AVANÇOS NA LEGISLAÇÃO
É fundamental que existam leis que incentivem museus, teatros e centros culturais a garantir acessibilidade física e comunicacional, além de envolver pessoas com deficiência nas decisões de programação e curadoria. Mesmo com legislação, o acesso à cultura ainda é desigual.
Quando falamos de Brasil, a maior parte das atividades culturais se concentra nos grandes centros urbanos, enquanto regiões menores ou mais afastadas recebem poucas oportunidades. Essa diferença não acontece por acaso: ela está ligada a fatores sociais, econômicos e também territoriais, formando um desafio complexo que exige políticas públicas consistentes e iniciativas de longo prazo.
Esses fatores nos lembram como é importante que haja legislação, assim como aplicação e fiscalização. O período entre 2015 e 2025 foi um marco para a consolidação de direitos das pessoas com deficiência no Brasil, inclusive no campo da cultura:
→ 2015 – Estatuto da Pessoa com Deficiência
[Lei Brasileira de Inclusão (LBI)]
A Lei Brasileira de Inclusão garante que todas as pessoas com deficiência tenham acesso pleno e utilização digna de espaços, serviços e oportunidades, incluindo cultura, educação, saúde, segurança, lazer e trabalho. O conceito de acessibilidade vai além da entrada física: significa autonomia, segurança e participação efetiva em todas as esferas da vida social. Embora leis anteriores já tratassem desse tema, a LBI se destaca por sua abrangência, robustez e aplicabilidade, consolidando direitos e responsabilidades de forma integral.
2018-2020 – Revisão da ABNT NBR 9050
A Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) estabelece padrões técnicos no Brasil, e a NBR 9050 define critérios de acessibilidade em edificações, mobiliário e espaços urbanos. Criada em 1985 e revisada em 1994, recebeu entre 2018 e 2020 atualizações que incorporaram exigências contemporâneas, abrangendo desde portas e corredores até sinalização tátil, pisos, elevadores e mobiliário. A norma orienta todas as construções, incluindo os equipamentos culturais, garantindo que sejam acessíveis, seguros e utilizáveis por todas as pessoas.
→ 2021-2022 – Exigência de recursos de acessibilidade em editais culturais
Editais públicos de fomento à cultura começaram a incluir cláusulas que tornaram obrigatória a presença de Libras, legendagem, audiodescrição e outros recursos. Isso ampliou a discussão sobre acessibilidade no setor cultural e ajudou a qualificar projetos.
2023 – Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência – Viver sem Limite II
Reeditado pelo governo federal, é um programa que envolve saúde, educação, cultura e direitos humanos, com foco em ampliar a acessibilidade, a empregabilidade e a inclusão. No campo cultural, prevê investimentos em acessibilidade em equipamentos e eventos, além de estimular a participação de artistas com deficiência.
→ 2022-2023 – Leis Paulo Gustavo e Aldir
Blanc II (Pnab)
Embora tenham objetivos mais amplos de fomento à cultura, ambas as leis incorporaram ações afirmativas para pessoas com deficiência, como cotas em editais e a exigência de medidas de acessibilidade nos projetos financiados. A Lei Paulo Gustavo foi além, destacando
também a importância da linguagem acessível, garantindo que o acesso à informação seja claro e compreensível para todas as pessoas.
→
2025 – Novo Plano Nacional de Cultura
Participativo
A proposta traz a acessibilidade como prioridade em toda a cadeia cultural. Isso inclui desde políticas públicas específicas até a formação de profissionais, a adaptação de espaços físicos e digitais e o apoio direto a projetos inclusivos. O plano também busca dar mais representatividade a grupos historicamente invisibilizados, criar indicadores para acompanhar os avanços e estimular parcerias entre diferentes áreas, de modo a fortalecer a acessibilidade cultural de forma integrada e duradoura.
Os desafios persistem: ainda existem lacunas entre o que a lei prevê e o que acontece na prática. Muitos projetos cumprem a norma de maneira superficial, sem considerar a diversidade de públicos. Além disso, a fiscalização é insuficiente e a desigualdade regional acentua o problema, pois espaços em grandes capitais avançam mais rapidamente do que centros culturais em regiões periféricas ou municípios não metropolitanos.
Esta seção se concentrou nos avanços entre 2015 e 2025. Para conhecer melhor o contexto anterior a esse período, consulte a pesquisa “Somos plurais”.
SOMOS PLURAIS
Publicada em 2021, a pesquisa “Somos plurais” foi uma iniciativa realizada para ampliar o debate sobre acessibilidade cultural no Brasil. Desenvolvida pelo IC em parceria com o Instituto Alana, a pesquisa apresentou dados e relatos e apontou que a maior barreira para pessoas com deficiência não é a falta de interesse pela cultura, mas sim a ausência de condições para participar dela plenamente.
Entre os pontos centrais revelados pela pesquisa estão:
→ a percepção de que muitos espaços culturais ainda eram planejados sem considerar a acessibilidade desde o início, e só posteriormente eram adaptados, em vez de serem concebidos já acessíveis;
→ a escassez de políticas públicas que garantissem a presença de artistas com deficiência como protagonistas das programações;
→ o impacto das barreiras atitudinais, que se manifesta quando, muitas vezes, o público e até profissionais da cultura presumem que pessoas com deficiência não têm interesse ou capacidade de participar ativamente.
Ao trazer o tema para o centro das discussões, a pesquisa contribuiu para reforçar que a acessibilidade não é detalhe, mas uma exigência, em consonância com marcos legais como a Lei Brasileira de Inclusão, normas técnicas e a luta histórica dos movimentos de pessoas com deficiência por direitos plenos e participação social.
CULTURA DEF
Um dos conceitos mais importantes dos últimos anos é o de cultura DEF. O termo foi criado e reivindicado por artistas e ativistas com deficiência. Carolina Teixeira, artista e pesquisadora, explica em sua tese de doutorado A estética da experiência: trajetórias do corpo deficiente na cena da dança contemporânea do Brasil e dos Estados Unidos (2016) que o termo DEF é “defendido como uma espécie de status ‘anti-quo’, uma negação à expectativa de aceitação e da justificação de nossas capacidades, fossem estas físicas, visuais, auditivas ou mentais”.
O conceito propõe que a cultura seja pensada a partir da perspectiva de pessoas com deficiência, valorizando suas experiências, seus corpos e suas capacidades como centrais na criação, fruição e gestão cultural, rompendo com padrões normativos e fortalecendo o protagonismo, a autonomia e a diversidade estética.
Protagonismo DEF
É a participação ativa e central de pessoas com deficiência em todas as etapas de criação, gestão e fruição cultural – não apenas como público, mas como artistas e profissionais em cargos de liderança e poder de decisão, como os de curadoria, gestão e produção.
Estela Lapponi, performer, descreve que ser uma pessoa DEF envolve “outra estética de estar no mundo” e que essa estética gera também uma nova ética. Em outras palavras, a cultura DEF é não apenas sobre garantir acesso, mas também sobre transformar a própria criação artística, incorporando recursos de acessibilidade como parte da linguagem estética da obra, e não como mero apêndice.
Artistas DEF, como Estela, estão experimentando cada vez mais as possibilidades criativas com obras que integram a audiodescrição à narrativa e incorporam sinais, sonoridades e outras linguagens estéticas que alcançam mais pessoas.
Essa nova abordagem sobre a presença de pessoas com deficiência rompe com a percepção assistencialista que historicamente marca o debate sobre acessibilidade.
ACESSIBILIDADE E ACESSIBILIZAÇÃO
Para compreender a relevância dessa transformação de perspectiva, é essencial reconhecer a diferença entre dois termos:
Acessibilidade acontece quando o espaço, serviço ou conteúdo é concebido desde o início para atender todas as pessoas, sem que ninguém precise de adaptações posteriores para participar plenamente. É como projetar um prédio já com rampas, elevadores e sinalização tátil, desenvolver um site que funciona de forma acessível para leitores de tela e navegação intuitiva ou criar um evento cultural que incorpora Libras, audiodescrição e legendas como parte integrante da experiência.
→ Acessibilização é o processo de adaptar um espaço ou conteúdo depois que ele já foi concluído, porque não foi concebido de forma abrangente. Isso pode resultar em soluções de adaptação, como instalar uma rampa, colocar legendas às pressas em um vídeo já finalizado ou contratar intérprete de Libras somente no dia do evento.
É preciso cautela para não perpetuarmos iniciativas culturais que tratem a acessibilidade de forma limitada, adicionando recursos só depois que o projeto já está pronto. Com isso, as soluções ficam incompletas e não atendem plenamente à maior diversidade possível de pessoas.
O desafio, portanto, não é simplesmente descartar a acessibilização, ainda necessária em um mundo onde a maioria das edificações e dos conteúdos foi criada sem considerar a diversidade, mas compreender que ela sozinha não basta. A meta deve ser avançar para uma acessibilidade pensada desde a origem, que se mostra mais coerente, vantajosa e sustentável. Trata-se de ir além da eliminação pontual de barreiras físicas ou técnicas e assumir uma transformação de atitudes, práticas e valores sociais que garanta a plena participação das pessoas com deficiência na vida cultural.
Isso significa criar ambientes e práticas artísticas mais acolhedoras, que respeitem a diversidade corporal, comunicacional e sensorial. Essa cultura propõe que a acessibilidade seja pensada de forma transversal, envolvendo todas as áreas de um espaço cultural – da arquitetura à comunicação, do atendimento ao conteúdo – para assegurar autonomia, circulação e acesso à informação. É um processo coletivo e transformador, que modifica padrões sociais já estabelecidos e fortalece a participação ativa de pessoas com deficiência em todas as dimensões da cultura.
capa Marcos Abranches em cena do espetáculo Corpo sobre tela, realizado durante a programação da mostra ||entre|| arte e acesso em 2018 imagem: Agência Ophelia
Falar de acessibilidade em instituições culturais não é apenas garantir rampas, legendas ou intérpretes. Esses recursos são fundamentais, mas as boas práticas vão muito além: elas envolvem transformar a maneira como pensamos, produzimos e compartilhamos cultura. São também um conjunto de ideias em constante construção.
Nas visitas a instituições culturais, ainda é comum existir um descompasso entre ter o recurso e usá-lo. Tablets com Libras ficam guardados, obras táteis não são apresentadas, a sinalização é confusa e as informações acessíveis não chegam ao público.
Muitas vezes, os recursos de acessibilidade parecem escondidos. Isso pode acontecer porque eles não são tratados como prioridade ou porque curadores e equipes de montagem os veem como algo fora do padrão estético da exposição. Mas, quando são bem aplicados, esses recursos ampliam a experiência para uma diversidade maior de pessoas, com ou sem deficiência. Para que funcionem de verdade, é essencial que estejam bem sinalizados, sejam fáceis de usar e se integrem ao percurso da visita, como parte natural da experiência cultural.
Por essa razão, é muito importante conhecer iniciativas que promovem a acessibilidade e valorizam a produção artística de pessoas com deficiência. Um bom exemplo é o Festival Acessa BH, em Belo Horizonte (MG), importante evento que celebra artistas DEF. O festival é gratuito e totalmente acessível e reconhece artistas com deficiência como protagonistas em diferentes linguagens artísticas.
A programação inclui teatro, dança, música, audiovisual, performances, oficinas, rodas de conversa, lançamento de livros e muito mais. Todos os eventos contam com recursos de acessibilidade, como Libras, audiodescrição, legendas, abafadores de som, salas sensoriais e equipe especializada.
Fora do Brasil, também existem experiências importantes.
O Museu Guggenheim, nos Estados Unidos, oferece um guia detalhado para pessoas com diferenças de processamento sensorial, proporcionando informações que garantem maior previsibilidade e permitem que cada visitante se prepare melhor para a experiência. Já o Festival Fringe de Edimburgo, na Escócia, disponibiliza informações completas sobre barreiras físicas, iluminação e condições de acessibilidade em cada espaço, permitindo que cada pessoa avalie de forma autônoma a melhor maneira de participar.
Na Inglaterra, há várias iniciativas que unem acessibilidade, criação e estética. Deptford Literature Festival [Festival Literário de Deptford] valoriza escritores surdos e com outras deficiências tanto em sua programação principal quanto em ações paralelas organizadas pela Spread the Word, ONG dedicada à literatura inclusiva. Um dos pontos de destaque é o Disabled Poets Prize [Prêmio Poetas com Deficiência], criado em 2023 por Jamie Hale, bolsista da Jerwood Compton Poetry. O prêmio reconhece as melhores obras de poetas surdos e com deficiência que vivem no Reino Unido, dando visibilidade a esses trabalhos.
Também na Inglaterra, o coletivo DYSPLA se dedica à produção de arte feita por pessoas neurodivergentes, com foco em experiências sensoriais. Em sua exposição Enfield Is Disabled [Enfield é Deficiente], poesia e escultura digital se misturam em diferentes camadas.
O público pode ler, ouvir ou tocar cada história, vivenciando a obra por meio da visão, do som e do tato.
No mesmo país, o National Disability Arts Collection & Archive [Coleção e Arquivo Nacional de Artes para Pessoas com Deficiência], ou NDACA, atua para tornar os espaços culturais mais acessíveis. A instituição cria programas que utilizam, inclusive, recursos digitais voltados para diferentes tipos de deficiência. Além disso, o NDACA promove a visibilidade de artistas com deficiência e de suas obras, preservando e celebrando suas trajetórias tanto artísticas quanto ativistas.
De forma prática, o NDACA mantém um site que reúne milhares de materiais, como imagens, filmes de história oral, animações, artigos e conteúdos educativos, sobre cultura DEF no Reino Unido desde os anos 1960. Em 2019, a organização inaugurou uma ala física na Buckinghamshire New University. Esse espaço, amplamente acessível, guarda o acervo físico e oferece experiências de pesquisa e ensino sobre artes da deficiência.
Boas práticas não se limitam ao espaço físico das instituições. O núcleo educativo do Instituto Moreira Salles (IMS), por exemplo, criou o projeto Diálogos em Libras, um ciclo de vídeos que promove reflexão e diálogo com a comunidade surda e o público em geral. Eles estão disponíveis no YouTube e no Instagram do IMS.
O Centro Cultural Bom Jardim (CCBJ), em Fortaleza (CE), atua há muitos anos com destaque na promoção da acessibilidade atitudinal. A equipe desenvolve cursos, oficinas e uma programação contínua com forte proposição DEF, além de realizar capacitações voltadas para a periferia. Esse trabalho funciona como um verdadeiro movimento de resistência cultural.
Entre suas iniciativas, o CCBJ produziu a “Cartilha de acessibilidade atitudinal”, que se destaca pela simplicidade e objetividade, tornando esse tema fácil de compreender e aplicar.
A cultura DEF está no coração dessas práticas. Ela propõe um deslocamento fundamental: em vez de aplicar acessibilidade apenas como recurso técnico para o público, trata-se de reconhecê-la como linguagem estética e como campo de protagonismo criativo. É daí que nascem experiências em que Libras, audiodescrição, legendas, materiais táteis e dispositivos interativos são parte da obra. Por exemplo, iniciativas que integram intérpretes à cena ou blocos carnavalescos criados por pessoas surdas que reposicionam a própria ideia de musicalidade, como o Bloco Vibramão, no Carnaval de rua de São Paulo (SP). Em 2019, foi criado o Sem Barreiras – Festival de Acessibilidade e Artistas com Deficiência , uma iniciativa da Secretaria Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência da capital paulista. O festival desempenhou um papel fundamental no início das discussões sobre acessibilidade e no fortalecimento do protagonismo de artistas com deficiência no eixo Paulista Cultural, abrangendo as sete instituições culturais localizadas na Avenida Paulista.
Outra referência importante é o trabalho da Shape Arts, organização britânica com atuação colaborativa que valoriza a liderança de pessoas com deficiência. Seu trabalho amplia o acesso à cultura por meio do apoio a artistas com deficiência, do incentivo a instituições culturais para que se tornem mais diversas e da criação de programas participativos. A Shape Arts também produziu dois materiais práticos: um guia para organizadores de exposições, “How to put on an accessible exhibition” [Como organizar uma exposição acessível], com orientações para tornar os espaços expositivos inclusivos; e um guia on-line sobre como encomendar trabalhos de artistas com deficiência, “Commissioning disabled artists” [Encomendando obras de artistas com deficiência], que oferece recomendações para que instituições culturais se envolvam de forma ética e eficaz com artistas com deficiência.
No Brasil, a Rede Sesc desenvolve o projeto Modos de Acessar, em que pessoas com deficiência e neurodivergentes são protagonistas nas discussões sobre sua participação na criação de ambientes e experiências acessíveis, assim como na formulação de políticas anticapacitistas.
“Acessibilidade
não pode ser só promover acesso ao que existe, ao que está instituído, mas promover o acesso a sonhar, idealizar e construir a realidade que queremos viver. A realidade, como está, é tão excludente que exclui tantas pessoas. Cabe a nós ressignificar. Transformar.”
Daina Leyton
Boas práticas são aquelas que abrem caminhos para que artistas, profissionais e lideranças com deficiência estejam em todas as etapas da produção e gestão cultural. Quando isso acontece, o impacto logo é percebido: novos repertórios surgem, as decisões se renovam e a acessibilidade deixa de ser tratada apenas como serviço de apoio ao público para se tornar parte central da criação.
Outro bom exemplo é o programa Accentuate, na Inglaterra, o qual nasceu como parte do legado dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos de Londres em 2012 e tem como objetivo transformar a percepção sobre a deficiência, posicionando essas pessoas como agentes centrais da experiência cultural: participantes, criadoras e líderes.
Representatividade
É a garantia de que pessoas com deficiência estejam presentes em todos os níveis da vida cultural: como público, artistas e profissionais atuantes em toda a cadeia de gestão, produção, curadoria e mediação. Trata-se não apenas de visibilidade, mas também de participação efetiva em espaços de criação e tomada de decisão. Quando a presença DEF se limita à plateia, a participação é parcial. Quando se estende aos palcos, conselhos e equipes, ocorre uma verdadeira transformação na maneira como a cultura é pensada, produzida e vivida.
Empregar pessoas com deficiência vai além de uma obrigação legal: é essencial para consolidar a cultura do acesso, defendida por Anahí Guedes de Mello, Marco Antônio Gavério e outras autoras na “Contracartilha de acessibilidade”. Esse conceito propõe integrar a acessibilidade de forma contínua e abrangente em todas as práticas institucionais, transcendendo adaptações pontuais. Pessoas com deficiência devem ocupar posições estratégicas e de liderança, e não apenas funções técnicas ou operacionais, pois a ausência dessas lideranças limita políticas efetivas e mantém a visão da acessibilidade como custo, interferência estética ou questão logística. Garantir a acessibilidade envolve planejamento estratégico, execução das ações e boas práticas, como programas de contratação, formação contínua, compartilhamento de valores e orçamento dedicado. Assim, a instituição transforma toda a cadeia cultural e potencializa a participação plena de pessoas com deficiência.
O Instituto Dragão do Mar (IDM), em Fortaleza, criou o projeto Vozes da Gente, com a ideia de abrir um espaço para que colaboradores compartilhem suas histórias e experiências, fortalecendo suas trajetórias e ajudando a tornar o ambiente de trabalho mais positivo.
Muitas pessoas com deficiência enfrentam desafios semelhantes, mas essas dificuldades se intensificam quando outros fatores se combinam, afetando de maneira única cada indivíduo. Pensar a acessibilidade de forma ampla significa reconhecer que cada pessoa tem necessidades distintas. Não basta criar soluções únicas; é essencial considerar a diversidade dentro da deficiência e compreender como diferentes aspectos da vida, sociais, culturais, econômicos e de saúde, se cruzam nessa experiência.
A exclusão costuma ocorrer de várias formas ao mesmo tempo. Por exemplo, uma mulher negra com deficiência pode enfrentar capacitismo, racismo e machismo simultaneamente. Reconhecer essas interseccionalidades é essencial para construir uma acessibilidade com qualidade. Políticas culturais e editais que fortalecem artistas com deficiência e também levam em conta raça, gênero, território e sexualidade promovem formas de participação de maneira mais consistente.
“A
interseccionalidade está profundamente conectada à acessibilidade, especialmente no aspecto atitudinal e nas acessibilidades simbólicas.”
Viviane Sarraf
Algumas ações têm trabalhado a pauta da interseccionalidade. O movimento Vidas Negras com Deficiência Importam, por exemplo, promove conscientização e atua com outros movimentos sociais para melhorar a qualidade de vida e garantir a dignidade da população negra com deficiência. Em parceria com o Lab Reviravolta, criou o curso Formação de Lideranças Negras com Deficiência, on-line e gratuito, que capacita novas lideranças sociais para fortalecer a acessibilidade, o empoderamento e a transformação nas comunidades.
O edital “Cultura plural”, voltado para artistas com deficiência, negros, indígenas e LGBTQIAPN+, leva apresentações nos espaços culturais do Sesi/SP, como o Centro Cultural Fiesp. Seu objetivo é garantir o protagonismo desses grupos, das tomadas de decisão ao centro da cena. Já a Parada do Orgulho PcD é um evento que dá visibilidade à luta por direitos das pessoas com deficiência, inspirado em mobilizações como a Parada LGBT+ e a Marcha das Vadias .
Como mencionado anteriormente, a acessibilidade atitudinal mostra que as barreiras não se limitam à estrutura física, mas também dizem respeito à maneira como a sociedade reconhece e trata as pessoas com deficiência, de forma que o medo da deficiência ainda resulte em marginalização. Em sua pesquisa, Daniel Moraes mostra que o acesso efetivo no campo artístico exige mais do que oferecer oportunidades: pede também imaginação. Ele analisa como, historicamente, o corpo com deficiência foi associado à incapacidade, à deformidade e até mesmo à monstruosidade – uma perspectiva que ainda influencia as práticas curatoriais –e questiona como podemos ressignificá-lo como uma força criativa e parte essencial da arte.
“Comecei a estudar a iconografia da deficiência na arte. Percebi que precisava rever muitas coisas, não só no campo da coreografia e da imagem, mas também na filosofia, na antropologia e na maneira como a sociedade enxerga o corpo estranho ou monstruoso. A monstruosidade sempre esteve associada à deficiência. Se durante séculos a deficiência foi vista como algo anormal ou monstruoso, como podemos subverter esse olhar e reposicionar o corpo deficiente como um corpo criador?”
Daniel Moraes
O artista propõe o conceito de “de-corporeidade”, que entende o corpo de forma vibracional e subjetiva. O “d” indica um deslocamento da percepção do corpo, refletindo sobre a corporeidade da deficiência. A ideia é valorizar a subjetividade e a poética do corpo, mostrando como é possível se apropriar dele para criar e imaginar livremente, construindo um imaginário mais flexível e diverso.
Tais estudos levaram à criação da plataforma Demonstra, um projeto dedicado à pesquisa e à criação de artistas com deficiência, que busca combater a exclusão e garantir sua participação ativa no cenário cultural. Como Daniel explica: “O nome vem disto: uma revanche, um espaço onde os artistas com deficiência possam se mostrar e inverter essa lógica da exclusão”.
“Os curadores não percebem que a poética da deficiência também constrói estética e conhecimento artístico.”
Daniel Moraes
MÚLTIPLAS ACESSIBILIDADES
A acessibilidade cultural deve ser pensada de forma ampla, incluindo aspectos físicos, comunicacionais, digitais, estéticos e simbólicos. Ela vai além de remover barreiras estruturais, envolvendo também atitudes e formas de representação, assim como a compreensão de que espaços acessíveis não servem apenas para receber o público, mas também para dar palco e acesso a espaços de protagonismo a artistas com deficiência.
Tendo em vista a complexidade desse tema, podemos pensar também não em uma, mas em várias acessibilidades, que compõem juntas uma estrutura mais ampla que facilita os processos de participação de pessoas com deficiência nos contextos culturais.
Romeu Kazumi Sassaki (1938-2022) foi uma figura central no Brasil ao tratar da acessibilidade. Como professor e autor, mostrou que ela vai muito além de eliminar barreiras físicas: significa garantir a participação plena e efetiva das pessoas com deficiência em todos os espaços e processos da sociedade. Para isso, propôs um entendimento de acessibilidade fundamentado em seis dimensões: arquitetônica, metodológica, instrumental, comunicacional, programática e atitudinal.
Acessibilidade arquitetônica: diz respeito ao meio físico e ao ambiente construído. Ela não se resume à eliminação de obstáculos que dificultam o acesso de pessoas com deficiência, mas envolve projetar desde o início espaços que favoreçam a livre circulação, o conforto e o bem-estar de todas as pessoas.
O Museu da Resistência de São Paulo, localizado em um prédio histórico no Centro da cidade, não foi originalmente construído com acessibilidade. No entanto, passou por adaptações que hoje permitem uma experiência mais ampla de visitação. A área de exposição, situada no térreo, está preparada para acolher cadeirantes e pessoas com mobilidade reduzida, além de contar com sinalização tátil e visual voltada para pessoas com deficiência visual. Dessa forma, o espaço busca receber a diversidade de corpos e modos de percepção, garantindo que a memória e a história ali preservadas sejam acessíveis a todas as pessoas.
Acessibilidade metodológica: é o modo de planejar e aplicar métodos, técnicas e estratégias pedagógicas ou comunicacionais que possam ser compreendidos, utilizados e vivenciados por todas as pessoas. Seu objetivo é garantir que o mesmo conteúdo seja acessível em diferentes formatos e abordagens, possibilitando que
cada pessoa, com ou sem deficiência, utilize os recursos mais adequados ao seu modo de aprender e se relacionar com o conhecimento.
O Programa Nacional de Acessibilidade em Museus e Pontos de Memória, conhecido como Acesse Museus, do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), busca promover práticas que tornem o conteúdo cultural acessível a todas as pessoas, respeitando diferentes maneiras de percepção e aprendizado. No contexto da acessibilidade metodológica, o programa incentiva museus a planejarem exposições, mediações e atividades educativas de forma que elas possam ser compreendidas e vivenciadas por públicos diversos com deficiência. Entre suas contribuições estão: capacitação de equipes, elaboração de materiais e projetos acessíveis, e a contratação de pessoas com deficiência na criação e mediação das atividades, fortalecendo a participação na vida cultural.
Acessibilidade instrumental: é a que utiliza ferramentas, equipamentos e tecnologias assistivas que permitem que pessoas com deficiência realizem tarefas de forma autônoma e eficiente. Isso inclui desde utensílios de cozinha e de escritório e móveis adaptados para pessoas com nanismo ou cadeirantes até softwares que fazem a leitura de textos para pessoas com deficiência visual.
O guia de áudio do Museu Isabella Stewart Gardner, em Boston, nos Estados Unidos, é usado em conjunto com um mapa físico ou um PDF do espaço para oferecer visitas imersivas, em vários idiomas, com liberdade de percurso. Outro exemplo é o Museu Nacional de História Natural em Washington, DC, também nos Estados Unidos, o qual cria aplicativos com imagens descritas, explicações visuais e telas interativas para facilitar o acesso ao seu conteúdo.
Acessibilidade comunicacional: consiste em planejar e estruturar a comunicação de forma que todas as pessoas possam receber e compreender a mesma mensagem. Isso vai além de eliminar barreiras: envolve criar conteúdos pensados para diferentes modos de percepção, incluindo pessoas neurodivergentes, por meio de uma linguagem neuroafirmativa, e utilizando recursos como tradução em Libras, textos em braile, sinalização tátil, letras ampliadas e audiodescrição. O objetivo é tornar a informação efetiva, permitindo que cada pessoa compreenda e interaja com o conteúdo de maneira plena e autônoma.
Robson Fidalgo, pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), é especialista em tecnologia assistiva e comunicação aumentativa e alternativa. Ele desenvolve soluções digitais e físicas para ampliar o acesso à comunicação, beneficiando pessoas com diferentes necessidades. Entre suas criações está a plataforma gratuita REAACT, composta de dois softwares: o ABoard, aplicativo para tablet que ajuda pessoas com dificuldades de comunicação a formar frases por meio de imagens, e o ADesign, sistema que permite ao mediador personalizar esses pictogramas para o uso no aplicativo.
“Imagine que, em vez de apenas disponibilizar o conteúdo da exposição de forma tradicional, você possa usar um sistema de comunicação alternativa para facilitar o entendimento e a interação com o conteúdo cultural. Em termos de cultura, podemos aplicar uma plataforma de várias maneiras. Por exemplo, podemos ter músicas no YouTube ou até criar uma história ou enredo para um evento, utilizando uma plataforma para facilitar a comunicação. Essa tecnologia pode ser usada para representar um conteúdo cultural de uma maneira muito acessível, especialmente para quem tem dificuldades de leitura ou cognitivas.”
Robson Fidalgo
Acessibilidade programática: consiste em identificar e eliminar barreiras presentes em decretos, regulamentos, manuais, portarias e até leis que possam restringir direitos e o acesso de pessoas com deficiência. Além da revisão das normas já existentes, envolve planejar e implementar políticas, programas e planos institucionais que garantam a participação plena de todos os indivíduos nos processos, nas atividades e nos serviços oferecidos.
O Acesse Museus, do Ibram, tem como objetivo implementar diretrizes, fomentar o desenvolvimento e difundir conhecimentos sobre práticas acessíveis, inclusivas e anticapacitistas nos museus e nos pontos de memória.
A Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa com
Deficiência, do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, publicou, em 2025, o “Manual de acessibilidade em eventos presenciais”. O material oferece orientações para garantir que pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida tenham pleno acesso a eventos, defendendo que os recursos de acessibilidade sejam planejados desde o início, de modo a tornar a experiência participativa, segura e efetiva para todas as pessoas.
Outro exemplo relevante é o Mapeamento Acessa Mais, iniciativa do Ministério da Cultura (MinC) em parceria com a Universidade Federal da Bahia (UFBA), organizada com a participação direta de pessoas com deficiência, como o educador e pesquisador Edu O. O projeto identifica, em todo o território nacional, artistas e agentes culturais com deficiência, além de profissionais com e sem deficiência que atuam na acessibilidade cultural. Em janeiro de 2025, foram contabilizados 3.498 cadastros, fortalecendo políticas e estratégias que influenciam diretamente a acessibilidade programática, ao fornecer dados que subsidiam a criação de políticas, programas e planos institucionais voltados para a participação plena de pessoas com deficiência na cultura.
Acessibilidade atitudinal: envolve não apenas identificar preconceitos, estigmas e estereótipos na forma como são tratadas as pessoas com deficiência, mas também qualificar a compreensão sobre essas questões. Isso exige programas de formação que promovam atitudes anticapacitistas, incentivem práticas respeitosas e garantam a participação plena de todas as pessoas em todos os espaços e atividades.
O Programa SIM/Secult, da Secretaria de Estado de Cultura do Pará, é um exemplo de acessibilidade atitudinal. Ele busca transformar a maneira como servidores e gestores percebem e interagem com pessoas com deficiência, promovendo sensibilização, formação e práticas anticapacitistas. Iniciativas como visitas guiadas com Libras, audiodescrição, capacitação de servidores e a Sala dos Sentidos refletem uma estratégia institucional contínua, integrando a acessibilidade de forma planejada, sustentável e centrada em atitudes que garantam a participação plena de todos nas atividades e nos serviços culturais.
Construir uma cultura organizacional acessível é mais do que uma escolha estratégica: é um compromisso ético com o presente e com o futuro. Ao reconhecer o valor da diversidade, criamos ambientes de trabalho mais humanos, colaborativos e sustentáveis. A acessibilidade deve ser integrada e transversal, permeando todas as práticas institucionais e garantindo que diferentes dimensões, atitudinais, programáticas, metodológicas, comunicacionais, instrumentais e arquitetônicas, sejam contempladas de forma coerente e planejada. Ao promover ações que respeitam e valorizam as diferenças, não apenas cumprimos
deveres legais, mas também fortalecemos a participação plena de todas as pessoas. Que cada organização se pergunte: como atuar hoje para transformar o cotidiano e mirar futuros possíveis?
capa Socorro Lima em cena do espetáculo Zoom, realizado durante a programação da mostra ||entre|| arte e acesso em 2025
imagem: Agência Ophelia
O Itaú Cultural (IC) acredita na importância da acessibilidade para permitir a vivência e a participação de todas as pessoas nos campos da arte e da cultura. Assim, a organização dialoga continuamente com artistas, curadores, produtores e gestores culturais para um caminho permanente de aprendizado, experimentação e aprimoramento de ações voltadas para a ampliação da acessibilidade na arte e na cultura.
HISTÓRICO
O compromisso do IC com a acessibilidade teve suas primeiras iniciativas em 2012. Nesse ano, a exposição Lygia Clark: uma retrospectiva contou com a implementação de videoguias em Libras, e a organização contratou pela primeira vez um educador surdo.
Pouco depois, em 2014, foi criado um comitê interno, formado por colaboradores e gestores, para pensar a acessibilidade de maneira mais ampla e integrada em todas as áreas de atuação. Um dos grandes destaques da criação desse comitê foi entender o IC como um todo e garantir que a acessibilidade estivesse presente em todas as áreas da organização.
Ao acompanharmos esta linha do tempo, percebemos que é a partir daí que as iniciativas voltadas para artistas com deficiência ganham mais espaço. O ||entre|| arte e acesso , por exemplo, começou em 2015, com palestras, debates, performances , espetáculos e oficinas sobre acessibilidade. Já o Festival de Cultura Surda , iniciado em 2018, valoriza a presença dos artistas e também debate vivências dessa população.
Em 2016, uma diretriz institucional determinou que todas as exposições do IC contassem com recursos de acessibilidade. O que começou como uma regra a ser seguida é hoje também uma prática abraçada por todos: como propor a acessibilidade como experiência estética, e não só funcional?
Os últimos anos foram de ainda mais aprendizados para o cenário da acessibilidade no IC. Alguns deles vieram com o desenvolvimento de pesquisas, que estudaram hábitos culturais de pessoas com deficiência e suas necessidades. Também foram realizadas pesquisas sobre a oferta de recursos de acessibilidade em museus no Brasil e no mundo, incluindo instituições vizinhas na Avenida Paulista.
As atividades do IC buscaram compreender como poderiam ser mais acessíveis em diversos âmbitos.
Na Ocupação Paulo Freire, por exemplo, a publicação criada para a mostra foi disponibilizada integralmente em vídeo, em Libras.
Mais recentemente, foram criadas também cartilhas que dão suporte ao público neurodivergente para prever as interações no espaço expositivo. Além disso, abafadores de som são disponibilizados para esses visitantes.
O edital “||entre|| arte e acesso” e o Arte e acesso – portfólio coletivo de artistas com deficiência são duas iniciativas importantes de protagonismo e projeção para artistas DEF.
A criação de ambos mostra como o IC transformou a ideia inicial de acessibilidade, ao longo de uma década, em um conceito de grande valor para a organização.
ARTE E ACESSO
Criado em 2015, o festival de artistas com deficiência ||entre|| arte e acesso dá destaque a artistas e pesquisadores com deficiência com seus projetos artísticos. A programação apresenta projetos variados, criados por pessoas também diversas, além de promover discussões sobre questões ligadas à acessibilidade.
Em 2021, foi lançado o Arte e acesso – portfólio coletivo de artistas com deficiência. Trata-se de uma plataforma de mapeamento de artistas com deficiência em todo o Brasil, nas mais diferentes expressões artísticas.
O portfólio amplia a presença de artistas DEF no mercado cultural, oferecendo às equipes de curadoria, pesquisa e produção acesso direto às suas obras. Dessa forma, facilita a integração das produções DEF em projetos e eventos, fortalecendo a visibilidade, o reconhecimento e a participação efetiva desses artistas em toda a cadeia cultural.
No mesmo ano, o ||entre|| arte e acesso ganhou também um edital, junto com o festival. O programa é uma incubadora de projetos inéditos. Ao final do processo, eles são apresentados para uma plateia formada por especialistas em curadoria, produção e programação cultural, contribuindo para o lançamento dos projetos em diferentes espaços culturais.
A iniciativa vai além de incentivar a produção artística de pessoas com deficiência: ela promove aprofundamentos conceituais das pesquisas e fortalece a trajetória profissional por meio de encontros de orientação on-line e presenciais. Artistas DEF selecionados passam por um processo de mentoria conduzido por outras pessoas com deficiência, também atuantes na produção cultural, ampliando redes, trocas de experiência e conexões estratégicas no campo artístico.
EXPERIÊNCIAS RECENTES
O IC oferece uma experiência acessível e acolhedora em todas as suas atividades, com uma infraestrutura cuidadosamente pensada para atender todos os visitantes.
O prédio dispõe de espaços sem obstáculos, portas sem degraus entre ambientes, rampas, elevadores e mobiliário ergonômico, como balcões de atendimento, prateleiras e bebedouros. Para garantir conforto e autonomia, há corrimãos em duas alturas, áreas de descanso, banheiro acessível e piso tátil, além de cadeiras de rodas disponíveis para empréstimo.
A comunicação nos espaços expositivos também é pensada com audiodescrição, textos em braile, caracteres ampliados com alto contraste, materiais táteis – como mapas e relevos táteis de imagens –, tablets com vídeos em Libras e legendas em vídeos, além de textos de parede mais objetivos e de leitura confortável.
Esses recursos refletem a atenção que o IC dedica ao acolhimento de pessoas com deficiência, como público e como artistas, das exposições ao palco e ao camarim, reafirmando o compromisso de tornar a cultura acessível a todas as pessoas, com dignidade e conforto.
A presença de pessoas com deficiência na seleção e mentoria do ||entre|| arte e acesso vem garantindo resultados consistentes e representativos. Elas atuam como mentoras ao longo de meses, orientando as produções de
cada artista DEF participante. Além das mentorias, esses especialistas nas artes ou agentes culturais apresentam os artistas ao público convidado, conduzindo bate-papos e compartilhando suas experiências.
Todas as atividades do IC, de qualquer natureza, contam com intérpretes de Libras. Esse cuidado nasce do entendimento de que a acessibilidade comunicacional para pessoas surdas é um direito, tornando natural, integrada e parte essencial a presença desses profissionais em todas as ocasiões.
A organização compreende que a pessoa surda pode ter a liberdade de não se identificar como tal e que, ao mesmo tempo, todas as pessoas podem se beneficiar com intérpretes no palco. Sua presença possibilita o aprendizado de sinais e o entendimento de que essa comunidade existe e está ali, além da apreciação do trabalho de intérpretes. Ao adotar essa postura, o IC pretende colaborar com uma reverberação social que se propaga pelo ambiente da arte e da cultura, para contribuir com mudanças e reflexões coletivas.
Os cenários dos videoguias em Libras também são planejados para que o recurso se integre aos espaços expositivos e às identidades visuais dos projetos, tornando os conteúdos mais envolventes para os visitantes. Não é necessário solicitar os videoguias: eles estão presentes nas exposições, junto às obras.
A Itaú Cultural Play (IC Play), plataforma gratuita de streaming dedicada à produção audiovisual brasileira, oferece títulos com recursos de acessibilidade desde 2022. Em 2023, passou a incentivar licenciantes a fornecer obras com Libras, audiodescrição e legendas para surdos e ensurdecidos, ampliando a oferta de produções com recursos para pessoas com deficiência. Também foram produzidos internamente recursos para títulos que não os possuíam, possibilitando ao usuário escolher versões com essas opções. Existe, ainda, o trabalho contínuo de acrescentar títulos ao catálogo que tenham pessoas com deficiência como protagonistas ou na equipe de produção.
Os cursos de educação a distância (EAD) da Escola Fundação Itaú, plataforma gratuita de formação nos campos da arte, da cultura e da educação, também contam com recursos de acessibilidade. Além disso, a grade da Escola oferece programas específicos nesse tema, como cursos de arquitetura e acessibilidade para espaços culturais.
A acessibilidade no IC se estende para além das áreas perceptíveis aos visitantes, chegando aos bastidores. Um exemplo é a área jurídica, que busca aprimorar e ampliar continuamente os recursos de acessibilidade.
Entre as iniciativas estão a elaboração de contratos em formato e linguagem acessível e o envio de contratos por e-mail seguindo parâmetros de acessibilidade digital, medidas que facilitam a comunicação com pessoas neurodivergentes e o uso de ferramentas de leitura por pessoas com deficiência visual, bem como promovem maior autonomia no acesso à informação.
POSSIBILIDADES DE FERRAMENTAS
São muitos os recursos que podem ser utilizados para a criação de experiências acessíveis nas diversas iniciativas do IC.
As exposições podem se tornar mais acolhedoras e convidativas com o apoio de recursos pensados para públicos com diferentes deficiências.
No IC, essa prática foi se transformando em aprendizado: diferentes soluções foram testadas e adaptadas ao longo dos anos. Por isso, é importante compreender as opções disponíveis e como cada uma pode contribuir em momentos distintos.
Veja a seguir alguns recursos que já foram utilizados pela organização.
→ Abafadores de som: protetores auriculares que reduzem a intensidade dos ruídos em ambientes como exposições, espetáculos, shows ou áreas de grande circulação. Ao atenuar sons excessivos, favorecem o bem-estar de pessoas com hipersensibilidade auditiva e também beneficiam qualquer visitante que prefira uma experiência mais confortável e focada.
Assento acessível: ao projetar assentos para todos, é importante garantir medidas confortáveis também para pessoas obesas.
→ Audiodescrição: recurso em áudio que descreve os ambientes da exposição, as obras e a localização dos recursos de acessibilidade nos espaços expositivos. Destinada especialmente a pessoas com deficiência visual, a audiodescrição também pode ser utilizada por qualquer visitante como um exercício de leitura de imagens, ampliando a percepção sensorial e a compreensão das obras e do ambiente.
→ Buttkicker e Vibroblaster: dispositivos que convertem frequências sonoras em vibrações físicas, permitindo que pessoas surdas ou com deficiência auditiva sintam o conteúdo musical ou sonoro por meio do tato. Instalados sob superfícies horizontais, como cadeiras e plataformas, geram vibrações que podem ser sentidas diretamente pelo corpo, proporcionando uma forma alternativa de interação com o conteúdo sonoro.
→ Cartilhas para pessoas neurodivergentes: material impresso que descreve obras e elementos expográficos que contêm estímulos visuais, sonoros e táteis, com o objetivo de auxiliar o público neurodivergente a prever interações no espaço expositivo.
→ Comunicação visual acessível: encartes e outros materiais em braile e/ou com fonte ampliada que permitem a leitura de textos de apoio, textos de parede e outros conteúdos do espaço expositivo.
→ Dimensões e espaços acessíveis: a organização do espaço expositivo deve garantir a circulação fluida e segura de pessoas em cadeiras de rodas, bem como considerar a altura adequada para visualizar objetos e textos. Esse cuidado beneficia, ainda, pessoas com nanismo, pessoas com deficiência visual, crianças e idosos, assegurando que todos os visitantes possam se aproximar, interagir e compreender plenamente os elementos da exposição.
→ Ergonomia e segurança: o projeto expositivo deve prever a eliminação de riscos, evitando a disposição de objetos que possam representar perigo para pessoas cegas. Quando necessário, a instalação de piso tátil de alerta funciona como sinalização de segurança complementar. Além disso, ao desenvolver suportes para materiais em braile ou objetos táteis, é fundamental que eles estejam posicionados de forma ergonômica, preferencialmente sobre superfícies paralelas ao chão, para que as mãos fiquem livres e a exploração seja feita com conforto e autonomia.
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Escâner acessível: com o auxílio de uma pessoa da equipe de mediação, com equipamento adequado, páginas de publicações ou textos podem ser escaneados, e os conteúdos são lidos em voz alta por um software.
Mapa tátil: elemento que possibilita às pessoas com deficiência visual explorar todo o espaço expositivo, identificar recursos de acessibilidade, rotas de circulação e saídas de emergência. Produzido em diferentes materiais e cores, pode ser acompanhado por audiodescrição para ampliar a compreensão.
Além disso, qualquer visitante pode utilizá-lo como forma de experimentar o espaço de maneira sensorial e aprofundar a percepção das exposições.
→ Maquete tátil: oferece às pessoas com deficiência visual a oportunidade de explorar a forma, a escala e as texturas das obras e dos objetos por meio do tato. O recurso contribui para a compreensão do campo espacial de fotografias, pinturas e arquiteturas de edificações, podendo ser combinado com audiodescrição para enriquecer a experiência sensorial de todos os visitantes.
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Objeto tátil: reprodução de objetos em relevo e com texturas variadas, oferecendo às pessoas com deficiência visual a oportunidade de explorar e interpretar os conteúdos por meio do tato, enriquecendo a compreensão sensorial das obras.
Óculos com inteligência artificial (IA): equipados com câmera e IA, auxiliam pessoas com deficiência visual a reconhecer materiais no espaço expositivo, ler textos em paredes, placas e publicações, e identificar objetos e rostos, oferecendo autonomia e enriquecendo a experiência cultural de forma prática e intuitiva.
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Piso tátil: sinalização no piso para pessoas com deficiência visual, indicando pontos de interesse, obstáculos e caminhos de circulação, com pisos direcionais e de alerta. Pode ser usado junto com audiodescrições, mapas e maquetes táteis.
→ Placa tátil: recurso que possibilita a pessoas com deficiência visual perceber formas, texturas e dimensões de desenhos, fotografias e outros elementos visuais. Além disso, oferece informações complementares em braile ou com fonte ampliada, podendo ser apresentada em placas fixas ou adesivos distribuídos no espaço expositivo, garantindo maior autonomia e compreensão do conteúdo por todos os visitantes.
→ Tradução em Libras com legenda: possibilita que pessoas surdas, alfabetizadas em português ou apenas em Libras, tenham acesso completo a conteúdos audiovisuais, tanto em exposições quanto em plataformas on-line.
→ Transcrição de paisagem sonora: permite que pessoas surdas alfabetizadas em português compreendam os sons e a musicalidade do espaço expositivo, apresentada como legenda nas paredes ou por meio de dispositivos como o Vibroblaster.
→ Videoguia em Libras (com legendas em português): vídeos que apresentam os conteúdos das exposições para pessoas surdas alfabetizadas em Libras e/ou português. Nos tablets do espaço expositivo, a mediação é feita por educadores ouvintes, enquanto a interpretação em Libras nos vídeos é realizada por educadores surdos.
A trajetória do IC desde as primeiras iniciativas até nossa atual abordagem demonstra que a acessibilidade é um caminho de aprendizado permanente. Cada recurso implementado, cada programa desenvolvido e cada diálogo estabelecido com artistas e públicos representa mais do que simples soluções técnicas: eles são a consolidação de um compromisso que evoluiu de ações pontuais para uma abordagem estrutural. Ao seguir aprimorando nossas práticas e compartilhando conhecimentos, reafirmamos nossa missão de construir de forma colaborativa um ecossistema cultural verdadeiramente inclusivo e acessível a todas as pessoas.
capa João Paulo Lima em cena do espetáculo Deffuturismo, realizado durante a programação da mostra ||entre|| arte e acesso em 2025 imagem: Olga Lysloff