade.37

Esta é a singularidade de Athos Bulcão: produzir uma fusão entre uma prática socioestética e as relações sociais no espaço construído pelo homem. Ao acentuar que a abstração não é mero exercício da forma pela forma, mas a condição de possibilidade de desalienação do operário, Bulcão logra convencer Niemeyer a aceitar os painéis de azulejaria abstrata de seus prédios. Com suas estratégias políticas, Bulcão logrou inscrever o interdito, isto é, formas abstratas em projeto do arquiteto irascível na desaprovação da forma concreta. Tal resposta articula a engenhosidade de Niemeyer ao projetar totalidades arquitetônicas incompletas que se concluem com a participação de um duplo Outro. De fato, Bulcão foi o Outro de Niemeyer no processo artístico da invenção arquitetônica de Brasília, e os operários foram o Outro de Bulcão.

Oscar Niemeyer foi membro do PCB. Até o fim da década de 1950, vigiava o código ideológico definido pelo bolchevique Andrei A. Zhdanov (1886-1948) que determinava os contornos políticos e estéticos da cultura, controlado estritamente pelo Estado por meio de censuras e perseguições de artistas insurgentes aos novos padrões impostos. Essa política foi formalizada em 1946, por uma resolução do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética. No período de 1946 a 1953 (ano da morte de Josef Stalin), a literatura russa teria chegado a um dos mais baixos graus de decadência de sua história. Zhdanov pretendeu criar uma nova filosofia da arte universal com parâmetros bem definidos, tais como o anticosmopolitismo, que incluía a condenação da arte abstrata. Em função de tudo isso, ele preconizava o Realismo Socialista, porque todo símbolo deveria se correlacionar a um valor moral simplificado predeterminado pela Comintern. Com a morte de Zhdanov, em 1948, Stalin deu continuidade aos princípios de controle do Estado sobre a arte. Niemeyer adotou o breviário estético zhdanoviano-stalinista de abjuramento do Abstracionismo. Isso explica por que Brasília se fez como uma cidade anticonstrutiva, contrária ao Neoconcretismo, um dos movimentos coevos da construção da capital,

que havia sido consagrado internacionalmente na exposição konkrete kunst – 50 jahre entwicklung, sob a curadoria de Max Bill na Helmhaus, em Zurique, em 1960, com a participação de 94 artistas de vários cantos do mundo, entre os quais Amílcar de Castro e Franz Weissmann (poderiam ter feito esculturas espetaculares para Brasília), Waldemar Cordeiro (teria contribuído com paisagismo, a exemplo do que planejou em Goiânia), Hélio Oiticica, Décio Vieira (que foi assistente de Alfredo Volpi na pintura de murais em Brasília), Lygia Clark e Lygia Pape (que teriam enriquecido o acervo de escultoras nos espaços de Brasília) e Mary Vieira (a única com obra em Brasília, no Palácio Itamaraty).38 Foi com aquela trinca intransigente contra a abstração geométrica, formada por Zhdanov, Stalin e Niemeyer, que Athos Bulcão precisou se embater.

O carioca João Filgueiras Lima, Lelé (1932-2014), também da equipe de Lucio Costa, mudou-se para Brasília em 1957, depois que se formou em arquitetura, para integrar a equipe de Oscar Niemeyer. Visando à otimização do uso dos materiais para diminuir os custos na construção, Lelé contribuiu no acervo arquitetônico de Brasília sobretudo com dois projetos de hospitais da Rede Sarah, no Centro e no Lago Norte. Além da sensação de leveza de seus projetos, Lelé introduziu uma solução arquitetônica paradigmática para os bons cuidados dos internados no hospital: vários quartos tinham “varanda”, que era uma área murada, mas aberta, para que os pacientes pudessem se expor ao sol, gozar do ar fresco e apreciar o céu azul de Brasília. Outra aposta de Lelé foi a colaboração de Athos Bulcão, que, para além de seus projetos de azulejaria, criou formas numa equilibrada gama de cores e com personalidade, que se caracterizavam por seus benefícios à condição mental dos enfermos. Em 1839, o químico Michel-Eugène Chevreul (1786-1889) publicou A lei do contraste simultâneo das cores e de sua aplicação, 39 no qual trata de problemas sobre o assunto colocados por Leonardo e Goethe. Com Chevreul, os artistas, inclusive muitos brasileiros, aprofundaram seu entendimento das possibilidades pictóricas das cores, como o aspecto da “verdade fisiológica”, que, sem serem valores absolutos, influenciam umas às outras quando aproximadas. O psicanalista Wilhelm Reich concluiu que “o azul é a cor específica da energia de dentro e fora do organismo”, em The orgone energy accumulator – its scientific and medical use. Conforme Reich, orgone é a energia sexual ou força vital distribuída pelo universo que pode ser colhida e guardada para uso terapêutico.

Nas Zur Farbenlehre, Goethe, de quem Chevreul se diferenciou, justapôs à teoria da cor física de Newton uma nova abordagem baseada na percepção pelo cérebro. A cor é o processamento de informação pelo cérebro (§ 815: que se “sente [a harmonia das cores] presente em nossas mentes”), a operação mecânica da visão (§ 69: “a cor é em si um grau de escuridão”), e pela complexidade do processo perceptivo (§ 838: “cores, conforme conectadas com molduras particulares da mente, são novamente consequência do caráter e das circunstâncias particulares”). É plausível que essa ideia de “verdade fisiológica” da cor tenha levado Athos Bulcão a pensar a forma mais adequada para expor pacientes, seus familiares e o pessoal dos hospitais a determinadas cores e suas posições relacionais.

Noutra vertente paralela aos trabalhos de Athos Bulcão, o mosaísta autodidata Paulo Werneck40 (1907-1987) sempre foi um colaborador de Oscar Niemeyer (os dois foram colegas de escola), quer na Igreja de São Francisco de Assis no complexo da Pampulha, quer em edifícios no Rio de Janeiro e em Brasília. Seus painéis do Maracanã são das melhores obras modernistas sobre o futebol. Werneck trabalhou com vários arquitetos pelo país. Seus mosaicos estão em várias cidades brasileiras onde nunca se esperaria encontrar uma obra de um artista tão singular, como Marataízes (ES) e Cataguases (MG). Paulo Werneck foi ainda pintor, desenhista e ilustrador de livros infantis (como a conhecida lenda gaúcha O negrinho do pastoreio, 1941) e de colunas políticas em vários jornais.

Paulo Werneck foi convidado para fazer mais de uma dezena de painéis em Brasília, sobretudo em mosaico, mas também em baixo-relevo no cimento. O edifício Anexo do Itamaraty conta com um painel abstrato do artista.41 Muito esmerado, Werneck compreendeu a minúcia e a acuidade que se faziam necessárias para construir seus projetos figurativos ou abstratos para a perfeita visibilidade de suas figuras ou para a adequada precisão da forma geométrica, como no caso do painel do Palácio Itamaraty brasiliense. Senhor de uma fenomenologia do mosaico, Paulo Werneck havia compreendido com Paul Klee que “a arte torna visível”, mas seu desafio era transformar diminutas partículas informes em elementos constitutivos e reveladores das formas sob a mais precisa razão calculante. 42 Athos Bulcão, o sabotador da abstractofobia de Oscar Niemeyer, está em palácios, repartições públicas, escolas, hospitais e outras edificações da capital federal, mas, sobretudo, ele habita o coração dos brasilienses.

A Bahia bate tambor em Brasília ou o peji construtivo de Rubem Valentim

[Rubem Valentim] pertence à mesma família espiritual de Volpi, de uma Tarsila.

(Mario Pedrosa)43

Rubem Valentim (1922-1991) desenvolveu o mais sólido e pertinente trabalho de articulação entre o cânon da arte concreta e o universo espiritual das religiões herdadas da África a partir do processo de escravização. O artista enfrentou a aparente incongruência entre o racionalismo da abstração geométrica e certos princípios da modernidade para elaborar seu assentamento externo em bases teóricas de uma arte do sacro, ainda que sem funções rituais. O recurso à base do candomblé indica que a arte de Valentim tem aquela determinação pela religião que caracterizaria a “arte negra”, segundo a posição histórica de Carl Einstein sobre a cultura visual da África,44 mas a obra não busca encarnar a própria divindade. A obra de Valentim jamais pretendeu absorver a transcendência conferida pela religião aos objetos de culto. Sua arte surgiu no momento do amplo descrédito de que as Escrituras (a Bíblia e o Corão) gozavam em meados do século XX nas sociedades ocidentais do Hemisfério Norte.45 A ausência de Escrituras do candomblé diante da oralidade prevalecente foi a condição que conduziu Rubem Valentim ao largo emprego do símbolo e, a partir dele, produzir a “riscadura brasileira”. A seguir, serão abordados diversos aspectos que singularizam a produção de Rubem Valentim no contexto da cultura brasileira e em relação às distorções da política, da polícia, da antropologia e dos intelectuais modernistas, entre outros fatores negativos. O projeto estético de Valentim há que ser visto também na perspectiva mais ampla da arte dos afrodescendentes das Américas e no seu significado internacional crescente. Em alguns dos momentos mais produtivos e especiais de sua arte, Rubem Valentim residiu em Brasília.

Ancestralidade não é primitivismo

Se o historiador Robert Goldwater distinguiu o Primitivismo do Arcadismo e do Romantismo em 1938,46 15 anos depois, Rubem Valentim já começava a se afastar dos problemas estilísticos do Primitivismo e do Romantismo. Compreender sua obra implica analisá-la criticamente em confronto

com os parâmetros daquelas vertentes apontadas por Goldwater. Kirk Varnedoe, o crítico, historiador e curador-chefe de maior prestígio do MoMA em sua época, promoveu em 1984 a grande exposição Primitivism in 20th century art: affinity of the tribal and the modern, acompanhada de um catálogo com dois espessos volumes. Surpreendente e polêmica, a grande mostra acertadamente não incluiu Rubem Valentim. O erudito, mas eurocêntrico Varnedoe provavelmente desconhecia a obra de Valentim.47 Embora haja quem hoje lamente a ausência de um Rubem Valentim em Primitivism, sou da opinião de que Varnedoe e os curadores acertaram, ainda que por acaso, em não incluir o pintor baiano, porque sua Weltanschauung jamais foi primitivista. Ancestralidade não é primitivismo. No entanto, Valentim foi uma ausência inaceitável na notável exposição The spiritual in art: abstract painting 1890-1985, sob a curadoria de Maurice Tuchman, no Los Angeles County Museum of Art.48 Valentim é um artista inexcedível na cena internacional no tocante à pregnância espiritual na forma construtiva.

Nacionalismo sob escrutínio

O tempo histórico de Rubem Valentim, como depois o de Emanoel Araujo, passa também pelo paradigma de homem preto. Manuel Raymundo Querino (1851-1923), o primeiro historiador da arte da Bahia, com textos como Os artistas baianos (1906), Contribuição para a história das artes na Bahia (1908), Teatros da Bahia (1909) e Contribuição para a história das artes na Bahia: os quadros da catedral (1911), identifica a importância de muitos artistas negros da Bahia. Se a obra de Rubem Valentim e de Emanoel Araujo afirma o lastro histórico da arte afro-brasileira, o corpus ensaístico de Querino é o responsável primeiro por esse processo. Com Valentim, a cultura negra no Brasil retoma seu sentido espiritual original sem qualquer ranço de exotismo, regionalismo ou nacionalismo. Afinal, como ser nacionalista num país que escravizou milhões de africanos e mantém um racismo estrutural?

Criminalização das religiões africanas no Brasil e o contra-ataque do Obá da Casa de Mãe Senhora

Rubem Valentim nasceu em Salvador, na Bahia, em 1922, em pleno período de maior repressão policial aos cultos de origem africana (1920-1930).49 Formou-se em odontologia antes de se dedicar à arte. Inquieto e loquaz, Rubem Valentim era Obá da Casa de Mãe

Senhora,50 a ialorixá do Ilê Opô Afonjá, em Salvador. Ele deixou a profissão de dentista para se dedicar à pintura por conselho de sua mãe de santo, por volta de 1948.51 Rubem Valentim jamais se esqueceu da criminalização do candomblé e da umbanda pela legislação civil brasileira por quase meio século.

A pesquisadora Ana Cristina de Souza Mandarino analisou como se fundamentou a criminalização dos cultos afro-brasileiros na então jovem República: “o Estado, desta forma, irá se fazer presente nos assuntos acerca da magia e intervindo de forma aguda no combate a feiticeiros e macumbeiros, criando instrumentos reguladores, criando juízos especiais e pessoal especializado”.52 O artigo 157º do Código Penal de 1890 estabeleceu o crime de “Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de talismãs e cartomancias para despertar sentimentos de ódio ou amor, inculcar cura de moléstias curáveis ou incuráveis, enfim, para fascinar e subjugar a credulidade pública”. Mandarino defende que aquela construção da imagem das religiões de origem africana como mágicas e misteriosas é resultado do processo de colonização brasileiro e de desvalorização de tudo que vinha do outro colonizado, inculto e incivilizado. “Dizemos isto, pois, em todas as religiões, podemos identificar em algum momento da sua história, passada ou mais recente, o uso da magia como um elemento de busca de mais fiéis. O que dizer da função da água benta e do incenso nas cerimônias católicas? E das sessões de descarrego e de cura dos cultos neopentecostais?”53

Tornar visível: Rubem Valentim e Abdias Nascimento

É interessante comparar os percursos dos gigantes da militância preta Abdias Nascimento (1914-2011) e Rubem Valentim (1922-1991). A partir de 1944, Abdias criou o Teatro Experimental do Negro, no Rio de Janeiro.54 No período de 1968 a 1978, esteve exilado nos Estados Unidos, onde se engajou em debates com o movimento de emancipação dos negros americanos, inclusive com o ativista Malcolm X. A pintura de Valentim é aproximável dos Fragmentos de linchamento (1963-1967), do texano Melvin Edwards, agressivas esculturas em aço carregadas de crítica ao racismo. Ambos os brasileiros são pintores que inscrevem símbolos religiosos e políticos de forma abstrata. Por causa da problemática de sua história de resistência político-cultural, deve-se, pois, pensar um eixo Abdias

Nascimento-Rubem Valentim. Ao se instalar em Brasília em 1966, Valentim explicita a inscrição da herança afro-brasileira no centro de poder da República. Abdias Nascimento foi eleito deputado federal pelo Rio de Janeiro a partir de 1982 e assumiu o mandato no Senado com a morte de Darcy Ribeiro, de quem era suplente, em 1997. Na Câmara dos Deputados, apresentou os projetos de lei (a) que transformava o racismo em crime de lesa-humanidade, (b) que incluía o ensino da história da África e da cultura negra no currículo das escolas e (c) que instituía o Dia Nacional da Consciência Negra em 20 de novembro – nenhum foi aprovado.55 Rubem Valentim e Abdias Nascimento foram dois gigantes na luta antirracista no Brasil. Nascimento criou territórios de expressão de luta: o Teatro Experimental do Negro, a teoria sobre a cultura e o racismo (por exemplo, O genocídio do negro brasileiro e O quilombismo) e espaços para a conquista de direitos pela cidadania preta. Suas publicações A luta afro-brasileira do Senado e Povo negro: a sucessão e a Nova República testemunham sua visão de parlamentar sobre a Constituição Cidadã de 1988. Já Valentim se embatia contra as formas de controle ideológico da vida simbólico-religiosa dos pretos do Brasil, tais como sua redução a delito jurídico, superstição, folclore, objeto da antropologia, exclusão étnica e apagamento. O crítico Paulo Sergio Duarte argumentou que Rubem Valentim é o exemplo de fracasso no projeto construtivo brasileiro,56 por julgar malsucedido o esforço de toda uma vida tentando promover o encontro do universo simbólico de religiões afro-brasileiras com a arte construtiva. Essas são errâncias do poder de artistas e críticos no campo da arte. Com a atuação de Rubem Valentim e Abdias Nascimento, Brasília se sobressai como palco de grandes lutas pela emancipação do povo negro do Brasil.

Superstição?

No ensaio A estética da vida (1921), um texto que fundamentou alguns postulados da Semana de Arte Moderna de 1922 e da Antropofagia de Oswald de Andrade, o romancista e diplomata Graça Aranha conclamou os artistas brasileiros a superarem a “infantilidade africana” da qual resultaria um paralisante “terror cósmico”.57 Aqui não se tratava de primitivismo exógeno, mas de uma convocação sobre a identidade brasileira e da psicologia de sua formação social histórica. Todavia, Graça Aranha deixava subentendido que persistiriam superstições entre os descendentes de escravizados no Brasil.

Desde o século I a.C. que o termo superstição foi usado no sentido pejorativo por filósofos romanos como Tito Lívio e Ovídio. Anteriormente, na Grécia Clássica, o termo superstição era usado por Plínio e outros como “arte da adivinhação”. Segundo o Oxford dictionary of etymology, superstition surgiu na Grã-Bretanha no século XVII, importado da França, para indicar por primeiro “excesso” e, depois, “fé irracional e crédula”, na “crença irracional de influências sobrenaturais”. O enciclopedista Denis Diderot (1713-1784) expandiu o sentido de superstição a “qualquer excesso de religião em geral” [grifo do autor], inferindo-se inclusive do cristianismo dominante. Na supramencionada referência de Graça Aranha, A estética da vida atribuía aos africanos escravizados no Brasil e a seus descendentes um terror supersticioso diante de alguns fenômenos. Já se disse que a palavra superstição é frequentemente usada para se referir a uma religião que não é praticada pela maioria de uma determinada sociedade, independentemente de a religião prevalente conter supostas superstições. Em sua convivência na Bahia na década de 1950, o fotógrafo francês Pierre Verger (1902-1996) e nosso pintor Rubem Valentim deslocaram o candomblé e a umbanda do campo modernista do folclore e da superstição. Veja-se, inicialmente, o problema da degradação dos cultos de matriz africana reduzidos a mera superstição e que hoje, com a proliferação das seitas evangélicas, tornou a intolerância mais aguda, com a demonização dos cultos aos orixás.

Contra a cristianização dos negros

Se houvesse analisado mais profundamente certos procedimentos de cada artista, talvez Mario Pedrosa pudesse ter notado a diferença entre Tarsila do Amaral e Rubem Valentim. O paralelo modernista de Valentim ocorre, no campo da autorrepresentação do negro, com Di Cavalcanti, que na década de 1920 interpreta visualmente e diferencia com precisão os gêneros musicais cariocas, como o samba, o samba de roda ou o Carnaval e o chorinho, a formação e os instrumentos tocados em cada caso. Tarsila e Valentim são “intérpretes do Brasil” por meio de rapsódias visuais, mas urge uma análise do significado de distinguir Tarsila de Valentim. A partir de seus modos de representação do negro e do proletário urbano na tela Operários (1933), pode-se projetar sobre a pintura de Tarsila aquilo que o professor da USP Carlos Guilherme Motta disse de Gilberto Freyre: “a cristalização de

uma ideologia com grande poder de difusão: a ideologia da cultura brasileira”. Em seguida, Motta arremata vendo nisso “as expressões de um estamento dominante, embora em crise”.58 Nessa linha de pensamento, Tarsila é o espelho de Gilberto Freyre em arte, mas não é possível equipará-la a Valentim. Ademais, avalie-se que, ainda segundo Motta, a escrita de Freyre – que seria correspondente à pintura de Tarsila de 1923 a 1933 – se constitui “numa oscilação entre a saga da oligarquia e o desnudamento da vida interna do estamento ao qual pertence: o resultado global, considerada a história das relações de dominação, reponta na valorização de um tipo de relacionamento racial que dê abertura para a mestiçagem. Nesse ponto reside pretenso modernismo da obra freyriana”.59 Motta aponta em Freyre, oriundo da classe média, aquilo que também sempre esteve claro na aristocrática Tarsila. Ela, mesmo com dificuldade em lidar com as relações de dominação, fortaleceu a ideia de democracia racial. O jogo negrofílico de Tarsila, à la mode em Paris da década de 1920, não corresponde ao esforço espiritual de Rubem Valentim. Tarsila do Amaral cristianizou os negros em telas como Anjos (1924), com seus dez seres pardos, Adoração (1925, também dito Nègre adorant), Crianças (1935/1949, também dita Orfanato), Altar (1939, ou Reza), Procissão (1941), Santa Irapitinga do Segredo (1941), Religião brasileira III (1964) e o guache Meninas na igreja (c. 1959). A Tarsila folclorizante da vida dos indivíduos pretos jamais lograria os mesmos resultados espirituais da obra de Valentim, que potencializou a arte como presença essencial ressignificante do sagrado das religiões afro-brasileiras no campo do visível e de suas possibilidades coma arma de resistência cultural.

Rubem Valentim foi um fiel obsessivo dos orixás. O machado duplo de Xangô, que corta de dois lados, é a metáfora da arte que se pensa (a) como incorporação genuína das raízes africanas remotas do Brasil e (b) como possibilidade de integrar a modernidade construtiva ocidental. Valentim demarca seu programa estético no Manifesto ainda que tardio: “Intuindo o meu caminho entre o popular e o erudito, a fonte e o refinamento – e depois de haver feito algumas composições, já bastante disciplinadas, com ex-votos –, passei a ver nos instrumentos simbólicos, nas ferramentas do candomblé, nos abebês, nos paxorôs, nos oxés, um tipo de ‘fala’, uma poética visual brasileira, capaz de configurar e sintetizar adequadamente todo o núcleo de meu interesse como artista. O que eu queria e continuo querendo é estabelecer um ‘design’ (que chamo riscadura brasileira), uma estrutura apta a revelar

nossa realidade”.60 Pode-se dizer que Valentim fez arte possuído pelos orixás. No entanto, ele já não vive a nostalgia da África, mas busca a atualidade moralmente harmonizadora do presente afro-brasileiro. Agencia a cultura ancestral no interior de uma sociedade que sofria de um “complexo de inferioridade do passado africano”, em que negro e africano tornaram-se sinônimos de escravo, nos termos levantados pelo antropólogo Arthur Ramos.61

Por um lado, Rubem Valentim compôs a geração moderna da Bahia do pós-guerra, com uma visão nova do ambiente e das tradições culturais que se assenta inicialmente na literatura de Jorge Amado, na escultura de Mário Cravo Júnior, na pintura de Carybé e na fotografia de Pierre Verger (que registrou os cultos de matriz africana não só no Brasil como também na África, para comparar as práticas nos dois continentes), entre outros. O próprio Verger se iniciou no candomblé, consagrou sua cabeça a Xangô por Mãe Senhora, passando a se chamar Pierre Fatumbi Verger. A partir de Mar morto (1936), de Jorge Amado, e da arte da década de 1940, o foco estaria numa espécie de visão de mundo extrato afro. Rubem Valentim encontra simetria, verticalidade, modulação, ritmo visual e volume de objetos religiosos passíveis de redução a planos geométricos que admitem a manutenção do sentido simbólico religioso original na abstração.62 A verticalidade das estruturas remete o pintor baiano à Coluna infinita (de 1918 em diante) de Constantin Brancusi, que é uma espécie de axis mundi de equilíbrio a partir do metafísico.

Axiologia e modelo deontológico da arte de Rubem Valentim

Rubem Valentim buscou incessantemente a escritura do Numinoso, com pureza cristalina: a espiritualidade iorubá surge, ademais, como sistema axiológico agora não mais redutível ao animismo nem a qualquer reducionismo racionalista. Sua investigação consistiu em criar uma forma moderna de inscrever o sistema de valores das religiões afro-brasileiras, que a cultura dominante reduzia (e ainda reduz) a superstição, folclore, objeto antropológico, símbolo de atraso ou arcaísmo.

Ancestralidade não é arcaísmo. No campo filosófico, a axiologia surge como estudo de valores de toda espécie, mediante indagação da natureza de tais valores e das coisas e instâncias que os incluem.

Em termos humanísticos mais elevados, a axiologia inclui a ética e a estética, tornando-se filosofia moral e filosofia da religião. A metaética de Rubem Valentim é também um modelo deontológico para a arte.

Folclore? Antropologia? Contra a norma acadêmica e a reificação dos cultos dos orixás

Reitere-se que Rubem Valentim nunca foi um “primitivista”, como um dia foram designados os artistas que na modernidade ocidental absorveram padrões formais de povos ditos “primitivos” por não se enquadrarem no racionalismo europeu – isso foi o que ocorreu com Pablo Picasso no Cubismo ou com os expressionistas na Alemanha, de Emil Nolde a Lasar Segall. Na Europa, a arte se alimentou dos padrões formais e objetos de culto de outras sociedades, do Outro antropológico, o qual denominam “primitivo”. Afirmar que Valentim tenha sido um “primitivista” implica admitir que houvesse um grau de ação reducionista em seu trabalho que negasse os paradigmas de sua própria fé no campo da expressão e agisse de forma espúria. Giulio Carlo Argan explicou a síntese operada por Rubem Valentim: “é necessário expor, antes que eles [os signos simbólico-mágicos] apareçam subitamente imunizados, privados das suas próprias virtudes originárias, evocativas ou provocatórias: o artista os elabora até que a obscuridade ameaçadora do fetiche se esclareça na límpida forma de mito”.63 Acentue-se preliminarmente que Valentim não destitui seus “signos simbólico-mágicos” de valores morais e éticos, por exemplo, de sua axiologia iorubana. Um trabalho pictórico de Valentim se revelava como um texto cosmogônico, que mantém seu sentido totêmico, imemorial e sincrético. Seu método de trabalho consistiu na elaboração do código semiológico a partir do candomblé em articulação lógica, por meio de uma teogonia construtiva. É evidente que a antropologia não consigna qualidade à arte de um sistema cultural64 e que se deve distinguir também entre o estético e o icônico.65 Por seu turno, a produção de Rubem Valentim se sustenta como linguagem singular em sua construção da escritura do sagrado. “A arte é sobre possibilidades. [...] e o que está perdido está perdido apenas até que você o veja de novo”, arremata Holland Cotter. Em paráfrase de Cotter, Rubem Valentim foi um inventor de possibilidades expressivas para algumas gerações de artistas afro-brasileiros, a começar por Emanoel Araujo.66

Estética

No Brasil, o Modernismo nunca produziu um artista que fosse capaz de interpretar criticamente as condições de trabalho dos afrodescendentes, como ocorreu nos Estados Unidos com a série Migração (Migration, 1940), de Jacob Lawrence, entre outros. Nem mesmo Emiliano di Cavalcanti, o pintor preto sobrinho do abolicionista José do Patrocínio, percebeu a necessidade política dessa agenda. O crítico Holland Cotter, do The New York Times, observou que, durante um dos períodos mais radicais da política norte-americana do século passado, que era o Black Power, “um grupo de artistas afro-americanos trabalhava naquilo que era, e ainda é, uma das formas mais radicais do século XX, a abstração”.67 Entre os artistas abstrato-geométricos norte-americanos se destaca Sam Gilliam, mas ele se diferencia muito de seu contemporâneo Rubem Valentim, porque suas delicadas cores e formas submergem à assimbolia do minimalismo, enquanto o brasileiro sobrepõe camadas de significação de toda espécie.

O admirável Giulio Carlo Argan talvez tenha sido o crítico e historiador da arte estrangeiro mais citado na década de 1990 por um vasto grupo de críticos acadêmicos do Rio de Janeiro e de São Paulo. Argan argumentou que, como Cézanne, “a pintura não é uma literatura figurativa nem uma técnica própria a tornar a sensação visual como tal. É um instrumento insubstituível de investigação das estruturas profundas do ser, uma pesquisa ontológica, uma espécie de filosofia. [...] A operação pictórica não reproduz a sensação, ela a produz”.68 Esse conceito de estrutura de pensamento criou as condições para que Argan apreciasse a obra de Rubem Valentim. Paradoxalmente, o único artista brasileiro sobre quem escreveu – Rubem Valentim –é justamente o artista geométrico ignorado ou mesmo rejeitado por aquele mesmo segmento intelectual. Como já se viu, Paulo Sergio Duarte buscou desmontar o significado positivo da produção de Rubem Valentim: é possível que esses teóricos brasileiros desconfiem da capacidade crítica do olho de Argan. Será que Argan pensaria a obra de Valentim sob a ótica do olhar desses críticos?

No período em que Rubem Valentim viveu no Rio (1957-1963), sua pintura operou maior redução dos objetos simbólicos da cultura religiosa de origem na grande nação iorubá, passando a se interessar também

pelos pontos riscados da umbanda, uma forma de representação gráfica reduzida da simbologia dos orixás, inexistente no candomblé da Bahia. Daí ter chamado sua própria obra de “riscadura brasileira”.69 No livro Arte primitiva, o antropólogo Franz Boas sustenta que a inteligência geométrica na arte ornamental dita “primitiva” se desenvolve por princípios formais rigorosos e se aplica mesmo numa arte com alto desenvolvimento da simbologia.70 Em suma, a teogonia de Valentim se propôs à elaboração de um vocabulário essencial de signos reduzidos a elementos estruturais geometrizados.

Pela agenda, pela simbolização de formas geométricas, pelo alcance estético e pelo significado histórico de sua obra, Rubem Valentim deveria ter sido incluído nas megaexposições como a já referida The spiritual in art abstract painting 1890-1895, organizada por Maurice Tuchman e Judi Freeman no Los Angeles County Museum em 1986. Malgrado seu alto nível acadêmico, esse levantamento foi organizado como extensão norte-americana do olhar eurocêntrico. Tais perspectivas do Hemisfério Norte confinaram o campo religioso e expõem os limites de um horizonte historiográfico como mecanismo de exclusão geopolítica. Segundo Maurice Tuchman, “a gênesis e o desenvolvimento da arte abstrata eram inextricavelmente imbricados nas ideias espirituais correntes na Europa no final do século XIX e no início do século XX”.71 Tuchman discute a ocorrência de interesses espirituais influentes na arte desde Cézanne, Mondrian, Malevitch, Schwitters, Barnett Newman, Bruce Nauman e Brice Marden. Esse envolvimento incluía a teosofia, as ideias do místico Jakob Böhme, a alquimia e o Zen, entre dezenas de outras referências. “Nenhum tópico determinante da arte do século XX recebeu uma atenção ainda menos séria que o Primitivismo – o interesse dos artistas modernos na arte e cultura tribais, conforme revelado em seu pensamento e trabalho.” Essas são as palavras inaugurais de William Rubin no catálogo da supracitada mostra Primitivism, do MoMA.72

Iconografia x iconologia

Muitos historiadores silenciam sobre a conivência e a relação omissa do artista José Ferraz de Almeida Júnior (1850-1899), o pintor da gente brasileira, como muitos querem, sobre a escravidão no Império e o massacre de Canudos em 1897, com 25 mil vítimas só nesse ano. Esse trágico episódio da história brasileira ocorreu no início da

República, então sob o mandato de Prudente de Moraes (1841-1902), primeiro presidente civil no quadriênio de 1894 a 1898, retratado por Almeida Júnior em 1890, e representante da mesma oligarquia rural que havia transformado o pintor em artista oficial da Província de São Paulo. Almeida Júnior viveu no Brasil escravocrata, mas se omitiu absolutamente sobre o tema, quando não o diluiu. Agregue-se, em seu desfavor, a edição em 1881 do romance realista O mulato, de Aluísio Azevedo, que denunciava o preconceito racial no Maranhão. Retratista da oligarquia paulista, Almeida Júnior representou o “povo” sem negros, no máximo com caipiras pardos. Esse pintor invisibilizou a tragédia social brasileira da escravidão. Das menos de dez telas conhecidas representando gente preta,73 nenhuma era pintura de gênero com o porte de um O violeiro (1899). Há um grande Príncipe etíope, provável exercício acadêmico de nu na École National Supérieure des Beaux-Arts, onde estudou,74 mas Almeida Júnior precisou nobilitar o personagem, estratégia que já havia usado na tela O derrubador brasileiro (1879), pintado como um mameluco heroico. O mais acintoso passo de Almeida Júnior contra a hediondez da escravidão foi a grande máquina da Partida da monção (1897, 390 cm x 640 cm, Coleção Museu Paulista). Escreva-se com toda ironia que essa cena colonial de Almeida Júnior “representa” uma bandeira, tendo de um lado alguns negros bem apessoados com o cabelo cortado, com roupas limpas e felizes com sua incumbência de conduzir a monção. Essa é a iconografia do pintor paulista, a representação de imagens sem levar em conta o valor estético e moral que possam ter – superficialidade histórica e nenhuma responsabilidade ética com a violência que apaga. AImeida Júnior conhecia, muito possivelmente, as imagens de Debret e de Rugendas. Partida da monção é a mais cínica representação do cativeiro na história da arte brasileira. José Ferraz de Almeida Júnior foi o pintor do ocultamento da escravidão.

A contrapelo de Almeida Júnior, Rubem Valentim se engaja sob uma lógica do saber do Imperscrutável, no aprofundamento da iconologia iorubá como ciência das figuras míticas e emblemáticas, da hagiografia dos orixás. Tendo sido iniciado no candomblé, o Obá Valentim não se “apropria” de seus símbolos religiosos ou objetos de culto para produzir discurso formalista, como fizeram Paul Gauguin (Mata mau, 1892), Pablo Picasso (Les demoiselles d’Avignon, 1907), Constantin Brancusi (Mademoiselle Pogany II, 1920, Coleção do Museu de Arte Moderna

do Rio de Janeiro) ou Alberto Giacometti (Mulher-colher, 1926-1927).

Valentim cuidava de concretizar preceitos de sua crença pessoal na instância visível da arte. A invenção de Rubem Valentim não é comparável à narrativa figurativa de mitologias do cubano Wifredo Lam, da monumental A selva (1943, Coleção MoMA), que sempre esteve absolutamente adstrito à representação surrealista das pessoas da santería, de cepa iorubá, e de máscaras africanas de diversas culturas.

De modo resiliente, Rubem Valentim pesquisa as hipóteses plásticas de representação dos praticantes do candomblé até que sua linguagem e sua autoexpressão, apoiada nas bases de sua experiência mística pessoal, amalgamem sua fé e seu signo material abstrato numa unidade ímpar e transparente. A base do Primitivismo de Picasso, Giacometti e Lam é iconográfica; o ângulo analítico da pintura sacra de Rubem Valentim, iconológico.

A tradição do homem abstrato

A genealogia de Rubem Valentim implica complexa trama histórica. Ele revela ter aprendido a escritura dos símbolos diretamente da obra ou também dos livros ideográficos de Joaquín Torres-García (1874-1949). O pintor uruguaio admitia que suas posições tinham algo do essencialismo platônico dos Diálogos (Fedra e Simpósio).75 Por sua vez, deve-se cogitar que, em Paris na década de 1920, Torres-García tenha observado, em Vicente do Rego Monteiro, como a arte pode ser a articulação de um vocabulário de símbolos convencionados para a narrativa visual. Algumas paisagens “abstratas” de Rego Monteiro de 1922, ditas Motivos indígenas, resultam da articulação de símbolos de geografia e obras de engenharia, por sua vez, surgidos da redução gráfica de elementos da cerâmica arqueológica amazônica. Também merecem nota os aspectos gráficos por Rego Monteiro nos livros Légendes, croyances et talismans des indiens de l’Amazone (1923), de P. L. Duchartre, e Quelques visages de Paris (1925), do próprio artista.76 Neste último, Rego Monteiro apresentou um glossário de símbolos tal qual Torres-García desenvolveria só cinco anos depois, por meio de dois excepcionais desenhos anteriores a seus textos correlatos: Inventário de símbolos e Classificação de símbolos (1930).77 No entanto, as ideias teóricas de Torres-García alcançaram um patamar conceitual não alcançado por Rego Monteiro. Em sua teoria do “universalismo construtivo”, Torres-García pensa o inconsciente

mais afeito ao coletivo, portanto, mais próximo do simbólico de Jung do que de Freud. Buscando a universalidade simbólica, Torres-García afirma que “o poeta diz mais do que pensa; [...] Povos primitivos esculpiam sua fé numa pedra; a fé de um homem; a fé de meu irmão. Eu queria fazer o mesmo: uma tradição sacra. Tudo mais em arte é vaidade, decoração”. 78 Sua arte se propõe a produzir uma linguagem coletiva, como, ademais, defendera seu interlocutor Theo van Doesburg, de Cercle et Carré : “estilo ocorre como resultado de um ato de consciência coletiva que traz o caráter interior e o aspecto exterior da vida em harmonia”. 79 “Também o inobjetivo, o irracional e o antieconômico são fatores vitais”, acrescenta Van Doesburg. 80

Torres-García e Rubem Valentim atuaram sob o entendimento de que o homem é o animal symbolicum, conforme a leitura do filósofo alemão Ernst Cassirer.81 La tradición del hombre abstracto, um dos livros de Torres-García, ilustra seu universalismo construtivo. Para ele, “o artista é um criador de símbolos” e “geometria e simbolismo tendem a ser os modos de expressão naturais”.82 A articulação de geometria e símbolo por Valentim só encontra paralelo na arte tridimensional brasileira com obras como o Livro da criação (1959), de Lygia Pape, e os Bichos (1960), de Lygia Clark. Assim, é preciso admitir que o caráter simbólico da geometria o aproxima dos princípios do Neoconcretismo. Talvez por tudo isso Frederico Morais tenha dado o título Rubem Valentim: construção e símbolo à exposição no Centro Cultural Banco do Brasil no Rio, em 1994. Para Torres-García e Valentim, a cuidadosa geometria era a expressão gráfica da razão para a constituição de um sistema de semiologia espiritual. Dois murais de Rubem Valentim estão em Brasília: o primeiro na sede da Novacap (1972, painel de mármore com 120 m2) e o segundo, o Templo de Oxalá (1977, madeira recortada e esmaltada de branco, 330 x 1.345 cm), está no subsolo do Palácio Itamaraty.

Riscadura brasileira – fragmentos de um manifesto

Pensamentos do artista expressos ao longo da sua vida de trabalho, em entrevistas, depoimentos, textos e falas. Libertas quae sera tamen. (Rubem Valentim, Manifesto ainda que tardio: depoimentos redundantes, oportunos e necessários, 1976)

O curador, antes de tudo, tem que pensar no outro –no artista, no custo social de uma exposição.”
Paulo Herkenhoff em entrevista para o projeto Ocupação, em 2025

“Minha linguagem plástico-visual-signográfica está ligada aos valores míticos profundos de uma cultura afro-brasileira (mestiça – animista – fetichista). [...] Partindo desses dados pessoais e regionais, busco uma linguagem poética, contemporânea, universal para expressar-me plasticamente. Um caminho voltado para a realidade cultural profunda do Brasil. [...] A geometria é um meio. Procuro a claridade, a luz da luz. A arte é tanto uma arma poética para lutar contra a violência, como um exercício de liberdade contra as forças repressivas: o verdadeiro criador é um ser que vive dialeticamente entre a repressão e a liberdade. [...] O que eu queria e continuo querendo é estabelecer um ‘design’ (que chamo Riscadura Brasileira), uma estrutura apta a revelar a nossa realidade – a minha, pelo menos – em termos de ordem sensível. [...] continuo achando que o Brasil tem de fazer uma arte mestiça como a do Aleijadinho, como a dos santeiros e ferreiros da Bahia. [...] Eu não nasci na Europa (óbvio), não tive educação europeia. Não sou punhos de renda, não nasci para ser diplomata. [...] sou um homem desesperado que procura Divindade, o Ser dos Seres. Assim o que eu tinha para me apegar era o Brasil. [...] Eu venho pregando há muitos anos contra o colonialismo cultural, contra a aceitação passiva, sem nenhuma análise crítica, das fórmulas que nos vêm do Exterior [...] A arte não é apanágio de nenhum povo, é um produto biológico vital.

[...] Concluindo: a Arte Brasileira só poderá ser um produto poético autêntico quando resultado de sincretismos, de acumulações sígnicas (semiótica / semiologia não verbal) das culturas formadoras da nossa nacionalidade com a contribuição das culturas mais recentes trazidas pelos diferentes povos de outras nações e que, aqui nesse espaço Brasil-Continente comum a todos, se misturam criando um sistema de brasilidade cultural de caráter singular, de rito, mito e ritmo que sejam inconfundíveis apesar da famigerada Aldeia-Global.”

O fundamental é assumir a nossa identidade de povo em termos de Nação.

(Rubem Valentim)

Resumo e conclusões

Em resumo, a riscadura brasileira pensada por Rubem Valentim levou a arte brasileira a novo patamar conceitual, simbólico e deontológico ao desenvolver uma poética marcada por um sistema de valores oriundos da escravidão negra no país,83 em superação da já discutida

problemática levantada por Graça Aranha. Creio poder afirmar que não há nas Américas nenhum artista oriundo da diáspora africana que tenha atingido o grau de síntese espiritual e concisão formal de Rubem Valentim no trato da espiritualidade. Como foi debatido, em Cuba, o alto resultado plástico de Wifredo Lam dissolveu o imaginário religioso em torno do realismo fantástico, da permanência figural, da fusão de tendências pós-cubistas e dos traços surrealistas no exotismo na sua obra-prima A selva (The jungle, 1943). Rubem Valentim escapa de todos esses aspectos, além de emancipar a apropriação primitivista e nacionalista.84

Com respeito a esse propósito do campo das possibilidades, Mario Pedrosa, mais próximo de Giulio Carlo Argan e Holland Cotter, agrega ainda um raciocínio ora pertinente: “a distância de pontos de partida entre um Francisco Brennand e mesmo um Rubem Valentim e Lygia Clark ou Hélio Oiticica é grande. Mas que há entre eles de comum além do fato cultural e moral de serem brasileiros? [...] Antes a responsabilidade por uma ideia ou por uma atitude que, se se mantém, se desenvolve e os caracteriza através do trabalho criativo, não veio de fora, por acaso ou moda, mas brotou neles do complexo sócio-econômico-cultural-moral-artístico, onde se situam, onde vivem, trabalham, Recife ou Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro, Brasil... e inevitavelmente o planeta”.85 Depois de Pedrosa, Argan e Cotter, caberia acrescentar Brasília a essa lista.

Uma referência decisiva para Valentim foi o texto Do espiritual na arte, de Wassily Kandinsky, que discute as relações da arte com determinadas questões metafísicas. A arte deve tratar da transformação “espiritual” (não necessariamente religiosa) que pode envolver o não naturalista, o abstrato na direção da natureza interior e do entendimento dos materiais. A arte verdadeira, escreve Kandinsky, nasce “de dentro do artista” e é “exclusivamente desde este ponto de vista interior que se deve responder à pergunta se o trabalho é bom ou mau”.86 Valentim investigava uma escritura arquetípica, de fundamento junguiano, de O homem à procura de sua alma e de O homem e seus símbolos. O pensamento psicanalítico de Carl Gustav Jung foi divulgado no Brasil por Nise da Silveira, com as atividades no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro Il (dito Hospital do Engenho de Dentro), no qual trabalhou com um grupo de artistas que mais tarde se vinculariam ao projeto construtivo brasileiro: Ivan Serpa, Almir Mavignier, Abraham Palatnik

e Geraldo de Barros. Com Rubem Valentim, pela primeira vez o espaço da arte brasileira recebe uma fala autêntica, autônoma e contemporânea da espiritualidade do candomblé. Sua estratégia foi criar uma forma moderna de riscar os signos desse sistema axiológico. Nesse sentido, Valentim antecedeu Mira Schendel, outra leitora de Kandinsky, e seu projeto não foi menos rigoroso do que o dela, ao tramar relações entre a escritura, a linguagem, o indizível e a metafísica. Rubem Valentim desconstruiu toda redução animista das crenças e dos ritos afro-brasileiros para constituir o plano maior da espiritualidade da metafísica e da escatologia filosófica do candomblé.

Por que o nosso sagrado tem que estar no Museu da Polícia?

Nós não praticamos nenhum crime. Não é crime a gente ser de orixá.

(Mãe Meninazinha de Oxum, do terreiro Ilê Omolu Oxum, em São João de Meriti, em 2019)

Em resumo conclusivo, é a partir da pintura de Rubem Valentim que as religiões afro-brasileiras passam a ser tomadas como sistema de valores na arte, deixando de ser assunto de “branqueamento da raça” e noções de superioridade racial branca: (Nina Rodrigues, 1862-1906, argumentava peremptoriamente que os homens negros nunca puderam se constituir como povos civilizados,87 além de ser adepto da teoria do embranquecimento da “raça brasileira”); o racismo estrutural (no artigo “A superstição da cor preta” (1938), Mário de Andrade deplorou que a partir de uma “superstição antiga e analfabeta relacionada à noção de que a cor branca simboliza o ‘bem’ e a negra o ‘mal’, diversas crueldades têm sido cometidas ao longo da história”); a criminalização do candomblé e da umbanda no Código Civil de 1890 e no de 1942, sob o Estado Novo; o aviltamento dos cultos de matriz africana como superstição secularmente pregada por católicos como feitiçaria e, ainda hoje, demonizados por seitas neopentecostais;88 a redução dos pretos à condição de objeto antropológico por Arthur Ramos (1903-1949);89 a obliteração social do negro por meio de sua exclusão quase que absoluta pela pintura, como no caso clássico de Almeida Júnior; as discussões sobre animismo, sobre “terror cósmico”, levantado por Graça Aranha; a cristianização dos afrodescendentes com Tarsila do Amaral; a diferença folclórica trabalhada (inclusive sobre as dificuldades intelectuais de pensar cientificamente o folclore) por Mário de Andrade

em títulos como Aspectos do folclore brasileiro. Com Valentim, a África brasileira chega sem intermediações estilísticas, reificação ou apropriações políticas que renunciassem à identidade e a seu exercício. Rubem Valentim superou a cisão de tempo histórico na América Latina remanescente do projeto colonial europeu sustentado pela escravização dos corpos africanos, ultrapassou a bipolaridade objetividade versus subjetividade no projeto construtivo brasileiro ao investir a arte geométrica de símbolos do sagrado, a divisão das classes sociais – tudo isso permite a definição da arte de Rubem Valentim como antagonista da exclusão racista.

Immanuel Kant (1724-1804) e Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) viveram na Alemanha na mesma época. Muitos estudaram as relações entre Goethe e a filosofia de Kant – destaco aqui uma autora brasileira, Mirella Guidotti, com sua análise “Imbricações entre Goethe e Kant: arte, natureza e sublime,90 que investiga o diálogo teórico “que implícita ou explicitamente permeia” o texto de Goethe e a obra de Kant. Guidotti concluiu que se tratava “do reconhecimento da impossibilidade de explicar o belo natural e artístico, do reconhecimento e aqui, poder-se-ia dizer, Goethe é bastante kantiano pelo fato de que a ‘beleza nunca pode tornar-se clara acerca de si mesma’, como colocado em sua máxima 256, é tarefa da arte, pois, ‘reconhecer este não investigável como parte constituinte’”. Na Crítica da faculdade do juízo (1790), Kant argumentou “que o belo da natureza concerne à forma do objeto, que consiste na limitação; o sublime, contrariamente, pode também ser encontrado em um objeto sem forma, à medida que seja representado ou que o objeto enseje representar nele uma ilimitação, pensada, além disso, em sua totalidade; de modo que o belo parece ser considerado como apresentação de um conceito indeterminado do entendimento, o sublime, porém, como apresentação de um conceito semelhante da razão”. De modo assombroso, com a obra de Athos Bulcão e a de Rubem Valentim, Brasília foi transformada numa cidade de arte kantiano-goethiana.

Notas

1. Publicado originalmente com o título “A densa e curta história da arte em Brasília”. Revista Humanidades – Brasília Cidade Pensamento, Brasília. n. 56, p. 52-69, 2009. A presente versão foi revista e aumentada pelo autor em março de 2024.

2. Sérgio Bernardes parece ter conseguido driblar o monopólio de projetos arquitetônicos para Brasília, durante o exílio voluntário de Oscar Niemeyer na

França, ao desenhar o monumental mastro da bandeira brasileira na Praça dos Três Poderes, em 1972. A oportunidade de desenhar outros projetos, como o da Catedral Anglicana por Glauco Campello, foi aberta por Niemeyer em momento de sobrecarga de trabalho. Já ítalo Campofiorito projetou o Teatro Dulcina no Setor de Diversões Sul, em 1980, a partir de um risco de Niemeyer. Campello e Campofiorito eram membros da equipe de arquitetos de Oscar em Brasília.

3. Aliás, Brasília abriga um dos mais instigantes diretores/atores de teatro de cepa beckettiana, que são os irmãos Guimarães (Adriano e Fernando).

4. A propósito, ver os artigos de Fernando Cocchiarale e sobre o Grupo de Brasília, disponíveis na obra original.

5. Experiência do 4º Salão do Distrito Federal havia sido precedida, em 1966, pela criação do Grupo Rex, em São Paulo, por Nelson Leirner, Wesley Duke Lee, Geraldo de Barros, Carlos Fajardo, José Resende e Frederico Nasser. O Rex se dedicava, sobretudo, a happenings.

6. A arquitetura moderna no Brasil [L’Architecture d’aujourd’hui, Paris, dez. 1953]. In: PEDROSA, M. Dos murais de Portinari aos espaços de Brasília. Aracy Amaral (org.). São Paulo: Editora Perspectiva, 1981, p. 256 e 258 respectivamente.

7. O depoimento de Oscar Niemeyer (1958). Aracy Amaral (org.), op. cit. p. 290.

8. HERSEY, G. The monumental impulse. Cambridge: The MIT Press, 2001. p. 117.

9. Oscar Niemeyer in “Poema da curva”. Conforme UNDERWOOD, D. Oscar Niemeyer e o modernismo de formas livres no Brasil. Trad. Betina Bischof. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. p. 45.

10. HERSEY, G. Op. cit., p. 138.

11. GROS-KOST, É. Courbet: souvenirs intimes. Paris: Derveaux, 1880. p. 142.

12. LOOS, A. “Ornament and crime” (1908). In: CONRAD, UIrich. Programs and manifestoes on 20th century architecture. Cambridge: The MIT Press, 1975. p. 19-24.

13. Hipóteses listadas por Gilles Deleuze e Félix Guattari em Anti-Oedipus: capitalism and schizophrenia. Trad. Robert Hurley, Mark Seem e Helen R. Lane. Minneapolis: Minneapolis University Press, 1998. p. 3.

14. WEINRICH. H. The linguistics of lying and other essays. Trad. Jane K. Brown e Marshal Brown. Seattle: University of Washington Press, 2005. p. 12.

15. FREUD. S. Totem and taboo (1923). Trad. James Strachey. New York: W. W. Norton & Company, 1989. p. 176.

16. LACAN, J. Écrits. Trad. Alan Sherildan. London: Tavistock, 1977. p. 67.

17. HAUSMANN. R. et al The global gender gap report. Genebra: World Economic Forum, 2008. p. 9.

18. Idem

19. FREUD, S. Op. cit., p. 176.

20. DELEUZE, G; GUATTARI, F. Op. cit., p. 3.

21. Sem autor. Inaugurando. Rio de Janeiro: Companhia Sul América, 1949.

22. PEDROSA, M. As duas alas do modernismo. In: Inaugurando. Rio de Janeiro: Companhia Sul América, 1949. p. 34-40.

23. Em conversa informal com o autor, c. 1989. A escultura Peixe de Ceschiatti foi exposta na Il Bienal de São Paulo

24. LOOS, A. Op. cit., p. 19-24.

25. A presença do mural de Sergio Camargo no Ministério das Relações Exteriores (1965-1967) permite cogitar que ele conformou o gosto oficial em arte abstrato-geométrica durante a ditadura de 1964, já que também realizou relevos para uma escola no governo Carlos Lacerda no Rio e a filial do Banco do Brasil em Nova York (1968).

26. NAVARRA, R. Jornal de Arte. Campina Grande: Comissão Cultural da Prefeitura Municipal de Campina Grande, 1966.

27. Ibidem, p. 194.

28. ZILIO, C. A querela do Brasil. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1997. p. 111.

29. Ver do autor “Glória! O grande caldo”. In: Adriana Varejão. Louise Néri (ed.). Rio de Janeiro: Barléus Edições, 2001. p. 109 e segs.

30. Depoimentos a Frederico Morais e outros. In: Tempos de guerra: Hotel Internacional/ Pensão Mauá. Rio de Janeiro: Galeria do Banerj, 1986, páginas não numeradas.

31. BACHELARD, G. La Terre et les rêveries de la volonté. Paris: Librairie José Corti, 1947, passim.

32. LACAN, J. O seminário. Livro 20 mais, mais. Trad. M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. p. 129-130.

33. NEGRI, A. Art e multitude. Paris: Mille et une Nuits, 2009. p. 138-141.

34. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. L’Anti’Oedipe: capitalisme et schizophrénie (1972-1973). Paris: Les Éditions de Minuit, 1995.

35. PIGNATARI, D. Fiaminghi (1961). In: CABRAL, I. Hermelindo Fiaminghi. São Paulo: Edusp, 1998. p. 153. Estocástico vem do grego e significa hábil em fazer conjecturas. É o pertencente ou relativo ao acaso.

36. PEDROSA. M. Em conversa com Antonio Manuel, em maio do 1970, da qual resultou o texto “Antonio Manuel”. In: Antonio Manuel. Rio de Janeiro: Funarte, 1984. p. 16.

37. Athos Bulcão cooperou ainda com o projeto dos hospitais Sarah Kubitschek do arquiteto João Filgueiras Lima (Lelé), criando azulejos e outros elementos plásticos.

38. BILL, M. konkrete kunst – 50 johre entwicklung. Zurique: Helmhaus, 1960.

39. CHEVREUL, M. E. De la du constraste simultané des couleurs (...). Paris: Imprimerie Nationale e Librairie Gauthier-Vilars et Fils, 1839. La Vergne, 2010. Versão em inglês com tradução de Charles E. Martel. London: Longan, Brown, Green, and Longmans, 1955.

40. Agradeço ao ministro Marco Antonio Nakata, diretor do Instituto Guimarães Rosa do Ministério das Relações Exteriores, algumas informações sobre o mosaico de Paulo Werneck no Palácio Itamaraty de Brasília.

41. O carioca Paulo Werneck (1907-1987) sempre colaborou com projetos de arquitetura

de Oscar Niemeyer, desde a Igreja de São Francisco de Assis na Pampulha até um mosaico abstrato no edifício do Anexo do ltamaraty, em Brasília. Senhor de uma fenomenologia do mosaico, Werneck aprendeu com Klee que “a arte torna visível” –seu desafio era transformar diminutas partículas informes em elementos constitutivos ou reveladoras formas sob a mais precisa razão calculante.

42. Expressão de NAVARRA, R. Op. cit., passim.

43. PEDROSA, M. Contemporaneidade dos artistas da Bahia. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 29 jan. 1967.

44. EINSTEIN, C. La sculpture nègre (1915). Trad. Liliane Melfre. Paris: L’Harmattan, 1998. p. 29.

45. Karen Armstrong discute as Escrituras no texto The Idea of a Sacred Text. In: Sacred. John Reeve (ed.). London: The British Library, 2007. p. 15.

46. GOLDWATER, R. Primitivism in Modern Art (1938). Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 1986. p. XXIV.

47. Até 2000, Kirk Varnedoe (1948-2003), na América Latina, só havia visitado o México, e foi nesse ano que viajou a Caracas para assistir à retrospectiva de Gego no Museo de Bellas Artes. Ele jamais esteve no Brasil.

48. TUCHMAN. M.; FREEMAN, J. (assistente). The spiritual in art: abstract painting 1890-1985. Los Angeles: Los Angeles County Museum of Art, 1986.

49. BRAGA, J. Candomblé da Bahia: repressão e resistência, Revista da USP, São Paulo, Universidade de São Paulo, v. 18, p. 55, 1993.

50. Maria Bibiana do Espírito Santo (1900-1967). Foi fotografada por Pierre Verger.

51. Entrevista de Antonio Olinto ao autor em 27 de maio de 1996. Ver também BARJA, W.; FONTELES, B. Rubem Valentim, artista da luz. São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2001. p. 202.

52. MANDARINO, A. C. de S. (Não) deu na primeiro página: macumba, loucura e criminalidade. São Cristóvão: Universidade Federal de Sergipe, 2007. p. 97 e 100.

53. ldem.

54. ROSENFELD, A. Negro, macumba e futebol. São Paulo: Editora Perspectiva, 2007. p. 20. Rosenfeld informa que uma apresentação do Teatro Experimental do Negro em São Paulo em 1953 contou apenas com “onze negros e dezesseis mulatos entre trezentos espectadores”.

55. O Dia Nacional da Consciência Negra foi afinal instituído em 2011.

56. DUARTE. P. S. Modernos fora dos eixos. In: Aracy Amaral (ed.). Arte construtiva no Brasil: Coleção Adolpho Leirner. São Paulo: Companhia Melhoramentos, 1998. p. 102.

57. GRAÇA ARANHA, J. de. Estética da vida (1921). In: Obras completas. Rio de Janeiro: INL, 1968. p. 620-621.

58. MOTTA, C. G. O caráter nacional brasileiro. História de uma ideologia. São Paulo: Livraria Pioneira Ed., 1969. p. 54.

59. lbidem, p. 55.

60. VALENTIM, R. Manifesto ainda que tardio (1976). In: Rubem Valentim. São Paulo: Bienal de São Paulo, 1977.

61. RAMOS, A. Arte negra do Brasil. Revista Cultura, Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Saúde, n. 2, p. 189-212, 1949.

62. Na geração seguinte à de Valentim, a xilogravura de Emanoel Araujo opera com cores simbólicas de um Exu geômetra. Ver do autor: Emanoel Araujo: escultor. São Paulo: Via Impressa, 2011.

63. ARGAN, G. C. Catálogo da exposição Rubem Valentim. 31 Objetos emblemáticos e relevos emblemas, MAM Rio, 1970, páginas não numeradas.

64. KOOIJMSN, S. The art of Western New Guinea. In: GOLDWATER, R. (org.). Three regions of primitive art. Nova York: The Museum of Primitive Art, 1961. p. 64.

65. REDFIELD, R. Art and icon. In: GOLDWATER, R. (org.). Op. cit., p. 37.

66. Ver do autor: Emanoel Araujo: escultor. Op. cit.

67. COTTER, H. Energy and abstraction at the Studio Museum in Harlem. The New York Times, Nova York, 7 abr. 2006. A propósito, foram importantes espaços de discussão as exposições Something to look forward to (Franklin and Marshall College, Lancaster, 2004), organizada por Bill Hutson, e Energy/experimentation: black artists and abstraction 1964-1980 (The Studio Museum in Harlem, Nova York, 2006), com curadoria de Kellie Jones.

68. ARGAN, G. C. L’Art moderne. Du siècle des Lumières au monde contemporain. Paris: Bordas, 1992. p. 104.

69. Depoimento de Rubem Valentim apud Frederico Morais. Rubem Valentim: construção e símbolo. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 1994. p. 45.

70. BOAS, F. Primitive art. Nova York: Dover Publications, Inc., 1955. p. 279-280 e 349-356.

71. TUCHMAN, M. Hidden meanings in abstract art. In: TUCHMAN, M.; FREEMAN, J. Op. cit., p. 17.

72. RUBIN, W. Modernist primitivism, an introduction. In: VARNEDOE, K. Primitivism in 20th century art: affinity of the tribal and the modern. Nova York: MoMA. v. 1, 1985. p. 1.

73. Ao longo de 30 anos de pesquisa, conhecemos as seguintes telas: Príncipe etíope, Negra, Menino negro (1880), Lavadeiras, Mendigo, A partida da moção e Piquenique no Rio das Pedras

74. Em 1878, Almeida Júnior se matriculou na tradicional École National Supérieure des Beaux-Arts, de Paris. Os estudos duraram três anos, tendo como mentor Alexandre Cabanel (1823-1889), um ferrenho crítico do Impressionismo.

75. TORRES-GARCÍA, J. La recuperación del objeto. Emilio Oribe (notas prévias).

Revista de la Facultad de Humanidades y Ciencias de Montevideo, n. 8, p. 108, 1952.

76. Publicados respectivamente em Paris por Éditions Tolmer e Impérie Juan Duras.

77. Reproduzidos por Jorge Castillo in Torres-García in América: Art as mission. The Antagonistic Link: Joaquin Torres García Theo van Doesburg. Amsterdam: Institute of Contemporary Art, p. 180 e 181, 1991.

78. TORRES-GARCÍA, J. Universalismo constructivo: contribución a la unificación del arte y la cultura en América. Buenos Aires: Poseidon, 1944. p. 373.

79. Klassiek-Barok-Modern, Antuérpia: De Sikkel, 1920, p. 27. Apud CASTILLO, J. Op. cit., nota 77, p. 180.

80. Diagnosis de la arquitectura (não datado). In: VAN DOESBURG, T. Principios del Nuevo arte plástico y otros escritos. Charo Crego (organização e tradução). Valencia: Colegio Oficial de Aparejadores y Arquitectos Técnicos de Murcia, 1985. p. 125.

81. CASSIRER, E. An Essay on Man, an introduction to a philosophy of human culture. New Haven: Yale University Press, 1944. p. 26.

82. TORRES-GARCÍA, J. Simbolismo intelectual y simbolismo mágico. In: Universalismo Constructivo. Madri: Alianza, 1984. p. 99.

83. O presente capítulo sobre Rubem Valentim é uma retomada, com ampliação, do texto dedicado a ele pelo autor no catálogo Pincelada, pintura e método: projeções da década de 50. São Paulo: Instituto Tomie Ohtake, 2009. p. 185.

84. Ver do autor: A pedra de raio de Rubem Valentim, Obá-pintor da Casa de Mãe Senhora. In: XXIII Bienal Internacional de São Paulo: Salas Especiais, São Paulo, Fundação Bienal de São Paulo, 1996, p. 418- 424.

85. PEDROSA, M. Op. cit.

86. KANDINSKY, W. On the spiritual in art (1912). In: Kandinsky: the complete writings on art. Org. Kenneth C. Lindsay e Peter Vigo. Tradutor não indicado. Cambridge: Da Capo Press, 1994. p. 208.

87. RODRIGUES, N. Ver, por exemplo, Os africanos no Brasil (1890-1905, publicação póstuma em 1932).

88. ANDRADE, M. Música de feitiçaria no Brasil, “Estudos sobre o negro” (1938) e Aspectos do folclore brasileiro (coletânea de artigos reunidos por Angela Teodoro Grillo, publicada em São Paulo pela Global Editora em 2019).

89. Arthur Ramos foi um pesquisador empenhado na formação inter-racial das populações das Américas (ver As culturas negras do Novo Mundo, 1937) e sobretudo do Brasil. Sobre os afrodescendentes na condição de objeto da ciência social com intersecção com a psicanálise, ver O negro brasileiro – etnografia religiosa e psicanálise (1940). Ramos buscou uma relação intelectual com Freud, mas recebeu curtas respostas do psicanalista, conforme documentos existentes na Biblioteca Nacional.

90. GUIDOTTI, M. Imbricações entre Goethe e Kant: arte, natureza e sublime (2011). Disponível em: scielo.br/j/pg/a/j9vBSh3vxkznP77Kz73kPmG. Acesso em: 8 mar. 2024. Todas as referências a Goethe e Kant foram extraídas desse texto de Guidotti.

A voz afro-brasileira nas artes por Paulo Herkenhoff

Texto publicado originalmente no livro Relações do conhecimento entre arte e ciência: gênero, neocolonialismo e espaço sideral (2021).

Tenho dito que a arte no Brasil, no século XXI, se enriquece com um processo de abertura crítica para a sociedade que é muito construtiva, e ao mesmo tempo decreta certa falência, ou, pelo menos, uma crise momentânea do formalismo greenberguiano da autonomia absoluta da arte. Gostaria de indicar algumas linhas dessa produção: o universo não binário de gêneros, a explosão de possibilidades e experiências, a capacidade de fazer escolhas, a liberdade, as dezenas de maneiras como o sujeito se constrói, tudo isso marca a arte brasileira do século XXI.

Outra questão importante é a arte da Amazônia. Muito além do exotismo, existe a agenda da violentação da violência na Amazônia. Artistas como Berna Reale e Armando Queiroz e teóricos como Paes Loureiro têm trabalhado a partir dessa dimensão. A arte política no Brasil mudou. Aprecio, também, com interesse a produção atual dos indígenas no Brasil: buscam individualizar, subjetivar e, ao mesmo tempo, retomam lendas e mitos que devem permanecer. Tivemos aqui duas sessões sobre esse tema. Na semana passada, ocorreu no Rio de Janeiro, no Jardim Botânico, o ciclo de estudos Selvagem, que articula correspondências entre conhecimentos indígenas, científicos, tradicionais, acadêmicos e outros, com presença do pajé Huni Kuin Dua Buse, de Ailton Krenak, do líder Guarani Carlos Papá e da filósofa Cristine Takuá, que estiveram conosco. Entre diversos povos originários existe um novo signo material de seu discurso simbólico, aberto a novas experiências, com meios técnicos e de expressão não tradicionais. Os pajés Huni Kuin Agostinho Manduca Mateus Ika Muru e Dua Buse reuniram os jovens de diversas aldeias para ouvirem lendas e depois representá-las em telas, desenhos e cadernos, como modo de conservação da língua e das tradições entre os jovens. O Una Isi Kayawa – livro da cura do povo Huni Kuin do Rio Jordão, de Agostinho lka Muru (com participação do cientista Alexandre Quinet), reúne o sagrado e a ciência, assim como Una Shubu Hiwea – livro escola viva do povo Huni Kuin do Rio Jordão, de Dua Buse.

Cito também a arte conceitual no Rio Grande do Sul. Dois artistas gaúchos serão também ouvidos adiante. O Rio Grande do Sul ficou de tal modo isolado dos centros de poder do sistema de arte brasileiro que os artistas vivem uma situação que comparo à noção de “gueto”, de Cildo Meireles, similar ao fenômeno astrofísico do buraco negro: há colapso da energia que se encerra nesse corpo, do qual nem a própria luz escapa. Cildo elabora o conceito de “gueto” para um segmento social confinado num território e que implica uma vida simbólica, por isso mesmo, muito intensa. Os exemplos de Meireles são o Harlem, no período entreguerras, onde surgiu uma arte fabulosa, sobretudo do jazz; os índios na selva, sitiados como estão hoje, com suas lendas potentes; e o preso político isolado, sem acesso a advogado ou visitas, às vezes em uma cela solitária. Avalio que o meio artístico do Rio Grande do Sul é um território confinado como o “gueto” de Cildo Meireles, com intensa circulação de ideias e experimentos, com uma relação muito produtiva dos artistas com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que resulta em uma arte singular, sobretudo com traço conceitual e livre de compromissos diretos com o mercado.

Reputo que a nova voz afro-brasileira seja o que de mais importante esteja sendo produzido no Brasil no século XXI. Essa é a arte produzida pela maioria, já que o povo brasileiro é majoritariamente negro e pardo; então, estamos falando da arte da maioria. Ao mesmo tempo, o valor dessa arte da maioria não é apenas por definição estatística, mas pela cartografia em processo amplo da história e do presente. Esses artistas fazem emergir aquilo que não pode ser esquecido, recuperam vozes e fatos que foram abafados. E temos que ter clareza das contradições no ambiente da arte afro-brasileira, que fazem parte da riqueza do processo, tornam a experiência viva, expõem seus conflitos diante da opressão e do racismo vigentes, as ambiguidades, diferenças e, ao mesmo tempo, sua singularidade.

Vou fazer breve referência a alguns capítulos da história da arte afro-brasileira. No período colonial, artistas mestiços, filhos de mães negras alforriadas, encontraram na arte uma possibilidade de expressão e de existência singular, como Aleijadinho e Mestre Valentim. A relação entre Mestre Valentim e Aleijadinho é curiosa, são dois mineiros, mas o primeiro trabalhava no Rio de Janeiro. De certa maneira, ele dá ao Aleijadinho a dimensão que a obra escultórica poderia assumir, as talhas da Igreja de São Pedro dos Clérigos. Há uma história afro-

-brasileira, de uma intra-afrobrasilidade, porque Aleijadinho vai ao Rio e conhece obras de talha, de arquitetura de chafarizes e de urbanismo do Mestre Valentim, que preparou a cidade do Rio de Janeiro para ser a capital do vice-reino. Está entre os primeiros urbanistas do Brasil. Na Bahia, entre pintores e escultores, cito Francisco das Chagas, o Cabra,1 criador do Cristo atado à coluna, que é uma cena da Paixão. Há um exagero absoluto nas costas lanhadas do Cristo, metáfora do escravo do Pelourinho. Ali temos uma questão simbólica interessante.

Quanto à academia, foi uma revolução. Quando ela chegou, o Barroco já tinha perdido as condições sociais que justificavam sua existência; o ouro tinha acabado. Considero a academia um lugar de estudo, e não um estilo. No contexto em que era vedado aos negros o acesso ao estudo na academia, e a eles cabia entrar no Liceu de Artes e Ofícios, uma figura se destacou: Estevão Silva, uma espécie de Flávio de Carvalho do século XIX; ou o Flávio de Carvalho seria uma espécie de Estevão Silva do século XX. Ele recebeu encomenda de um burguês, mas, depois de pronta a pintura, o burguês se recusou a pagar. Ele vivia da pintura, então pintou as grades da cela na frente do retrato, e a expôs numa vitrine da Rua do Ouvidor, no centro do Rio de Janeiro. Rapidamente, o devedor pagou o que devia. Houve um ano em que todos os artistas queriam que ele fosse premiado na Exposição geral: Rodolfo Amoedo, Antônio Parreiras e outros. A premiação era um evento de extrema importância, presidido pelo imperador, sua família e pela princesa Isabel. Foram sendo anunciados os nomes dos agraciados, até que o último nome pronunciado foi o dele. Diante do imperador, e de todos ali presentes, ele disse: “Recuso”. E explicou, em seguida, que não podia aceitar porque havia uma interdição da academia aos negros. Chocou de tal modo a família imperial que a Exposição geral, que era no salão, ficou interrompida por dois anos. Com esse comportamento, só enxergo Flávio de Carvalho e Hélio Oiticica no século XX.

Depois, no processo de transformação da academia e modernização da arte brasileira, nos anos de 1880 a 1920 – que chamo de moderno antes do Modernismo –, temos um conjunto de práticas modernizadoras. No final do século XIX, surge Manuel Querino2 na Bahia, como historiador da arte. E Nina Rodrigues,3 então, reivindicou que os objetos dos cultos dos orixás, que eram considerados “caso de polícia”, passassem a ser entendidos como arte.

No contexto de modernidade, surgiram Eliseu Visconti, Belmiro de Almeida, os irmãos Timóteo da Costa, professores afrodescendentes da academia. João Timóteo da Costa foi um dos primeiros a retratar o Morro da Favela, nos anos 1910. Foram modernos antes do Modernismo, pela maneira como trabalhavam a matéria pictórica, pela autonomia da cor, por certos cortes na figura, pela temática.

No Modernismo de 1922, uma figura central seria o artista Emiliano Augusto Cavalcanti de Albuquerque Melo, mais conhecido como Di Cavalcanti, e sobrinho de José do Patrocínio.4 Reivindico em Di Cavalcanti uma diferença de identificação da cultura, da tradição. Enquanto alguns artistas faziam representações vagas da negra e da mestiça, Di pintava ritmos musicais muito específicos, com penetração em suas diferenças de linguagem corporal e composição instrumental dos conjuntos: grupo de chorinho, o samba, o Carnaval, um batuque, a Praça 11, a roda de samba. Nesse processo, temos a figura problemática e contraditória de Tarsila do Amaral, que cristianiza os negros em seus quadros e bestializa algumas figuras de afrodescendentes. Tarsila se apropria da representação dessas figuras e reivindica também a reafricanização do Brasil ou o reconhecimento da africanidade. Artistas, a tradição, a raiz e a matriz afro-brasileiros são reivindicados como parte da modernidade nova que se apresenta.

Daremos agora um salto para a Bahia, no pós-guerra, com a eclosão de uma brasilidade que se confunde com baianidade. Na mesma geração, estão Jorge Amado, Mário Cravo Júnior, pai de Mário Cravo Neto, o fotógrafo – que se reivindicava afrodescendente e fez muitos exus –, e o grande pintor afro-brasileiro das Américas, Rubem Valentim, que não pode ser comparado com os artistas norte-americanos, que eram cronistas da vida social. Sabemos que, à época, o candomblé e a umbanda, religiões de matriz africana, eram caso de polícia. Rubem Valentim retira o mito da sexualidade afro que estava em Di Cavalcanti, em Tarsila do Amaral e em outros. Sua obra retira a matriz afro do campo do folclore, da superstição e do exotismo. Valentim reivindica que a herança espiritual afro-brasileira seja tratada como um sistema axiológico de valores espirituais. Faz um processo de depuração, de lapidação, de busca da simbologia dos orixás, como o machado duplo de Xangô. Reduz esse vasto repertório a um vocabulário geométrico essencial, mas preservando sua condição simbólica.

Valentim mereceu a observação de dois grandes críticos do século XXI: o primeiro foi Mario Pedrosa, que respeitosamente o colocou ao lado de uma Mira Schendel, na questão da espiritualidade. O outro foi Giulio Carlo Argan, um historiador italiano que escreveu apenas sobre um artista brasileiro: Rubem Valentim. É urgente buscar o entendimento do significado de Rubem Valentim, não só para o Brasil, mas para as Américas e para o mundo. No final da vida, ele criou o grande painel do Itamaraty. Nele, não usou apenas símbolos do candomblé, mas também símbolos de outros sistemas religiosos do mundo. Situou tudo no mesmo plano, também com influência da arte egípcia, de Joaquín Torres-García, e o que ele chama de “riscadura brasileira” – termo que alude aos pontos riscados nos rituais da umbanda. Rubem Valentim é o grande divisor de águas da arte da maioria, no Brasil.

Quanto às outras artes, relembro o padre José Maurício, músico da corte no Brasil, e Machado de Assis, hoje levado à condição de gênio universal pelo respeitado crítico literário Harold Bloom. O avanço do reconhecimento da importância de Machado de Assis se reflete na melhoria das traduções em línguas estrangeiras. Elas ficaram mais refinadas e precisas, apresentam melhor a ironia e a elegância formal de sua escrita. Na passagem dos anos 1960 para 1970, tivemos a emergência de Carolina Maria de Jesus e de Lélia Gonzalez, produzindo uma escrita e uma fala do lugar de mulheres negras social e racialmente situadas. E ainda a pintora Maria Auxiliadora, neta de escravos, que construía volume em seus quadros agregando uma matéria espessa e também mechas de cabelo, constituindo assim a presença de vestígios de seu corpo negro como próprio signo material da pintura.

Fundamental também é Emanoel Araujo, aquele que volta à África em busca de uma atualização estética. Não canso de citar uma experiência que vivi. Eu trabalhava na Fundação Nacional das Artes (Funarte), estava na Bahia e fui visitar Emanoel Araujo no Museu da Bahia. Ele é performático e chegou com a escultura de um exu do século XVIII, uma peça barroca; cumprimentou-me com a cabeça, colocou o exu no seu lugar e depois veio falar comigo. Deu-me uma lição de hierarquia, porque eu era diretor do Instituto Nacional de Artes Plásticas. Interpretei aquilo como um gesto político maravilhoso: “Olha, antes está o exu, depois vem você”. Ou seja, “ponha-se no seu lugar diante desse guardião espiritual e da tradição religiosa de matriz africana”.

Nos últimos 30 anos, ocorreu uma fermentação na literatura. Existe uma reivindicação do direito de dizer e, ao mesmo tempo – imagino, na minha fantasia –, um grande projeto coletivo de Brasil em que o país se aprofunda em si mesmo, com o pensar de uma nação que nunca trabalhou a agenda que viria a ser trabalhada. Vou agregar aos artistas afrodescendentes alguns artistas cujo projeto de entendimento do Brasil como fenômeno complexo passa necessariamente por abordar outras etnias. É o caso de Ivan Grilo, que, para falar do Brasil, trata de certas situações políticas, históricas e, em alguns momentos, de uma agenda afro-brasileira. Também de Adriana Varejão, quando trabalha sobre a miscigenação, ela se trata como pessoa miscigenada. Não sei se ela fez teste de DNA, nem acho que seja necessário, porque ali existe a intenção de mostrar criticamente a maneira como o Brasil se vê.

Até o Renascimento, os três reis magos eram representados com a mesma cor de pele, até que se inventou a cor “testa de mouro”. Os mouros eram os africanos do Norte, de tez escura. Varejão se impressionou com o nome e trabalhou, a partir do censo do IBGE, com o fato de que as pessoas poderiam se identificar pela sua cor, associada a traços fenotípicos. Numa edição do censo brasileiro da década de 1970, em que a classificação de cor/raça foi deixada em aberto, apareceram lourinha, cor de burro quando foge, mulatinha, branco sujo, enfim, mais de oitenta termos para representar a própria cor de pele. A artista criou uma caixa de tintas com essa variedade de tons, como se a melanina fosse a matéria das Tintas Polvo. Acho que essa é uma solidária aliança e ato de resistência contra o racismo e a opressão contra os afrodescendentes, e não uma daquelas situações de brancos que gostariam de ser negros.

Agora se desenvolve uma agenda extremamente trabalhada, diversificada, de Sul a Norte do Brasil, que vai de Leandro Machado, em Porto Alegre, a Rafael Bqueer, em Belém. Se nós temos uma explosão no século XXI, no entanto Rosana Paulino é a matriz inaugural da nova agenda afro-brasileira. A exposição dela me marcou muito. Desde então procuro acompanhar seu trabalho. Ela se coloca na primeira pessoa, falando do lugar de mulher em um universo machista. São muitos significados, os da inauguração de uma nova agenda descolonizadora.

Arjan Martins é um artista carioca que se interessa pela opressão dos brasileiros afrodescendentes e pelas formas de construção

da autoestima no convívio com sua mãe e suas tias, que incluía o acesso à arte. Neste século, Arjan tem trabalhado a questão geral da escravização, como a travessia do Atlântico pelos navios que sequestravam africanos para o cativeiro no Brasil. No momento seguinte, retirou a imagem de uma garota do disco de Miles Davis, que seria um símbolo da criança afrodescendente do mundo. Depois, pegou a imagem famosa do menino refugiado sírio Alan Kurdi, encontrado morto numa praia turca, para falar das travessias dolorosas e da infância em estado de abandono e perplexidade.

Temos Ayrson Heráclito, cuja obra é um incansável ir e vir, atravessar caminhos e estabelecer relações entre a Bahia e a África. É como se ele pudesse, em nome de todos os escravos, fazer a viagem de volta negada ao tempo cultural e afetivo amputado. O historiador Saul Karsz concluiu que o tempo do escravo era um tempo absolutamente decepado, sem volta; ou seja, deixava definitivamente para trás a sua sociedade, os seus, sua identidade cultural. Raros foram os que voltaram, como os malês. Como muçulmanos, não aceitavam a escravidão, resistiam, de modo que se optou por enviá-los de volta à África.

Outro artista é o maranhense Thiago Martins de Melo, também iniciado no candomblé, que relata a história da violência no Brasil, a história dos massacres. Ele fez um filme de animação, com cerca de 10 mil cenas de carnificina, e alguém disse que aquilo era uma obra da barbárie. Remeto a Pablo Picasso. Quando, na Guerra, um nazista lhe perguntou se ele tinha pintado o horror que era a tela Guernica, respondeu: “Não, quem fez isso foram vocês”. Thiago não faz uma pintura bárbara; sugere que quem fez a barbárie foram os colonizadores e o homem branco.

Já a pintura, as performances e a fotografia de Antônio Obá, de Brasília, tratam do sincretismo, do direito a ser sincrético. Ele foi coroinha e cantou em coro de igreja. Fez uma performance marcante: tomou uma imagem de gesso de Nossa Senhora Aparecida e ralou respeitosamente, transformando-a numa espécie de giz de pemba, e se cobriu com o pó que se levantava, numa referência à fotografia O deus da cabeça, de Mário Cravo Neto, porque o seu corpo ficou coberto do pó branco. Não é um insulto à santa, pois Obá demonstra a volta à condição do corpo de pó e à tradição da escrita a giz de

pemba. Noutra instância está Dalton de Paula, que faz visitas à iconografia da escravidão, com acento à condição do sagrado, do trabalho e da memória.

Nós temos aqui presente Helô Sanvoy, do Grupo EmpreZa. Na performance do trabalho Vila Rica, do EmpreZa, ele representa o escravo; portanto, é tratado como todos os escravizados. Há uma bacia de alumínio cheia de pedras, e os empreZários vertem seu sangue na bacia, numa fusão do sangue do grupo. Helô começa a pisar, como se aquele sangue fosse o dele próprio no trabalho. Depois, passa a plantar bananeira e, com os pés molhados de sangue a desenhar uma parede, por fim tira folhas de ouro do bolso e cola no sangue.

É um luxo visual barroco, ouro e vermelho, mas é sangue e suor.

Sei que estou deixando de lado muita gente, adiante vamos ter Jaime Lauriano, por exemplo, que trabalha com a reconstrução da memória; de certa maneira, é o anti-Rui Barbosa, porque todos sabemos que o senador abolicionista Rui Barbosa, com a melhor das intenções, propôs a destruição dos arquivos da escravidão como forma de limpar a nódoa moral do Brasil. Considerava que a escravidão fosse uma chaga, mas, por outro lado, a destruição de documentos apagou muito da história. Jaime Lauriano opera a rememorização, a reconstrução do trauma histórico. Falará, também, numa próxima mesa, Rommulo Vieira Conceição, um artista que não lida diretamente com a agenda afro-brasileira, e introduz uma questão necessária, especialmente neste momento: o direito de escolha. Todo indivíduo tem direito de escolher o que vai fazer em arte: não há dever.

Não poderia deixar de falar do Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR). É um museu suburbano, embora esteja situado no centro da cidade, frequentado pela classe média e muitos moradores de comunidades. A coleção afro-brasileira do MAR é a maior do gênero em um museu geral de arte brasileira. Evidentemente, reconhecido o grandioso acervo do insuperável Museu Afro Brasil. O projeto é fazer proximamente uma exposição desse acervo afro, sob a curadoria de Emanoel Araujo. A coleção é pensada como uma integração da arte brasileira, abarcando campos que não podem prescindir de uma representação significativa. No Rio de Janeiro, não havia nenhum Aleijadinho em museu público, agora temos três. Temos

uma seleção de Mestre Valentim fantástica, uma coleção das ditas “joias de crioula”, da Bahia. E ainda uma coleção de documentos da escravidão, quase 400 manuscritos. É um projeto que chamo de mapa desencontrado do Brasil, porque, simultaneamente, temos a Pororoca, coleção de arte amazônica; estamos concentrados em duas leituras geográficas: Bahia e Centro-Oeste; e ainda uma grande coleção de coletivos de São Paulo, com mais de 50 obras, doadas pela Funarte. O MAR coleciona obras de arte que tratam do zero e do infinito, dois conceitos da moderna filosofia da matemática.

HERKENHOFF, Paulo. A voz afro-brasileira nas artes. In: NADER, Helena et al. Relações do conhecimento entre arte e ciência: gênero, neocolonialismo e espaço sideral. São Paulo: Instituto de Estudos Avançados, 2021. v. 1-2, p. 305-315. (Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência: 4).

Notas

1. “Cabra”, na Bahia, designava o mestiço de negro com índio, mas a origem de Chagas ainda está cercada de hipóteses discutíveis, como aquela de que teria sido escravo da Ordem Terceira do Carmo de Salvador (OTCS). Mesmo com poucas informações comprováveis a seu respeito, é considerado um dos maiores escultores baianos do período, ao lado de Manuel Inácio da Costa (1763-1857). Consultado em: https://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoas/17781-francisco-das-chagas. Acesso em: 22 maio 2020.

2. Manuel Raimundo Querino (1851-1923) foi fundador do Liceu de Artes e Ofícios da Bahia e da Escola de Belas Artes. Pintor, escritor, abolicionista, pioneiro nos registros antropológicos e na valorização das culturas africanas na Bahia.

3. Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906) foi um médico legista e professor da Faculdade de Medicina da Bahia. Abordou a temática do negro como questão social relevante, em trabalhos como Os africanos no Brasil (1890-1905), apesar de adotar uma perspectiva racialista e evolucionista.

4. José do Patrocínio (1853-1905) era jornalista, farmacêutico e orador. Foi uma das principais figuras dos movimentos abolicionista e republicano no Brasil.

Introdução geral

por Paulo Herkenhoff

Texto publicado originalmente na XXIV Bienal de São Paulo.

Que valor tem para ti meu desejo? Questão eterna que se põe no diálogo dos amantes.1 Éramos capazes de atrocidades piores2 – Que fantasma é esse que emerge nos momentos de maior plenitude do desejo? Que metáfora é essa que simboliza terrível medo da alteridade?

Este texto revela os parâmetros curatoriais adotados na constituição do “Núcleo histórico” da XXIV Bienal de São Paulo. Nunca pretendemos uma visão totalizadora ou triunfante da questão da antropofagia. A curadoria da XXIV Bienal de São Paulo iniciou-se com a tomada da “espessura do olhar”, na linha de Jean-François Lyotard em Discours, figure, como conceito operacional deslocado para a ideia de densidade. A espessura não deveria estar apenas na arte (muito menos seria sua ilustração como “tema”), na ação dos curadores e, sobretudo, na instituição. A ideia de “Núcleo histórico” indica uma pauta, diferente da tradição das “salas especiais”. Abdicamos das ideias de status (“especial”) ou territorialização (“salas”), porque carecia definir nosso debate histórico concreto, integrado por critérios conceituais efetivamente desenvolvidos em termos de forma de olhar em exposição e texto.

A XXIV Bienal toma sua posição diante da disciplina da história da arte. Compreendemos com Giulio Carlo Argan que história e crítica contemporânea não prescindem uma da outra, de modo que não deveria haver cisão no contexto da Bienal. Também reconhecemos a multiplicidade dos fios da história e que, no caso da arte, a postura eurocêntrica, com sua orientação hegeliana, havia criado parâmetros excludentes no circuito da arte. Nossa opção, na negociação dos empréstimos de obras, implicou um debate com diretores de museus que tradicionalmente negam empréstimo para exposições temáticas, contrapostas a mostras históricas, que agregam conhecimento novo. Os curadores da Tate, do Pompidou ou do MoMA já conheciam a antropofagia e puderam mais facilmente compreender seu sentido histórico dentro da perspectiva da formação cultural do Brasil.

A abertura conceitual, para aceitar uma história outra da arte, foi a posição do Louvre, do Orsay, do Besançon e do Prado. Muitos compreenderam aquele “diferencial” da cultura brasileira,3 alguns não.

O “Núcleo histórico” deveria partir de uma visão não eurocêntrica. Qual o momento denso da história da arte no Brasil? O conceito de “espessura” demarcava respostas: Barroco, Modernismo, Neoconcretismo ou anos 1960/1970. O Modernismo ofereceu uma resposta desafiadora: a antropofagia. O movimento que toma corpo em São Paulo em 1928 com Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade se espalha no tempo pela cultura brasileira enquanto estratégia de emancipação cultural. 4 Estranhamente, o Brasil nunca realizara uma grande mostra sobre a antropofagia para discutir sua pluralidade cultural. Ademais, a antropofagia admite precedentes e paralelos na história da arte . Permite uma abertura conceitual complexa para vários campos anunciados no “Manifesto antropófago”, como história, antropologia, política, filosofia, religião, linguística, psicanálise. Já sabíamos que o canibalismo propiciou a Montaigne dados pragmáticos e espaço para a criação de argumentos em seus Ensaios para discutir a relatividade dos valores humanos. Como imaginar que o primeiro debate filosófico ocorrido no Brasil, na França Antártica, envolvesse questões do canibalismo?

Parafraseando Borges, a Bienal deixaria de ilustrar ou espelhar discussões surradas para introduzir uma lente da cultura brasileira para visitar a arte contemporânea e a história. A antropofagia é um conceito suficientemente polêmico para não se sancionar como verdade. Nem para se fixar em imagens ou estilos. Abre-se, pois, um debate com uma questão conceitual posta, com obras de arte que permitem discussões concretas e com projetos curatoriais cristalinos e diferenciados. A curadoria foi um intenso processo de reflexão dos conceitos, como se depreende dos textos e da exposição.

A Bienal de São Paulo é um evento imenso produzido num período de ano e meio. O complexo envolvimento de dezenas de curadores produz dificuldades crônicas de efetivação de seus “temas” através de obras. Algo ocorria e não se enunciava nas bienais: a multiplicidade, a disparidade, a contradição das interpretações, ou até a afronta ou a negação do tema. A antropofagia, enquanto

conceito de estratégia cultural, e suas relações com o canibalismo, ofereceu um modelo de diálogo – o banquete antropofágico – para a interpretação. O movimento de coletar ou estimular interpretações, chegando a centenas de conceitos, concepções, acepções, elementos, aspectos etc. demonstrou a riqueza da questão da antropofagia. Incentivamos a emergência de sua vastidão conceitual centrífuga como montagem de um thesaurus. Depois dessa aparente dispersão, estimulou-se movimento centrípeto de cada curador. Estranhamente, a antropofagia – ambivalente e polêmica – propiciou em cada interpretação uma relação transparente curadoria/obra/público. Compreender a vastidão significou entender que o “Núcleo histórico” não seria uma enciclopédia do canibalismo nem que a Bienal esgotaria a questão. Daí a opção por cortes, recortes, exemplos, em deliberada exploração da ambivalência. Diferenciamos antropofagia, como tradição cultural brasileira,5 de canibalismo, prática simbólica, real ou metafórica da devoração do outro.

Como ponto de partida, demandamos aos curadores o programa curatorial específico para cada sala. Discutimos os ajustes eventualmente necessários. No espaço dos séculos XVI a XVIII está em pauta o confronto da Europa com a descoberta de um canibalismo real na América e a introdução dos gêneros artísticos neste continente no processo colonial, enquanto a sala do século XIX trata da presença do canibalismo no fundo terrível do inconsciente ocidental. Articulamos um diagrama das salas do “Núcleo histórico”, mas, por dificuldades do espaço, ele não corresponde ao plano de montagem.

Um conceito suficientemente amplo – e a amplitude já estaria em sua própria gênese –, depois da etapa de sua abertura para múltiplas possibilidades, deveria se precisar em cada uma a intenção ou estratégia curatorial. Cada sala deveria constituir parâmetros curatoriais específicos, de modo que se diferenciasse das demais por distinto caráter. Assim, o que está em exposição são as curadorias como discurso de leitura inventiva e poética da arte. E, sobretudo, a própria arte como o espelho da potência de invenção e da reflexão sobre mitos e práticas simbólicas, diferenças e linguagem.

Foi fundamental, nesse processo, demandar a adesão do texto e do projeto curatorial à obra. As obras, ou alguns artistas e mesmo salas, estão aqui como argumentos diretos, indiretos ou para a necessária

passagem entre dois momentos históricos. Análises superficiais não percebem que a antropofagia é um fenômeno de abertura da obra. É da dinâmica da antropofagia redesenhar-se em resposta aos desafios e como solução política da linguagem. Toda vez que se torna tema ou mera imagem está mais distante de sua origem. Opostamente haverá os “eurocêntricos excêntricos”: a reincidência do eurocentrismo, confundida com o projeto moderno e sua racionalidade, é muitas vezes mais forte no Brasil que na Europa. Evitamos a necrofagia visual, a ilustração pedestre da devoração canibal. Evitamos o açougue e o canibalismo por desvio psicológico individual ou por penúria diante de desastres e fome. O canibalismo não é uma dieta. É sempre simbólico e é a partir daí que interessa a este debate. A via admitida é a questão do corpo fragmentado e suas relações com a linguagem.

Se a ideia de apropriação está no caráter da antropofagia, definimos trabalhar com um único exemplo de imagem apropriada: A jangada da Medusa, de Géricault. Foi apropriada por artistas como David Siqueiros, Asger Jorn, Jeff Wall, Thomas Struth. Essa esquadra de La Méduse incluiria muitos outros nomes, como Kippenberger ou Steele e Goldie na Nova Zelândia. Optamos por um tema clássico de canibalismo, Ugolino, e um exemplo pontual de apropriação transcultural: Van Gogh e a xilogravura japonesa. Escolhemos exemplos que demandassem uma construção teórica sutil para além das questões temáticas e iconológicas, como tratar da autonomia cultural, comparar entropia e antropofagia; reagir contra o autocanibalismo; definir um repertório de questões psicanalíticas, históricas da arte, filosóficas, econômicas, ideológicas, linguísticas. A Antropofagia incide sobre os diversos campos da cultura, da literatura à música. Ademais, é um conceito dinâmico capaz de estabelecer uma validade para nosso tempo. O canibalismo, sendo prática simbólica, implica compreender relações de alteridade. É metáfora na filosofia e na reflexão sobre a violência. Envolve a estruturação das sociedades, o nascimento da linguagem ou o próprio desejo e a fusão amorosa dos indivíduos. Este “Núcleo histórico” desta Bienal significa que, pela primeira vez, uma exposição integra diretamente questões específicas da cultura brasileira integrada numa discussão com a arte ocidental, reunindo Aleijadinho e Goya, Volpi e Van Gogh, Lygia Clark e Eva Hesse em diálogo. Na arte europeia, encontramos um corpus antropofágico que vai de Goya a Géricault. Evidentemente, a antropologia e a psicanálise de Freud trouxeram contribuições consideráveis. A Europa

viveu mitos – Saturno devora seus filhos – e a perplexidade com o Outro canibal, espécie de monstrificação do diferente. A Bienal de São Paulo, por sua complexidade e prazo, não é, como Kassel, a afirmação de um curador, mas um processo para se articularem olhares de um pequeno exército de curadores. A dispensa do texto analítico da curadoria-geral justifica-se dado o fato de que todas as salas mereceram textos importantes. Só me interessa o que não é meu, direi.

Um viés do “Núcleo histórico” é refletir sobre cor e latitude enquanto lugar relativo à história da arte e à percepção, confrontadas com questões subjacentes de antropofagia e canibalismo. O artigo “Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira” (1980), de Haroldo de Campos, foi fundamental para a compreensão do processo histórico da cultura brasileira, da latência permanente de modos antropofágicos, desde o século XVII, com o poeta Gregório de Mattos. A antropofagia é estratégia crucial no processo de constituição de uma linguagem autônoma num país de economia periférica. A sala “A cor no Modernismo brasileiro” apresenta o tecido artístico do Brasil no período por meio de sintética visão do projeto de cor de Anita Malfatti, Vicente do Rego Monteiro, Oswaldo Goeldi, Lasar Segall, Flávio de Carvalho, Di Cavalcanti e Guignard. Os trópicos, lugar fora da história da arte, desenvolvem um discurso com grão “cromático” próprio. As fases pau-brasil e antropofágica de Tarsila do Amaral evidenciam o esforço dos artistas dos trópicos para superar a mera condição de natureza e exotismo, num processo de desenvolvimento da significação da cor e estabelecimento de uma tradição própria, isto é, de uma história da arte. A cor local de Tarsila, conforme lição de Léger, está em pau-brasil, seguida da “cor selvagem”, ora telúrica, melancólica, silenciosa, ora estridente da Antropofagia. Alfredo Volpi é a ponte entre o Modernismo e as rupturas contemporâneas, entre Tarsila e Oiticica. Volpi não foi um “antropofágico” avant la lettre, 6 mas a realização do projeto de autonomia cultural almejado pela antropofagia modernista. Sua sabedoria pictórica é singular. A cor vernacular das casas de fazenda, vilarejos e subúrbios é deslocada da ideia de “cor local”, ainda restrita na cor caipira de Tarsila, para adquirir autonomia poética, como definem Mario Pedrosa, Olívio Tavares de Araújo, Rodrigo Naves e outros. Sua erudição intuitiva opera a autonomia da cor por meio de pinceladas precisas na demarcação de seu campo, em pinturas ora “geométricas”, ora “temáticas”. Nossa orientação curatorial

privilegia a cor sobre os temas. Aracy Amaral e Sônia Salzstein são respectivamente curadoras da obra de Volpi e Tarsila.

Hélio Oiticica é a torção do sentido formalista da cor na arte brasileira. Dos planos estáticos do período do Grupo Frente à dinâmica dos Metaesquemas, a cor ganha autonomia nos Monocromos e pinturas neoconcretas, vira espaço real com os Relevos espaciais e Bilaterais, torna-se arquitetura de planos nos Núcleos e sua corporeidade se entrega aos sentidos nos Bólides, na busca neoconcreta de recuperação do sujeito.7 Para Oiticica, Tropicália é “a obra mais antropofágica da arte brasileira”, propiciando a “definitiva derrubada da cultura universalista entre nós, da intelectualidade que predomina sobre a criatividade”.8 As obras de Oiticica e de Lygia Clark apresentam desafios às curadorias, porque implicam a participação do público como condição de realização da arte. Nesta Bienal, seus objetos criados para o manuseio estarão entregues à experiência sensorial. O bólide Homenagem a Cara de Cavalo (1966) compõe uma história de monocromos que incluiria Fantasma, de Antonio Manuel, e Desvio para o vermelho, de Cildo Meireles. Meireles reintroduz a noção de excesso na economia essencial do monocromo. A Impregnação, parte de Desvio para o vermelho, poderia aparentemente aproximar Meireles da economia do IKB de Yves Klein. Meireles está visceralmente interessado em expor os jogos do capital, no confronto entre valor de troca e valor de uso, valor simbólico e valor real, daí o imenso monocromo tomar o caráter de cor devorante e atuar como estratégia de neutralização do valor pelo excesso. Saturação, acúmulo, impregnação, desdobramento cromático, simbolização determinam a inserção dessa obra nesta Bienal. Além da referência a Ateliê vermelho, de Matisse, referimos a memórias de infância do artista. Seu pai levou-o para ver o corpo de um jornalista político assassinado, cujos amigos haviam tomado seu sangue para escrever na parede frases lembrando o heroísmo de suas ideias.

Dois artistas jovens do segmento Brasil contemporâneo, Beatriz Milhazes e Delson Uchoa, incorporam-se nessa trajetória. Milhazes funde em rapsódia os acordes e contrastes de tradições brasileiras da cor (decoração de móveis, o chitão, a pintura de Guignard) e referências europeias e universais. No entanto, a cor caipira do Sudeste não dá conta do Brasil. Uchoa extrai luminosidade e estridência cultural da cor do Nordeste. Suas pinturas descrevem

movimentos do “rói-rói”, brinquedo popular a elas incorporados. Inesperadamente, Uchoa nos recorda, como Oiticica, que sua arte é música.

Vincent van Gogh é o artista europeu escolhido para discutir cor e latitude temperada, coincidente com o centro da história da arte e seus códigos. O artista busca uma luz fora da história, em seu âmago emocional ou em outras latitudes, ao Sul ou no Extremo Oriente. Desviando-se das questões anedóticas, a paisagem foi o mais radical testemunho desses seus movimentos. Sua trajetória se testemunha com um conjunto de paisagens, desde aquelas da compaixão às paisagens do desespero. Seu estado de ânimo é sua pintura. No início, a paisagem se arrima nos claros/escuros, no caráter simbólico da luz, como solidário pessimismo social. Sua arte dialoga com Millet. Paulatinamente descobre o plein air, a pintura impressionista e depois a xilogravura japonesa. Enquanto outros artistas optam pelo esteticismo de linhas, figuras, costumes, Van Gogh toma o Japão pelo estranhamento mais extremo para o olhar europeu – o código de cores e dos contrastes cromáticos violentos da xilogravura do Ukiyo-e, oposto às regras da arte europeia. Assim, Van Gogh realiza uma radical operação transcultural, índice característico da antropofagia. Sua angústia é autoconsumo. Seu suicídio realiza algo que poderíamos classificar como pulsão autocanibal. Várias noções de sacrifício se desenrolam nesta Bienal: o banquete antropofágico, a Eucaristia, o suicídio e o episódio da orelha de Van Gogh (analisado por Bataille), as mitologias de Masson, a pintura de Bacon e Kuitca, Tiradentes e The destruction of the father [A destruição do pai], de Louise Bourgeois. A complexidade de realizar uma sala “Van Gogh” numa Bienal levou a curadoria-geral a demarcar o escopo da mostra, concentrado num eixo principal que definiria seus modos antropofágicos. A curadoria é de Pieter Tjabbes.

Armando Reverón, artista venezuelano, retorna de Paris para viver na selva, espaço que Hegel define como fora da história. Reverón passa a pintar numa região próxima da zona equatorial, criando paisagens brancas, de luz, e pinturas de sombras, paisagens cinzas. As sombras nos dão o relevo do mundo e nos permitem conhecê-lo. As paisagens brancas são pintura seca, em estado selvagem que nada tem a ver com a revelação do sublime na pintura de materialidade dócil sobre fenômenos meteorológicos, do gelo

em Caspar David Friedrich, das brumas de Turner ou da neve em Courbet e nos impressionistas. A zona equatorial é lugar de percepção e Reverón pinta o céu azul, a floresta luxuriante como se olhasse para o Sol. A luz é aberta e explode, devora as cores, reduz o espectro ao branco. O curador Luis Pérez-Oramas reflete sobre estes processos de canibalização pela luz.

A região ártica, numa Bienal que busca articular seus segmentos e obras, está presente em “Roteiros...” com Fin de siècle, do General Idea, uma instalação de paisagem com gelo de isopor e focas estofadas, e nas “Representações nacionais” com uma paisagem minimalista de Olafur Eliasson, composta de uma lâmina de gelo real que se esforça para existir sob a temperatura tropical.

O “Núcleo histórico” da Bienal apresentará um dos extremos absolutos da modernidade no campo visual, que são os monocromos. A sala estará dividida em três espaços. No primeiro, será apresentado um conjunto de obras referenciais para a história da arte na América Latina: Mondrian, Van Doesburg e Torres-García, que se relacionou diretamente com os dois últimos. Albers, Arp, Lohse, Vordemberge-Gildewart, Vantongerloo e Calder apontam para um “efeito Bienal” sobre a arte brasileira. Uma pintura suprematista de Malevitch, em que o branco sobre branco se revela como conhecimento do zero. Demonstra-se que, neste século, nossos artistas passam a ter uma relação produtiva direta com a história da arte, que já não tratam como história de estilos ou de imagens, mas têm a consciência do processo histórico de problematização das questões plásticas. Aqueles artistas europeus passam a ser referência e não simples influência. No segundo espaço são apresentados monocromos brancos de vários artistas de diversas partes do mundo, com obras produzidas num período de pouco mais de uma década, mas cada uma tratando de uma questão plástica específica: Robert Rauschenberg e Robert Ryman (Estados Unidos), Hélio Oiticica, Lygia Clark, Hércules Barsotti, Mira Schendel, Manabu Mabe e Tomie Ohtake (Brasil), Lucio Fontana (Argentina/ltália), Piero Manzoni (Itália), Kusama (Japão), Otero e Soto (Venezuela). A tese é de que a história da arte já não tem mais um centro absoluto, mas se produz onde está o artista que atua com pertinência histórica. Finalmente, no terceiro espaço, um conjunto de monocromos indica a intensa retomada de significados para aquilo que parece ser pura cor: Yves Klein, Antonio Dias, Nigel Rolfe, Glenn

Ligon, Mona Hatoum e Katie van Scherpenberg tratam do monocromo para discutir questões como diferença, desejo, racismo, gênero.

Sempre se comeram almas no Brasil. No século XVII, o padre Antônio Vieira raciocina por paralelismos em seu “Sermão do Espírito Santo”, às vésperas da partida de missionários para a Amazônia, usando a visão de São Pedro, em oração em Joppe, ao ouvir três vezes “Surge, Petre, occide e manduca” (“Eia, Pedro, matai e comei”). Pensou serem animais proibidos pela Lei, no entanto, conclui Vieira: “Mas se aqueles animais significavam as nações dos gentios, e estas nações queria Deus que São Pedro as ensinasse e convertesse, como lhe manda que as mate e as coma? Por isso mesmo, porque o modo de converter feras em homens é matando-as e comendo-as, e não há coisa mais parecida ao ensinar e doutrinar, que o matar e comer”.9 Na perspectiva de Vieira, os missionários são canibais. Buscavam resgatar os índios da “barbárie” extrema – o canibalismo – preparando-os para a empresa colonial, convertendo-os ao cristianismo, e em troca ofereciam a eucaristia, como consumo do corpo de Cristo transubstanciado. O processo colonial foi uma guerra de canibalismos, que Adriana Varejão apresenta em Proposta para uma catequese.

Ao descobrir um canibalismo real, a Europa viveu grande impacto. O ponto de partida histórico destas salas são os relatos de Hans Staden, aprisionado por índios canibais, as obras de Jean de Léry (que Lévi-Strauss chamou de breviário da etnografia) e Thevet na França Antártica, a obra monumental de Theodore de Bry e os Ensaios de Michel de Montaigne. A partir da notícia sobre os índios canibais brasileiros, Montaigne discute a relatividade dos valores entre os diversos povos. Se o canibalismo horrorizava os franceses, Montaigne conclui que na Europa se praticavam atrocidades ainda maiores. Reformula-se a perspectiva humanista renascentista.

O Brasil formula-se como uma sociedade plural formada por múltiplos encontros étnicos. Albert Eckhout foi o primeiro anotador da iconografia desse processo. Frans Post inventa a paisagem primígena da América, analisada por Luis Pérez-Oramas. O Brasil é o matriarcado de Pindorama, descreve Oswald de Andrade em seu “Manifesto antropófago”. Exibem-se os quatro retratos de mulheres pintados por Eckhout, que representam a complexidade étnica no Brasil: índias tupi e tarairiu (Tupi), uma africana e uma

mameluca. Esse processo de encontro entre culturas está na base das formulações modernistas sobre a identidade do Brasil, enquanto sociedade formada pelos aportes, tramas e encontros entre europeus, nativos e africanos da diáspora da escravidão. Implica compreender que entre eles havia um grupo com a prática simbólica do canibalismo de apropriação das forças do Outro. Numa paisagem inóspita, a índia tarairiu é representada com pedaços de um corpo humano, índice de seu canibalismo. As pinturas de Eckhout atuam em duplo contexto. Tratam da prática concreta do canibalismo e indicam a formação étnica do país na base das formulações da identidade nacional complexa. Com curadoria de Jean-François Chougnet e Ana Maria Belluzzo e consultoria de María Concepción García Sáiz, esta sala propõe um percurso no projeto europeu de produzir imagens alegóricas dos continentes como territorialização política da diferença, em que a América se distinguiria pelo canibalismo.

A Europa introduz técnicas e gêneros artísticos em suas colônias onde a apresentação dos índios, mestiços e mulatos se tornam sujeitos da produção da arte. Esses pintores não representavam a América como lugar do canibalismo, atuando sob um interdito, como no caso de José Teófilo de Jesus, na Bahia. Internalizavam uma noção de canibalismo como barbárie e buscavam ocultar isso em sua origem. No México setecentista se cria um gênero, as pinturas de castas, que demonstravam um sistema de classificação baseado numa escala idealizada de composição étnica. São séries de quadros, em que cada um documenta um casal e um filho e se indica, por exemplo, que de espanhol e índio se produz mestiço, de espanhol e mestiça se produz castiço, e assim sucessivamente. A arte torna-se uma espécie de território de individualização, como para o Aleijadinho, ou ainda as relações entre a devoção ao Cristo atado à coluna e o escravo atado ao pelourinho. Entre as populações nativas de Potosí ou Cusco, nos Andes, os atributos dos santos são “canibalizados”. A Virgem é apresentada como a noiva do Sol ou na forma de uma montanha sagrada. Essa repaganização de uma entidade cristã significa, portanto, um gesto de resistência cultural e de negociação simbólica.

O século XIX vê se expandir o processo de independência das grandes colônias europeias na América. A curadoria desta sala parte da reunião de canibalismos da mitologia (Gustave Moreau), canibalismo eventual entre europeus (Géricault) e canibalismo pelo

O museu é um sistema de responsabilidade entre gerações.”

Paulo Herkenhoff em entrevista para o projeto Ocupação, em 2025

outro. Mesmo se o canibalismo real na América já não causasse o mesmo impacto, Goya representa-o entre os iroqueses. Régis Michel direciona a mostra para as questões de totem e tabu, a transgressão e devoração de filhos pelos pais e vice-versa. Amplia o espectro para incluir Desprez, Füseli, Blake ou Munch. Sua análise indica a geração das bases da teoria psicanalítica de Freud. A arte europeia retoma a literatura de Dante com a figura de Ugolino, o pai que devora seus filhos. O tema, inscrito por Rodin na Porta do inferno, foi trabalhado por artistas como Carpeaux e Géricault. Daí ressoam as teorias do “Manifesto antropófago”. Na perspectiva totêmica, é a sociedade que devorará seus filhos. Uma obra-chave é a pintura A jangada da Medusa, em que Géricault apresenta náufragos que, à deriva, alimentam-se dos que morrem. A pintura surgiu como gesto pela abolição da escravidão na França, pois o artista apresenta um negro como sujeito social, o indivíduo que salva o grupo, acenando para outro navio. Introduzimos na mostra a pintura Tiradentes, de Pedro Américo. O pintor brasileiro recorreu à obra de Géricault (Estudos anatômicos e Cabeças cortadas) para representar o corpo esquartejado de Tiradentes. A operação de Tiradentes é deslocar a ideia política, conotar a escravidão ao canibalismo e transferir a metáfora para o colonialismo. A independência e a abolição são lutas libertárias nas sociedades que devoram seus cidadãos.

O “Manifesto antropófago” anuncia a dúvida do Brasil: “Tupy or not tupy, that is the question”. Vira um símbolo do Brasil. A ação múltipla de Oswald de Andrade contamina literatura, teatro e artes plásticas. São conhecidos seus antecedentes dadaístas, sobretudo Picabia e sua revista Cannibale, mas Benedito Nunes discutiu a amplitude de Oswald: “Abriu-se, de Nietzsche a Freud, o caminho que fez do canibalismo o digno de uma síndrome ancestral, ou, para usarmos a linguagem de Oswald, uma semáfora da condição humana, fincada no delicado intercruzamento da Natureza com a Cultura”.10 Necessitamos introduzir, mesmo sucintamente, o inventor da antropofagia, tarefa entregue a Pedro Corrêa do Lago. Da obra de Oswald, José Celso Martinez retira O rei da vela para fundar seu teatro antropofágico, com a participação de Hélio Eichbauer na montagem da peça pelo Teatro Oficina. O teatro, dizia Antonin Artaud, deveria propiciar sonhos ao espectador “no qual [...] suas fantasias, seu senso utópico da vida e das coisas, até mesmo seu canibalismo jorram a um nível que não é falso e ilusório, mas

interno”.11 O cinema antropofágico de Glauber Rocha e outros teve curadoria de Catherine David.

Mario Carelli e Walnice Nogueira Galvão propõem-se a buscar o diferencial da cultura do Brasil, cuja literatura não mais seria o transplante de correntes estéticas.12 O Modernismo no Brasil recupera o passado como possibilidade de projetar-se para o futuro, diferentemente do Futurismo de Marinetti, porque, para criar uma espécie de modernidade própria, a cultura brasileira redimensionou, e não recusou, a relação com a tradição e o passado.

Lacan admite buscar algo que é materializado com o campo elaborado por Claude Lévi-Strauss como Pensamento selvagem . “Antes de qualquer experiência, [...] antes mesmo que se inscrevam as experiências coletivas que só são relacionáveis com as necessidades sociais, algo organiza esse campo, nele inscrevendo as linhas de força iniciais”, função que Lévi-Strauss nos mostra ser a verdade totêmica, com sua aparência – a função classificatória primária. 13 Lévi-Strauss viveu momento decisivo no Brasil, ensinou na Universidade de São Paulo. Sua antropologia, já se disse, lida com estados de transição conectados por um fio contínuo de instâncias: o sacrifício asteca, a tortura iroquesa, a caça à cabeça jivaro e o canibalismo tupinambá, cuja história se deve a Florestan Fernandes.

A Antropofagia encontra no Dadaísmo um precedente imediato e em Cannibale, de Picabia, a aparente apropriação pela Revista de Antropofagia. A sala sobre Dadaísmo e Surrealismo, com curadoria de Dawn Ades e Didier Ottinger, discute Picabia, Dalí, Ernst, Masson e ideias de Bataille sobre canibalismo. O repertório é basicamente documental, revistas e desenhos, além de evidenciar a presença desses artistas nos museus brasileiros. O Dadá e o Surrealismo foram movimentos que mobilizaram a noção de vanguarda e seu impacto sobre a sociedade. Essa noção de vanguarda trepidante, próxima do Futurismo, informa sobre as práticas sociais do Modernismo brasileiro, como a Semana de Arte Moderna. Ades aponta dados de Dadá sobre agressividade, relações com a vida (e não a arte), e os precedentes literários em Jarry e Swift, para os quais o canibalismo seria um fruto irônico da “civilização”. Um mal-estar europeu que a Antropofagia celebra como alegria e felicidade.

O primeiro interesse na personalidade de Picabia permite confrontar Cannibale com a Revista de Antropofagia. Oswald conheceu Cannibale. Seu “plágio” estaria na mesma proporção daquele de que são acusadas as pinturas mecânicas de Picabia, saídas a imagens de revistas de engenharia. A relação Revista de Antropofagia versus Cannibale confirma a capacidade do Modernismo brasileiro de incorporar e transformar ideias em pensamento próprio.

Ottinger explora ironicamente o canibalismo dietário, como gula alimentada por Sade, Lautréamont, Bataille e Caillois e calcada numa voracidade entomológica. O episódio da orelha de Van Gogh foi visto por Bataille como “sacrifício”, conectando os “massacres” de Masson ao artista holandês. O amor guloso da fêmea louva-a-deus de Masson ressurge na fome da aranha de Maria Martins e Louise Bourgeois. Murilo Mendes diz que Max Ernst “descende de Rimbaud, pela criação de uma atmosfera mágica, o confronto de elementos díspares, a violência do corte do poema ou do quadro, a paixão do enigma”. 14

Dawn Ades explora o vasto repertório de imagens de canibalismos por Salvador Dalí, resumido em suas ilustrações para os Cantos de Maldoror, de Lautréamont. Havia o desejo de devorar Gala. Como os surrealistas, Dalí explorou o canibalismo enquanto metáfora de guerra. A figura do pai autoritário se desloca para Guilherme Tell. Um dos fatos biográficos de Dalí era o grande peso psicológico, na estrutura patriarcal, de ter recebido o mesmo nome de seu irmão que havia morrido, tratado na pintura Man with an unhealthy complexion listening to the sound of the sea [Homem com aspecto doentio ouvindo o barulho do mar] (1929). Jennifer Mundy complementa a discussão do itinerário canibal de Dalí.

A carga psicológica do Surrealismo e a exploração do inconsciente remetem ao Totem e tabu de Freud. Oswald de Andrade, transgressor, proclamaria a necessidade de transformar o tabu em totem. O canibalismo, na articulação de psicanálise, antropologia e filosofia, primitivismo e vanguarda, é trabalhado por Bataille e Caillois, pelos artistas surrealistas, enquanto no Brasil caracteriza a complexa estratégia vanguardista da Antropofagia. Freud é hoje uma imagem de chocolate, construída pela fotografia de Vik Muniz – oferecida à devoração antropofágica ou ao vômito revisionista.

A Bienal recebe o apoio da Fondation Maeght, de Saint-Paul de Vence, para apresentar Alberto Giacometti com um conjunto de esculturas e gravuras. A esperança de uma obra nova, na base da curadoria de Jean-Louis Prat, seria enfrentar a dificuldade do ser e do impossível encontro com outro. Embora sejam exibidas peças do período surrealista, Giacometti será apresentado com obras do período de maturidade, de confronto mais absoluto entre matéria e carnalidade.

Já a Femme-cuiller [Mulher-colher] se erige como um totem. Indica o interesse de Giacometti, à época, pela pureza formal dos artefatos da cultura material dos povos africanos, como nas colheres da sociedade Dan, da Costa do Marfim. Esculpir seria, então, para Giacometti, reduzir o homem à sua carnalidade essencial, ou àquela essência carnal que as coisas requerem para sua presença, como analisa o filósofo Merleau-Ponty, que ainda fala de uma “textura imaginária do real”. Giacometti reduz o indivíduo a uma condição física essencial: a verticalidade, ou o prumo como consciência da gravidade, e a massa como corporeidade. Esse corpo mínimo não é uma descamação, mas a busca extrema na qual signo de presença e economia absoluta se confundem. Giacometti opera uma espécie de economia fenomenológica. Alain Cueff fala de seu endocanibalismo, porque é equidistante da experiência literal e da especulação metafórica.

Michel Leiris celebrou sua escultura com “iguarias de pedra, comidas de bronze maravilhosamente vivas”. Uma obra de José Resende promove o diálogo da escultura contemporânea brasileira com Giacometti.

René Magritte é singular em sua capacidade de dialogar com o espectador justamente por aquilo que poderia afastá-lo do público: o estranhamento. Sua pintura fascina ao desafiar e canibalizar a lógica do olhar e operar sobre as fantasias mentais, superando os limites da racionalidade. Algumas obras tratam das metáforas políticas e psicológicas de devoração. Em Magritte, as palavras negam seu significado e se chocam com as figuras a que erroneamente pareciam corresponder. Didier Ottinger, com a obra de Magritte, propõe questões epistemológicas e a colagem tem parte com o canibalismo, tendendo a fundir os registros formais e semânticos mais heterogêneos. Nossa mostra conta com o apoio dos Musées Royaux des Beaux-Arts da Bélgica no ano de centenário do artista.

Matta aporta vitalidade ao Surrealismo, que se esgotava pela banalização de seus jogos visuais. Justo Pastor Mellado, curador

de Matta, trata da morfologia da oralidade e suas relações com a geografia e a sociedade do Chile. “Quando pinto uma tela, pinto à minha volta; tentei agir como se estivesse situado no centro do cubo e do quadro, em lugar de ser uma janela diante de mim, eram os seis lados de um cubo”, diz Matta no catálogo Lam, Matta, Penalba – Totems et tabous (Musée d’Art Moderne de la Ville de Paris, 1968). Em sua pintura, o cubo, poderíamos dizer, é o estômago do mundo.

Pintar é digerir. A obra de Matta se marca pela gestualidade aparentemente brutal e selvagem, testemunho da capacidade do indivíduo em lidar com os fantasmas do inconsciente. Seu discurso visual é jorro de imagens, gozo, em que a paisagem monumental do Chile tomaria caráter de escritura da fantasmática. Paisagens bizarras, máquinas interplanetárias e indivíduos que parecem aterrissar de outras regiões galáxicas – tudo está mais próximo do universo contemporâneo das devorações do homem pela tecnologia e dos indivíduos por meio do desejo.

Para a curadora Mari Carmen Ramírez, David Siqueiros é um dos três grandes formuladores de um projeto de vanguarda para a América Latina, ao lado de Torres-García e Oswald de Andrade. Sua teoria da arte envolvia a valorização da cultura nacional, das civilizações nativas e das conquistas tecnológicas. Em sua obra já não há uma vítima da apropriação. Siqueiros se apropriou do cinema de Eisenstein, que se marca pela arte mexicana. Sua obra realizada na prisão transgride os cânones da pintura. Filiado à ideologia marxista, Siqueiros oferece exemplos da ideia de canibalismo como metáfora da exploração econômica da mais-valia, a diferença que o capital obtém sobre o trabalho, uma espécie de expropriação voraz da energia do outro. A tela A barca do fascismo, impregnada de política, remete a A jangada da Medusa, de Géricault, uma arte não desvinculada das lutas sociais de seu tempo.

Francis Bacon é pintor da condição humana. É daqueles pintores que, como diria Valéry, “trazem seu corpo” à pintura. A figura humana emerge como conversão da materialidade da pintura em fenomenologia da carnalidade e hipótese extrema do figural, conforme analisa Deleuze. Seríamos também pintura. Bacon captura os limites físicos do corpo humano, a realidade finita da carne, a violência dos sentidos e da fusão dos corpos. A curadora Dawn Ades discute os modos antropofágicos de Bacon (as apropriações de

Eisenstein, Muybridge, Velázquez, Manet e Van Gogh, e de imagens banais), sua relação com o canibalismo via Elliot.

A pauta CoBrA, sob curadoria de Per Hovdenakk, conflui para o canibalismo. O universo é de mito, máscaras, totemismo. A transgressão surgiu na ruptura com o Surrealismo e a voracidade em imagens de oralidade agressiva. Fragmentos do corpo juntam-se ao vocabulário de devoração. Para Alechinsky, um apetite pela cor vibrante é próprio do olhar nórdico. A superfície de sua pintura Bombardement [Bombardeio] é carne viva, como fenomenologia da matéria enquanto corporeidade dolorida. Já a mulher é idealizada no desejo. Moment érotique [Momento erótico], de Constant, é delícia canibal. As apropriações de Jorn atingem o corpo de outra obra de autor anônimo, violando-a com sua pintura. Sua versão de A jangada da Medusa enfoca o pessimismo político de seu tempo e a ameaça atômica. Appel afirma que “nós, homens de hoje, somos bárbaros aperfeiçoados”.15

A obra de Gerhard Richter e Sigmar Polke propiciaria discutir o processo com que se constrói a dissolução do autor e o estatuto e os limites da pintura. Nosso curador é Veit Görner. Tudo como se a pintura pudesse ser salva pela proclamação de um anti-heroísmo alimentado por processos de apropriação, devoração de imagens ou sua migração entre pintura e fotografia. A pintura se confronta com seu próprio esgotamento, a iconoclastia, a devoração, a saturação dos símbolos. Richter atua sobre a ausência de estilos. Como Oswald de Andrade, Richter se preocupa com o consumo diluidor de ideias. Seus 48 Porträts [48 retratos] tratam da busca pelo pai. A iconoclastia de Polke recorre a um largo espectro de imagens, como no caso de Die Alten [As velhas], baseada em Goya. Suas obras sobre a Revolução Francesa, seu heroísmo e tragédia permitem a remissão ao espírito de A jangada da Medusa, de Géricault, e à guerra vista como canibalismo por Goya. Na pintura Negativwerte/Negative values [Valores negativos] (1982), Sigmar Polke emprega vermelho Saturno, pigmento venenoso. Um processo de autoconsumo como emergência das pulsões canibais.

A obra de Guillermo Kuitca pertence à ordem de arquiteturas canibais, de Bormazo e Piranesi. Estádios, teatros, hospitais são plantas inabitadas. Os seres humanos aí parecem consumidos pela lógica de regulação do lugar do corpo no espaço social e por uma indicação

do panóptico. O curador é Jorge Helft. O nome da cidade traz o índice do forno crematório, porque a arquitetura é monumento da barbárie. Camas, lugar onde o que fere e flui como fantasmática é aquilo que o desejo instaura como um canibalismo.

“O amor é impotente, ainda que seja recíproco, porque ele ignora que é apenas o desejo de ser Um, o que nos conduz ao impossível de estabelecer a relação dos... A relação dos quem? – dois sexos”, escreve Lacan.16 Nosso projeto foi reunir algumas artistas que contribuem de forma singular para a relação entre arte e desejo: Maria Martins, Lygia Clark e Louise Bourgeois. São artistas cujas obras são operações fantasmáticas. A fusão amorosa expõe, por exemplo, sua força voraz e precariedade em O impossível, de Maria Martins, ou em Couples [Casais], de Bourgeois, enquanto Clark frequentemente proporá essa experiência. Um pequeno objeto Aranha, de Maria (1946), a grande escultura-instalação Aranha, de Louise Bourgeois, e o enredamento existencial proposto em obras como Estrutura viva (1969), Baba antropofágica (1973) e Rede de elástico (1974), de Lygia Clark, propiciam perspectivas singulares do feminino contra o que poderia ser um mero tema.

Maria Martins dedicou-se a temas como fertilidade e oralidade. Nos anos 1940, lendas amazônicas e conotações surrealistas marcam sua produção. Cipós da selva enredam como as serpentes, como Laocoonte. Indicam também suas afinidades com a obra de Lipchitz. Clement Greenberg comentou a exposição de Maria Martins em Nova York em 1944, dizendo que suas esculturas “talvez fossem as últimas manifestações completamente vivas de escultura acadêmica” e apontando seu impulso barroco, e não moderno, dado pelo décor colonial latino e pela luxuriance tropical.17

“Acho que virei até antropófaga”, escreveu Lygia Clark a Hélio Oiticica, “tenho vontade de comer todo mundo que amo”.18 Clark põe a Antropofagia na perspectiva psicanalítica do canibalismo. Como o “Manifesto antropófago” (“Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud”), ela também rejeita Freud: “Recusamos a ideia freudiana do homem condicionado pelo passado inconsciente”.19 Totem e tabu, de Freud, é o marco na discussão psicanalítica do canibalismo, mas foi recusado também pela antropologia.20

No início dos anos 1970, Lygia Clark leciona na Sorbonne, onde desenvolve suas propostas poéticas de vivências, trabalhando com jovens, “que são preparados desde a nostalgia do corpo [...] até a reconstrução do mesmo para acabar no que chamo de corpo coletivo, baba antropofágica ou canibalismo”.21 No período, Clark fazia psicanálise com Pierre Fédida, que no outono de 1972 publica “Le cannibalisme mélancolique” no número “Destins du cannibalisme” da Nouvelle Revue de Psychanalyse. 22 Em 1973, Clark criou duas obras vinculadas ao pensamento de Fédida. Canibalismo, em que “o grupo come de olhos vendados do ventre de um jovem deitado”.23 O uso do termo “canibalismo” é raro na cultura brasileira, que utiliza amplamente “antropofagia” (tida como devoração do ser humano – corpo e entidade moral). Clark diz que seu “trabalho é a minha própria fantasmática que dou ao outro, propondo que eles a limpem e a enriqueçam com as suas próprias fantasmáticas: então é uma baba antropofágica que vomito, que é engolida por eles e somada às fantasmáticas deles vomitadas outra vez [...]. Eis aí o que chamo de cultura viva”.24 Fédida não usou o termo antropofagia em seu artigo. “O canibalismo é a consciência da segunda boca, expressão antropofágica do ser que me transforma no grande ventre perdido invertendo a posição e a mãe é comida para preenchê-lo”,25 afirma Clark, conjugando dois exercícios antropofágicos: a apropriação de ideias do Outro (no caso, seu psicanalista) conforme a tradição da Antropofagia brasileira, além de tratar diretamente da fantasmática canibal.

A boca mama, suga, engole, morde, devora, vomita, baba. A oralidade está para além do desenvolvimento da libido pelos prazeres de mamar e morder. No corpus da obra de Clark, a Baba antropofágica vincula-se a traumas de infância que emergem em sonho. “A gosma que saía da boca perdendo substância vital, sonho que há pouco tempo reintegrei reengolindo a mesma, o túnel me emparedando me separando morta-viva”.26 A voracidade canibal reaparece quando a “A morte do plano” Clark contrapôs sua devoração: “Esse retângulo em pedaços, nós o engolimos, o absorvemos em nós mesmos”.27

Observando ainda que “a tranquila fase oral-erótica de mamar desemboca sobre uma fase canibálica. Eu penso que o canibalismo não está somente a serviço do instinto de conservação, mas que os dentes são ao mesmo tempo as armas que servem às tendências libidinosas, instrumentos dos quais ajude a criança a penetrar o

corpo da mãe. [...] No primeiro contato com o seio, a criança procura penetrar à procura do ventre, abrigo poético perdido; não podendo penetrar, introjeta-o, começando a fase canibálica. Ser devorada ou devorar é o processo de incorporação mútua”, diz em “Sobre o canibalismo”, adicionando que “o ventre é o abrigo poético de toda a matéria, envolve o feto e a forma” – o que nos remete à obra A casa é o corpo (1968), com suas áreas de penetração, ovulação, germinação e expulsão.

Louise Bourgeois apresenta diversas possibilidades de explorar o tema do canibalismo. As aranhas são, elas próprias, animais canibais, porque depois da cópula as fêmeas devoram os machos. The destruction of the father apresenta uma ameaçadora boca, que evoca uma vinculação mais antiga com a psicanálise de Freud. Estamos diante de um ato transgressivo em relação à autoridade e à figura do pai, tendo como base teórica a obra Totem e tabu, de Freud, como analisa Robert Storr. Outra dimensão do canibalismo na obra de Louise Bourgeois são as relações com o objeto do desejo, com as fantasias canibais suscitadas na fusão amorosa. Surgem aí os fantasmas de devoração do ser desejado como também estratégia para não o perder na perspectiva do canibalismo melancólico de Fédida. Essa questão permeia a obra de Louise Bourgeois, inclusive na recente série de esculturas em tecido, de grande força expressiva e presença, como Couple II [Casal II], um casal que se abraça. A fusão é intensa, mesmo não havendo a cabeça dos amantes. O abraço selado por uma prótese denota os angustiantes limites do encontro do Um com o Outro.

Caos e contenção é a abordagem da obra de Eva Hesse e Robert Smithson por Mary Jane Jacob, que os confronta com a produção de Lygia Clark e Hélio Oiticica. São quatro artistas que compreenderam a arte como campo experimental de ideias. Não havia fórmulas e formas que se sobrepusessem à experiência. Os materiais excluídos da história da arte, os mais banais foram incorporados à constituição da obra por suas possibilidades de materializar ideias, situações e processos. O gesto, simples ou grandioso, não vale por sua expressividade, mas pelo caráter de constituição de um pensamento plástico. Lugar e não lugar, na obra de Smithson, criam a dialética entre centro e periferia. O conjunto propicia discutir relações entre entropia e antropofagia, dispersão e reconversão de energia.

Raramente vista no Brasil,28 Hesse, no entanto, tem grande peso sobre a escultura brasileira das últimas décadas. A cultura brasileira do século XX marca-se pelo discurso e pela subjetividade da mulher. A calculada relação dos artistas brasileiros recentes com a obra dos norte-americanos não oculta outros, como Mira Schendel ou Clark, que propuseram obras e experiências que poderiam ser um diálogo de grandezas na convivência com Hesse e Smithson.

A voracidade com que transita em todos os meios faz de Bruce Nauman um dos primeiros grandes artistas multimídia. O curador Robert Storr observa como Nauman rastreia as novas tecnologias sob um tecido filosófico, de Skinner a Wittgenstein. Sua obra desenvolve-se por meio de vídeos, performances, instalações, desenhos e esculturas que tratam de questões ligadas ao corpo e a situações enfrentadas pelo indivíduo no mundo contemporâneo e enfrentar a “natureza humana”. Sua obra marca-se pelo fato de incorporar conteúdos muito densos e, no entanto, constituir-se em discurso direto. Nauman recoloca em novas bases algumas questões da arte de nossa época ou rediscute certas questões clássicas, como a imagem, o espaço e o tempo, ou o sublime e o banal, a violência e o desejo. Em suma, Nauman explora a condição humana real, desde o sexo até a premente necessidade que temos de nos enunciarmos. Ao aliar rigor conceitual ao impacto visual, a sutileza de seu humor e poesia seduz o público, criando uma sensação simultânea de estranhamento e identificação. A obra The South American triangle [Triângulo sulamericano] levanta a irracionalidade da tortura. Sua instalação Anthro/socio indica que esta Bienal traz cinco “etnografias”: Jean de Léry, cujo livro Lévi-Strauss denominou “breviário da etnografia”, o “Manifesto antropófago”, “Etnografia”, de Siqueiros, e a figura de Lévi-Strauss, entre outros. “Ajude-me/Machuque-me, Sociologia. Alimente-me/Coma-me, Antropologia”, clama uma vez no vazio.

Ao discutir canibalismo, tomou-se a cautela de delimitar o campo, evitando deliberadamente possibilidades que acentuassem excessivamente o corpo fragmentado, amputações e outras aflições físicas presentes na body art e em alguns acionistas austríacos. Uma pulsão autocanibal estaria subjacente a uma produção masoquista. Nas últimas décadas, a arte sofreu transformações que também mudaram o papel do artista e o estatuto do corpo e do discurso verbal. Oppenheim, que desenvolve sua obra a partir dos anos

1960, compreende que, nesse processo, as performances ou a body art, ao empregarem o corpo como campo da própria linguagem artística, conduziam a situações de amputação e outras formas de aflição física autoimputadas pelos próprios artistas. Para evitar posições masoquistas, Oppenheim desenvolve atuações por meio de seu corpo recorrendo ao cinema, à fotografia ou à escultura, como autorretratos vivos, criados como simulacro para intensa atuação. É o caso da instalação An attempt to raise hell [Tentativa de criar o inferno] (1974). Outro artista dos Estados Unidos, Tony Oursler desenvolveu uma produção em que também cria presença ativa e atuante de indivíduos a partir de objetos “humanizados”. Alguns são espécies de “bonecas” e outros são “trouxas” sobre as quais se projetam imagens animadas de pessoas que falam, que dizem algo. A curadora Daniela Bousso trabalha pontos de contato entre esses dois artistas de diferentes gerações; metáfora e nonsense, atitudes místicas, corpo, repetição, projeção, para buscar um nexo por meio da teatralidade que remete ao teatro de Beckett.

Em 1580, Michel de Montaigne introduz uma radical posição de relatividade cultural no interior do pensamento eurocêntrico, ao publicar os primeiros volumes de seus Ensaios. Aí escreveu que “não vejo nada de bárbaro ou selvagem no que dizem daqueles povos: e, na verdade, cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra. E é natural, porque só podemos julgar da verdade e da razão de ser das coisas pelo exemplo e pela ideia dos usos e costumes do país em que vivemos. A essa gente chamamos selvagens, como denominamos selvagens os frutos que a natureza produz sem intervenção do homem”.29 O período histórico que vivemos indaga sobre o papel da diferença das culturas, identidades e subjetividades. Esperemos que a antropofagia e histórias de canibalismos, com sua ambivalência, seu não maniqueísmo, seus aspectos construtivos e desconstrutivos, possam se constituir num momento de reflexão epistemológica sobre essa perplexidade.

HERKENHOFF, Paulo. Introdução geral. In: XXIV BIENAL DE SÃO PAULO. Núcleo histórico: antropofagia e histórias de canibalismo. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1998. p. 22-34.

Notas

1. LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Tradução: M. D. Magno. 4. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990, p. 182.

2. MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. Tradução: Sérgio Milliet. São Paulo: Abril Cultural, 1980. v. I, cap. XXXI.

3. CARELLI, Mario; NOGUEIRA, Walnice Galvão. Le roman brésilien. Une littérature anthropophage au XXe siècle. Paris: Preses Universitaires de France, 1995. p. 5.

4. Do autor, “Europa para almoço” (condensado), Poliester, n. 8 (primavera de 1994).

5. Quando aplicado em função do seu sentido de conceito histórico da cultura brasileira, o substantivo Antropofagia será iniciado por uma letra maiúscula, ainda que a Revista de Antropofagia, de Oswald, tivesse grafado diferentemente.

6. Stella Teixeira de Barros incluiu Volpi na mostra Apropriações antropofágicas, São Paulo, 1997.

7. Oiticica escreveu “Cor, tempo e estrutura”, Jornal do Brasil, Suplemento Dominical, 26 nov. 1960.

8. Hélio Oiticica, Aspiro ao grande labirinto, p. 106-109.

9. Sermões. Padre Gonçalo Alves (org.). Lisboa: Lello & Irmão Editores, 1950. v. 5, p. 430.

10. Benedito Nunes. Oswald canibal. São Paulo: Perspectiva, 1979, p. 13.

11. Susan Sontag (ed.); Helen Weaver (trad.). Selected writings of Antonin Artaud. Nova York: Farrar, Strauss and Giroux, 1976. p. 244-245.

12. Op. cit. nota 3 supra, p. 5.

13. Op. cit. nota 1 supra, p. 25.

14. “Max Ernst”, Transístor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. p. 178-179.

15. Karel Appel 40 ans de peinture, scultpture & dessin. Paris: Galilée, 1987. p. 150-151. Mutatis mutandis, devemos também notar una relação com o programa ideológico do Futurismo.

16. Livro 20, Seminário, mais ainda, M. D. Magno (versão brasileira). 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990. p. 14.

17. “Review of a group exhibition at the Art of this Century Gallery, and of Maria Martins and Luis Quintanilha” (1944). Perceptions and judgements 1939-1940. v. I. Chicago: The University of Chicago Press, 1986. p. 210.

18. Carta a Hélio Oiticica de 6 de fevereiro de 1964. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996. p. 29. Obra doravante citada como “Cartas”.

19. “NÓS RECUSAMOS” (1966), Lygia Clark. Rio de Janeiro: Funarte, 1980. p. 30. Obra doravante citada como Funarte.

20. André Green, “Cannibalisme: réalité ou fantasme agi?” (p. 38), e Jean Prouillon, “Manières de table, manières de lit, manières de langage” (p. 9-25), Nouvelle Revue de Psychanalyse. Paris: Gallimard, n. 6, 1972. Se mesa, cama e linguagem se imbricam, a relação do pensamento freudiano com a antropologia recebeu a crítica por seus falaciosos raciocínios resumidos às sociedades que vinculam as interdições de canibalismo e incesto.

21. Carta a Hélio Oiticica de 6 de julho de 1974. Cartas, p. 221-222.

22. Paris: Gallimard, 1976, n. 6, p. 123-127. Colaboram nesse número, que também

publica o “Manifesto antropófago”, de Oswald de Andrade, Jean Pouillon, André Green e Marcel Detienne, entre outros.

23. Carta de 6 de julho de 1974. Cartas, p. 223. Meret Oppenheim e Daniel Spoerri organizaram “banquetes canibais”.

24. Carta de 6 de novembro de 1974. Cartas, p. 249.

25. “Sobre o canibalismo” (texto datilografado), 1 folha. Arquivo Lygia Clark, Centro de Documentação do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.

26. Carta de Lygia Clark a Oiticica em 17 de maio de 1971. Cartas, p. 210.

27. Lygia Clark, Morte do plano (1960), Funarte, p. 13.

28. A obra gráfica de Hesse foi exposta na IX Mostra da gravura em Curitiba, em 1992.

29. Op. cit. nota 2 supra, livro 1, capítulo XXXI, p. 101.

O fogo nas partes

por Paulo Herkenhoff

Texto publicado originalmente no livro Geometria anárquica, a má vontade construtiva e mais nada (1980).

A HISTÓRIA DO FOGO

O incêndio do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro não é obra original. Nossa velha mania de importar modelos... A tradição ocidental, desde a Antiguidade, consagra ao fogo os seus monumentos, como a Biblioteca de Alexandria e a Roma do musicista Nero. Londres (1666) e Lisboa (1755) tiveram seus grandes incêndios. Madri do Maneirismo contribuiu com os sinistros no Pardo (1608), Escurial (1671) e Palácio Real (1734). Fumaça – matéria eminentemente barroca! Daí talvez a nossa paixão pelo fogo em nossas casas de cultura. Feita a adaptação antropofágica, nossa cultura é fogosa. Incêndio como marca da brasilidade institucional. Todos os teatros brasileiros acabaram em cinzas, até no Espírito Santo – onde pouco acontece – o Melpômene consumiu-se em chamas. No Rio de Janeiro esperam ardentemente a sua hora: o Museu Nacional, a Biblioteca Nacional, o Museu Histórico Nacional e muitos outros edifícios. Na arte contemporânea, o sinistro do MAM também é cópia, mais outra manifestação do nosso colonialismo cultural. O norte-americano Ed Ruscha pintou O Museu de Los Angeles (Lacma) em chamas, óleo sobre tela, 1968 (in Artforum, fev. 1975). Na verdade, esse hiper-realista, oriundo de um centro hegemônico, tem, quanto à pintura de incêndios, um notável precursor no Brasil: Francisco Muzzi (séc. XVIII) com sua tela Fatal e rápido incêndio que reduziu a cinzas em 23 de agosto de 1789 a igreja, suas imagens, e todo o antigo Recolhimento de N. S. do Parto, salvando-se ilesa de entre as chamas a milagrosa imagem da mesma. Salvou-se também a Mlle. Pogany de Brancusi. Aliás, no campo das coincidências, pequenas observações a fazer: os incêndios de Muzzi e do MAM são de datas escritas com os mesmos algarismos em diferente ordem: 1789 e 1978! Ainda nas coincidências, o incêndio do Museu foi em data palindrômica: 8.7.78. E MAM também! E mais coincidências que nos permitem dizer que não foi por falta de aviso. Eis o que escreveu, na orelha do livro Prevenção e segurança nos museus (Amicom-BR e Fenaseg, 1978), o presidente da Federação Nacional das Empresas

de Seguros Privados e de Capitalização no dia 6 de julho de 1978 (portanto, dois dias antes do fogo no MAM!): “Nada existe infelizmente que possa repor as manifestações da cultura dos povos quando destruídas pelo tempo ou por acidentes. Esta publicação, entretanto, reúne ensinamentos preciosos para que se diminua a hipótese de acidentes. Esperamos que seja útil”. Não foi! Diz-nos Klee que: “Dimensão calórica (cor): a dimensão ‘esquerda-direita’ é o lugar e princípio da temperatura. À direita o sol-calor, à esquerda o frio” (Theorie de l’art moderne). Terão sido as forças da direita incendiária que transformaram o MAM em “sol-calor”. Por fim, observe-se que, dos quatro elementos, nós, os brasileiros, só conseguimos apolineamente prever (e não prevenir) o fogo através de sonhos. Chuvas, ventos e deslizamentos (água, ar e terra), não. Quem confia no serviço de meteorologia? Ah! Se ao menos tivesse chovido na madrugada de 8 de julho de 1978...

PICASSO BOMBEIRO

Da série “Fantasias do leitor”. Fantasia de qualquer indivíduo envolvido no circuito da arte, de quem acorda num domingo e lê nas manchetes “Incêndio destrói todo o acervo do MAM”. Fantasia de 9 de julho de 1978 ou fantasias para ano inteiro, que mudam a cada manchete do dia? Ambígua projeção carnavalesca e psicanalítica dos fantasmas de quem vê/lê jornal. Foram entrevistados diversos leitores a respeito.

Karl e Friedrich I

“Mesmo as fantasmagorias do cérebro humano são sublimações que resultam, necessariamente, do seu processo de vida material, que se pode averiguar empiricamente e que repousa em bases materiais” (Marx e Engels, A ideologia alemã apud Marx-Engels, Sobre literatura e arte, p. 19). Fantasmagoria mágica ou materialista? A matéria – isto é, a etérea – deste trabalho é a fumaça...

Pablo e Candido

Picasso lamenta o fim de sua Dora Maar. E, na memória do leitor, qual obra destruída lhe traz mais saudade? Mulher (de Portinari) chorando enquanto que, abaixo, a “Matança de 42 foi invenção de autoridades”. Escombros, restos mortais da “obra de arte

desconhecida” Museu-sepultura da arte. A Cabeça cubista também não ficou de fora – foi cremada. Balanço da tragédia: 308 faleceram, 64 ficaram feridas e apenas 44 pinturas saíram ilesas.

Walter

Mas será que tem importância a perda dessas pinturas originais na época das técnicas de reprodução das obras de arte? Benjamin nos consola dizendo que vivemos o tempo que a obra de arte perde o hic et nunc do original (sua autenticidade), a sua aura é atingida e seu valor de culto se coloca em segundo plano. Abaixo o fetiche do original!

Friedrich II

Esta fantasia surgiu de minha performance na manifestação pró-reconstrução do MAM em julho de 78. Meu (ou o seu?) corpo travestido de irônico leitor da tragédia nascida do fogo (“O homem não é mais artista, ele se tornou obra de arte”, Nietzsche): Dionísio x Apolo: o sonho premonitório, profético de luz e calor alimentados por obras de arte em chamas. Na Gaia(ta) ciência, “rir” é “conhecer”.

Sigmund

Trabalho que não discorre sobre nem metaforiza o prazer. Pretende recusar o prazer do riso. Chiste visual. Juízo lúdico, encontrando similaridade entre coisas dessemelhantes, isto é, descobrindo similaridades escondidas (Freud, sobre o chiste, p. 23). Chiste “tendencioso” e hostil. Rir. Permitir-se rir sem inibições que evitam as ameaças externas (censuras, mau conceito, ridículo, erros etc.). Chiste como técnica de poupar e descarregar a energia dessas inibições. Riso adulto. E você, riu?

Oswaldo

Esta fantasia do leitor tem três personagens: eu (o artista, você e Picasso). A saga deste chiste é revelada por Oswaldo de Moraes: “O modelo básico do chiste (desta obra de arte) é um tema (circuito da arte) de três pessoas fundamentais. O autor do chiste (o artista/ eu) teve inibido o seu desejo de atacar a segunda pessoa (a instituição MAM), o alvo do chiste. Esse desejo, reprimido para o inconsciente,

fermenta aí no ‘trabalho do chiste’, que consiste, basicamente, em camuflar-se pela combinação com os meios expressivos usados nos chistes inocentes – as técnicas que se desenvolveram a partir dos jogos de palavras (jogos de imagens) e dos erros da linguagem na infância, mais fáceis de varar as barreiras repressoras. Em ocasião favorável, o autor reencontra-se com o desejo hostil, já transformado em chiste, e o narra à terceira ‘pessoa’ (leitor), que pode ser um grupo (de leitores, o público). O autor (o artista), o bom autor (o bom artista), em geral não ri: está muito próximo à agressão original. A terceira pessoa, esse mero ouvinte, livre de culpa ou qualquer outro tipo de inibição, pode rir. E, então, ri também o autor (o artista), com alívio: o disfarce triunfou” (Adaptei de “Freud: dos chistes ao cômico”, in Rev. de Cultura Vozes, nº 1, 1974, ano 68, p. 28, mas tenho a impressão de que não pedi a benção corretamente a esse velho senhor...).

HERKENHOFF, Paulo. O fogo nas partes. In: HERKENHOFF, Paulo. Geometria anárquica, a má vontade construtiva e mais nada. Rio de Janeiro: Espaço de Arte Contemporânea, 1980.

Um léxico de Tempo

por Paulo Herkenhoff, Roxana Marcoci e Miriam Basilio

Texto publicado originalmente no catálogo da exposição Tempo, realizada no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) em 2002.

Prefácio

A exposição Tempo apresenta o trabalho de 45 artistas contemporâneos da África, da Ásia, da Europa, da América Latina e dos Estados Unidos, e inaugura uma ambiciosa agenda de exposições e programas nas novas e modernas instalações do Museu de Arte Moderna em Long Island City, Queens. A exposição se esforça para manifestar muitas das qualidades distintivas do Museu de Arte Moderna, incluindo seu compromisso sustentado de apresentar práticas artísticas inovadoras de nosso tempo sem considerar fronteiras geográficas, uma prontidão para colaborar com artistas líderes e emergentes para realizar instalações complexas, e um mandato acadêmico para formular exposições temáticas, além de avaliações monográficas e históricas da arte moderna.

Embora conectados por uma série de valores e ideias compartilhados, os artistas de Tempo investigam a intrincada teia de diferenças culturais envolvidas na construção do tempo. Seus trabalhos refletem condições e histórias locais específicas na criação de formas tangíveis, como imagens e objetos, resultando em experiências fenomenológicas, empíricas, políticas ou ficcionais que exploram a manifestação física do tempo. A exposição está dividida em cinco partes: “Tempo colapsado”, “Corpos transgressores”, “Tempo líquido”, “Trans-histórias” e “Mobilidade/imobilidade”. Dentro de cada seção, há instalações multimídia que incluem pintura, escultura, fotografia, som, vídeo e performance. Obras importantes da coleção do museu, de artistas como Matthew Barney, Alighiero e Boetti, Vija Celmins, Felix Gonzalez-Torres, On Kawara, Glenn Ligon, Vik Muniz, Gabriel Orozco e Hiroshi Sugimoto, são exibidas ao lado de obras emprestadas de coleções públicas e privadas de todo o mundo, muitas das quais nunca vistas antes em Nova York. O museu também encomendou, para Tempo, novas instalações aos artistas Marc Latamie, Iñigo Manglano-Ovalle, Nadine Robinson, Fatimah Tuggar, Kara Walker e Erwin Wurm.

Em nome do Conselho de Curadores, gostaria de expressar meu mais profundo apreço aos artistas por suas significativas contribuições para a exposição e aos cedentes por sua generosidade. O mais caloroso reconhecimento é aos muitos membros da equipe do museu, cujos esforços garantiram a conclusão bem-sucedida deste projeto no MoMA QNS. Em particular, gostaria de reconhecer a expertise de Paulo Herkenhoff, o curador da exposição, que trabalhou com inteligência e entusiasmo, com as assistentes de curadoria Miriam Basilio e Roxana Marcoci, para levar a exposição e o catálogo à sua realização.

A exposição é apoiada pela Philip Morris Companies Inc., por Agnes Gund e Daniel Shapiro e pelo Conselho de Artes Contemporâneas. Os programas educacionais que a acompanham são possibilitados pelo BNP Paribas. Temos uma dívida de gratidão com esses doadores por seu compromisso inabalável com a apresentação da arte contemporânea a um amplo público.

Diretor do Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA)

Introdução

Ao iniciarmos o século XXI, a complexidade e a vastidão da questão do tempo na arte contemporânea têm se expandido substancialmente, juntamente com a crescente variação de mídias e práticas artísticas.

A exposição Tempo, à qual esta publicação serve como catálogo, tenta abordar a maneira como os artistas contemporâneos incorporam imagens e questões temporais em sua arte por meio de referências a máquinas, corpo, história, simbolismo e experiência cotidiana.

Enquanto outras exposições sobre o tema mostraram uma variedade de abordagens curatoriais, Tempo especificamente se afasta das questões clássicas de iconografia e de tema para enfatizar os aspectos experienciais do tempo, na medida em que os espectadores se engajam no itinerário da exposição. A exposição enfoca percepções distintas de tempo, que são fenomenológicas, empíricas, políticas, fisiológicas e ficcionais; e inclui obras de artistas contemporâneos da África, da Ásia, da Europa, da América Latina e dos Estados Unidos.

A apresentação está organizada em cinco áreas, que essencialmente examinam as diferenças culturais na construção do tempo. Este volume está organizado de maneira similar.

Na primeira área, “Tempo colapsado”, o sistêmico e o aleatório, a ação e a estase são entrelaçados em uma cacofonia de relógios, ponteiros e metrônomos que buscam desestabilizar as percepções empíricas do tempo. A segunda, “Corpos transgressores”, investiga os processos fisiológicos e as transgressões libidinais exercidas pelo corpo no tempo. O mundo físico envolve um senso de continuidade e intuição primordial, em vez de medição, mas também inclui entropia e transitoriedade. Em uma terceira seção, “Tempo líquido”, o fluxo do tempo é explorado por meio de representações da água. O quarto núcleo, “Trans-histórias”, considera questões de pós-colonialismo envolvendo a percepção crítica do presente através da memória. O conceito de diáspora é abordado em uma discussão sobre tempo, narrativa e a marginalização de populações. As complexidades dos paradoxos do filósofo grego Zenão de Eleia, baseados nas dificuldades de análise do contínuo (uma vez que você atingiu um ponto final, você já o ultrapassou, e assim por diante ad infinitum), são consideradas na quinta área, “Mobilidade/imobilidade”.

Aspectos de circularidade, duração infinita e tempo “em suspensão” são experimentados nesta última seção.

No catálogo, a escolha de um formato lexical alfabético para os textos foi parcialmente impulsionada pelo desejo de romper com a sincronicidade do fluxo usual de ensaios sobre uma exposição relacionada ao tempo. Cada entrada é construída em um pequeno quadro e oferece um ponto de vista distinto na articulação das questões em torno das quais a exposição é organizada e nas relações inesperadas entre artistas e obras individuais. Este arranjo não linear de entradas estabelece referências cruzadas entre as várias seções, conceitos, artistas e obras. O léxico incorpora várias perspectivas curatoriais, espelhando o processo colaborativo por meio do qual a exposição evoluiu. Tanto a exposição quanto o catálogo propõem uma configuração não linear, deslocando e ressignificando continuamente a experiência do tempo.

Os artistas constituem um grupo internacional variado, cuja arte, em diversos meios, aborda perspectivas temporais e questões culturais;

suas preocupações e propostas são discutidas tendo em mente o trabalho do historiador cultural Homi K. Bhabha. Especificamente, seu construto linguístico (em seu livro The location of culture) opondo as palavras “negociação” e “negação”, e que se destina a “transmitir uma temporalidade que possibilite conceber a articulação de elementos antagônicos ou contraditórios: uma dialética sem o surgimento de uma História teológica ou transcendente”, informou grande parte do trabalho preparatório da exposição.

Paulo Herkenhoff

Um léxico de Tempo

Nesta lista de termos relacionados à exposição Tempo, há breves textos temáticos que discutem os artistas e as obras de arte neste volume. Referências específicas a obras de arte ilustradas na seção de pranchas são referenciadas por página. A autoria dos textos é indicada no final das entradas pelas iniciais dos escritores: Miriam Basilio (M. B.), Paulo Herkenhoff (P. H.) e Roxana Marcoci (R. M.).

Agência: Muitos artistas estão comprometidos a revelar as injustiças da história. Eles assumem os desafios impostos por visões utópicas e idealistas enganosas da história e são motivados pelo desejo de atuar como agentes de mudança histórica. Sua crença no poder da imaginação é crucial para sua arte, a fim de, nas palavras do estudioso Cornel West, “manter viva a ideia de um futuro revolucionário, um futuro melhor, diferente do presente deplorável, um estado de coisas em que a opressão multifacetada de afro-americanos (e outros) seja, se não eliminada, aliviada” (West, Philosophy, politics, and power: an Afro-american perspective in African philosophy , 1998).

A arte de Kara Walker faz um investimento social no presente ao refletir sobre o passado histórico. Sua estratégia operacional é perverter as possibilidades teatrais da linguagem visual e suas camadas de memória, ideologia, notícias etc., a fim de usar o conhecimento da história como uma crítica ao presente, como

em suas silhuetas site specific, parte da série intitulada The emancipation approximation, de 1999. Ela levanta a questão de que a função da prática artística não é contar histórias, mas criar dispositivos pelos quais a história possa ser contada e o presente reformulado. Ao proferir o inominável, tornar visível e transparente o que estava submerso na opacidade e ir além da dificuldade para convocar, nomear e tornar presentes as realidades culturais de artistas de ascendência africana, bem como seus atos subjetivos de resistência, Walker evoca tanto a dor do registro histórico quanto a urgência de agir para transformar o presente.

O videoartista angolano Fernando Alvim, ao obter o empréstimo de um avião militar por um dia para filmar Blending emotions , de 1997-1999, sentiu que isso poderia interromper momentaneamente a guerra civil em seu país. Ele observou: “Eu parei a guerra por um dia”.

Iñigo Manglano-Ovalle utiliza dispositivos ópticos complexos, como lentes de visão noturna militar, para dar visibilidade ao que está oculto em jogos de poder, no domínio sobre o conhecimento dos fatos e nas fusões opacas de notícias da mídia e da história recente. Em sua instalação Nocturne (tulipa obscura) , de 2002, ele aproxima o espectador do olhar onipotente da máquina capitalista devoradora, trazendo uma tulipa negra do Afeganistão e confrontando o espectador como uma testemunha passiva do movimento de máquinas de guerra e estratégias globais, comunicando um novo e unitário fluxo de tempo.

Um fato bastante trivial no curso do pensamento visual de José Alejandro Restrepo, em Amazon triptych, de 1994, a dificuldade de sair de uma rede representa a verdadeira dificuldade de sair da ideologia. É a alusão de Restrepo ao processo de conhecimento crítico, que ele descreve por meio de três vídeos. Ele explica: “A dificuldade é sair; porque é como a teia de aranha que te prende: como uma ideologia”.

É o ato de observar que, quando aprisionado pelo véu da ideologia, se comporta como os fios viscosos da teia de aranha. Para o artista, o desafio do aprisionamento é mais bem abordado pelo conhecimento preciso de como sair da teia metafórica sem rasgá-la. — P. H.

Pensar a arte como um processo experimental da liberdade se cola com a teoria da educação no Brasil.”

Paulo Herkenhoff em palestra para alunos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), em 2014

Anacronismo: O artista americano Glenn Ligon explora “como a identidade de um indivíduo é inseparável do modo como alguém é posicionado na cultura, da maneira como as pessoas o veem, dos contextos históricos e políticos” (Thelma Golden, “Interview with Glenn Ligon, Brooklyn, New York, July 11, 1997”, em Glenn Ligon, Samuel P. Harn Museum of Art, 1997). Ele faz isso em uma série de retratos contemporâneos criados, paradoxalmente, com um repertório de imagens que datam da era pré-emancipação. As imagens, que incluem tipografia, foram extraídas de anúncios pedindo a captura de escravos fugitivos publicados em jornais do século XIX. Para o portfólio Runaways , de 1993, Ligon encomendou descrições de si mesmo escritas por amigos, cada uma começando com a frase: “Fugiu Glenn”. Em uma série relacionada de gravuras intituladas Narratives (black like me or the authentic narrative of Glenn Ligon...) , do mesmo ano, o artista apropriou-se de convenções narrativas e de imagens usadas em relatos do século XIX nas palavras de escravos fugidos. Em ambas as séries, a tensão entre o formato anacrônico e a pessoa reconhecidamente contemporânea retratada levanta a questão da persistência de categorias raciais ligadas à história da escravidão.

Os textos que acompanham as vinhetas em Runaways retratam um indivíduo contemporâneo no contexto da escravidão. Por exemplo, uma das dez gravuras é ilustrada com a vinheta de um escravo ajoelhado, seminu e acorrentado, com uma legenda: “Não sou eu um homem e um irmão?”. Isso sinaliza o caráter anacrônico e a ambivalência da peça, lembrando os cartazes e faixas carregados por manifestantes durante as manifestações pelos direitos civis na década de 1960. Ao mesmo tempo, a descrição inclui referências de vestuário familiares, como “jeans” e “pulseira de aspecto africano no braço”. Uma frase como “Ele é um homem negro baixinho e de ombros largos, com pele bem escura, com óculos... dentes bonitos” sugere as conotações históricas da terminologia fisionômica das hierarquias raciais usadas para justificar a escravidão. Também evoca debates contemporâneos sobre a prática de “perfilamento racial” por autoridades policiais. As referências reiteradas e contraditórias à tonalidade exata de sua pele (por exemplo, “pele bem escura” e “tez média”) suscitam a consideração das diversas perspectivas que moldam as percepções de raça e classe social. — M. B.

Barroco: O tema da mudança em níveis formais e espirituais engaja artistas em muitos meios. A obra Yielding stone, de Gabriel Orozco, de 1992, é um volume redondo feito de plasticina com aproximadamente o mesmo peso do artista. Foi concebido como um corpo que responde a ações e acidentes externos encontrados ao ser rolado no chão. A ductilidade de Yielding stone permite que esse corpo incorpore novas marcas e formas ou absorva outras matérias: é uma metáfora da plasticidade da libido e da inserção do volume escultural no mundo como um nascimento simbólico, assim como The newborn, de Constantin Brancusi, toca a superfície do mundo. Yielding stone vai além da fisicalidade para incluir psicologia e espiritualidade. Ergue-se metaforicamente como um autorretrato complexo, com reviravoltas infinitas, em um estado permanente de mutabilidade.

Para Adriana Varejão, um método de construir e reconstruir imagens em uma superfície de tela que se assemelha a azulejos barrocos ampliados não é um quebra-cabeça, mas um comentário simbólico sobre sua herança brasileira. Tiles [Azulejões], de 2000, é uma instalação de parede de gesso sobre tela que não possui um ponto de vista fixo. As formas barrocas de conchas, chifres, braços, pernas e volutas sensuais – que formam um fluxo de tempo excêntrico, mas orgânico – são expostas a fraturas entre as formas quadradas dos “azulejos” ou segmentos individuais na grade, referindo-se à racionalidade do Cubismo e ao tempo mecânico e objetivo. Na maioria de suas pinturas da série Tiles [Azulejos] do final da década de 1990, a superfície azul representa a pele do “corpo” colonial. Em outras, as fraturas dos detalhes arquitetônicos expõem vísceras humanas, como encarnações dos efeitos da escravidão e do status de gênero no Brasil. As formas orgânicas que fluem e refluem em desafio às fraturas referem-se ao filósofo Gottfried Wilhelm Leibniz, que afirmava que a alma era marcada por infinitas dobras; ao mesmo tempo, em colônias portuguesas como o Brasil, a existência de uma alma era negada a escravos e nativos. A escala é tal que o espectador parece estar dentro da instalação, onde as imagens dobram, desdobram e redobram continuamente. — P. H.

Capital: A perspectiva pragmática do capitalismo é geralmente expressa como “tempo é dinheiro”. Referindo-se à existência, e não às finanças, a artista nonagenária Louise Bourgeois disse: “Eu tento não desperdiçar tempo. É um valor supremo porque [a vida] é curta”.

Trabalho e tempo estão interligados. Um escravo fugido é capital perdido, a dispersão do trabalho, como Glenn Ligon argumentaria. Karl Marx escreveu: “A utilidade de uma coisa a torna um valor de uso. Mas essa utilidade não é algo imaterial. Uma coisa pode ter valor de uso sem ter valor. Esse é o caso sempre que sua utilidade para o homem não se deve ao trabalho. Tais são o ar, o solo virgem, os prados naturais etc. Uma coisa pode ser útil, e o produto do trabalho humano, sem ser uma mercadoria” (Karl Marx, O capital, 1967).

Cildo Meireles desenvolveu um sistema metrológico que inclui uma moeda de zero centavo e uma nota de zero dólar ilustrada com a imagem do Tio Sam, uma régua com números misturados e espaços desiguais, e relógios com posições desordenadas para os números, como em Fontes, de 1992. O tema de Meireles é a irracionalidade do capitalismo, que, segundo ele, cria um perturbado presente (a impossibilidade de medir capital ou trabalho), futuro (o investimento infértil de zero dólar) e passado (a inutilidade de acumular notas de zero dólar).

E, para o artista francês Jean-Luc Vilmouth, o tempo para viver está associado, em sua instalação Local time, de 1987-1989, a um lugar específico e à disciplina do trabalho: um martelo e um relógio são pareados para indicar o fluxo de tempo e energia. A organização espacial sistemática dos pares de relógios e martelos poderia ser interpretada como uma divisão internacional do trabalho e os processos globais de produção, distribuição e apropriação. — P. H.

Mudança de lugar: A mudança do lugar das coisas no mundo levou Cildo Meireles a desenvolver um conceito de tempo como lugar: “O malabarista é uma síntese da imagem de um território fluido... alguém que administra três objetos num território para apenas dois. Nesses casos, temos que introduzir o conceito de tempo. O malabarista é aquele que encontra um lugar no tempo”.

O caráter das performances em vídeo de Michel Groisman não reside na velocidade, mas sim na justaposição de lógica e absurdo. Em Weaveair, de 2000, para extrapolar uma geometria em torno de seu corpo por meio da reflexão de um raio laser em dispositivos de espelho – que são, na verdade, esculturas –, Groisman precisa se preparar. Ele precisa encontrar a “geometria da anatomia”, da mesma

forma que a assistente de um mágico deve se adaptar dentro da caixa que será serrada ao meio. — P. H.

Desaceleração: Declarando que o mundo moderno era baseado em aceleração, velocidade e sistemas de alta velocidade, artistas de vanguarda, durante as primeiras décadas do século XX, particularmente os futuristas italianos, celebraram em uníssono o automóvel, o cinema, o avião e a linha de montagem industrial. Desde então, o culto modernista ao tempo instantâneo foi substituído por referências mais complexas, muitas vezes mais analíticas, à temporalidade. Essas aludem à desaceleração, à imobilidade e aos ritmos em câmera lenta. Assistir a um vídeo de Ceal Floyer, focar uma projeção de velocidade alterada de Douglas Gordon ou olhar para uma fotografia de Hiroshi Sugimoto exige um estado de atenção modificado, no qual a percepção e a memória desempenham um papel inequívoco na experiência da obra.

Ink on paper, de Floyer, de 1999, um vídeo que parece parado, é na verdade um loop de duração interminável. A imagem mostra a mão da artista segurando uma caneta preta contra uma folha de papel branca. Ao longo de 1 hora, a caneta vaza sua tinta imperceptivelmente, deixando uma poça circular perfeita no papel. Surpreendentemente, embora a tinta seja derramada em tempo real, o ritmo em que a ação se desenrola é de uma lentidão tão extrema que é inútil tentar registrar os incrementos pelos quais o círculo se expande. Neste caso, a desaceleração abole a noção de tempo como mudança.

Monument to X, de Gordon, de 1998, é uma projeção de um longo e apaixonado beijo que se torna épico pela sua duração. A filmagem inclui a documentação do beijo, que dura quatorze horas. A abordagem idiossincrática de Gordon do tempo se inspira nos filmes de Andy Warhol do início dos anos 1960, como Sleep (5 horas e 20 minutos) ou Empire (8 horas e 5 minutos). Em um vídeo anterior, 24 Hours psycho, Gordon transforma mobilidade em imobilidade ao desacelerar o famoso filme Psicose, de Alfred Hitchcock, para que sua projeção dure 15 vezes mais que seus 96 minutos originais. A intensa e ansiosa cena do chuveiro no Bates Motel, por exemplo, se estende por quase meia hora, em uma excruciante extensão quadro a quadro. Os espectadores experimentam uma mudança

do fluxo rápido de imagens em movimento para o de quadros vivos e congelados.

O tempo é vivenciado não como sequencial, mas como presença prolongada. Ainda mais atenuado é um projeto intitulado 5 Year drive-by, concebido para uma projeção do filme Rastros de ódio, de John Ford, e que dura cinco anos, o tempo retratado no filme para John Wayne procurar sua sobrinha raptada. Em todas essas obras, o espectador fica fascinado com as tomadas mínimas e infinitamente lentas, e com a “eternidade do momento” em que raramente algo acontece.

O fotógrafo Sugimoto, embora lidando com o meio primário para registrar a realidade em um dado ponto no tempo, também usa longas exposições para questionar a suposição de que o que é registrado pela câmera é um momento. Em suas séries fotográficas Interior theaters e Drive-in theaters, dos anos 1990, ele deixou a câmera aberta pela duração da exibição do filme; e o resultado é que a imagem em movimento rápido é apagada. O que resta é apenas uma tela branca luminosa. A temporalidade desacelerada das fotos de Sugimoto – como os vídeos de Floyer e Gordon – propõe modelos distintos de registro da realidade que investigam as convenções do cinema e da fotografia, conjugando o tempo como duração indefinida. — R. M.

Duração: O compositor vanguardista John Cage sustentou, já na década de 1950, que a duração, e não a harmonia, define a estrutura da música. Ele justificou isso observando que o silêncio não pode ser ouvido em termos de harmonia, mas apenas de tempo. Sua famosa composição 4’ 33”, executada pela primeira vez em 1953, consistia no pianista David Tudor levantando a tampa do piano e sentando-se à sua frente pela duração da peça – 4 min e 3 s –, sem tocar. Os sons ambientes, incluindo os ruídos de uma plateia cada vez mais inquieta, compunham a música. As ideias de Cage sobre duração tiveram um efeito duradouro na música e em outras mídias de arte baseadas no tempo, como filme, vídeo e performance.

No início dos anos 1990, Martin Creed formou a banda Owada, e sua primeira gravação importante, intitulada “Nothing”, foi lançada alguns anos depois. Mais sistêmicas e controladas do que as composições

aleatórias de Cage, as de Creed, como “1-100”, reinventam a música transformando a contagem rítmica básica “1-2-3-4” em sua própria letra, e então sistematicamente retomando a contagem até cem. Em sua instalação Work no. 189. Thirty-nine metronomes beating time, one at every speed, de 1998, ele criou um arranjo de 39 metrônomos mecânicos de corda, cada um ajustado para tocar em uma de suas 39 velocidades, e se desacelerando em um tempo distinto. A música, assim, é implicada por meio do ritmo, da batida, do balanço, de certo vaivém e da pausa. No anterior Work no. 97, um metrônomo trabalhando em velocidade moderada é tocado por um amplificador, reafirmando a duração. A batida do metrônomo, usada por músicos para marcar o tempo, e não a música real, é tudo o que prevalece. E, em seu Work no. 123, três metrônomos clássicos ticam, um rapidamente, um lentamente e o outro nem rapidamente nem lentamente, de modo que seus ritmos concertados colapsam a ordem estruturante dos dispositivos.

Gabriel Orozco, um artista que há muito pondera a noção de duração em relação à percepção, observou: “Poderia haver algum tipo de semelhança entre o que estou fazendo e as gravações de John Cage, mas o trabalho de Cage tem muito a ver com o acaso, enquanto eu estou realmente focado na concentração e intenção”. Como jogador de xadrez, Orozco frequentemente se refere a jogos baseados em tempo, mas invariavelmente subverte sua ordem sistêmica. Um exemplo notável, sua peça Horses running endlessly, de 1995, extrai seu vocabulário do jogo de xadrez tradicional, mas o tabuleiro desviante de quatro cores com 256 casas – em vez das usuais 64 –apresenta apenas cavalos que se movem pelas casas fazendo uma série de círculos. O espectador é convidado a entrar em uma situação implausível, sem um conjunto definido de regras, que é calculada para adiar, a cada movimento, o desenvolvimento lógico do jogo. — R. M.

Tempo incorporado: As ideias temporais de relojoeiros e cientistas empíricos são construtos cartesianos que medem a realidade em unidades exatas. Uma maneira de contornar essa visão é repensar a agência do corpo considerando as antinomias entre o tempo biológico estrito e a experiência libidinal de duração do corpo, na qual o tempo se torna incontrolável e fluido. A condição do corpo que se entrega a um impulso é um aspecto importante de alguns dos trabalhos mais interessantes de Janine Antoni, Matthew Barney e Pipilotti Rist.

As instalações em vídeo de Rist exalam um fascínio pelo desejo erótico e pelo tempo sem limites. Isso explica seu uso frequente de cortes bruscos, efeitos de dissolução e trilhas sonoras manipuladas, que capturam a correnteza das sensações corporais. Mutaflor, uma projeção de vídeo de 1996, enfoca os processos metabólicos do corpo e suas energias internas elusivas. Sentada nua no chão em um quarto vazio, cercada por laranjas, limas e croissants, a artista olha para a câmera, abre a boca, e a lente dá um zoom. Isso é seguido por um corte e, um instante depois, a imagem se afasta do seu reto dilatado. Essa passagem lúdica de ida e volta da boca para o ânus visa marcar as buscas eróticas, bem como o desejo metabólico de consumir e expelir. O espectador olha para o corpo nu, o que codifica a noção de voyeurismo, mas não há nada de voyeurístico em Mutaflor. Ao projetar a imagem de vídeo diretamente no chão, Rist reorienta o olhar do espectador primeiro para baixo e depois para o trato digestivo de seu próprio corpo. Em seu trabalho posterior, Extremities (smooth, smooth), uma peça de quatro projetores e três monitores, o espaço da projeção é transformado em uma galáxia de partes do corpo giratórias – bocas, seios, pés, pênis, orelhas – que resistem a qualquer identidade específica.

Enquanto Rist lida com impulsos inconscientes, Barney trata o corpo como um campo maleável e estruturalmente modificável, que pode ser virado do avesso e trabalhado para transgredir seus próprios limites. Interligando as experiências de treinamento atlético e otimização tecnológica com a psicologia da autodisciplina imposta, Barney apresenta o corpo como uma força sem forma, mas com infinitas possibilidades. Seu ciclo de filmes operísticos em cinco partes, Cremaster, dramatiza o desejo de escapar de qualquer forma de restrição temporal, espacial, social, comportamental ou sexual e, além disso, da afirmação freudiana de que a biologia é destino. A produção fotográfica e escultórica de Barney faz referência ao atletismo e à moda, duas disciplinas que promovem a imagem do corpo redesenhado. Seu Pace car for the hubris pill, de 1991, é um trenó de bloqueio usado no treinamento de futebol, feito de compostos protéticos inorgânicos, como lubrificante, glicose e sacarose – todas substâncias usadas na construção do corpo atlético. Associada à escultura está uma fotografia, em moldura de plástico, de uma mulher vestida com um maiô, roupão, touca de natação e óculos da moda dos anos 1940, posando ao lado do equipamento de treinamento, que

também serviu de suporte em uma performance gravada em vídeo. A mulher, no entanto, revela-se um homem, e não uma modelo, mas uma rainha da beleza, epitomizando ao mesmo tempo dois ideais físicos. Desafiando os limites físicos, o trabalho de Barney explora o terreno psicologicamente carregado da diferenciação sexual, no qual o desejo de incorporar ambos os gêneros, ou um híbrido, dramatiza o desejo de exceder a condição humana.

O trabalho de Antoni também explora os limites do corpo e o leva a extremos físicos. Mas Wean, de 1990, que Antoni descreve como seu primeiro “avanço no pensamento sobre o corpo”, não é tanto sobre o corpo em si, mas sobre a ausência corporal. É, primeiro, sobre os estágios de separação do corpo materno e, segundo, sobre o distanciamento do próprio corpo ao entrar no mundo cultural. Wean consiste em uma série de impressões negativas em uma parede: formas do seio da artista, de seu mamilo, de três bicos de látex usados para mamadeiras e, finalmente, da embalagem moldada dos bicos de látex. A sequência da forma natural para a artificial, ou para um substituto protético, segue o curso ao longo do qual a substituição ocorre, do desejo oral e do prazer nutritivo de sugar da infância ao poder oral da fala, significando a entrada na sociedade. Assim, o corpo, para Antoni, se torna um instrumento que pode registrar o tempo, desde estágios pré-edípicos de desenvolvimento psíquico até o desmame. — R. M.

Infindabilidade: O desejo pela infindabilidade é incompatível com os caminhos da vida e do universo. A infinitude tornou-se um sonho de imortalidade na sociedade capitalista avançada, seja por meio da ciência médica, de próteses, de ginástica ou de propostas envolvendo anatomia biônica ou pós-humana. Damien Hirst representa a anatomia biológica com imagens de armários de medicamentos, alguns dos quais feitos para se assemelhar ao corpo humano, com medicamentos para a cabeça na prateleira superior e para as pernas e os pés na inferior. Um de seus armários de medicamentos, Liar, de 1989, usa drogas para representar a anatomia humana, bem como para fornecer um comentário sobre a imortalidade, que talvez elas afirmem tornar possível.

O conflito entre permanência e impermanência, finitude e infinitude surge em Thermometer of love, de Rebecca Horn, de 1985, que fornece

uma imagem para a medição de sentimentos como vulnerabilidade e falta de resistência. E esses também podem ser lidos em Rotating circle, de Charles Ray, de 1988, cuja rotação infinita poderia ser um álbum em um toca-discos ou uma câmera filmando sem sentido.

A mobilidade acelerada do trabalho de Ray é percebida como imobilidade; ele gira intensamente, superando a capacidade do olho humano de perceber seu movimento. Paradoxalmente, acelerá-lo é produzir quietude.

No vídeo Outer space, de Angelika Middendorf, de 1999, o movimento incessante e intenso de uma nadadora que nunca avança é experimentado como quietude, enquanto ela nada contra a corrente em uma piscina de treinamento. É, mais uma vez, uma aparente colisão de noções de tempo, espaço e movimento. Todo gasto de energia parece produzir imobilidade, uma qualidade descrita por Jorge Luis Borges como a capacidade de permanecer no mesmo lugar o tempo todo. No vídeo de Middendorf, os papéis não seguem a lógica da mecânica: o tempo linear do cinema torna-se circular, uma piscina torna-se um rio; por um momento, a eternidade está em nosso olhar.

O mundo, perpetuamente girando, de cabeça para baixo e perdendo estabilidade e propósito, pode ser experimentado no vídeo Forever, de 1994, do artista chinês Zhu Jia, que estabelece ambiguidades entre mobilidade e imobilidade por meio de tensões paradoxais entre a lógica da imagem e a percepção real do movimento. Guillermo Kuitca ironicamente dá à imagem de uma esteira de bagagens deserta, simbólica e formalmente infinita o título de sua pintura Terminal, de 2000, que em si indica um fim para o tempo.

O artista disse que pensa na máquina, na esteira do aeroporto, como algo infinito que não pode dormir; que, como o tempo, se move sem parar para além da utilidade e do reconhecimento da presença de qualquer coisa além dela.

O trabalho de Nadine Robinson leva esses temas adiante em termos de realidades sociais por meio de sua instalação musical, que usa a música de presidiários negros que entoam um cântico de trabalho no qual desejam que o tempo pare para interromper seu sofrimento insuportável sob o trabalho forçado e pesado. Em Tower hollers, de 2002, ela expõe o destino coletivo de gerações de afro-americanos

infindavelmente limitados pela discriminação de classe e pela etnia passada e presente. A instalação, que relaciona música e trabalho, foi concebida durante o período de seu programa de estúdio, World Views, em uma das torres do World Trade Center. O conceito original da artista era lidar com as condições de trabalho de afro-americanos, latinos e imigrantes europeus nas 455 empresas locatárias que ocupavam o edifício na época. Para Tower hollers, Robinson misturou duas canções incompatíveis: “Go down, ol’ Hannah”, um cântico de trabalho na voz de James (Iron Head) Parker, e “Diane (I’m in heaven when I see you smile)”, do álbum Music for dining, que visava estimular a produtividade no ambiente de trabalho. Este último se refere à muzak, ou à chamada música de elevador; os tempos musicais do cântico e da música ambiente são conflitantes, mas ambos foram feitos para a administração do trabalho. O espectador observa o movimento dos discos de 33 rpm em Tower hollers, enquanto o cântico de trabalho se dirige ao sol: “Go down, ol’ Hannah, doncha rise no mo’ / Go down, ol’ Hannah, doncha rise no mo’ / Ef you rise de mornin’, bring Judgment Day”.

Os toca-discos são simbólicos das torres, que representavam a imobilidade social e a luta interminável da classe trabalhadora na economia mundial. A história recente transformou Tower hollers em uma homenagem inesperada às vítimas dos ataques de 11 de setembro. — P. H.

Fluxo: Para Norma Jeane, a transformação de materiais torna os processos de vida e morte palpáveis. Potlatch n. 6. 1/The happy surrender, de 2001, inclui um queijo feito com leite materno, e To die for, de 2001, incorpora um ácido ameaçador. To die for, um conjunto de joias combinando (colares e anel), foi criado com a designer genovesa Paola Frusteri e feito apenas com vidro Pyrex, que é geralmente usado para produtos químicos. O interior das joias é preenchido com ácido sulfúrico líquido e incolor (H2SO4) em alta concentração (98%). Norma Jeane explica que, quando o ácido sulfúrico se mistura com água, um calor considerável é liberado. Se não for manuseada corretamente, a água adicionada pode atingir temperaturas além de seu ponto de ebulição (340 °C ou 644 °F). A formação de vapor dentro das joias, enquanto estavam sendo feitas, poderia ter expelido o ácido de seu recipiente. A dificuldade reside em manter tais joias. O plano de transportá-las da Itália para Nova York

exigia um recipiente de Teflon, o único material conhecido pela artista que pode conter o ácido sem ser afetado por ele. A artista deixa claro que To die for é um sonho sobre beleza, perigo e desejo: “Eu substituo o valor econômico ordinariamente associado às joias por uma moeda de perigo implícita no objeto”. As formas elegantes e fluidas das joias de Norma Jeane atiçam o desejo. Cristalino e obscuro, o objeto de desejo brinca com o instinto de posse. Joias são armas de sedução. O vidro é fino; se quebrado, pode ferir ou até matar com o ácido sulfúrico, uma beleza forte para brincar com os instintos da morte. — P. H.

Liberdade: A busca pela liberdade é frequentemente uma resposta às necessidades da sociedade atual, chamada pelo sociólogo alemão Ulrich Beck de “sociedade de risco”, na qual instituições sociais que antes se pensava garantirem nossa segurança também exercem poder excessivo sobre nosso tempo. Em vez de se conformarem inequivocamente às normas sociais tradicionais, os indivíduos contemporâneos optam por estilos de vida alternativos, mais fluidos e empreendedores, e concebem novas maneiras de reinventar o eu.

Em meados da década de 1990, Andrea Zittel desenvolveu a série

A-Z travel trailer units, unidades de moradia sobre rodas projetadas para oferecer maior liberdade individual, com privacidade, flexibilidade, mobilidade e até mesmo fuga. Cinco anos depois, ela experimentou a A-Z timeless chamber, uma semana vivendo e realizando atividades diárias fora do tempo estruturado, em um espaço sem relógios, luz solar, ruídos do mundo exterior ou outros dispositivos de tempo.

A partir de suas experiências com unidades de moradia, em A-Z time trials , de 1999, Zittel manipula o construto do tempo, da predeterminação ao livre-arbítrio, em uma tentativa de estender o escopo de padrões de comportamento enraizados. Vários relógios octogonais exibem sistemas numéricos personalizados que subvertem a noção do tempo padrão. Embora Zittel desafie postulados científicos, permanece a questão sobre se tais experimentos oferecem uma margem suficiente de liberdade das estruturas de tempo canônicas. Eles parecem fazer isso, mas deve-se notar que, no final, eles se tornam o terreno real para novos padrões. Isso foi apontado pelo matemático e físico francês

Henri Jules Poincaré em seu livro Ciência e hipótese (1902), no qual explicou que qualquer padrão é um modelo relativo e o resultado de convenções. — R. M.

Horologia: A justaposição de relógios e outros mecanismos relacionados ao tempo por diferentes artistas colapsa as experiências ordinárias do tempo. Precisão, uniformidade, contagem, medição, constância e convenção colapsam, expondo a experiência vivida do tempo como uma multiplicação de passagens difíceis, ou aporias. O espectador pode experimentar sensações de hors du temps, zeitlos, destiempo, atemporalidade. Em Reality hacking #147, de Peter Regli, de 1998, dois relógios têm ponteiros que se movem em direções opostas. Regli subverte nossa configuração visual do tempo, pois um relógio escapa de sua direção própria, no sentido horário.

Em What, where, and when?, de Matthew McCaslin, de 1994, uma configuração caótica de ventiladores elétricos e relógios marcando horas díspares leva o espectador a questionar noções fixas de tempo e espaço. A obra de Alighiero e Boetti explora as relações entre ordem e desordem. Seus Watches, de 1977-1994, compreendem um conjunto de 16 relógios, cada um com números correspondendo a um ano consecutivo diferente entre 1977 e 1994. Se os relógios medissem anos em vez de horas e minutos, então essa obra marcaria a passagem acelerada do tempo.

Louise Bourgeois desenhou o mostrador de um relógio marcando 24 horas em sua obra em tinta e lápis Untitled, de 2002. Nela, escreveu as palavras Restoration, Reparation e Reconciliation e declarou: “Quero experimentar o presente”. Ela acrescenta: “Perdoar para esquecer”, uma observação sobre o processo de transcender memórias e sentimentos dolorosos. Aqui ela aborda as perspectivas mutáveis do tempo, o passado e o futuro, e privilegia o presente.

Alguns artistas revelam as limitações das convenções da vida cotidiana e dos mecanismos que a regulam. Steven Pippin sugere a redundância de objetos que resulta do desenvolvimento tecnológico em sua instalação Fax 69, de 1999, que consiste em um par dessas máquinas enviando fax continuamente uma para a outra por meio de uma única longa folha de papel, transformando-o em uma fita de Moebius. As transmissões de fax deixam marcas na longa folha de papel, que

também podem ser entendidas como um diagrama de desejo, particularmente dado o título trocadilhesco da obra. Pippin submete dispositivos a operações aparentemente sem sentido como uma estratégia para expor seu próprio absurdo como objetos e para precipitar a entropia tecnológica.

No caso da instalação Work no. 189. Thirty-nine metronomes beating time, one at every speed, de 1998, de Martin Creed, uma cacofonia de metrônomos – uma referência a Objeto indestrutível, de Man Ray –subverte a sincronia por meio do som e da velocidade, aprimorando a percepção do tempo e de tempos dissonantes. Alguns artistas lidam com o “tempo local” como a excitação do presente. Klaus Rinke, em Albert Einstein! When does Baden-Baden stop at this train?, de 1989-1990, alude a uma pergunta feita por Einstein. A possibilidade que emerge da pergunta aparentemente incoerente de Einstein é a substituição de “tempo local” por “lugar local”. A relatividade se manifesta viajando no espaço-tempo. Rinke coloca o espectador na posição de Einstein, enquanto o relógio em movimento agora considera tanto o tempo quanto a distância percorrida.

Em Fontes, de 1992, Cildo Meireles articula quatro tipos de réguas imprecisas, relógios que articulam números e espaços exatos ou inexatos, e aqueles com números em posições erradas e em sequência misturada. Milhares dessas réguas formam duas espirais que se conformam a um diagrama do universo. Essa instalação só pode medir o limite do olhar diante da diferença e da descontinuidade no mundo. Fontes propõe uma pergunta: E se as noções de espaço e tempo, duas das maiores invenções do homem para organizar o mundo, fossem perdidas?

Para Felix Gonzalez-Torres, dois relógios ajustados na mesma hora criam uma dupla ocorrência em torno de um prazer ajustado. Sua obra de 1991 Untitled (Perfect lovers) tenta evitar uma introdução verbal para definir a obtenção do prazer. A segunda parte do título é uma espécie de substituto, sugerindo um desejo de enunciar, mesmo que apenas parenteticamente, as bordas contíguas dos relógios; mas seus ponteiros ligeiramente diferentes, uma separação entre o eu e o outro, formam um abismo que nega a perfeição. Essa condição representa os limites do desejo, pois Gonzalez-Torres confronta o espectador com uma sutil diacronia. — P. H.

Imanência: Na filosofia de Georg Wilhelm Friedrich Hegel, a imanência é a chave para a compreensão do princípio da lógica que governa o mundo. O universo – tempo e sua contraparte, espaço – é um absoluto autoperpetuador que não transcende a realidade, mas existe na e através dela. Para a arte, isso significa que a transcendência e o simbolismo, que por definição são exteriores e não inerentes à realidade, são logicamente excluídos do real.

No final da década de 1950, no Brasil, a artista Lygia Clark se propôs a resgatar a subjetividade e a dimensão simbólica da arte; a deslocar a noção hegeliana dominante de tempo imanente; e a estabelecer um modelo fenomenológico para a arte, que ela denominou duração vivida. Suas obras da década de 1960 estavam entre as primeiras a propor a participação do público na arte como necessária para a conclusão integral da obra de arte; ela criou estruturas planas que exigiam um investimento de esforço do espectador para explorar seus movimentos, e propôs que o público participasse da experiência de explorar uma estrutura topológica cortando ao longo de uma fita de Moebius em sua obra intitulada Caminhando . Aqui e em peças subsequentes do tipo, o tempo é a experiência vivida pelo público. Deslocando a imanência do tempo da perspectiva metafísica em favor da fenomenologia, dos sonhos e da fantasia, ela disse: “No ato imanente, não percebemos um limite temporal. Passado, presente e futuro se misturam”.

A ideia para Erwin Wurm era fazer uma obra de arte que pudesse ser realizada pelo público sem sua presença física: “Todas as minhas One minute sculptures podem ser realizadas em diferentes tempos e níveis geográficos e em diferentes condições”. Wurm oferece uma desconstrução emocional do tempo, mas a mantém como uma experiência significativa de conhecimento com humor. Por exemplo, sua One minute sculpture de 1997, na verdade, “pode durar apenas por um período muito curto de tempo”.

Wurm brinca com as experiências alegres do tempo imanente por parte do espectador. One minute sculpture , segundo o artista, não precisa necessariamente durar 1 minuto preciso; pode durar mais ou menos de 60 segundos. — P. H.

Infinito: Aspirações ao infinito foram frequentemente exploradas na arte. Entre as principais manifestações desse impulso no período moderno está o testemunho espiritual de Constantin Brancusi. Conjurando a ideia de uma coluna visionária, ele a executou em várias versões entre 1918 e 1938 como a Coluna infinita. Baseada na clonagem de uma única unidade idêntica, a Coluna infinita tinha uma capacidade inerente de se transformar de base para escultura ou monumento. Sua forma serial e generativa poderia ser facilmente reproduzida em diferentes comprimentos e ajustada a diferentes locais. Isso fazia parte da metodologia nômade de Brancusi: produzir obras de qualidade atemporal, mas de específica transferibilidade.

Meio século depois, o artista japonês Tatsuo Miyajima explora noções semelhantes de infindabilidade, recorrência e aleatoriedade. Mas, se Brancusi demonstrava uma abordagem mítica do tempo, Miyajima voltou-se para o tempo digital infindo da era da computação. O tempo funciona como a estrutura de todas as suas instalações de diodo emissor de luz (LED) e circuito integrado (IC), produzidas desde o final da década de 1980. Partes de suas investigações abordam os dois construtos temporais básicos: o tempo linear baseado em visões racionalistas e o tempo cíclico baseado na teoria de corsi e ricorsi, desenvolvida pelo filósofo italiano do século XVIII Giambattista Vico. Este último se reflete em Counter spiral, de Miyajima, de 1998, uma espiral giratória que compreende as contagens simultâneas crescente e decrescente de 1 a 99, mas nunca incluindo o zero, o que indicaria um fim. As velocidades em que os números mudam variam, articulando o caráter relativo e indefinido do tempo. A relatividade temporal, tal como foi desenvolvida por Albert Einstein, é sugerida dentro de uma única zona visual. Miyajima define o movimento circulatório infindo da espiral como uma paisagem de tempo, que inscreve em sua ordem tanto a forma quanto a entropia. — R. M.

Intervalo: Em 1905, um médico francês realizou um experimento com a cabeça decepada de um criminoso guilhotinado. Após a decapitação do condenado, o médico chamou seu nome em voz alta, e os olhos do homem se abriram, totalmente vivos e olhando diretamente para o médico. Então suas pálpebras se fecharam. Na segunda chamada do médico, os olhos do homem se abriram mais uma vez, olhando com uma expressão mais alerta do que antes. Então seus olhos se fecharam de vez. Esse episódio, registrado no volume

francês Arquivos de antropologia criminal, tentou encontrar provas de consciência após a morte. Durou entre 25 e 30 segundos.

O artista Douglas Gordon refere-se a esse experimento em sua instalação 30 Seconds text, de 1996, que consiste em uma sala escura, com uma parede contendo um relato do experimento e uma lâmpada com um temporizador que acende e apaga a cada 30 segundos.

Conectando a sensação do corpo decapitado do criminoso à do leitor do texto, Gordon equipara o intervalo entre a vida e a morte ao tempo que uma pessoa leva para ler as anotações sobre o experimento. Assim como outras obras de Gordon, essa peça joga com o tempo, a produção de suspense e o processo de percepção. — R. M.

Janus: Na mitologia romana, o deus Janus tem duas faces e olha para o passado e para o futuro ao mesmo tempo. Uma escultura pendular de Louise Bourgeois, Janus Fleuri, de 1968, levanta questões, para a artista, relacionadas ao tempo e ao gênero: passado e futuro, masculino e feminino. Ela diz: “É necessário buscar o equilíbrio entre o ontem e o amanhã, já que o presente me escapa. Janus nunca olha para o passado; ele volta seu olhar para o futuro”.

O deus romano representa o espírito de portões e portas, de passagens e transições. O volume da escultura articula o acabamento racional da superfície de bronze e áreas em que o toque erótico na moldagem é claramente um investimento libidinal que é transmitido ao olhar do espectador. O material de bronze representa a indestrutibilidade de Janus. Bourgeois detesta terracota porque é quebrável e finita. Ela diz: “O tempo pode ser representado pela poeira. Você não limpa seus livros, a poeira se acumulará e você... soprará. Acumular poeira é negar o tempo. É expressá-lo”. Assim, se a poeira para Bourgeois é a negação do tempo, a cera se relaciona com a maleabilidade das pessoas. Bourgeois identifica as pessoas com materiais de arte: “Somos tão maleáveis quanto a cera. Descartes falou sobre a cera. Falamos sobre uma bola de cera. E, consequentemente, também somos sensíveis às lembranças do que aconteceu antes e apreensivos quanto ao que vai acontecer depois. Eu experimento com pessoas que são como um pedaço de ferro: elas não são maleáveis de forma alguma. Não confio em minhas possibilidades de manipular outras pessoas”.

David Hammons evita uma abordagem romântica dos materiais de arte em sua Nap tapestry, de 1978, que trata da transformação da verdade social e concreta do material. Hammons está ciente de que o material em questão é político: o cabelo crespo está sujeito a preconceito social. O artista se refere à situação incorporando-a em sua arte. Se o presente é marcado pelo nomadismo e aparente elusividade, Nap tapestry aponta para o passado, para a ancestralidade cultural: “É o cabelo mais antigo do mundo”. Também aponta para um futuro confronto com o racismo para a construção de uma sociedade diferente: “O cabelo negro era a única coisa que não era da cultura do opressor”. Assim, Nap tapestry é a construção de um Janus político de Hammons. — P. H.

Trabalho: Os efeitos desumanizadores do trabalho formam o poderoso tema da arte de Vik Muniz e Marc Latamie, ambos focados no comércio de açúcar. A série de Muniz The sugar children, de 1996, explora os mecanismos de representação fotográfica em seis retratos de crianças trabalhadoras de plantações de açúcar em St. Kitts, nas Índias Ocidentais, que foram renderizados com açúcar. Segundo Muniz, as crianças alegres que ele conheceu lá seriam eventualmente “transformadas pelo açúcar. Crianças que se tornam açúcar” o fazem por meio de seu trabalho nesta indústria. A qualidade granulada das imagens, um trocadilho visual com os pontos que compõem as fotografias de jornais e revistas, também lembra o processo de revelação de uma imagem em papel fotográfico. Ao mesmo tempo, o uso do açúcar leva a reflexões sobre os efeitos do trabalho manual e das desigualdades econômicas. Em contraste com as convenções fotojornalísticas ou antropológicas, que retratam os trabalhadores como tipos, Muniz traduz o material que eventualmente pode consumir a vida das crianças em um meio para renderizar seus contornos. As expressões cativantes de close-up e os títulos que Muniz deu às suas imagens revelam a particularidade da personalidade de cada criança: Valicia Bathes in sunday clothes; Jacynthe loves orange juice; e Valentine, the fastest.

As instalações de Latamie relacionadas ao processo por meio do qual o açúcar é produzido e comercializado são baseadas em sua pesquisa sobre os circuitos históricos e econômicos pelos quais os escravos africanos que processavam açúcar cruzaram o Atlântico. Essa investigação se estende às relações de mercado contemporâneas

e às relações dos caribenhos com esse produto hoje. Em Casabagass, de 2002, o artista traz uma cabana que abriga um moedor de cana-de-açúcar para o contexto do museu, envolvendo os visitantes no processo de consumo do caldo de cana-de-açúcar. A quantidade de cana-de-açúcar processada em caldo na instalação é baseada na quantidade média produzida em um dia por um agricultor em Fort-de-France, na Martinica natal de Latamie. Um vídeo de campos de cana-de-açúcar em flor filmado na Martinica também faz parte da cabana. Casabagass inverte o fluxo usual de açúcar dos campos de cana-de-açúcar da ilha caribenha para os pregões de Wall Street, onde se torna uma mercadoria abstrata. — M. B.

Lazer: Investigando a ideia de tempo de lazer, no qual nativos de nações ricas se cruzam com os de países “em desenvolvimento”, o vídeo Meditation on vacation, de Fatimah Tuggar, de 2002, abrange a trajetória típica do turista ocidental, da chegada à partida. Empregando a montagem para explorar as disparidades nos efeitos da globalização, ela cria justaposições entre imagens de locais de férias caribenhos e trabalho local, juntamente com imagens tiradas em cidades nigerianas que sublinham o fluxo desigual de imigração, trabalho, capital e turismo. No aeroporto, por exemplo, turistas que chegam são liberados na alfândega, enquanto caixas de papelão cheias de presentes trazidos por imigrantes que retornam são revistadas. Imagens estereotipadas de um paraíso tropical –veleiros, uma mãe e filha brincando na areia – são perturbadas internamente pela incorporação de imagens de moradias nigerianas ou, contiguamente, por uma cena em um mercado ao ar livre. Uma filmagem de um discurso proferido por Horst Kohler, do Fundo Monetário Internacional, corta o fluxo de imagens. Ele entoa: “A questão é fazer a globalização funcionar para o benefício de todos”. A imagem de um quarto de hotel convidativo aparece. Na narração, assim como nas imagens, Tuggar emprega tanto seus próprios textos quanto textos apropriados. Os nativos de locais turísticos, ela diz, “invejam sua própria capacidade de transformar sua própria banalidade e tédio em uma fonte de prazer”. — M. B.

Memória: O comentário sobre o caráter retroativo da consciência temporal na literatura é epitomado pelo escritor Jorge Luis Borges em seu conto “Funes, el memorioso”, no qual retrata um personagem paradoxalmente aprisionado no presente por meio do exercício da

memória. Após um acidente, Funes desenvolve a capacidade de recordar eventos exatamente como ocorreram. Recordar determinado dia, por exemplo, exigiria, portanto, 24 horas. Funes é reduzido à exaustão em seu quarto escuro, enquanto se maravilha repetidamente com um cachorro que passa por sua janela, percebendo-o como se fosse a primeira vez. Os laços de Funes com a linguagem e a memória se corroem à medida que seu presente perpétuo o impede de reconhecer que a palavra “cachorro” pode ser aplicada a um número infinito de tais animais: “Pensar é esquecer diferenças, generalizar, fazer abstrações. No mundo fervilhante de Funes, havia apenas detalhes, quase imediatos em sua presença” (Jorge Luis Borges, “Funes, the memorious”, em Donald A. Yates e James E. Irby (eds.). Labirintos: contos escolhidos e outros escritos, 1964). A percepção de Funes lembra a experiência da cobertura de notícias em tempo real, na qual o espectador é saturado de dados e seduzido pela ilusão de imediatismo, o que o distrai da análise histórica. É precisamente essa confusão entre a experiência vivida e as imagens midiáticas de eventos históricos que é explorada por Iñigo Manglano-Ovalle em seu vídeo Nocturne (tulipa obscura), de 2002. — M. B.

Globalismo pós-colonial: O mundo em geral está mais comprimido e mais fluido, exigindo paradoxalmente ideias de migração pós-colonial, por um lado, e de proximidade eletrônica, por outro.

Fatimah Tuggar argumenta com acuidade que o mundo em que vivemos está cada vez mais sujeito à mediação, embora algumas regiões ainda careçam de tecnologia básica, como eletricidade. Ela também observa que o poder da mídia de massa é, em grande medida, prevalente em todos os lugares, enquanto o historiador cultural Andreas Huyssen comenta que o globo terrestre foi retribalizado pela televisão, como uma espécie de tambor tribal contemporâneo. Transitando entre culturas, Tuggar utiliza montagem computadorizada e colagem de vídeo para abordar questões de localidade e identidade, realidades ocidentais irreconciliáveis e estilos de vida africanos rurais. Em Sibling rivalry, de 1995, por exemplo, duas crianças nigerianas vestidas com trajes tradicionais brincam com blocos de construção. No entanto, sua atividade é enganosa; elas são mostradas adjacentes a uma imagem da Bolsa de Valores de Nova York, e aquilo com o que elas realmente brincam – com efeito politicamente provocador – são edifícios ocidentais.

Tuggar investiga os deslocamentos surreais desencadeados pela migração pós-colonial, que está conectada à economia mundial.

Tuggar apresenta populações não ocidentais estabelecendo laços com mais de um lugar, formulando novas matrizes geográficas e recusando-se a se estabelecer em um território circunscrito. No final, ao desmistificar estereótipos de comunidades diaspóricas, a autora parece estar clamando pela formação de uma ordem global baseada na abolição de todos os sistemas coercitivos de representação – sejam territoriais, religiosos, raciais ou étnicos –que se recusam a incluir a intervenção daqueles representados.

Sintonizado com as novas tecnologias digitais de representação, Paul Pfeiffer também aborda a construção de discursos socioculturais e pós-coloniais, especialmente como articulados no mundo dos esportes. Em seu vídeo Goethe’s message to the new negroes, de 2001-2002, Pfeiffer utiliza filmagens da NBA de jogadores de basquete negros em movimento, reeditando-as para que cada figura se dissolva fluidamente na próxima. O título da obra é emprestado dos escritos de Léopold Sédar Senghor, o primeiro presidente do Senegal e um aclamado poeta e intelectual africano. Senghor mudou-se para a França em 1923, onde formou uma aliança com os surrealistas e a esquerda política. Ele então se tornou um ator importante nas lutas pela libertação africana e construção de nações independentes. O artista destaca a ênfase de Senghor na identidade negra e nos valores culturais: impulso, resistência, espírito comunitário e emoção humana. Ao considerar o título de seu vídeo, Pfeiffer reconhece seu fascínio pela postura ativa de Senghor contra o fascismo e o colonialismo na África, mas explica que não há uma única mensagem a ser extraída dele. Em vez disso, o título visa multiplicar as tensões e perguntas já inerentes ao próprio vídeo. — R. M.

Cena primordial: Certas experiências traumatizantes da infância, segundo Sigmund Freud, constituem a “cena primordial”, termo com o qual ele se referia a eventos reais envolvendo crianças transformados por elas, por meio da fantasia e do medo, em experiências definidoras da vida. Comumente, mas não exclusivamente, estão associadas à sexualidade dos pais, observada ou imaginada; a criança tipicamente interpreta uma observação do coito dos pais como uma cena violenta perpetrada pelo pai, o que pode gerar

uma profunda e atormentadora angústia. Mas a cena primordial autodefinidora também pode ser gerada por outros tipos de eventos.

Na obra de Adriana Varejão, os parâmetros da cena primordial são inseridos na história e podem envolver identidade e origem étnica. Em algumas de suas obras, Varejão reconstrói uma cena imaginária das origens do Brasil ao longo do processo colonial, criando falsas evidências das relações interétnicas do país, muitas vezes baseadas em estupro. Por exemplo, ela utiliza retratos genéricos de homens (um padre e um oficial) de Jean Baptiste Debret para criar cenas de estupro de duas mulheres, uma nativa e uma escrava.

Salientando um interesse pela literatura, Kara Walker cria a cena primordial como teatro. O intenso pensamento inscrito em sua arte visa ecoar na mente do espectador. Ela fala em diferentes estados de raiva, abandono, resistência, hesitação, desafio, ironia e individualidade e nas demandas da identidade étnica. Suas reconstruções da cena primordial em termos sociais são uma estratégia para expor a história opaca da violência contra mulheres e afro-americanos. Em sua instalação de parede The emancipation approximation , de 1999, ela usa silhuetas para articular certas narrativas apropriadas que abordam questões de raça e atitudes em relação a mulheres e artistas que as reduzem a símbolos de identidade étnica e de gênero e a agentes inconscientes de viés cultural. Essa fusão de ficção e drama resulta no que Walker chama de “um número indeterminado de vozes esquizofrênicas” em suas obras. A experiência do tempo é um jogo de distanciamento entre estranhamento e aproximação. Em sua instalação, Walker cria situações contraditórias sobre o tempo: “não se aproximando ainda do futuro”, “distância e proximidade”, a “excitação” do imaginário reduzido a estereótipos, a simplicidade das silhuetas e a ausência de detalhes e nuances na representação dos personagens são inerentes a uma perturbadora descontinuidade do tempo. A lógica mutante e a troca de papéis entre as personagens de The emancipation approximation relatam atritos da história e da violência, incluindo a violência sexual, os fracassos do progressismo e do modernismo e a brutalidade da norma. O trabalho de Walker é um teatro de sombras projetadas do passado para iluminar e definir uma densidade crítica no presente. — P. H.

Tempo real: O uso do termo “tempo real” com o aparentemente redundante “ao vivo” refere-se a representações midiáticas consideradas equivalentes à experiência direta de um evento. A já familiar tonalidade esverdeada de uma tela de televisão se dissolvendo em pixels com a palavra LIVE em um dos cantos coincidiu com limites sem precedentes impostos ao acesso de repórteres a campos de batalha no exterior, especificamente desde a Guerra do Golfo, e com o aumento da vigilância em casa. Essa guerra inaugurou um novo tipo de reportagem visual, já que a tecnologia de câmera infravermelha de última geração usada pela mídia e pelos militares encorajava os telespectadores a terem a impressão de que eram testemunhas oculares de notícias de última hora em tempo real. Isso é, claro, agora familiar na cobertura da guerra no Afeganistão, na qual a ênfase implacável no presente fomenta uma perspectiva a-histórica. As ligações tecnológicas, temporais e perceptuais entre a apresentação de imagens midiáticas como realidade não mediada e a transformação de muitos espaços públicos em locais de vigilância surgem à medida que o espectador é atraído pela imediatidade prometida pela imagem projetada, enquanto se torna parte dela. Essas questões são exploradas por Iñigo Manglano-Ovalle, que usa ciência e tecnologia para questionar sistemas de classificação e vigilância em uma série de instalações desde os anos 1990. Em sua projeção de vídeo em tempo real aprimorada por visão noturna Nocturne (tulipa obscura), de 2002, uma câmera equipada com sensores de movimento filma uma tulipa afegã nativa. Ao mesmo tempo, o espectador é incorporado à obra por meio do processo de movimentação no espaço escuro enquanto é atraído por uma imagem projetada da flor. A experiência da obra levanta questões sobre as relações entre representação, percepção, tempo e espaço. — M. B.

Hoje: A série Today, iniciada em 1966, por On Kawara, como um processo contínuo e aberto, compreende centenas de telas. Cada uma consiste na data real em que a obra é executada, juntamente com uma caixa na qual são armazenados recortes de jornais do mesmo dia. Por meio dessa combinação, o artista alinha a autobiografia com eventos mundiais extraídos das notícias. A princípio, os títulos dessas pinturas eram derivados de manchetes de jornais. Desde 1973, eles são baseados no dia da semana em que Kawara produziu a obra. Uma pintura de data só pode ser feita no dia da data retratada na pintura e é inscrita na língua do país em que o artista se encontra

no momento. Meticulosamente executada à mão, cada pintura deve ser concluída até a meia-noite daquele dia específico, ou então destruída. A passagem física do tempo, as 8 a 12 horas investidas no ato de pintar, é considerada parte do conteúdo da obra. Construídas no tempo presente, na data de hoje, cada uma das pinturas paradoxalmente se refere a um tempo já passado. O espectador experimenta a série Today como um memorial daquilo que ocorreu.

O conceito de tempo informou todos os projetos de Kawara nas últimas quatro décadas. Por exemplo, em 1969, ele enviou os três telegramas seguintes ao curador Michel Claura, em Paris, como sua contribuição para uma exposição: “I AM NOT GOING TO COMMIT SUICIDE, DON’T WORRY; I AM NOT GOING TO COMMIT SUICIDE, WORRY; I AM GOING TO SLEEP, FORGET IT”.

Essas mensagens lançaram a série I am still alive; os telegramas e mailgrams subsequentes, que Kawara enviou a vários destinatários, testemunham sua existência continuada, o fato de que sua morte ainda não ocorreu e a evidência de que o fato é automaticamente anulado no momento em que a mensagem é recebida. O que resta é um documento, que possui a unidade do tempo presente no quadro do que foi. — R. M.

Água: Em muitas culturas antigas, a água é usada para fornecer uma imagem do tempo, e em outras é o princípio originador que explica todas as coisas. Por exemplo, o antigo fundador grego da filosofia natural Tales de Mileto, um dos Sete Sábios de Platão, sustentava que a água é a substância primária da qual todas as coisas derivam, e representava a Terra flutuando sobre um oceano subjacente. Em A laundry woman, de 2000, Kim Sooja permanece imóvel observando o fluxo do Rio Yamuna, em Delhi, Índia, que leva o nome de uma deusa hindu que controla o poder feminino e simboliza fertilidade e abundância. A água passa, carregando flores e objetos queimados de um crematório. A energia hidráulica do rio e o voo dos pássaros refletidos em sua superfície levam à meditação da artista sobre a vida e a morte: “Fui despertada pelo fato de que é meu corpo que será mudado, desaparecido e sumirá em breve... mas o rio está sempre lá”. Kim oferece ao espectador uma escolha: ser um espectador de sua ação filmada ou tomar seu lugar e observar o rio. Sua ambivalência ecoa o fluxo mutável da água.

A obra de Roni Horn explora seu intenso foco no tempo por meio da fluidez da água em rios, gêiseres e nuvens. Ela analisa a linguagem enquanto mapeia a água como uma topologia paradoxal, nomeando seus estados de transitoriedade e consignando notas de rodapé interpretativas às suas imagens. O trabalho de Horn, como suas litografias Still water (the River Thames, for example image B and image L), de 1999, expõe tensões entre o tempo “detido” da imagem fotográfica da água, o fluxo do rio como tempo líquido e o curso da própria linguagem.

Para Vija Celmins, um desenho pode se tornar a corporificação visual do oceano: a construção da imagem reafirma a qualidade física e mineral da água. O desenho, como a água, tem um caráter transitório, à medida que a mão da artista desliza pelo papel. O gesto disciplinado do ato de desenhar implica que vestígios materiais de sua passagem sejam deixados para trás. Celmins o converte em uma presença carregada no mundo, como em seu Untitled (Ocean), de 1970. Em The fulfilled aquarium, de 1987, Waltercio Caldas propõe uma linguagem paradoxal e uma imagética transparente e fluida, sublinhando a relação linguística arbitrária entre o significante e o significado. Para ele, a oposição desses dois polos é meramente a cisão entre valor de uso e valor de troca (em termos marxistas). Na obra de Caldas, o significante está à deriva.

Em Tapestry of the thousand longest rivers of the world, de Alighiero e Boetti, de 1971-1979, o rio mais longo não tem o nome mais longo, mas os nomes dos rios fluem, indicando a fluidez da linguagem. Feitas no Afeganistão, suas tapeçarias enunciam a contribuição do trabalho dos chamados países subdesenvolvidos e de culturas tradicionais para o valor de troca da arte. No vídeo Amazon triptych, de José Alejandro Restrepo, de 1994, um nativo usa uma camiseta estampada com o rosto de um político, um símbolo de poder em relação ao trabalho. Enquanto ele rema um barco, a imagem do político se move. Restrepo cita como o tempo está implícito na caracterização da visão pelas pessoas indígenas da região do Rio Emba, no Cazaquistão, que dizem: “Ver é como os círculos d’água... que se expandem lentamente até voltarem a ser água”.

Em Untitled, de Felix Gonzalez-Torres, de 1991, uma pilha de litografias offset com uma imagem fotográfica de água em cada folha fornece

uma imagem estática de movimento constante, repetida infinitamente. O espectador é convidado a pegar uma da pilha; dessa forma, o artista introduz o movimento real enquanto renuncia ao seu papel na peça a partir do momento em que a imagem é retirada. Assim, a obra de arte continua a circular seu significado paradoxal: a experiência do tempo depende das passagens tomadas pelos indivíduos. Nunca é a mesma duas vezes, ou, parafraseando o filósofo grego Heráclito, você não pode entrar duas vezes no mesmo rio. — P. H.

HERKENHOFF, Paulo; MARCOCI, Roxana; BASILIO, Miriam. A Tempo lexicon. New York: The Museum of Modern Art, 2002. p. 8-16.

Amorosidade amazônica: curadoria

Desde os tempos de minha graduação em artes na Universidade Federal do Pará (UFPA), Paulo Herkenhoff já era uma das minhas maiores referências. Acompanhava atentamente seus textos críticos e sua trajetória, consolidada no Brasil e também no cenário internacional. Lembro-me de como a Bienal de São Paulo de 1998 – a icônica “Bienal da antropofagia”, sob sua curadoria – ampliou minha percepção sobre o papel educativo da curadoria. A forma como foram produzidos os materiais pedagógicos, com propostas críticas voltadas para os profissionais da educação, marcou profundamente minhas pesquisas. Aqueles conteúdos se tornaram essenciais para mim, e era nítido como a educação sempre esteve no centro das propostas de Paulo.

Com esse olhar atento, eu acompanhava cada edição do Arte Pará. Criado em 1982 e sediado em Belém, o projeto nasceu como uma mostra regional e, ao longo do tempo, transformou-se em um dos eventos mais relevantes do circuito de arte contemporânea no Brasil. Passaram por ele artistas paraenses como Elza Lima, Emmanuel Nassar e Walda Marques; e de outros estados, como Keila Sankofa, Silvana Mendes e Paul Setúbal; além de nomes internacionais, como Irene Agrivina (Indonésia), Dan Li (China), Nana Opoku (Gana) e Brigitte Baptiste (Colômbia).

Nos mais de 40 anos de história do Arte Pará, Paulo esteve à frente por mais de uma década, ajudando a consolidar o projeto como uma força central na produção contemporânea da Amazônia. Eu sonhava em ser mediadora do evento, e o via como um verdadeiro laboratório de arte contemporânea, no qual as múltiplas linguagens se encontravam e geravam diálogos potentes. No entanto, por muitos anos, a mediação era feita a partir de convites – e nunca participei da seleção. Terminar a graduação sem ter tido essa vivência me deixou com uma sensação de vazio.

Até que, em 2007, fui indicada por Alexandre Sequeira, meu professor na UFPA, para uma reunião na Fundação Romulo Maiorana (FRM). Naquele encontro, que contou com a presença de Daniela Sequeira e Roberta Maiorana, recebi o convite para coordenar o projeto educativo do Salão Arte Pará

Paulo Herkenhoff em seu apartamento, no Rio de Janeiro, 2025
imagem: Letícia Vieira/Itaú Cultural

Partir do sonho de ser mediadora para assumir a curadoria educacional foi motivo de celebração. Ao encontrar Paulo, sua gentileza e acolhida dissolveram meu nervosismo inicial. A escuta foi muito produtiva. Saí dali com a missão de assumir o projeto educativo, com uma extensão para escrever o encarte O liberalzinho, uma mídia pedagógica de cunho jornalístico instituída por Roberta Maiorana, presidente da FRM.

Esse encarte era um caderno ou suplemento do jornal O liberal, com um formato mais curto e com mais imagens e textos diversificados em comparação com o jornal principal, que tinha textos mais longos e pesados. Era voltado para o público infantojuvenil e buscava atrair leitores mais novos para o jornal. O suplemento ganhava uma nova vida durante o Arte Pará, com conteúdo dedicado inteiramente às obras e aos artistas da edição. Com uma tiragem de 5 mil exemplares, distribuídos pela Amazônia, o encarte era aguardado com expectativa por professores e educadores. Ainda naquele ano, Paulo solicitou um texto do educativo para integrar o espaço expositivo – algo que se tornou tradição a partir dali.

Minha participação se ampliou. Acompanhei de perto o processo de seleção das obras, estive presente nas montagens e anotei com atenção cada detalhe. A convivência com Paulo e Roberta foi uma escola de curadoria viva. Juntos, criamos um espaço de troca e aprendizado coletivo que fortaleceu o projeto educativo com um olhar cada vez mais crítico, sensível e comprometido.

Paulo na Amazônia

A atuação de Paulo Herkenhoff na Amazônia sempre foi intensa e transformadora. Desde os anos 1980, com o seminário As artes visuais na Amazônia (Manaus, 1983), promovido pela Fundação Nacional de Artes (Funarte), Paulo já articulava reflexões sobre uma “visualidade amazônica” – um olhar que vai além da paisagem e que trata a região como espaço simbólico, político e cultural. Nessa época, incentivou a produção de artistas como Osmar Pinheiro, Emmanuel Nassar e Luiz Braga. Esse impulso foi decisivo para a cena artística do Pará por um grande período.

Ao longo dos anos, Paulo também promoveu discussões sobre representatividade de gênero, raça, etnia, orientação sexual e

Se os museus são espaços simbólicos, deveriam ser espaços abertos

para a liberdade e o espírito crítico.”

Paulo Herkenhoff no simpósio Padrões aos pedaços: o pensamento contemporâneo na arte, promovido pelo Fórum Permanente em 2005

comunidades tradicionais – com especial atenção às mulheres e aos povos historicamente marginalizados. Trabalhar com ele nesse contexto me permitiu colaborar na construção de um discurso mais plural, mais representativo e profundamente conectado com os territórios.

Durante nossa parceria, participei de diversas ações com impacto direto em instituições culturais de Belém. Em 2017, por exemplo, uma articulação com o Fundo Z viabilizou a doação de obras para importantes espaços, como a Casa das Onze Janelas, o Museu do Estado do Pará (MEP), o Museu da Universidade Federal do Pará (Mufpa), o Museu de Arte de Belém (MAB) e a Coleção Amazoniana de Artes da UFPA. Em 2022, Paulo liderou uma mobilização – desta vez com os artistas participantes do Arte Pará – para doar obras ao Museu Nacional de Belas Artes (MNBA), no Rio de Janeiro.

Nesse processo, estive ao lado dele organizando arquivos, contatando artistas e acompanhando o transporte das obras de Belém até o destino final. Essa mobilização pelo MNBA é um projeto de vida para Paulo atualmente.

A jornada ao lado de Paulo me formou, literalmente. Curadoria colaborativa, mediação crítica, educação, articulação institucional, pesquisa e escuta: tudo isso aprendi com Paulo, ao longo de 17 anos de convivência. E não exagero ao dizer que Paulo tem uma importância única para nós, da Amazônia. Sua escuta ativa e seu diálogo com os povos florestânicos ampliaram, de forma crítica e sensível, a nossa compreensão de cultura, território, espiritualidade e identidade.

Além de tudo isso, Paulo esteve à frente de exposições emblemáticas, como Amazônia, a arte (Museu Vale, 2010), da qual foi consultor; Amazônia: ciclos de modernidade [Centro Cultural Banco do Brasil Rio de Janeiro (CCBB/RJ)], 2012]; e Pororoca – a Amazônia [Museu de Arte do Rio (MAR), 2014], esta última reunindo mais de 500 obras relacionadas à região. Uma pesquisa de quase uma década, que abordou questões ecológicas, políticas, sociais, estéticas e espirituais com uma profundidade rara.

A minha trajetória também ganhou uma dimensão que nunca imaginei. Chegar à primeira Bienal das Amazônias como curadora e ser chamada de “curadora-rio” por comunidades Tikuna na Colômbia,

Paulo Herkenhoff em seu apartamento, no Rio de Janeiro, 2025
imagens: Letícia Vieira/Itaú Cultural

por navegar entre os rios da Amazônia brasileira com esta missão de levar arte a esses territórios, é sem dúvida um caminho consolidado nas bases. Nasci às margens do Amazonas, e foi esse rio que moldou minha sensibilidade e levou meu corpo de rio adiante. A convivência com Paulo renovou essa correnteza, sempre viva e em movimento.

Se me perguntarem o que nos une, diria que compartilhamos a vontade de ampliar as vozes da Amazônia. Vozes que existem e são resistentes. Trabalhamos juntos para tornar visíveis os significados simbólicos, sociais e políticos da região – sempre com arte, pesquisa, afeto e compromisso.

Obrigada, Paulo, por sua amorosidade, sua escuta e sua dedicação à Amazônia e à arte.

Vânia Leal é natural de Macapá (AP) e mestra em comunicação, linguagem e cultura pela Universidade da Amazônia (Unama). Curadora educacional do projeto Arte Pará de 2007 a 2022, foi avaliadora do Rumos Itaú Cultural 2015-2016, integrou a comissão de seleção do Rumos Itaú Cultural 2019-2020 e foi curadora da Coleção Eduardo Vasconcelos, em Belém (PA), de 2021 a 2023, assim como da primeira Bienal das Amazônias, em 2022/2023. Integrou, ainda, a comissão julgadora do 32º Programa de exposições do Centro Cultural São Paulo (CCSP), em 2022. Atualmente faz parte do grupo de crítica do CCSP e é diretora de projetos especiais do Centro Cultural Bienal das Amazônias (CCBA). Vive e trabalha em Belém.

A Universidade das Quebradas e o Museu de Arte do Rio: escuta, travessia e arte

por Adriana Madeira Coutinho, Giselle Parno, Iris Mara Guardatti Souza e Rosangela Gomes

Uma escuta expandida

“[...] aprender o que está no ar, no debate cultural e dar as pistas [...] defendo esse meu jeito de trabalhar, de fazer um trabalho que alinhava pistas e confrontos, uma coisa, ao final, meio fragmentada.”1

A história da parceria entre a Universidade das Quebradas (UQ) e o Museu de Arte do Rio (MAR) é, antes de tudo, a história de um encontro raro. Daqueles encontros em que se busca não apenas somar esforços institucionais, mas permitir que formas distintas de saber se toquem e se transformem mutuamente. É a história de quando a arte se deixa atravessar pela educação, não como instrumento, mas como escuta, e a universidade se abre ao risco do desconhecido, do não planejado, daquilo que não cabe nos protocolos acadêmicos.

Foi nesse espírito que se encontraram Paulo Herkenhoff e Heloisa Teixeira (ex-Buarque de Hollanda2 e, neste texto, também Helô). Ambos vinham de longas trajetórias em campos distintos – ele na crítica e curadoria de arte, ela na literatura, nos feminismos e na crítica cultural –; no entanto, partilhavam uma ideia comum: a aposta na escuta como método e na desestabilização como condição do pensamento vivo.

Não se tratava de montar um projeto, mas de instaurar uma atmosfera, uma zona de contato entre mundos, na qual o gesto curatorial e o gesto pedagógico se confundissem.

Em 2013, a aula inaugural da UQ foi realizada no MAR. A universidade saía de seus muros e se inscrevia no coração de uma nova proposta museológica. Helô tinha um interesse genuíno e insistente em facilitar o acesso dos quebradeiros3 ao curso. Sabia que a barreira não era apenas simbólica, mas também geográfica, econômica e institucional. O MAR, com sua localização central e sua disposição para acolher, tornou-se peça-chave para a abertura de caminhos.

Não por acaso, no primeiro dia da UQ no MAR, a Sala 2.2 estava lotada, todas as cadeiras coloridas ocupadas, os corpos inquietos, os olhos atentos. Era mais do que uma aula, era o início de uma

travessia. Um gesto concreto de escuta e de deslocamento, o MAR se oferecia como campo de experimentação pedagógica e estética, desejando ser esculpido “de fora para dentro”, expressão que Paulo Herkenhoff usava com frequência para nomear o desejo de um museu atravessado pela cidade.

Um museu que se propunha a não saber de tudo e uma percepção de universidade que se construía justamente na fricção entre saberes. Não havia garantias nem roteiros, mas confiança no processo. E essa confiança vinha do reconhecimento mútuo: Paulo reconhecia na UQ uma inteligência coletiva profundamente enraizada na experiência urbana; Helô via no MAR a chance de experimentar uma universidade viva, atravessada pelas linguagens da arte, da rua e da escuta.

Este ensaio tem como propósito rememorar esse processo, celebrar seus protagonistas e refletir sobre os sentidos que emergem do entrelaçamento entre arte, educação e cidade. Ao olhar para o que foi vivido por Paulo e Helô, buscamos ativar uma memória feita de escuta forte, como dizia ela, de afeto, de atravessamento e de (re)invenção institucional. Porque, quando uma universidade e um museu se abrem ao risco do outro, não se trata apenas de partilhar um espaço, mas de construir, juntos, um outro mundo possível.

A Universidade das Quebradas e o Museu de Arte do Rio

A UQ nasceu de uma ideia simples e, por isso mesmo, radical. De um trabalho acadêmico de Numa Ciro4 orientado por Heloisa Teixeira surgiu a ideia de reunir artistas, intelectuais, educadores e agentes culturais das periferias em um espaço de formação acadêmica para que, por meio da troca, outros saberes fossem incorporados em um ambiente universitário. Coordenada por Helô e Numa, a UQ é um laboratório de tecnologias sociais que promove a troca de saberes entre a academia e as periferias urbanas, integrando experiências produzidas dentro e fora do ambiente acadêmico, valorizando a diversidade e a inclusão. Ela tem seu início em 2009, no âmbito do Fórum de Ciência e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como um projeto-piloto, mas, logo de cara, recusou-se a ser apenas um projeto de ensino ou um curso de extensão. Em vez disso, configurou-se como um espaço de circulação afetiva e intelectual.

Heloisa Teixeira, com sua escuta generosa e atenção aos gestos singulares, sempre insistiu que o verdadeiro valor da UQ estava naquilo que não podia ser completamente previsto ou enquadrado. Como declarou em depoimento gravado no 2º semestre de 2024,

A diferença da UQ é a escuta, é trabalhar o que já existe – saberes, talentos e sonhos locais. É estabelecer a fala, a interlocução, e deixar eles crescerem, ganharem voz, virem para a frente da cena. Nós promovemos a liberação de um novo sujeito, um novo empreendedor, um novo artista que se coloca – pois eles já são isso tudo, mas não têm a tecnologia, a competência de falar “eu sou”.

Essa fala sintetiza a filosofia da UQ, bem como explicita o que está em jogo em sua prática pedagógica: a construção de condições para que os sujeitos periféricos, além de participarem, possam se enunciar, ocupar a cena pública com consciência crítica e expressão plena.

No ano de 2013, a UQ migrou do Fórum de Ciência e Cultura para a Faculdade de Letras, consolidando seu espaço institucional dentro da universidade. Foi nesse mesmo ano que ocorreu o convite de Paulo Herkenhoff para que ela realizasse suas atividades no MAR. Com esse gesto, o curador reconheceu a UQ como um vetor legítimo de produção de conhecimento, de arte e de cultura e, mais ainda, como parceira de um museu que se propunha a ser atravessado pela cidade e por suas multiplicidades.

Em sua trajetória intelectual e artística, Paulo foi se tornando uma espécie de radar das potências da cultura brasileira, sobretudo aquelas que vibram à margem dos centros institucionais. Antes de assumir a direção do MAR, ele já era reconhecido como uma das vozes mais singulares da crítica e da curadoria brasileira. Com longa trajetória como crítico de arte, transitou entre instituições centrais do campo artístico, como o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio), a Bienal de São Paulo e o Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), sempre movido por um desejo de desestabilizar os cânones estabelecidos e propor novos olhares para a produção cultural brasileira. Seu trabalho na curadoria da Bienal de São Paulo de 1998, com o tema “Antropofagia”, é frequentemente lembrado como um marco na valorização de um pensamento artístico situado, que recusa a lógica colonial e propõe a ideia de um Brasil plural, híbrido e insurgente.

Paulo Herkenhoff e Heloisa Teixeira na Fundação
Getulio Vargas (FGV) no Rio de Janeiro, 2023
imagem: Leno Veras

No Rio de Janeiro, quando assumiu o desafio de pensar um museu na zona portuária, uma área historicamente associada à desigualdade social e ao apagamento da memória negra da cidade, Paulo pareceu ter visto ali a possibilidade de instaurar um novo paradigma museológico. O MAR nascia e, como laboratório de experimentações, sua proposta de “não saber de tudo” era, na verdade, uma recusa da lógica totalizante que organiza muitos museus como espaços de autoridade e consagração. Paulo propunha escutar a cidade, escutar seus sujeitos, escutar as histórias que os museus geralmente silenciavam.

Sua atenção à cultura popular nunca foi condescendente ou folclórica. Ao contrário, reconhece nas criações marginais, nos saberes periféricos e nas práticas informais densidade estética e epistêmica. Certamente, essa visão radical da arte como campo de transformação foi o que o aproximou da UQ. Ao encontrar em Helô Teixeira e nos quebradeiros uma ética semelhante, a aposta na escuta, no afeto, no saber que se constrói no coletivo, Paulo reconheceu parceiros de trabalho e cúmplices de mundo. A relação com a UQ não foi uma ação pontual, mas parte de um projeto maior de desinstitucionalização e abertura.

Foi nesse espírito que rolou o convite para a UQ “invadir” o MAR por meio da Escola do Olhar.5 Mas o convite não era uma concessão de espaço físico; ele enxergou na UQ a capacidade de tensionar os limites entre arte e vida, entre instituição e rua. Ao propor o “não projeto” e o “não saber” como fundamentos operatórios, Paulo sinalizava que um museu só tem sentido se for capaz de ser afetado pelas experiências vividas, pelas tensões sociais e pela criatividade das periferias.

A aula inaugural da UQ no MAR, em 2013, foi uma verdadeira aula-manifesto, conduzida por Paulo e Helô, sobre o papel da arte, da escuta e do saber que se desestabiliza para criar outras formas de mundo. Paulo propôs uma reconfiguração radical das instituições a partir da recusa de um saber previamente constituído. Nomeou essa atitude de “não projeto”, mas não como ausência de direção, e sim como uma recusa deliberada da rigidez institucional que sufoca a invenção. O MAR, segundo ele, não deveria se constituir como espaço de autoridade consagradora, mas como território em disputa, permeado pela vitalidade dos saberes populares, dos afetos, das histórias silenciadas que raramente adentram o museu.

Helô respondeu celebrando o fato de a UQ estar ali como coautora desse processo. Reafirmou que a UQ, desde sua criação, buscou operar entre a academia e a rua, entre a cultura erudita e a popular, entre a oralidade e a escrita, entre os modos instituídos e os modos insurgentes de produção de conhecimento. Naquele encontro, Paulo afirmou que “a cidade é o primeiro acervo do MAR”. E, se a cidade é acervo, o quebradeiro é o curador espontâneo, o mediador vivo entre os sentidos e as formas. O museu, assim, deve abrir-se à circulação desses corpos e vozes, tornar-se permeável à coreografia urbana dos saberes múltiplos.

A parceria entre a UQ e o MAR se instaurou, a partir de 2013, como uma temporada de convivência e experimentação entre artistas populares, quebradeiros, intelectuais, curadores e educadores.

A formação artística e intelectual acontecia na fricção entre linguagens, na multiplicidade dos repertórios e na circulação dos corpos. Essa parceria permaneceu até 2023, afetando e sendo afetada por esse “não projeto” de museu e todas as suas singularidades. A vivência gerou diversos efeitos: de um lado, os quebradeiros se apropriaram do espaço do museu, não como convidados, mas como sujeitos criadores, como corpos que reconfiguravam o espaço. De outro lado, o próprio MAR passou a se perceber como um lugar em transformação. A escuta ativa da instituição da potência dos quebradeiros impactou sua prática curatorial, educativa e institucional, influenciando o modo como o museu se pensava como espaço público.

Muitos quebradeiros relatam que o encontro com o MAR reconfigurou suas noções de pertencimento e que, pela primeira vez, estavam dentro de um museu não como espectadores ou visitantes ocasionais, mas como autores, como mestres, como provocadores. Esse é, talvez, um dos maiores efeitos dessa experiência, o deslocamento de posições. A lógica do “ensinar-aprender” deu lugar à do “aprender com”. O saber foi descentrado, a autoridade reconfigurada. Como escreveu Paulo, “não há mediação possível sem escuta real”. E foi exatamente isso que se instaurou a partir daquele convite, um campo de escuta real, no qual arte, educação e cidade se misturavam e faziam emergir outra ideia de museu, outra ideia de universidade, outra ideia de mundo. Paulo e Helô foram movidos pelo interesse nas possibilidades que o presente oferece, sem a certeza do que iria acontecer.

Com a palavra, os quebradeiros

A seguir, compartilhamos trechos de depoimentos de quebradeiros que viveram a experiência da UQ em diferentes edições e contextos. Seja no MAR, em salas de aula, em transmissões on-line ou nas ruas da cidade, o encontro com a UQ – e, sobretudo, com Heloisa Teixeira – abriu caminhos, despertou potências, reconectou histórias.

São depoimentos que revelam como a presença periférica, quando acolhida, transforma os espaços institucionais. E como a escuta, quando radical, se faz projeto político, pedagógico e afetivo.

A Universidade das Quebradas faz com maestria a conexão e a troca entre a periferia e a academia. Quando a UQ encontrou o MAR, em 2013, foi algo profundamente enriquecedor, porque muitos de nós nunca tínhamos tido acesso à experiência de estar na universidade e, ao mesmo tempo, em um museu. Estar no MAR provoca em nós a certeza de pertencimento. Em 2022, com a pauta “Arte preta”, sentimos que a proposta atingia seu real objetivo: o reconhecimento da cultura afro-brasileira como ato político e necessário. A UQ e o MAR, juntos, fazem uma linda história de acolhimento e valorização da periferia. (Sandra Lima, mestra6 quebradeira)

Foi de uma importância muito grande para mim aquele curso. Me deu a oportunidade de fazer uma curadoria para a Funarj [Fundação de Artes do Estado do Rio de Janeiro]. O MAR é muito legal, e essa edição com curadoria e filosofia preta me fez sentir parte daquela estrutura. Quando vou ao MAR, é como se eu conhecesse todos aqueles ambientes, todas aquelas pessoas. Eu só consegui a curadoria na Funarj porque tinha o diploma de curadoria e filosofia preta. Fantástico, né? (Mauro Cleverson da Silva Santo, mestre quebradeiro)

Em 2023, tive o privilégio de viver a edição da Universidade das Quebradas no MAR. Foi um ano de trocas intensas, descobertas e encontros inesquecíveis. Conhecer Heloisa Teixeira de perto, ser ouvida e incentivada por ela, foi algo que me transformou profundamente. Venho de uma trajetória marcada pela evasão escolar, pelo trabalho doméstico desde a infância e por

muitos recomeços. Mas a fala da Heloisa – “Você tem tanto, ainda, para viver” – me deu fôlego. Estudamos a invenção do Nordeste, arte preta, curadoria. Estive frente a frente com Maria Marighella, fiz um curso de curadoria, apresentei um trabalho no auditório do museu. Voltei a estudar, concluí um curso de roteiro, fiz formação para gestores no próprio MAR. Hoje trabalho com produção cultural e mantenho uma relação viva com o museu – uma porta que a UQ abriu. Eu não apenas participei da UQ, eu vivo a UQ todos os dias. Ela é um baú de tesouros que sigo abrindo, sempre com gratidão. E sigo porque sei que Heloisa esperava mais de mim. E eu vou entregar.

(Renata Ribeiro, mestra quebradeira)

Conheci Heloisa ainda como Heloisa Buarque de Hollanda, durante a pandemia, numa live. Na época, me chamou atenção o fato de ela emprestar sua imagem pública para dar visibilidade à luta das mulheres por segurança alimentar – era um momento muito duro, de luta por cestas básicas, por sobrevivência. E ali, naquela transmissão, ela estava com a gente. Acompanhar Heloisa foi inevitável depois disso. Porque aquela mulher branca, de classe alta, talvez até rica mesmo, não se escondia no seu conforto. Ela estava ali, comprometida. E foi assim que me aproximei da Universidade das Quebradas. Já tinha feito uma edição on-line, que foi muito importante para mim. Mas estar mais perto da UQ e da própria Helô me fez entender a profundidade do que ela construía, uma aliança verdadeira com quem está na luta, na base, no corre. (Clátia Vieira, mestra quebradeira)

Esses relatos testemunham uma experiência e reafirmam o acerto da escuta como método e a potência da arte como território de reconfiguração simbólica. Ao atravessarem o museu com seus corpos, suas vozes e seus saberes, os quebradeiros não apenas ocuparam um espaço, eles reinventaram a ideia de mediação, deslocaram fronteiras entre centro e margem e devolveram à cidade uma imagem de si mais plural, mais porosa, mais viva.

Paulo e Helô, artífices do comum

Paulo Herkenhoff e Heloisa Teixeira desafiaram os territórios que ocuparam, o museu e a universidade, abrindo-os ao risco, à dúvida,

à experiência do outro. Juntos, sabiam que nenhuma instituição é neutra; são estruturas que delimitam quem pode falar, o que é reconhecido como saber, o que pode ou não ser mostrado, ensinado, celebrado. Justamente por isso, apostavam na desestabilização como força criadora. A arte e a educação, para ambos, não eram territórios estáveis, mas campos de força em disputa, lugares vivos e contraditórios, constantemente recriados pelo gesto de quem ousa transitar entre margens.

Paulo, ao propor um museu do “não saber”, desafiou frontalmente a lógica autoritária que estrutura boa parte das instituições culturais. Abriu espaço para um curador que é também educador, para um museu que é também escola, praça pública, assembleia e território de afeto. Sua trajetória tem sido marcada pela coragem de inserir no centro da curadoria vozes e formas que a arte muitas vezes marginaliza, a cultura popular, a produção periférica, o gesto espontâneo, o saber não homologado, a linguagem do corpo, o improviso.

Helô, por sua vez, fez da UQ um projeto político-pedagógico em que a universidade deixa de ser o lugar da norma para se tornar o lugar do encontro, da escuta e da transgressão criadora. Sua trajetória intelectual é inseparável da luta por uma universidade mais plural, mais inquieta e mais sensível às margens como reconhecimento da centralidade dessas vozes para o pensamento contemporâneo.

Professora emérita da UFRJ, crítica literária, ensaísta, intelectual pública e criadora incansável de redes e dispositivos culturais, ela viveu sempre atenta aos deslocamentos do pensamento, aos gestos coletivos e à potência do que escapa.

Nos anos 1970, seu nome se consolidava como referência nos estudos sobre poesia marginal e contracultura; nas décadas seguintes, aprofundou-se em investigações sobre feminismos, pensamento decolonial, arte periférica, estética da performance, novas tecnologias e epistemologias insurgentes. Além de observar esses movimentos, ela os vivia por dentro, com abertura, escuta radical e compromisso político. Assumiu, com coragem e generosidade, a tarefa de traduzir o que o cânone não nomeava, de oferecer abrigo teórico e espaço público para experiências que até então permaneciam à margem da produção acadêmica.

Ao longo de sua vida intelectual, Helô nunca se contentou com a crítica textual ou com a leitura formalista. Para ela, pensar cultura era também intervir nela. A crítica, em seu exercício, não era um fim em si, mas um gesto de deslocamento, uma forma de abrir espaço para o que ainda não havia sido dito, de nomear o que estava à margem, de tensionar fronteiras entre saber e vida. Sua prática crítica era, ao mesmo tempo, estética e política – uma pedagogia da atenção ao inesperado. Essa sensibilidade, que a levava a mapear poetas e movimentos que escapavam dos circuitos oficiais, também a fez enxergar o potencial revolucionário dos saberes populares, das vozes negras e indígenas, das experiências vividas nas quebradas urbanas. Ao escutar o que a universidade tradicional não escutava, Helô não fazia concessões. Inaugurou, assim, um outro modo de pensar a formação, como uma travessia compartilhada.

Foi essa escuta que a conduziu à criação da UQ. Helô sabia que estava propondo muito mais do que um curso de extensão. Estava convocando a universidade a repensar suas estruturas por dentro, a se deixar transformar pela presença da cidade. A UQ, em sua concepção original, não era um projeto a ser aplicado aos quebradeiros, mas uma zona de convivência e transgressão mútua, onde ninguém ensinava sem também aprender. Uma convocação para que a universidade deixasse de representar as periferias e passasse a ser, ela mesma, atravessada por elas.

Helô acreditava que “a universidade pública só será verdadeiramente pública quando for acessada e atravessada por todas as vozes que compõem a cidade”. Não bastava abrir inscrições, era preciso reconfigurar os modos de escuta, rever os critérios de validação do saber, reescrever a arquitetura da autoridade. A UQ nascia como laboratório de reencantamento institucional, um território experimental em que as barreiras entre professor e aluno, arte e teoria, corpo e texto, rua e sala de aula eram deliberadamente borradas.

Para Helô, a experiência das quebradas deveria entrar no currículo não como objeto de estudo, mas como força ativa de pensamento e criação. Sua pedagogia era feita de atenção ao detalhe; ela nunca buscou “formar intelectuais” segundo modelos prontos, mas sim criar as condições para que cada sujeito pudesse se reconhecer em sua potência expressiva. Fazia um trabalho artesanal, tecia, dia após

A arte é a última fronteira da indignação.”

Paulo Herkenhoff no discurso de abertura da exposição

Modos de ver o Brasil: Itaú Cultural 30 anos, em 2017

dia, as redes de confiança que permitiam que a palavra do outro emergisse com força, dignidade e beleza. Ao mesmo tempo, fazia da teoria um instrumento de ampliação de mundo. Não era raro vê-la apresentar Judith Butler a uma travesti do subúrbio ou discutir estética benjaminiana com poetas da Baixada Fluminense. Não traduzia para “facilitar”, mas partia do princípio de que não há hierarquia de inteligências. Como gostava de dizer: é preciso oferecer o melhor da teoria aos corpos que dela foram excluídos.

Na UQ, Helô reinventou a docência. Sua autoridade não vinha da distância, mas da proximidade, não do acúmulo de títulos, mas da coragem de se expor ao risco do encontro. Foi uma professora que ensinou não a partir da certeza, mas do espanto. Sua escuta não era passiva, era uma prática ativa de abertura, de cuidado e de aposta no outro. A docência, para ela, era também curadoria – seleção de afetos, ativação de contextos, composição de cenas em que o saber pudesse emergir do vivido. Como ela mesma dizia, “o saber precisa ser desestabilizado para criar outros mundos”.

Seu legado não está apenas nos textos, livros ou programas que criou, mas nas pessoas que formou, nos laços que cultivou e nas formas que ajudou a reinventar. Está no modo como olhava para o outro, como quem reconhece, na presença alheia, uma potência ainda por se dizer. Helô foi arquiteta de escutas. E talvez por isso, mais do que formar quebradeiros, ela tenha ajudado a fazer emergir sujeitos que ousam se enunciar: artistas, pensadores, educadores e poetas que, graças à travessia da UQ, passaram a dizer com firmeza e delicadeza: “Eu sou”.

Ambos, Paulo e Helô, partilharam a crença de que a cultura é um campo de batalha, mas também de criação coletiva. Entendiam que a cultura não é apenas representação, mas disputa simbólica, espaço em que se decide quem tem voz, quem pode existir publicamente, quem pode imaginar o futuro. Por isso, a colaboração mútua é exemplar, não porque formaram uma parceria perfeita, mas porque aceitaram caminhar juntos em meio às imperfeições, às perguntas sem respostas, aos ruídos fecundos que emergem do encontro real. Não pensaram sua atuação como projeto pronto, com começo, meio e fim, mas como processo aberto, poroso, em constante (re)elaboração.

Juntos, foram artífices de uma outra ideia do comum, que não tutela, mas compartilha, que não representa, mas escuta, que não exige tradução, mas acolhe o idioma do outro. Um comum feito de travessia, fricção e risco. Um comum tecido com tempo, afeto e convivência. Essa é talvez a mais potente herança da relação entre Paulo e Helô, a reinvenção do comum como prática pedagógica, estética e política.

Nos anos que se seguiram, essa relação se aprofundou. Ainda que o curso não acontecesse de forma contínua no MAR, a UQ permaneceu, até 2019, como presença viva entre as vozes que atravessavam o museu. As edições posteriores ao marco inicial passaram a habitar, com naturalidade e força simbólica, os dois territórios, universidade e museu. O MAR tornou-se, para muitos quebradeiros, uma segunda casa, um lugar de acolhimento. Habitar esses espaços, antes distantes, produziu efeitos concretos, fortaleceu a autoestima, expandiu horizontes e provocou um empoderamento.

O ano de 2019 foi um marco na trajetória da UQ. Celebrava-se uma década de existência do projeto, e esse momento simbólico coincidiu com o último ciclo presencial antes da interrupção provocada pela pandemia de covid-19. Naquele ano, as aulas giraram em torno do eixo dos direitos humanos, trazendo para o centro do debate temas como o direito à cidade, os direitos civis, a educação e a cultura como dimensões fundamentais da cidadania.

Ao final daquele ciclo, foi concebido o evento comemorativo UQ 10+10, que ocupou o MAR com três dias de atividades intensas, as quais incluíram apresentações artísticas, seminários, exposições e exibição de documentários. Ainda que Paulo Herkenhoff já não integrasse o corpo diretivo do museu, sua presença simbólica seguia pulsante, pois a porosidade institucional que ele instaurou foi justamente o que tornou possível aquela ocupação. A realização do evento foi fruto de um trabalho conjunto entre as equipes da UQ e do MAR, em uma dinâmica verdadeiramente colaborativa que reafirmava a vocação do projeto para a escuta, a partilha e o comum.

Alunos e mestres quebradeiros participaram ativamente de toda a construção do evento, desde a curadoria até a composição das mesas do seminário, que contou com a presença de figuras públicas de destaque, como Renata Souza, deputada estadual e militante dos

direitos humanos; Eliana Sousa, fundadora da Redes da Maré; Tainá de Paula, vereadora e arquiteta atuante na pauta do direito à cidade; e Vilma Guimarães, educadora premiada. Pela primeira vez, a UQ ocupava, além dos espaços formativos do MAR, como a Escola do Olhar, as áreas expositivas. Essa ampliação territorial reafirmava o princípio fundante de Paulo de que o museu precisa ser esculpido de fora para dentro.

Depois da pandemia de covid-19, em 2022, quando a necessidade de espaços comuns, públicos e afetivos se tornava ainda mais urgente, a UQ voltou a ocupar o MAR. A travessia iniciada em 2013 ganhava nova densidade e se expandia em potência. A proposta de “invasão” do MAR, como Paulo e Helô nomearam com afeto e humor político, se reatualizava. Com o apoio da Escola do Olhar e sob a coordenação do curador Marcelo Campos, a UQ retornou ao museu com o tema “Arte preta: filosofia, história e curadoria”.

Essa escolha temática era, também, uma tomada de posição. Tratava-se de pensar a arte preta não apenas como expressão estética, mas como campo epistêmico, como filosofia vivida, como forma crítica de habitar o espaço institucional. As aulas aconteciam entre o auditório do MAR e os andares expositivos, em diálogo direto com as obras, os arquivos e a própria arquitetura do museu. Curadores, artistas e intelectuais negros, como Renato Noguera, Flávio dos Santos Gomes e Keyna Eleison, foram convidados a compartilhar suas trajetórias e experiências.

A formação propunha uma mudança de lugar para os quebradeiros, que passavam de espectadores a autores, de visitantes a pensadores de acervo. Essa transformação garantia a eles o direito à palavra crítica, à construção de narrativas visuais, à formulação de um pensamento curatorial situado. O museu deixava de ser vitrine para tornar-se laboratório. O curso culminou na realização do trabalho final Ter histórias e territórios, uma exposição-conceito apresentada ao público como síntese viva do processo coletivo vivido nas aulas. A mostra ocupou diversos espaços do museu (auditório, sala de exibição, pilotis) e tornou visível a escuta como método, o corpo como arquivo, a curadoria como ato de cuidado. A exposição também funcionou como homenagem à ética de Paulo Herkenhoff, que sempre insistiu na importância de um museu atravessado por outras lógicas, outras linguagens e outras presenças. Seu legado se revelava ali como memória e também como inspiração.

Com o curso Invenção do Nordeste, em 2023, a parceria entre a UQ e o MAR se manteve viva. Concebido em colaboração com pesquisadores, artistas e educadores de diferentes estados, propôs uma reflexão crítica sobre os imaginários construídos em torno do Nordeste brasileiro. A proposta partia da recusa da imagem cristalizada do Nordeste como categoria folclórica ou homogênea, uma representação marcada, historicamente, pelo exotismo e pelo apagamento da complexidade regional. A UQ, nesse movimento, reafirmava sua aposta no desenquadramento simbólico, tensionando o modo como o Brasil institucional pensa suas regiões e desigualdades. Foram abordados temas como colonialidade, oralidade, estética do sertão, tradição e invenção, sempre articulando teoria crítica e saber vivido. Para muitos quebradeiros, essa circulação entre saberes e territórios abriu janelas inesperadas.

Mas tudo isso só foi possível graças à visão generosa, ousada e profundamente democrática de Paulo, que desde o início reconheceu na UQ sua potência transformadora. A aposta na escuta, na circulação dos saberes e na desierarquização das instituições foi o que permitiu a longa parceria entre o museu e a universidade. O retorno ao MAR no pós-pandemia foi uma reatualização radical do desejo que uniu Paulo e Helô.

Os últimos anos da UQ no MAR reafirmaram que a arte, quando aliada à escuta, pode se tornar lugar de reinvenção coletiva; e que o museu, quando se deixa contaminar por saberes insurgentes, se torna mais vivo e necessário. O legado dessa parceria não está apenas nos eventos registrados, nos relatórios ou nas fotografias de arquivo. Ele vive nos corpos que se encontraram, nos saberes que se tocaram, nas ideias que se expandiram. Vive, sobretudo, na lembrança viva do que pode ser uma instituição que se deixa afetar e, justamente por isso, se torna mais humana. Num tempo em que a educação, a cultura e o pensamento crítico são constantemente ameaçados por discursos autoritários e políticas excludentes, a lição que tiramos dessa travessia é de que a resistência começa pela escuta. Criar é partilhar. Ensinar é se deixar transformar.

A cidade como sala de aula

A memória do encontro entre a UQ e o MAR, além de lembrança, é também um horizonte ético e pedagógico. Uma espécie de bússola

para tempos sombrios, em que o pensamento crítico é atacado e os saberes populares seguem sendo tratados como ruído. A parceria entre o MAR e a UQ nos revela que as instituições públicas vivem em franca disputa e, quando se abrem ao imprevisível, à alteridade, podem se tornar território do comum. Ao entrarem no museu como mestres, curadores e criadores, os quebradeiros não estavam sendo incluídos – estavam, como disse uma quebradeira, “desorganizando a ordem das coisas para poder ver o mundo melhor”.

A travessia vivida entre a UQ e o MAR foi a invenção de novas formas de existir na cultura, a demonstração de que o museu pode ser escola e a escola pode ser cidade. Aprendemos, nessa caminhada, que o conhecimento se dá no encontro, que a escuta é um método, que o afeto é uma forma de rigor e que os saberes das quebradas, dos morros, das vielas, das margens não são apêndices do conhecimento acadêmico, mas modos legítimos de pensar, de criar, de dizer o mundo. E, quando esses saberes entram no museu ou na universidade, não é apenas para aprender, mas muitas vezes para ensinar.

Esse campo de experimentação construído a quatro mãos pulsa em cada ação pedagógica que escuta antes de explicar, em cada curadoria que se deixa contaminar pela cidade, em cada política pública que reconhece no saber popular uma forma legítima de existência. A cidade, afinal, é a grande sala de aula e seu currículo é feito de vida, contradição, beleza e luta. Relembrar a parceria entre a UQ e o MAR é saber que ainda é possível fazer do encontro uma prática política, da arte um gesto de escuta, da universidade um lugar de transformação. E, como disse Paulo naquela aula inaugural, “tudo que se faz no campo da expressão é um significante à espreita de quem possa projetar um significado”. Como dizia Helô, “só há saber verdadeiro quando se aceita o risco de não saber”.

Talvez seja aí – nesse risco, nessa escuta, nesse comum – que tudo começa. De novo.

Adriana Madeira Coutinho é professora substituta de literatura na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), doutora em ciência da literatura pela mesma instituição e pesquisadora do programa Pós-Doutorado Nota 10, da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio

de Janeiro (Faperj). Trabalha na coordenação pedagógica da Universidade das Quebradas, do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC) da UFRJ.

Giselle Parno é pesquisadora do Programa Avançado de Cultura Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PACC/UFRJ), artista, doutora em geociências pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e mestra quebradeira.

Iris Mara Guardatti Souza atua como técnica em assuntos educacionais na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Arte-educadora, pedagoga e mestra em engenharia de produção, com ênfase em inovação social, trabalha na coordenação institucional da Universidade das Quebradas, do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC) da UFRJ.

Rosangela Gomes atua como técnica em assuntos educacionais na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pedagoga e especialista em desenvolvimento de recursos humanos na área de educação pela mesma instituição, trabalha na coordenação executiva da Universidade das Quebradas, o Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC) da UFRJ.

Notas

1. HOLLANDA, H. B. Tudo aqui que está no ar. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 13 dez. 1980. Caderno B.

2. FORTUNA, Maria. “Não vou morrer Heloisa Buarque de Hollanda”, diz uma das maiores pensadoras do feminismo brasileiro, que não quer mais ser reconhecida pelo sobrenome do marido O Globo, Rio de Janeiro, 17 jul. 2023. Disponível em: oglobo. globo.com/cultura/noticia/2023/07/17/nao vou morrer heloisa buarque de hollanda diz uma das maiores pensadoras do feminismo brasileiro que nao quer mais ser reconhecida pelo sobrenome do marido.ghtml. Acesso em: 6 jul. 2025.

3. Os alunos da Universidade das Quebradas são carinhosamente chamados de quebradeiros.

4. Cantora, compositora, atriz e psicanalista, Numa Ciro é conhecida na cena underground por protagonizar o que a percussionista Lan Lanh caracteriza como “monólogos cantantes”.

5. A Escola do Olhar é uma escola que é um museu e, ao mesmo tempo, um museu que é uma escola, integrando arte e educação. Polo de pensamento e de formação permanentes, o espaço é voltado especialmente para a prática e a reflexão a partir das relações entre educação e arte.

6. “Mestre quebradeiro” refere-se ao quebradeiro que retorna ao projeto e atua na orientação de seus pares.

Ficha técnica

Concepção e realização Itaú Cultural

Curadoria Itaú Cultural e Leno Veras

Projeto expográfico Fred Teixeira

Projeto de acessibilidade Itaú Cultural

FUNDAÇÃO ITAÚ

Presidência do Conselho Curador Alfredo Setubal

Presidência da Fundação Eduardo Saron

Comunicação Institucional e Estratégica

Gerência executiva Ana de Fátima Sousa

Coordenação de estratégias digitais e gestão de marca Renato Corch

Edição de fotografia André Seiti e Letícia Vieira

Redes sociais Daniele Cavalcante (estagiária) e Jullyanna Salles

Coordenação de comunicação institucional Alan Albuquerque

Comunicação institucional Caroline Sant’Ana e William Nunes

Eventos Caroline Campos, Gabriela Araújo e Simoni Barbiellini

ITAÚ CULTURAL

Superintendência Jader Rosa

Artes Visuais e Acervo

Gerência Sofia Fan

Coordenação de artes visuais Juliano Ferreira

Produção executiva Angélica Pompílio, Bianca Selofite, Renata Baltar e Thaissa Lamha

Informação e Difusão Digital

Gerência Tânia Rodrigues

Coordenação de documentação Felipe Albert

Pesquisa Ana Luisa Constantino (até maio de 2025), Caio Meirelles Aguiar, Laerte Fernandes (até novembro de 2024), Matias Monteiro e Renan de Figueiredo (até maio de 2025)

Criação e Plataformas

Gerência André Furtado

Coordenação de criação Carla Chagas

Coordenação de produção Kety Fernandes Nassar

Produção audiovisual Amanda Lopes

Captação de imagem Karina Fogaça e Teia Documenta (terceirizada)

Edição de imagem Teia Documenta (terceirizada)

Som direto Raquel Vieira (terceirizada)

Edição de som e mixagem Ana Paula Fiorotto

Interpretação em Libras de conteúdo audiovisual Mão Preta (terceirizada)

Revisão, transcrição e sincronização de legendas Alume Comunicação e Acessibilidade (terceirizada)

Motion design João R. (terceirizado)

Edição e produção de conteúdo Heloísa Iaconis e Icaro Mello

Projeto gráfico Yoshiharu Arakaki

Tradução Denise Yumi (terceirizada)

Transcrição de texto Nelson Visconti (terceirizado)

Comunicação visual Iara Pierro de Camargo (terceirizada)

Produção gráfica Lilia Góes (terceirizada)

Produção editorial Bruna Guerreiro

Supervisão de revisão de texto Tatiane Ivo

Revisão de texto Karina Hambra e Rachel Reis (terceirizadas)

Mediação Cultural

Gerência Tayná Menezes

Coordenação Mayra Oi Saito

Equipe educativa Ana Beatriz Carvalho, Bianca Martino, Edinho dos Santos, Edson Bismark, Gleice Kely, Julia Fernandes, Matheus Maia, Monica Abreu

Silva, Rafael de Oliveira e Vitor Narumi

Equipe de atendimento Fefa Ferreira, Matheus Paz, May Dias, Victor Soriano e Vinícius Magnun

Infraestrutura e Produção

Gerência Gilberto Labor

Coordenação de produção de exposições Vinícius Ramos

Produção Carmen Fajardo, Erica Pedrosa, Iago Germano, Julia Frezza, Rodrigo Auba (estagiário), Sarah Moreira (estagiária), Savi Albuquerque e Wanderley Bispo

Consultoria Jurídica

Gerência Julia Baptista Rosa

Coordenação Daniel Lourenço

Advogados responsáveis Eduardo Costa Lima e Matheus Matos Paz

Estagiárias Barbara Gonzaga Acerbi e Yasmin Alcantara de Oliveira Soares

AGRADECIMENTOS

Adriana Madeira Coutinho, Ailton Krenak, Aline Siqueira, Amanda Zein Sammour, André Bezerra, Andrea Santos, Angélica Mantovani, Anna Maria Maiolino, Arquivo Wanda Svevo/Fundação Bienal de São Paulo, Ascânio MMM, Beatriz

Oliveira da Luz, Bruno Oliveira, Burle Marx (in memoriam), Cammila Ferreira, Centro de Documentação e Pesquisa da Fundação Nacional de Artes (Cedoc/ Funarte), Cildo Meireles, Coleção Patricia Phelps de Cisneros, Cora Brito, Cristiano Vasconcelos, Documenta de Kassel, Emanoel Araujo (in memoriam), Estevão

Parreiras, Fernand Léger (in memoriam), Fernando Leite, Folhapress, Francisco Galeno (in memoriam), Georges Marques, Giselle Parno, Guilherme Altmayer, Heloisa Teixeira (in memoriam), Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA/USP), Instituto Tomie Ohtake, Iris Mara Guardatti Souza, Janaína Miranda, Jenny Holzer, Jornal do Brasil (Rio de Janeiro), Juliana Caldas, Lana de Carvalho, Lasar Segall (in memoriam), Levi Veras, Liana Lessa, Lisette Lagnado, Lívia Gonzaga, Louise Bourgeois (in memoriam), Lucas Albuquerque, Lui Veras, Luiz Chrysostomo, Lula Buarque, Maju Veras, Marcelo Araújo, Margareth de Moraes, Maria de Fátima Rocha, Maria Fernandes, Martim Pelisson, Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC/USP), Museu de Arte Contemporânea de Niterói (MAC Niterói), Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR), Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs), Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio), Museu Nacional de Belas Artes (MNBA), Olavo Rebelo, Paulo Bruscky, Paulo Roberto Santi, Pedro Buarque, Programa Avançado de Cultura Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PACC/UFRJ), Reinaldo Alves, Rosangela Gomes, Sandra Cinto, Sesc São Paulo, Siron Franco, Soraia Cals, Stefania Paiva, Tania Rivera, The Easton Foundation & Louise Bourgeois Archive, Thiago Linhares, Tomie Ohtake (in memoriam), Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro), Tunga (in memoriam), Vânia Leal, Ylla Gomes e Yuri Braga

O Itaú Cultural (IC) e a curadoria agradecem a todos os fotógrafos que cederam imagens e a todos os artistas, seus sucessores e colecionadores que autorizaram a exibição de suas obras e as emprestaram para a exposição.

O IC realizou todos os esforços para encontrar os detentores dos direitos autorais incidentes sobre as imagens e obras aqui expostas e publicadas, bem como das pessoas fotografadas. Caso alguém se reconheça ou identifique algum registro de sua autoria, solicitamos que entre em contato pelo e-mail atendimento@itaucultural.org.br.

O IC integra a Fundação Itaú. Saiba mais em: fundacaoitau.org.br

Dados internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Fundação Itaú | Itaú Cultural

Ocupação Paulo Herkenhoff / organizado por Itaú Cultural ; vários autores .São Paulo : Itaú Cultural , 2025. il.: 17 x 24 cm ; 184 p.

ISBN: 978-85-7979-200-7

1. Herkenhoff, Paulo. 2. Artes visuais. 3. Gestão cultural. 4. Curadoria.

5. Colecionismo. I. Instituto Itaú Cultural. II. Fundação Itaú. III. Título.

CDD 709.2

Bibliotecário Fernando Galante Silva CRB-8/10536

Ocupação Paulo Herkenhoff sábado 30 de agosto a domingo 23 de novembro de 2025 terça a sábado, das 11h às 20h domingo e feriado, das 11h às 19h

livre para todas as idades

Entrada gratuita.

Itaú Cultural

Avenida Paulista, 149, São Paulo/SP piso multiúso

fonte: sofia pro papéis: miolo em Pólen soft 70 g/m2 e capa dura

Impresso pela IPSIS tiragem: 2.000 exemplares agosto de 2025

@itaucultural

Entrada gratuita.

Itaú Cultural

Avenida Paulista, 149, São Paulo/SP

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