Prêmio Milú Villela - Itaú Cultural 35 Anos

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Para marcar os seus 35 anos de atividade, o Itaú Cultural (IC) realiza pela segunda vez a premiação de dez figuras referenciais no cenário artístico brasileiro. É o Prêmio Milú Villela – Itaú Cultural 35 Anos.

O objetivo da premiação, que neste ano oferece a cada premiado 150 mil reais e um troféu, além de celebrar essas personalidades/coletivos e seus legados, é reconhecer trajetórias longevas e definitivas na construção e mesmo na transfor mação da nossa cultura. Estamos certos de que estas dez premiações são impor tantes para refletir e discutir o Brasil contemporâneo e desenhar futuros.

O prêmio, assim como na primeira edição, constrói sua narrativa com base em cinco verbos – aprender, criar, experimentar, inspirar e mobilizar –, que dialogam com o modo de fazer e pensar a cultura e as artes no Itaú Cultural. São verbos que também falam de poéticas, de sonhos, de realização e de diversidades. Falam da multiplicidade do ato de transformar realidades, tão característico dos mundos do pensamento, da educação, do ativismo e da cultura.

Para a definição dos nomes, foi criada uma comissão interdisciplinar forma da por Aninha de Fátima Sousa, Daniel Munduruku, Dione Carlos, Edson Natale, Eduardo Saron, Galiana Brasil, Inês Bogéa, Joel Zito Araújo, Moacir dos Anjos, Sofia Fan, Tatiana Prado e Zélia Duncan.

ITAÚ CULTURAL
MILÚ VILLELA

O nome é Maria de Lourdes Egydio Villela, mas pode chamar de Milú. Nascida em 8 de setembro de 1943, hoje com 79 anos, ela dedica quase toda a vida a empreender ações de impacto social. No voluntariado, na educação e na cultura, sua prática se destaca.

Alguns dos marcos nessa trajetória são os seus períodos como presidente do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM/SP) – de 1994 a 2019, fase que inclui a mobilização de recursos para financiar e reformar o espaço com uma am pliação do acervo – e como presidente do Itaú Cultural (IC), a convite de Olavo Setubal. À frente do IC entre 2001 e 2019, Milú liderou a reforma do prédio e re novou sua atividade, afinando e estendendo sua atuação para que ampliasse cada vez mais conceitos como acolhimento, democratização e participação. E essa his tória vem de longe.

É nos anos 1970 que se dá o pontapé inicial disso tudo. Após se formar em psicologia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), ela fundou a escola O Caracol, usando o método Paulo Freire e a epistemologia de Jean Piaget. Em 1994, criou a Associação Comunitária Despertar, focada na qualificação para o trabalho de jovens entre 15 e 24 anos na periferia da Zona Sul de São Paulo. Realizou outra criação em 2002: o Instituto Faça Parte – Brasil Voluntário. Já em 2006, ela lançou o movimento Todos pela Educação, que se ampliou e virou uma instituição – a qual propõe ações e atua na reivindicação por políticas educacio nais públicas que garantam aprendizagem e igualdade para crianças e jovens de todo o país.

E isso não é tudo. A multiplicidade e a amplitude do trabalho de Milú é o que nos inspira como organização, como movimentos pela educação e pela cultu ra. Milú é uma articuladora de ideias e de pessoas. Uma premiação que leva seu nome é uma reafirmação de que cada vez mais precisamos reconhecer, celebrar e render homenagens a artistas, pensadores, ativistas, coletivos e projetos que transformam nossos diversos Brasis e a vida das pessoas.

Saiba mais sobre Milú Villela aqui.

LEDA MARIA MARTINS

NEGO BISPO

APRENDER

Aprender pelo desejo de saber sempre me seduziu, me alumbra e compõe. Desde muito pequenina, as sonoridades e as letras me encantam. Vestem e nutrem. Os cânticos e ritmos dos reinados, a poesia e as narrativas das civilizações, as inteligências da matemática, tudo isso me fascina e instrui. Ler, escutar, escrever e cantar. São lavras que me enternecem e imantam. Cuias e folhas, molhadas de afeto, ternos refúgios.

Aprender, para mim, é gosto, curiosidade, travessia, um prazeroso exercício de labor, de busca e de entendimento. E expressão de meu mais singelo respeito pelo próprio conhecimento, pelo que nos desvela da existência mesma, em todos os seus complexos riscados, âmbitos e modos de ser. O saber é uma dádiva, uma oferenda. E aprender um seu aroma que podemos fruir e espargir.

LEDA MARIA MARTINS

Rainha, intelectual e poeta. Leda Maria Martins acumula muitos títulos – pro fessora, doutora, escritora, teatróloga – e uma trajetória de destaque na acade mia, passando por instituições de ensino em Minas Gerais, Nova York e no Rio de Janeiro, da posição de aluna à chefia de departamentos. Atuou também no teatro e possui bibliografia com livros de poesia e de ensaios publicados em português e traduzidos para o inglês e o espanhol.

O título de Rainha de Nossa Senhora das Mercês vem da Irmandade Nossa Senhora do Rosário do Jatobá, em Belo Horizonte (MG), com a qual convive há décadas. Sua mãe, Alzira Germana Martins (1930-2005), era rainha; ela, princesa – durante um tempo, distanciou-se do núcleo real, dedicando-se aos estudos fora do Brasil –, coroada rainha com a morte da mãe.

Sua obra acadêmica e seu pensamento são indispensáveis na investigação do teatro contemporâneo e na percepção da cultura no Brasil. Obras essenciais sobre Qorpo-Santo (José Joaquim de Campos Leão, 1829-1883) e Abdias Nascimento (1914-2011) foram escritas por ela. Sua atuação nesse campo a fez também dar nome ao Prêmio Leda Maria Martins de Artes Cênicas Negras de Belo Horizonte, com cinco edições e cujas categorias refletem conceitos de seu pensamento.

No livro afrografias da memória: o reinado do rosário no jatobá (1997), ela conta a história da irmandade em que reina e, por consequência, da tradição dos congados e de outras festas tradicionais em que escravizados realizavam coroações de seus reis, instituindo uma hierarquia do poder africano a partir de uma estrutura mítica – refazendo a história por outro olhar, um olhar ancestral.

Leda concebeu, com sua poética encantada e sua pesquisa meticulosa, con ceitos que ultrapassam o campo das artes das cenas e norteiam um modo de pensar para além do eurocentrismo. Entre eles estão a encruzilhada (um espaço místico de encontro de caminhos governado pelo tranca-ruas), a oralitura (um modo de analisar a transmissão de mensagens, histórias e saberes pela oralidade e outras formas de falar) e o tempo espiralar (uma maneira de olhar o tempo à luz de conceitos bantos que dialogam diretamente com a física moderna e nos mostram que o tempo não é linear).

Ela considera o ato de aprender algo natural, prazeroso e essencial à existên cia. Com uma agenda repleta de compromissos dentro e fora do Brasil, mantém com o mesmo rigor as suas obrigações no congado na periferia de Belo Horizonte, tornando seu discurso uma prática, que amplia e ressignifica os modos de ver o mundo, preenchendo um vazio doloroso do pensamento negro em nossa cultura.

A filosofia banto compara o ser humano ao Sol. Ele nasce, brilha, se põe. Há, inclusive, quem seja capaz de acender sóis. É o caso de Leda Maria Martins, a quem celebramos neste momento. Alguém capaz de bri lhar e fazer brilhar. • Leda é poeta, ensaísta, dramaturga, professora, formada em letras, mestra e doutora em artes cênicas, e pós-doutora em performance. Mas é, sobretudo, antes de qualquer um desses títulos, Rainha de Nossa Senhora das Mercês da Irmandade Nossa Senhora do Rosário do Jatobá, em Belo Horizonte, o que implica uma enorme devoção ao coletivo. • É em razão de seu trabalho inte lectual – que reflete sobre as artes cênicas com base em cosmovisões de matrizes africanas e indígenas –, paralelamente ao seu cargo de rainha conga e educadora, que nos reunimos aqui hoje para saudar alguém capaz de agregar, potencia lizar e apontar futuros possíveis de reinvenção das nossas narrativas a partir de um pensamento nutrido e gestado há décadas e que une teoria e prática na mesma medida, além de se voltar para dentro do nosso território para criar a partir dele, quebrando a tradição de pensar o Brasil sem olhar verdadeiramente para o país, o que inclui reconhecer nossas he ranças afro-indígenas. • É diante dessa convo cação poética que nos reunimos para agradecer a Leda, reconhecendo a potência de seu gesto, que é, na verdade, a beleza e a luta de toda a sua vida. Algo que nos faz olhar para dentro e enxer gar a nossa diversidade como um tesouro a ser valorizado, um bem comum a ser compartilhado, algo vastamente praticado pela nossa homena geada e que muito nos inspira. DIONE

UMA
CARLOS

Devemos aprender tudo e usar o que for necessário.

Foi a partir dessa máxima que, quando eu cursava o 4 º ano primário, atual Ensino Fundamental, um dos meus mestres de ofícios perguntou: “Sabes ler uma carta e fazer outra? Sabes fazer as quatro operações de contas?”.

Respondi que sim e ele retrucou: “Sabes fazer uma casa?”.

Respondi que não e ele falou: “Então saia da escola e venha aprender a fazer as coisas de que você vai precisar”.

Isso foi no início da década de 1970, no Vale do Rio Berlengas, hoje município de Francinópolis, no estado do Piauí.

NEGO BISPO

No mesmo período, questões iguais ou parecidas aconteceram em vários lugares no chamado mundo subdesenvolvido. Era a instalação das bases de comercialização do lixo da Segunda Guerra Mundial.

Naqueles tempos, a maioria dos contratos era oralizada, então as escolas escrituradas vieram para substituir esses contratos. E assim começou uma grande disputa entre os saberes resolutivos e os explicativos, os compartilhados e os mercantilizados.

Antônio Bispo dos Santos instaura uma disrupção no espaço em que atua, reor ganizando conceitos, acordando pensamentos e olhos dormentes, e ocupando o que é seu por direito, sem concessão, inclusive o seu coração, se assim você per mitir. Porque ele sabe brigar e parece até gostar disso, mas antes de tudo sabe olhar para o outro e lhe dar a mão.

Chamado pela alcunha de Nego Bispo, ele é muito conhecido no universo qui lombola brasileiro e cada vez mais reverenciado como pensador na academia, com citações em teses e convites para proferir palestras, dar aulas e contar histórias.

Ainda criança, foi escolhido pela comunidade onde vivia, no sertão do Piauí, para frequentar a escola, recebendo ajuda financeira e afetiva para cumprir a ta refa. Concluiu o Ensino Fundamental e seus conselheiros decidiram que era hora de ele aprender o conhecimento orgânico local: a cuidar da terra, construir casas e produzir seu próprio mundo, como sempre foi.

A partir daí, de mãos dadas com a ancestralidade, descobriu como ajudar a sua comunidade sendo um tradutor de dois mundos – o oral e o escrito. Depois de alguns anos, foi morar no Rio de Janeiro, mas retornou para o Piauí para se dedicar à questão fundiária. Acompanhou a “Constituição de 1988” e expandiu o conceito do reconhecimento de quilombos para as áreas de retomada; afinal, grande parte dos negros escravizados não tinha terra ou moradia havia gerações, e da mesma forma merecia a compensação.

Negro Bispo coordenou mais de 15 ocupações no Piauí, inclusive a retomada do Quilombo do Saco-Curtume, em São João do Piauí, município médio no semi árido onde vive com a família. Ele é membro da Coordenação Nacional de Arti culação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e da Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí (Cecoq/PI).

Entre os mestres que o formaram e formam – porque Nego Bispo não para de pensar nem de aprender –, ressalta Joana Máximo e Norberto Máximo, sua avó e seu tio-avô. Deles absorveu sobretudo as questões morais – o compromisso com a sua verdade e o cuidado com o outro –, a coragem e a mandinga (termo de origem africana de que a capoeira se apropriou para definir certo tipo de mo vimento/ação que desarma o opositor não por atingi-lo, mas por surpreendê-lo).

Na sua mandinga, Nego Bispo ocupou terras, defendeu o seu povo e deu início ao processo de tombamento de conhecimentos locais: os batuques de quilombos no Piauí, o tambor de crioula e o jucá da volta do Quilombo de Campo Grande (prá tica de movimentos de defesa usando um tacape de madeira de jucazeiro/pau -ferro). Assim, foi organizando um pensamento coletivo que registrou em livro em 2007, reeditado em 2015 como colonização, quilombos – modos e significações.

Ele desenvolve projetos com a Universidade de Brasília (UnB) e a Universidade de São Paulo (USP). Em suas palestras, combate o pensamento instaurado com conceitos que vão do contracolonialismo à cosmofobia, com argumentos concisos e a certeza de que não está só – além de seus antepassados, representa um milhar de pessoas apartadas dos canais de transformação social de um mundo contratual.

UM EMISSÁRIO DE SABERES ANCESTRAIS O

verbo aprender conjuga-se e mistura-se no dia a dia de fazeres deste lavrador – quilombola –intelectual que repassa, ensina, provoca e re lembra uma ruma de saberes a partir do Piauí. • O menino designado entre os primeiros de sua comunidade a aprender a ler e a escrever para traduzir o mundo das letras escritas no momento em que os contratos orais definha vam como compromisso firmado e afirmado foi além e tornou-se também ativista político, poeta, pensador e ensinador. • Autodefine-se como um “relator de saberes” e, para nós, além disso, é emissário ilustrador dos saberes orais e ancestrais herdados, um “ressabedor” que ex pande, interliga, provoca, ensina e avança. Ele mesmo conta que, ao receber os ensinamentos de um ancestral, ouviu: “Estou chorando porque lhe ensinei tudo o que sabia, mas não sabia tudo o que queria lhe ensinar”. • Antônio Bispo dos Santos é conhecedor de simplicidades complexas, como quando diz que “a va silha de dar é a mesma de receber”. Sabe ensinar, preservar, expandir e lavrar a palavra e o pensamento. É um andaime que impulsiona e resguarda saberes, e costuma dizer que “analisa o pensamento dos colonialistas não para tentar mudá-los, mas para evitar que seja mudado por eles”. • É uma alegria encontrar Nego Bispo ao lado de Ana Mae Barbosa e Mestre Meia-Noite, ambos contem plados no mesmo verbo aprender na edição anterior deste prêmio. EDSON

NATALE

CLAUDIA ANDUJAR

LÉA GARCIA

VERBO CRIAR

Criar a partir do meu passado foi a maneira que encontrei para entender quem eu sou e os caminhos que escolhi. Para isso, preciso considerar a minha vida e o que me levou a ser quem sou. A perseguição que a minha família, os meus amigos e eu sofremos. A minha infância na Transilvânia atravessada pela Segunda Guerra Mundial, a separação dos meus pais, a morte de quase todos os meus parentes e a luta pela sobrevivência. Depois de fugir para a Suíça e morar nos Estados Unidos, cheguei ao Brasil e, aos poucos, fui me aproximando de povos indígenas. Ao conviver com os Ianomâmi –o fascínio pela cultura deles e a dor de vê-los ser dizimados –, relembrei a minha infância. Assim fiz as minhas escolhas, a minha criação. O mais importante nesta história é defender a vida do povo Ianomâmi, e a essa defesa dedico a minha vida.

CLAUDIA ANDUJAR

Ela precisou se mudar tantas vezes que se renomeou Claudia Andujar, natura lizou-se brasileira, virou fotógrafa, morou em aldeias indígenas – onde ganhou outro nome, Napeioma ( estrangeira em ianomâmi) – e se tornou defensora in cansável desse povo. Foi com eles que reviveu a experiência da infância, durante a Segunda Guerra Mundial, no Leste Europeu, de ver sua aldeia, sua família e seu entorno dizimados.

Filha de pai judeu, conheceu a bestialidade do nazismo ainda criança na região da Transilvânia, na fronteira da Hungria com a Romênia. Fugiu com a mãe para a Suíça; depois foi para os Estados Unidos viver com o único outro parente sobrevi vente, um tio. Lá, ela se casou e começou a se interessar por arte. Foi reencontrar a mãe em São Paulo, onde conheceu a fotografia. Tornou-se fotojornalista; desco briu o universo indígena, a Floresta Amazônica, e se encantou com os Ianomâmi.

Vivendo no norte da Amazônia, entre o Brasil e a Venezuela, esse povo soma 35 mil pessoas (em censo de 2011) e possui, na área brasileira, uma terra de 9.600 hectares, homologada há 30 anos – processo do qual Claudia participou ativa mente. Assim como todos os povos indígenas, eles são sobreviventes da sistemá tica violência do confronto com os garimpos e o agronegócio e da destruição do meio ambiente.

Nos anos 1970, Claudia morou com eles em diferentes períodos, até ser ex pulsa pela ditadura militar, em 1977. Os fantasmas do seu passado haviam des pertado diante da situação dos indígenas. E ela diz que foi essa percepção, o encontro consigo mesma – nascida Claudine Haas, a mais nova entre primos e parentes que moravam próximos –, que a fez criar.

Claudia é autora de milhares de fotografias e dezenas de livros, e participou de mais de uma centena de exposições. Suas obras estão presentes em museus do Brasil, das Américas Latina e do Norte e da Europa. Ela criou também, com o missionário italiano Carlo Zacquini (1937) e outros parceiros, a Comissão Pró -Yanomami (CCPY) e viajou com o líder e xamã Ianomâmi Davi Kopenawa (1956), levando essa luta para todos os lugares que conseguiu alcançar.

Na sua obra artística, trabalhos produzidos durante os anos 1970 e no início dos 1980 – como as séries sonhos yanomami e marcados – são referências, assim como os desenhos que reuniu a partir de uma intervenção que realizou nas aldeias pedindo aos indígenas que desenhassem seu universo e seus mitos. Em 2015, essa obra imensa floresceu com um pavilhão em Inhotim, na cidade de Brumadinho (MG).

Claudia segue incansável na luta pela vida. Há quatro anos, a exposição claudia andujar – a luta yanomami, inaugurada no Brasil, circula pela Europa; e, em 2023, chegará às Américas do Norte e Latina. Na sala da sua casa há três fotos de sua autoria na parede. São crianças Ianomâmi. Curumins que a veem, aos 91 anos, virar outra vez criança, curumim, e que com ela conversam sobre a esperança.

A obra fotográfica de Claudia Andujar está associada, desde o início da década de 1970, ao povo Ianomâmi. É naquele momento que ela começa a registrar, em ima gens, uma forma de vida complexa que contri bui, com seus saberes e suas invenções, para a necessária diversidade cultural do mundo. Pou cos anos depois, contudo, ela passa também a testemunhar as consequências da ocupação predatória e violenta do território daquele povo por agentes privados e públicos. Desde então, seu trabalho como artista se confunde com a exigência ética de juntar-se à luta dos Ianomâ mi por sobrevivência. Exigência urgente de inserir esse povo indígena – por meio da fotografia e de variadas ações políticas – na teia de embates em que diferen ças são confrontadas e direitos são assegurados. Exigência de estabelecer um lugar de representação para o outro no qual a palavra já não basta, ou nunca se mostrou adequada. Fotografar, para Claudia Andujar, é um ato de afirmação da vida. MOACIR

UMA AFIRMAÇÃO DA VIDA

Nada acontece sem o verbo criar. Estamos criando a cada momento. Criar é vida, é movimento, é ação, e se manifesta predominantemente nas variadas expressões artísticas. A categoria Criar, que me foi atribuída pelo Prêmio Milú Villela –Itaú Cultural 35 Anos, tem esse caráter de amplitude, de transformação com que a arte se apresenta. Criar me revela como um canal para a expressão da união, me dá a síntese do que sou.

LÉA GARCIA

Léa Lucas Garcia de Aguiar é uma atriz que, há sete décadas, atua no teatro, no cinema e na TV brasileira. Sua trajetória reflete a história das artes dramáticas nacionais e como as diferenças raciais são determinantes em nosso país.

Com seu talento, conquistou espaço, trabalhos e fama, mas sua atuação, em geral, esteve restrita a um recorte preestabelecido do que podem ser os perso nagens negros. Essa situação se transformou nos anos 2000, com a ascensão de diretores e realizadores pretos, que conseguiram dar vida a projetos com mais equidade. Léa sempre teve consciência de sua cor e agiu em prol desse ativismo.

Sua estreia se deu no grupo Teatro Experimental do Negro (TEN), em 1952, com Abdias Nascimento. Sua primeira personagem no cinema, Serafina [em orfeu ne gro (1959), dirigido por Marcel Camus], fez dela a primeira brasileira a concorrer ao prêmio de Melhor Atriz no festival de cannes, na França. Tinha 24 anos. Circu lou nas rodas do cinema mundial vestindo Dior e sendo cortejada por atores como Sidney Poitier (Estados Unidos, 1927-2022), mas não se dobrou aos deslumbra mentos. Sabe da falsa maciez das águas.

Viveu uma dezena de personagens no teatro, no cinema e na TV. A populari dade veio em 1976, na novela escrava isaura [de Gilberto Braga (1945-2021)], em que encarnou a vilã Rosa. A partir daí, começou a ser conhecida por alterar textos e abordagens que reproduziam o racismo estrutural. Além de Rosa, fez isso com a professora Leila na novela marina [1980, dirigida por Herval Rossano (1935-2007)], em que deu uma aula sobre quem foi Zumbi dos Palmares (1655-1695), sem subterfúgios históricos conservadores.

Suas atuações memoráveis são diversas: no teatro, por exemplo, fez Josephine Baker (1906-1975) em piaf – a vida de uma estrela da canção [1983, com Bibi Ferreira (1922-2019)] e participou da histórica montagem de a missa dos quilom bos [1988, com direção de João das Neves (1935-2018)]. No cinema, foi uma das protagonistas de filhas do vento [2004, com direção de Joel Zito Araújo (1954)], ao lado da amiga Ruth de Souza (1921-2019), com quem dividiu o Kikito de Me lhor Atriz no festival de gramado (RS). Foi também Jerusa em um dia com jerusa [2018, dirigido por Viviane Ferreira], rodado com uma equipe composta quase exclusivamente de mulheres negras.

A criação, para Léa, deriva do ato divino, bíblico, que gera o mundo e a huma nidade, e a esse ato ela se dedica com habilidade, afã e o corpo banhado pelo suor da faina.

Léa sabe bem que as mulheres negras são a base de sustentação de grande parte das famílias brasileiras e foi assim que criou seus três filhos. Para garantir que nada lhes faltasse, trabalhou também, até a aposentadoria, no Ministério da Saúde e no Instituto Philippe Pinel, sem se afastar da criação artística, deslizando pelas pedras e saindo ilesa.

Este texto faz menção ao poema “Fêmea-fênix”, escrito por Conceição Evaristo para Léa Garcia.

UMA ESTRELA-GUIA

Ao rodar o documentário a negação do brasil, eu tive a chance de conhe cer com profundidade a carreira de Léa Garcia, mas foi ao dirigi-la em filhas do vento que pude compreender por que ela provoca esse imen so prazer em nossos olhos e sentidos quando acompanhamos sua movimentação na tela. Léa não é apenas portadora da historicidade e das experiências de um corpo de mulher negra brasileira que ela representa tão bem quando constrói suas personagens. Creio que o Brasil ignora que ela, mesmo tendo sido a primeira brasileira a ser indicada para a Palma de Ouro de Melhor Atriz do festival de cannes, em 1959, só teve a chance de ser reconhecida nacional mente ao fazer o marcante papel da vilã Rosa na telenovela escrava isaura, em 1976. E, mes mo assim, a partir daí os papéis importantes foram escassos; ela somente voltou a disputar o prêmio de Melhor Atriz em 2005, no festival de gramado, no qual foi vitoriosa por sua atua ção em filhas do vento • Léa, em suas interpretações, vai além da experiência adquirida como uma atriz que nasceu no Teatro Experimental do Negro (TEN) nos anos 1950 e está completando 70 anos de atividades no palco, no cinema e na TV. Essa pluralidade e sinfonia de sentidos que ela traz e provoca com suas interpretações vêm de sua resiliência, de sua capacidade de transformar mágoas ou decepções com uma extrema sensibilidade de rainha. De devolver tudo isso com um porte cheio de altivez e dignidade. É por isso que considero que, na ga leria das grandes atrizes do mundo, Léa está lá. • Hoje, com 89 anos, ela continua intensa, cheia de energia e atuando nos palcos e nas telas, tornando-se a maior referência viva de atriz para as diversas gerações de atores e diretores negros e negras que vieram depois dela. Reconhecer sua condição de estrela-guia é uma tarefa urgente. JOEL ZITO

CÁTIA DE FRANÇA

ÓI NÓIS AQUI TRAVEIZ

EXPERIMENTAR

VERBO

A minha vida foi um encadeamento de experimentações. Quando me deslumbrei com o piano, que a minha mãe quis que eu aprendesse; quando a viola veio para as minhas mãos e descobri como harmonizar nas cordas; quando veio a sanfona e me trouxe a experiência de poder acompanhar grandes músicos brasileiros. As sucessões de experiências me levaram de João Pessoa para o Rio de Janeiro, para Olinda, para a Europa, para viagens inesquecíveis pelo Brasil imenso das pessoas e das paisagens, onde fui engravidando com as palavras de escritores e poetas, embalada por paisagens tão diferentes que fui ensaiando melodias, ritmos e texturas em tantas e tantas músicas e durante todos esses anos. Experimentar é um ato de resistência. É dizer que a vida não para, que cada dia é um novo desafio, um novo alinhavo de possibilidades, um novo mundo ao virar da esquina que tem que ser vivido.

CÁTIA DE FRANÇA

Sou grata por uma vida intensa, que segue se desdobrando em novos ensaios e em novas conquistas. Axé por essa liberdade!

Catarina Maria de França Carneiro é o nome de batismo de Cátia de França, cantora, compositora e multi-instrumentista paraibana cultuada desde seu primeiro disco, 20 palavras ao redor do sol (1979). Relançado em 2021, o trabalho tem canções inspiradas em textos de prestigiados autores da poesia moderna e do romance regional brasileiro. Entre os músicos envolvidos estão Amelinha, Bezerra da Silva, Chico Batera, Dominguinhos, Elba Ramalho, Lulu Santos, Sivuca e Zé Ramalho.

Cátia seguiu uma rota errática no cenário artístico: lançou outros cinco discos (tem dois inéditos), com canções regravadas por diversos intérpretes; publicou livros e compôs trilhas para o teatro e o cinema. Passou períodos de sua vida em João Pessoa (PB), Recife (PE), Olinda (PE), Rio de Janeiro (RJ) e Nova Friburgo (RJ). Tímida e corajosa. Urbana e bucólica. Refinada e popular. Filha de Exu e cató lica, experimentou na literatura o sumo que gerou sua obra – atual e com grande produção inédita. Não lê partituras, mas produz música com criatividade e so fisticação. Recusa convites de parcerias com celebridades. Não mede palavras para exorcizar seus demônios nem para execrar seus desafetos. Da mesma forma, esbanja doçura e delicadeza para declarar afetos e honrar seus deuses.

Sua mãe, Adélia de França [Aliança (PE), 1904 – João Pessoa, 1981], foi uma intelectual e a primeira professora negra da Paraíba. Foi ela quem alfabetizou a filha e a iniciou na música na primeira infância.

Cátia é um corpo que luta constantemente contra o preconceito de raça e de gênero – miúda e com trejeitos contidos, quando é confundida com homem, segue em frente, com doçura e astúcia que fazem jus ao apelido que recebeu da mãe, Cristal, merecido também quando surge preciosa no palco.

Dos experimentos da vida e da arte, diz só não ter provado dois: o santo-dai me e a ideologia política conservadora. O resto ela certamente já experimentou e segue experimentando, espalhando estilhaços de amor.

UMA

MULHER

AO

DO SOL Tem gen te por aí que alavanca todo dia o mundo sem o mundo nem saber. Não desiste do que intui, não abandona o que deseja, não se esquece do que ainda falta e, com o que em princípio pa rece tão pessoal, convoca e estimula o coleti vo. Cátia de França tem tido uma jornada, com seu violão em punho e sua voz em riste, que nos prova que as forças da natureza correm nas suas veias sem descanso, e que ela é um desses pilares de resistência e de talento musical que deveriam estar bem mais nas bocas de cena e na boca do povo. • Quando já estávamos deli berando sobre este prêmio tão cuidadoso, por obra do destino, aconteceu de assistirmos a ela no Sesc Pompeia, em São Paulo. Eu estava emocionada por vários motivos, entre eles por ter tomado conhecimento de suas peripécias com o álbum estilhaços, no começo dos anos 1980, quando minha car reira musical dava os primeiros passos, e seus sons me provocaram e estimularam profundamente. Eu nunca a tinha visto ao vivo. Foi um dos primeiros shows a que pude comparecer após a pandemia. Quando Cátia adentrou o palco, aconteceu uma espécie de aquecimento, uma pajelança de palavras e ritmos, em que ela pare cia saudar com sua banda aquele momento, abrindo as comportas da música e da conexão com o público. Ao final dessa chegada, ela disse algo como: “Agora, sim!”. E o show começou. A plateia jovem não tirava o sorriso do rosto, e as letras das músicas soavam com voz de saudade de dentro de seus carinhosos e empolgados admiradores, entre os quais eu me incluía perfeitamente. • Vigor e irreverência, criatividade sem amarras, sem concessões para fazer parte de um possível merca do ou para ter seguidores, falando na língua dos tempos de hoje. Ora, ser mulher é o primeiro salto radical que precisamos dar para dentro da vida. Depois disso, é sempre seguir ousando cada vez mais. Saltos triplos, carpados, mortais. Solos, barras, argolas e todo um circuito exigente para cumprir. Mulher e instrumentista, mulher e compositora, mulher e líder da banda, mulher e as escolhas, mulher e os desejos, mulher e o tempo. O preço que pagamos por nossa condição nunca deixa de aparecer. Mas Cátia nunca pediu descontos, nunca regateou e nunca esperou no ponto. Foi abrindo seus caminhos e sobrevivendo de seu ofício com coragem e muita paixão. Encontrou o mais precioso tesouro de um artista, sua singularida de, sua maneira de dizer a que veio por meio da música. • O verbo que lhe coube foi experimentar. Fiquei pensando… Experimente ser Cátia para ver o que é bom para a tosse! Experimente essa alegria intacta depois de décadas; experimente ser uma negra nordestina com uma força arretada, filha da primeira professora negra da Paraíba; experimente tocar o violão com essa mão direita tão firme e suingada. Agora escreva “ex-pe-ri-men-tar” 20 vezes ao redor do Sol e você vai ver se formar na sua frente o nome CÁTIA DE FRANÇA! ZÉLIA DUNCAN

REDOR

Submeter-se ao risco. Lançar-se a possibilidades de novas perspectivas. Errar sem medo. Ousar. Correr o risco salutar da aprendizagem. Laboratório para a imaginação social.

ÓI NÓIS AQUI TRAVEIZ

“Para a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz o teatro é instrumento de desve lamento e análise da realidade; a sua função é social: contribuir para o conheci mento dos homens e o aprimoramento da sua condição.” A sentença é extraída do texto de apresentação do grupo de teatro gaúcho em sua página na internet e deve ser lida por muitas vozes, porque nada para eles é individual. Há mais de 40 anos, além de produzir, ensinar e fazer teatro, o grupo-tribo persevera na gestão e na criação coletivas.

Atualmente, o seu núcleo é composto de Aline Ferraz (1979, no grupo des de 2022), Clélio Cardoso (1962, desde 1986), Eugênio Barboza (1979, desde 2004), Keter Velho (1986, desde 2013), Lucas Gheller (1990, desde 2016), Márcio Leandro (1971, desde 2012), Marta Haas (1983, desde 2001), Paulo Flores (1955, desde a fundação), Roberto Corbo (1978, desde 2005) e Tania Farias (1974, desde 1994), além de outra dezena de atuadores e alunos.

Na cidade de Porto Alegre (RS), é praticamente impossível que haja alguém que se interesse por cultura e não tenha visto pelo menos uma peça do grupo, que recebeu a Ordem do Mérito Cultural (2015) e outros tantos prêmios relacio nados às artes das cenas. Sua atuação inscreveu na história do teatro brasileiro montagens de referência, como antígona – ritos de paixão e morte (1990), a saga de canudos (2000), aos que virão depois de nós – kassandra in process (2002), viúvas – performance sobre a ausência (2011) e caliban – a tempestade de augus to boal (2017), essa última com o apoio do programa rumos itaú cultural

O grupo é destaque em diversos aspectos relacionados à inovação, à pesquisa estética e à já falada criação coletiva. Com atuação na rua ou em espaços fecha dos, algumas vezes trazendo os lugares como um elemento cênico-semântico, exploram o trabalho autoral e os recursos físicos do ator, gerando experiências marcantes para o público.

Além da programação de apresentações, o grupo mantém uma sede, a Terreira da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, onde realiza formação contínua e pro move atividades culturais. No espaço, funciona ainda a sua sede administrativa, da qual parte para as periferias com as oficinas populares de teatro, realizadas tam bém de forma contínua. Além de ser tema de teses de mestrado e de doutorado, a tribo tem livros publicados e mantém uma revista, a cavalo louco

Atualmente, pós-pandemia, a Ói Nóis Aqui Traveiz se fortalece na mídia au diovisual com uma série de documentários, além do seu primeiro filme ficcional, produzido de forma coletiva, o curta ubu tropical (2022), também apoiado pelo rumos itaú cultural

Experimentar é, para o grupo, um ato atávico, essencial, e uma prática constan te. A próxima experiência será a remontagem de o amargo santo da purificação – uma visão alegórica e barroca da vida, paixão e morte do revolucionário carlos marighella (2008), dando seguimento à sua prática artística com função social.

UM FAZER COLETIVO QUE É FAZER CIDADE, QUE É FAZER VIDA

Quando a Tribo de Atuado res Ói Nóis Aqui Traveiz surgiu, em 1978, sua intenção já era evidente: fazer teatro nas ruas, fora da caixa das expectativas. Nasceu inventi va e no Sul do país. Artistas querendo subverter e explorar, querendo experimentar a linguagem cênica. E nunca foi só sobre fazer arte; foi sobre fazer vida, pulsão, movimento, fluxo (de ideias e de gentes). Fazer e refazer a própria cidade. • O teatro da Tribo de Atuadores é de imersão, de pesquisa, e se caracteriza também por fa zer política. Nesse sentido, nos anos 1980, o grupo criou sua Terreira, sede-casa em que suas ideias ocupam o espaço, mas também abrem caminhos para que mais pessoas façam arte, pensem arte. E, assim, o que poderia ser um local para ensaios (e isso não é pouco quando falamos de Brasil) se tornou um centro cultural que abriga aulas, oficinas, exibições de filmes, debates e um tanto mais. Mesmo sendo uma re ferência em Porto Alegre (e no país), a Tribo de Atuadores enfrenta batalhas para manter-se ocupando sua Terreira. Um grupo com uma história de mais de 40 anos e que precisa resistir. O mais importante é que é isto que a trupe mais quer: fazer revolução por meio de sua arte. • Criar com a cidade, formar artistas e transformar linguagem e pensamento em poética são as ações, as missões e os desafios que foram marcando a história da tribo e lhe trazendo identidade, força, razões de ser, amadurecimento e ainda mais potências. Que a Ói Nóis Aqui Traveiz faça sempre e sempre mais. Evoé! ANINHA DE FÁTIMA SOUSA

DANILO MIRANDA

NEON CUNHA

INSPIRAR

Gesto intimamente conectado à dádiva, concebe um arco junto com a expiração e a transpiração, e faz transitar no outro, pelo outro, energia e entusiasmo.

Estimula a fruição de sentidos e afetos, por meio da permanente sucessão que adjetiva as relações e a aventura humana.

Sem a inspiração não seríamos capazes de plasmar nossos seres. Nosso caráter seria uno, estanque. Com ela forjamos a diferença, pois são distintas as maneiras como cada um ativa o sopro e o movimento. Dessa diferença advém a construção de sociedades formadas por subjetividades e perspectivas de vida plurais, capazes de transformar cenários, produzir intensidades e renovar incessantemente a dignidade dos seres.

DANILO MIRANDA

Nesse vai e vem alumiador, que igualmente tem nos entes e nas instâncias da natureza papel inconteste, a inspiração é, simultaneamente, oferecida e recebida, ao trazermos para próximo do peito, dos pulmões, a pulsão que mantém nossas imaginações pungentes e nossas éticas diligentes.

Danilo Santos de Miranda é um dos grandes nomes da cultura e das artes con temporâneas. Seu trabalho não é consumido diretamente pelo público, mas faz com que, semanalmente, pelo menos 500 mil pessoas tenham contato com arte, cultura e lazer nas 49 unidades com programação para os frequentadores do Serviço Social do Comércio (Sesc) de São Paulo.

Natural do interior do Rio de Janeiro, criado em uma família de classe média, desde criança teve contato com as expressões artísticas e seguiu, até os 23 anos, os estudos para ser jesuíta. Ao deixar o seminário, prestou concurso para o Sesc e encontrou a sua real vocação. Altruísta confesso, sem falsa modéstia, vê seu trabalho de ação e gestão cultural como uma forma de fazer bem à humanidade.

Os centros de convivência das unidades do Sesc são iniciativas voltadas para a difusão do conhecimento e o acesso a informação e a conteúdos educativos, com programação contínua de atividades culturais abrangendo arte e educação, além de equipamentos e aulas de práticas esportivas e espaços de lazer. Com mais de 7 mil funcionários, a entidade atua também por meio de canais virtuais – com visitação semanal que ultrapassa os 450 mil usuários – e da TV Sesc.

Admirador de Mário de Andrade (1893-1945), Danilo segue seus preceitos na gestão cultural e vê nos projetos dos parques infantis que o escritor implantou em São Paulo entre 1935 e 1938 um antecedente do trabalho do Sesc, unindo prática esportiva e fruição artística.

As interseções entre educação e cultura, para Danilo, ainda são um desafio a ser vencido. Segundo ele, o divórcio entre essas práticas, esse afastamento entre as instituições de ensino e a produção cultural, dificulta que as pessoas vivenciem uma experiência de maior crescimento com arte e cultura.

Às vésperas de completar 38 anos à frente da diretoria regional do Sesc/SP, ins tituição fundada em 1946, ele é generoso com o futuro – o seu e o do país. Acredita que, seguindo o exemplo da aposta do Sesc na participação dos mais velhos em sua grade de programação, se manterá ativo ainda por muito tempo – à frente do Sesc enquanto for necessário e, depois, dedicando-se aos projetos que mantém guarda dos à espera de tempo. Atualmente, sua agenda não permite outras aventuras.

Para ele, a inspiração é o ato da respiração que enche os pulmões do ar exter no, e é essa a simbologia que importa. Preencher-nos com o que está fora para alimentar o corpo, a mente e o espírito, e seguir nosso trabalho de manter a vida em sociedade como uma experiência de crescimento, transformação e liberdade.

UMA CARTA PARA UM MESTRE Danilo, você sempre foi uma re ferência para o meu trabalho em gestão cultural, um horizonte, no sentido da dimensão de futuro. Sua ética e seu espírito público são um exemplo de entrega e convívio cuidadoso e sereno que nos inspira. E estou certo de que falo isso não apenas em primei ra pessoa, mas também em nome de todos que trabalham no fazer da cultura. • Sua imagem transmite força e determinação, e a tenacidade em perseguir seus objetivos faz sua vida se con fundir com a gestão cultural contemporânea. Na comissão de seleção do prêmio, por exemplo, o destaque na categoria INSPI RAR foi legítimo e natural. • Sou um aprendiz de sua prática, que desafia os mo delos convencionais, criando pontes entre educação e cultura e oferecen do uma pluralidade de ações e proje tos de arte, de cultura, de lazer e de bem-estar. Tudo com qualidade e de forma acessível e acolhedora. Apren diz também de sua bagagem cultural, que me apresentou à obra do filóso fo Edgar Morin (Paris, 1921) – a seus conceitos de uma humanidade ao mesmo tempo una e múltipla, cuja riqueza está na diversidade cultural – e me mostrou que o conhecimen to é um processo ativo que implica nossa constante atenção e interpre tação da vida. • Obrigado por (nos)

Cresci para ser invisível, para ser uma pária, um nada ou, talvez, como nas palavras de meu pai, uma mundiça. Mas foi agachando para limpar rodapés nas faxinas em que acompanhava minha mãe, Dona Salette, com dois tês, que aprendi que, por mais que tentassem nos tornar invisíveis, era na excelência do trabalho entregue que iriam sentir e desfrutar das nossas competências. Minha primeira e mais potente formação foi na faxina. Anos depois, a ditadura me ensinou, no “joga pedra na Geni”, quais são as corpas que se violam, e mais uma vez a menina que sentava debaixo da escada no gabinete do prefeito era a mesma que, mais tarde, levantaria da calçada após ser pisada pelo coturno do policial, que na sequência violaria seu corpo. E que, em terreiros de candomblé, aprendeu que o corpo não se viola, porque é instrumento de Orisá, de divindade; o corpo é o instrumento do gênero.

NEON CUNHA

A menina sonhava que já era mulher; afinal de contas, cada uma de nós sabe a profundidade da própria existência. Ela também aprendeu que as utopias são possíveis – a tecnologia, a ciência, as artes e as culturas nos provam isso todos os dias. Sendo assim, reconheço as garras afiadas por Dona Salette, essa pantera desejosa de que suas crias voassem alto. Panteras só gestam panteras. E nós, as negras, anomalias produzidas pelo melanismo felídeo, nem sequer sabemos onde nasceremos; surgimos e ocupamos vidas, muitas vezes indesejadas. Então, mais do que nos autonomear, é preciso garantir que ouçam nossos nomes e que os honrem – e por isso agradeço e reconheço a potência de mulheres negras das mais diversas possibilidades de existir, mas é a vocês, jovens trans e travestis, aves de rara beleza, que peço que voem alto, fazendo sombra para que a pantera possa se camuflar. E, nesse mimetismo, eu garanto a vocês um pouso seguro, onde os medos não podem substituir os sonhos.

Neon é um gás nobre que, ao ser atravessado por uma corrente elétrica sob bai xas pressões, emite uma luz brilhante de diferentes tonalidades. O nome vem do grego “novo”. Neon Cunha é uma mulher negra, ameríndia e transgênero que ofe receu a vida para mudar procedimentos legais abusivos exigidos em processos de troca de nome e de gênero de pessoas trans. Neon é nova, colorida e brilhante. Sua história começa em uma família humilde que migra de Minas Gerais para o ABC Paulista, na década de 1970, em busca de melhoria de vida. Não lhe faltava amor, principalmente da mãe, Dona Salette, que a entendia e acolhia. Por isso, ainda na primeira infância, a mãe a levava para o trabalho de faxineira a fim de protegê-la da violência de gênero do meio machista em que estava.

E foi na faxina que Neon afirma ter se descoberto feminina. Lavando prato, limpando a casa, cozinhando. Ela aprendeu logo a ficar quieta e calada para evitar confrontos e humilhações. E foi desenvolvendo suas táticas para que a vida não lhe escapasse.

Seguiu seu trajeto, repleto de violências e de exclusão. Racismo, homofobia, apo rofobia. Mas não parou. Estudou, aprendeu, produziu, sobreviveu e se destacou, sem perder de vista as belezas. E encontrou no caminho mulheres que a aco lheram: uma professora que usava o pseudônimo Carila Aliel, a amiga Ilva Aceto Maranesi e tantas outras.

Neon relata que a primeira ameaça de violência sexual foi em seu primeiro em prego regular, aos 12 anos, no almoxarifado da empresa. Conseguiu escapar. Mas, ao longo da vida, à medida que se encontrava como pessoa e mulher no meio do trottoir do Centro de São Paulo, ela enfrentou outras violências, inclusive sexuais, e de algumas não teve como fugir. Viu conhecidos e amigos ser executados. Acom panhou de perto a classe artística, a vadiagem, todos os tipos comungando desse espaço libertário e cruel que a noite propicia.

Foi expulsa de casa. Formou-se na universidade, trabalhou como publicitária, diretora de arte, no mundo da moda, sempre atenta às suas iguais trans, e levan do em sua trajetória quem podia.

Em 2016, pediu à Justiça o direito à morte assistida caso não pudesse mudar de nome e de gênero sem o diagnóstico médico de uma patologia. Conseguiu e abriu uma porta para muitas outras pessoas seguirem esse caminho. Segundo ela, nada mais nada menos do que o que assegurava a “Constituição”, em vigor na época havia 28 anos.

No mesmo ano, virou o nome de uma ONG em São Bernardo do Campo (SP), a Casa Neon Cunha, que presta serviços de atendimento psicológico, de nivelamen to educacional e de articulação de rede para pessoas LGBTQIA+ e seus familiares.

Para Neon, inspirar é alimentar sonhos, afastar medos e estimular outras pes soas a sonhar. E assim ela segue, onde quer que atue, seja na arte e na moda ou assistindo os excluídos, com a certeza de que as coisas mudam e melhoram, e de que o rastro de dor e humilhação que marca a vida de uma pessoa trans não pode durar para sempre. Para sempre são suas características: nova, colorida e brilhante.

UMA

MULHER DE POEIRA CÓSMICA

Quando o verbo respirar se fez carne e habitou entre as mulheres, desde sempre, ela já estava. Não há cronologia que dê conta de sua existência nem documento, cartório ou retificação maior que olhar na cara da morte todos os dias e a cada vida ceifada de uma das suas. Afinal, continuamos validando o mórbido mantra de que o Brasil é o país que mais mata travestis, desde sempre. E até quando? • Subverter, retorcer, carbonizar a esta tística, quebrar o “cistema” (o sistema cis) a cada dia deve ser muito cansativo; é preciso, de vez em quando, subir e buscar ar, encher os pulmões com reserva para manter a energia vital, isso que também se conhece por inspirar. É preciso que uma mulher negra, ameríndia e transgênero ultrapasse um marco de meio século respirando para nos lembrar que tantas outras não acessam esse direito básico, e simplesmente porque não existem garantias para quem transpira na borda da existência. • Neon atua em muitas frentes em prol da restituição das humanidades, posicionando seu trabalho seja em moda, publicidade, curadoria, gestão pública ou na produção de pensamento crítico, como trincheiras para pro blematizar nossa cultura hegemônica, que segue renovando os pactos patriar cais, em especial na luta por garantias de direi tos daquelas que se inscrevem nas interseções entre raça e gênero. • No auge da pandemia de covid-19, Neon mobilizou uma campanha para a materialização da Casa Neon Cunha, em São Bernardo do Campo. Um espaço de acolhimen to para pessoas LGBTQIA+ em estado de vulne rabilidade social. Desde março de 2022, a casa é uma realidade que concebe e impulsiona pro jetos para a restituição da cidadania e a melho ria de vida dessa população. • Quando Neon se mexe, um tanto de nós se move junto. Celebrar, abraçar e agradecer sua existência luminosa é, também, movimento ativo. Um oráculo digital me soprou que a “explosão de algumas estrelas e a formação de outras levam à libertação de grandes quantidades de gás, fazen do neon espalhar-se nas nebulosas”. É isso, Neon também é poeira cósmica aqui mesmo na Terra, e assim a apresentamos, saudando sua existência e evocando outras iniciativas para que mais e mais mulheres negras, mais e mais mulheres trans brilhem, VIVAS, entre nós. GALIANA BRASIL

INAICYRA FALCÃO

MARCOS TERENA

VERBO MOBILIZAR

Nas artes, em seu contexto amplo e plural, pensar a intimidade das relações entre tantos corpos multicoloridos e suas ancestralidades é, invariavelmente, mobilizar diferentes territorialidades e temporalidades. Nosso passado entremeado por tantas diásporas reivindica outras formas de narrar nossas histórias, para que deste mesmo presente possamos projetar um futuro que seja pelo menos mais múltiplo e diverso. Articular mundos, nesse sentido, é um gesto ético, estético e radical de respeito às singularidades que estruturam qualquer coletividade, como as nuances e as sutilezas vitais para um bom conviver. Só a pluralidade da arte é capaz de inspirar e mobilizar tantas memórias, desejos e afetos em tamanhas intensidades. Estar em movimento é também uma forma de mobilizar sonhos, paixões e imaginários, mas principalmente nossa força de realização (axé).

INAICYRA FALCÃO

Inaicyra Falcão dos Santos é uma referência no estudo das artes cênicas brasileiras. Passou por todos os graus acadêmicos de universidades e por instituições de ensino no Brasil, nos Estados Unidos, na França, na Inglaterra e na Nigéria. Passou também por palcos europeus e brasileiros, dançando. Conhece sua família paterna até a sex ta geração, porque são pessoas históricas na invenção do que é Salvador (BA), a mais africana cidade brasileira.

Na segunda metade do século XIX, viveu na capital da Bahia sua ancestral Marcelina da Silva, Obá Tossi (Costa da Mina, século XIX – Salvador, 1885), sacer dote fundadora do candomblé brasileiro que desmontou o estereótipo dos escra vizados com uma vida próspera, que a permitiu inclusive visitar a África. Depois de duas gerações, veio Maria Bibiana do Espírito Santo, Mãe Senhora (Salvador, 1890-1967), outra líder religiosa de grande projeção e cujo filho, Deoscóredes Maximiliano dos Santos, Mestre Didi (Salvador, 1917-2013), foi um renomado ar tista – escritor e escultor – e sacerdote, que também retornou à África, onde con firmou que Marcelina, Maria Bibiana e ele descendiam da família real Asipá, de Queto, cidade do império iorubá. Ele é o pai de Inaicyra.

Em corpo e ancestralidade: uma proposta pluricultural de dança arte edu cação (2002), Inaicyra parte de sua experiência pessoal para encontrar o univer sal: que o gesto é memória – movimento do corpo nos trabalhos e nas atividades cotidianas que carregamos, repetimos e expandimos. E que qualquer um pode construir, a partir desses registros, um repertório próprio para assim se expres sar. Nessa busca dos registros, é muito comum encontrar um mito, outra vez o universal, que se repete em vários povos ao longo da história, princípio da ances tralidade humana.

Assim ela mobiliza gerações de alunos, estudantes e artistas, que cada vez mais trazem sua epistemologia para a cena e a pesquisa – como nos artigos reu nidos no livro rituais e linguagens da cena: trajetórias e pesquisas sobre corpo e ancestralidade (2012), de que é coorganizadora.

Cantora lírica com um disco gravado (okan awa: cânticos da tradição yorubá, 2000) e outro em produção, Inaicyra repetiu no canto a busca pela expressão pró pria, com a fricção entre tempos, tradição e contemporaneidade.

Sua trajetória é exemplar na luta contra o racismo estrutural. Ela levou a cultura afro-brasileira para lugares de tradição eurocêntrica, para a academia e a música erudita, com os sentidos atentos para projetar e convidar as novas gerações da pretitude a ocupar esses espaços, dos quais foram tradicionalmente apartadas.

Inaicyra é sofisticada, inteligente e elegante. Brinca que prefere carregar plu mas a enfrentar os inconvenientes ordinários do dia a dia. Questionadora, exi gente, dramática. Ela rejeita o senso comum e a generalização, que turvam exis tências singulares. E segue fiel aos seus ancestrais, transformando essa devoção em arte quando canta, dança, pensa.

O mundo mobiliza Inaicyra Falcão e ela mo biliza mundos. Suave e continuamente, ela articula saberes que podem coexis tir pela sua generosidade e amplitude de conhecimentos, ao mesmo tempo que penetra as dobras do mundo com arte e vida. Com sua família, muitos portais se abriram: é filha de Edvaldina Falcão dos Santos, “a mola propulsora e sua in centivadora para os estudos formais”, e Deoscóredes Maximiliano dos Santos, o Mestre Didi, escritor, artista plástico e Alapini (sacerdote do culto de egungum na tradição iorubá), quem lhe revelou o mundo das artes e das tradições. É também neta de Maria Bibiana do Espírito Santo (1890-1967), a Mãe Senhora, célebre ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá, com quem vivenciou intensamente a coletividade, as festividades, seus preparativos e rituais ancestrais. “Eu tinha uma sede muito grande de ser uma artista, de me expressar, desde pequena, cantar, dançar, de senhar, pintar. Cada um tem uma história, e eu tinha a minha, presente. Preciso ver mais, conhecer mais, aprofundar mais essa história. Sempre fui questionado ra em busca de possibilidades. A arte é tudo para minha vida, ela é muito forte.”

• A metáfora da territorialidade da tradição nagô, “da porteira para dentro, da porteira para fora”, traz o espírito de Inaicyra, que vive as tradições e dialoga com distintas comunidades e saberes. É uma multiartista, da dança e do canto lírico, e também uma referência acadêmica. Iniciou seus estudos universitários com a graduação em dança na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e cruzou o mundo em busca de diálogos: mestrado em artes teatrais pela Universidade de Ibadan (Nigéria), doutorado em educação pela Universidade de São Paulo (USP) e livre-docência em práticas interpretativas pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Fez cursos no Laban Centre (Londres), na Schola Cantorum (Paris) e na The Ailey School (Nova York). Para Inaicyra, “quanto mais a gente via ja, vive, mais escolhas tem”. • Tudo se dá em diálogo: a arte, a pesquisa, a experimentação e a formalização, percebendo o universo por diversos prismas. Seu método: corpo e ances tralidade incentivam a criatividade, a experiên cia, as emoções e as memórias, e levam a um processo de aprendizagem que potencializa as trajetórias pessoais. O corpo modula, em cada fragmento, a dança, o canto, o figurino, a culi nária... E articula saberes com fluxos, acentos e suspensões. Para Inaicyra, o “ser humano pre cisa transcender. Discriminamos não somente a cor de pele, e sim muitas coisas: religião, classe, etnia... Podemos mudar com o contínuo e aten to respeito a si e ao outro, em um convívio mú tuo que faz a diferença”. INÊS BOGÉA

UMA ARTICULADORA
DE UNIVERSOS

Desde criança, aprendemos em nossas aldeias o sentido de percepção. Ouvir, olhar e, assim, exercitar o espírito de iniciativa e liderança para diversos tipos de atividade ao longo do dia e da vida, só ou como parte da coletividade.

Eram momentos em que iniciávamos nossa capacidade de liderar e compartilhar interesses. Quando aprendemos essa etapa, torna-se possível construir nossos caminhos. São ensinamentos falados e, por isso, nunca os esquecemos; afinal, vão estar sempre conosco.

Nossas reuniões eram troca de ideias pela construção do bem e da paz. Assim fizemos. Apenas reproduzimos na linguagem moderna o mobilizar para o bem comum.

MARCOS TERENA

Mariano Justino Marcos Terena é um precursor de diversas frentes da luta dos povos indígenas brasileiros. Pertence à etnia Xané, como se autodenominam os Terena. Nasceu na região onde hoje está localizada a terra indígena Taunay/ Ipegue, em Mato Grosso do Sul, e, orientado pela família, foi estudar em Campo Grande, trilhando uma carreira de êxito que o levou à aprovação nos exames da Aeronáutica e da Força Aérea Brasileira.

Decidiu seguir a carreira de piloto, depois de cumprir todas as exigências e as horas de voo necessárias, mas esbarrou no preconceito estrutural. A legislação brasileira definia os indígenas como relativamente incapazes, e por isso ele não podia exercer essa atividade. Não foi a primeira nem a última vez que sua origem restringiu suas possibilidades, o que o levou a encontrar outros modos de atingir seus objetivos e a desenvolver sua capacidade de liderança e mobilização.

Marcos morou durante anos na Casa do Ceará, em Brasília (DF), onde conviveu com indígenas de outras etnias. O local tinha um convênio com a Fundação Na cional do Índio (Funai) para dar moradia a estudantes universitários. Desse conví vio nasceu o primeiro movimento político indígena brasileiro, que, entre os anos de 1978 e 1980, chamou a atenção do governo federal militar, que tentou expul sá-los do espaço. Mas isso não desmanchou o movimento, que se fortaleceu com a repercussão na mídia e ganhou o nome de União das Nações Indígenas (UNI).

Em 1986, Terena concorreu a uma vaga na Assembleia Nacio nal Constituinte, com o apoio de políticos e artistas como Chico Buarque e Gonzaguinha. Ficou como suplente e, dessa forma, organizou um movimento que conseguiu aprovar um capítulo na “Constituição de 1988” sobre a questão indígena. Já pilotava aviões para a Funai, aumentando, assim, seu contato com povos autóctones pelo país.

Em 1992, foi convidado pela Organização das Nações Unidas (ONU) para a conferência das nações unidas sobre meio ambiente e desenvolvimento, no Rio de Janeiro. Colaborou para a criação de um parque temático inspirado na arquitetura ianomâmi e na sua força mobilizadora. Voltou à organização para a criação do Fórum Permanente sobre Questões Indígenas em Nova York e para a aprovação da “Declaração da ONU sobre os direitos dos povos indígenas”.

A lista de suas atividades inclui, ainda, processos de demarca ção de terra de diversas etnias; uma produção para rádio, TV, re vistas e jornais; e o processo de criação de cotas para indígenas nas universidades brasileiras.

Com o irmão Carlos Terena (1954-2021), criou os jogos dos povos indígenas, que gerou os jogos mundiais dos povos indíge nas. O nacional já teve 12 edições. O internacional, duas edições, e está em planejamento para voltar a ocorrer em 2023, no Rio de Janeiro. Os jogos funcionam como um evento afirmativo para os indígenas e são organizados de acordo com lógicas próprias, em

que as modalidades derivam de práticas específicas, sem relação direta com as olímpiadas ou com outros esportes ocidentais, ex ceto o futebol, que está sempre presente.

Há anos morando em Brasília, ele volta com frequência a Mato Grosso do Sul para visitar parentes e fazer contato com os jo vens, sem perder de vista a necessidade de mantê-los atentos à causa indígena. Em suas aparições públicas, faz questão de usar seu cocar de penas de ema, animal místico para os Terena, et nia com uma população estimada de 16 mil pessoas (2001), que vivem em um território descontínuo, nove municípios sul-mato -grossenses e no estado de São Paulo.

A ema, maior ave brasileira, fornece matéria-prima para os adereços e dá nome à prática cultural Kohixoti-Kipaé, a dança da ema. Na cosmologia Terena, o animal está relacionado também a um grupo de estrelas da Constelação de Touro conhecido como Plêiades, que no mês de maio, em Mato Grosso do Sul, atinge o ponto de maior visibilidade. Contam ainda que essa ema celeste, quando o céu cair sobre a terra, descerá para comer os olhos dos homens.

Enquanto o céu não cai, para ver se evitamos essa fatalidade, façamos como diz Marcos: “Caminhemos em direção ao futuro no rastro dos nossos ancestrais”.

UM BRASILEIRO QUE ORGULHA O BRASIL

“Posso ser quem você é sem deixar de ser quem sou.” Essa foi uma frase profética criada pelo líder indígena Marcos Terena nos idos dos anos 1980. Nela, ele já previa as dificuldades pelas quais os jovens indígenas passariam ao se deparar com uma sociedade historicamente cen trada em uma visão estereotipada dos povos originários, obrigando-os a ter de se afirmar de modo permanente para combater a negação historicamente produzida. • Marcos Terena sempre foi um articulador muito perspicaz, que soube conduzir com maestria as várias negociações políticas nos níveis nacional e internacional; sempre foi um grande descobridor de talentos entre as jovens lideranças; sem pre foi um condutor exigente de eventos culturais que destacavam a capacidade esportiva e estética de nossa gente ancestral; sempre liderou, sem estrelismo, conferências, encontros, seminários e debates; sempre organizou, propôs, dis parou, promoveu, enfim, liderou o movimento indígena, fazendo-o chegar orga nizado e unido para a aprovação dos artigos que hoje estão presentes em nossa “Constituição” cidadã. • Marcos Terena é, por causa de todo o seu trabalho como articulador, muito merecedor do prêmio que agora recebe. Seu exemplo de luta e sua conduta o alçam, certamente, ao posto de um brasileiro que orgulha o Brasil.

SELECIONADORES

ANINHA DE FÁTIMA SOUSA é gerente do Núcleo de Comunicação e Relaciona mento da Fundação Itaú.

DANIEL MUNDURUKU nasceu em Belém (PA) e é filho do povo indígena Munduruku. Formado em filosofia, com licenciatura em história e psicologia, tem mestrado e doutorado em educação pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutorado em linguística pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Já recebeu vários prêmios nacionais e internacionais por sua obra literária e lecionou e atuou como educador social de rua pela Pastoral do Menor de São Paulo. Participou de confe rências e ministrou oficinas culturais para crianças no Brasil e na Europa.

DIONE CARLOS é dramaturga, roteirista, atriz e curadora. Possui 25 peças de teatro encenadas no Brasil e em países da Europa e das Américas. Tem seis livros publicados, além de textos e artigos de sua autoria em sites e revistas especializa das em dramaturgia e poesia. Ministra oficinas em diversos espaços culturais pelo Brasil. Foi orientadora artística no Núcleo de Dramaturgia da Escola Livre de Tea tro de Santo André por três anos, onde também ministrou o curso de dramaturgia.

EDSON NATALE é músico, escritor e jornalista e foi gerente de música do Itaú Cultural. Organizou o guia brasileiro de produção cultural e o livro direito, arte e liberdade e gravou seis CDs solo: nina maika (1990), sol de inverno (1992), aboio (1993), quando eu soube que você viria (1995), lavoro (coletânea, 1999) e calvo, com sobrepeso (2007). É autor dos livros infantis a história do incrível peixe ore lha (2003), o pequeno calendário para os que sabem ler o tempo (2009) e balila, a minhoca bípede (2018).

EDUARDO SARON é presidente da Fundação Itaú.

GALIANA BRASIL é gerente do Núcleo de Artes Cênicas, Literatura e Música do Itaú Cultural.

INÊS BOGÉA é diretora da São Paulo Companhia de Dança (SPCD) e da São Paulo Escola de Dança. Doutora em artes, bailarina, documentarista, escritora e profes sora no curso de especialização arte na educação: teoria e prática, da Universi dade de São Paulo (USP), e no de pós-graduação linguagem e poética da dança: documentário , memória e dança , da Universidade Regional de Blumenau (Furb). Foi crítica de dança na folha de s.paulo de 2001 a 2007. É autora de livros infantis e documentários. Foi consultora da Escola Técnica Municipal de Teatro, Dança e Música (Fafi), de Vitória (ES), e do Programa Fábricas de Cultura, da Secretaria da Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo.

JOEL ZITO ARAÚJO é diretor, roteirista, escritor e pesquisador. É doutor em ci ências da comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP) e pós-doutorando nos departamentos de rádio, TV e cine

ma e de antropologia da Universidade do Texas, em Austin, nos Estados Unidos. É tido como um dos responsáveis pela implantação do chamado cinema negro, tanto na ficção quanto no documentário, com filmes que debatem o racismo e a desigualdade entre negros e brancos, entre eles: a negação do brasil (2000), o pai da rita (2022) e filhas do vento (2004).

MOACIR DOS ANJOS é pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), no Recife (PE). Foi diretor do Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (Mamam) de 2001 a 2006, e curador da 29ª bienal de são paulo (2010) e de exposições diver sas em instituições de arte no Recife, em São Paulo e no Rio de Janeiro. É autor, entre outros, dos livros local/global: arte em trânsito (2005), artebra crítica (2010) e contraditório: arte, globalização e pertencimento (2017).

SOFIA FAN é gerente do Núcleo de Artes Visuais do Itaú Cultural.

TATIANA PRADO é gerente do Núcleo de Memória e Pesquisa do Itaú Cultural.

ZÉLIA DUNCAN começou a cantar profissionalmente em 1981. Tornou-se na cionalmente conhecida com a música “Catedral”, em 1995. Ao longo de 40 anos de carreira, lançou 15 discos e 5 DVDs solo e ganhou vários prêmios. De 2015 a 2020, assinou o roteiro do Prêmio da Música Brasileira. Em 2019, lançou tudo é um e o álbum-manifesto eu sou mulher, eu sou feliz. Foi colunista semanal do jornal o globo.

Todas as fotos deste fôlder são de autoria de Murilo Alvesso – exceto o ensaio de Neon Cunha, em que há também imagens feitas por Matheus Castro, e o retrato de Milú Villela, feito por German Lorca em 2006.

APRENDER

Ana Mae Barbosa Mestre Meia-Noite (Gilson Santana)

CRIAR Lia Rodrigues Véio (Cícero Alves dos Santos)

EXPERIMENTAR

Hermeto Pascoal Teatro da Vertigem

INSPIRAR

Eliana Sousa Silva Niède Guidon

MOBILIZAR

Davi Kopenawa Sueli Carneiro

PRÊMIO ITAÚ CULTURAL 30 ANOS (2017)

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