Todos os gêneros 2025 - Qual o peso (da falta) do amor?

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todos os gêneros : mostra de artes e pluralidades

todos os gêneros: mostra de artes e pluralidades são paulo, 2025

Qual é o peso (da falta) do amor?

expediente coordenação editorial

André Furtado, Carla Chagas e Kety Fernandes Nassar conselho editorial

Carlos Gomes, Galiana Brasil, Icaro Mello, Regina Medeiros, Roberta Roque e Vinícius Murilo (até abril de 2025)

edição de texto

Icaro Mello produção editorial

Luciana Araripe e Pedro Soares Bueno (estagiário) supervisão de revisão de texto

Tatiane Ivo revisão de texto

Karina Hambra e Rachel Reis (terceirizadas) projeto gráfico

Guilherme Ferreira produção gráfica

Lilia Góes (terceirizada) fotografia

Letícia Vieira

editorial

Como é para o corpo sustentar o amor?

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6 amor

Entre Eros e Philia: refazer as tramas do amor, por Ernani Chaves

perda Luto e amor, por Carla Rodrigues

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poesia

Amor de salvação Neide Archanjo

entrevistas

Toda forma de amor, por Icaro Mello com be_rgb, Marina Vergueiro, Gil Oliveira, Stephanie Borges e Edu O.

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Serviço

ensaio fotográfico

Cia. Fundo Mundo

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Como é para o corpo sustentar

amor?

como é para o corpo sustentar o amor?

pesa como aterramento pesa como algo que paralisa pesa tão leve que o corpo flutua mergulha ou afoga

O que acontece quando o amor é negado? O que acontece quando os vazios moldam corpos, afetos e narrativas?

O amor romântico, familiar, comunitário, o amor-próprio e até mesmo o amor impossível se desdobram em cena, em diversas expressões de arte e reflexão, para expor tensões, contradições e ressignificações.

Em sua 12ª edição, Todos os Gêneros:

Mostra de Artes e Pluralidades se lança ao desafio de investigar o amor e suas reverberações de presença/ausência nos corpos e nas existências LGBTQIAPN+, por meio do diálogo e das poéticas de uma programação que reúne artistas, grupos e coletivos que, com diferentes linguagens, se pronunciam e compartilham suas experiências numa ação continuada que vem sendo, a cada ano, arena de construção e visibilidade de temas plurais pungentes de nossa cultura e sociedade.

Nesse contexto, emerge a pergunta que atravessa esta edição da mostra e provoca deslocamentos e escutas: “Qual é o peso (da falta) do amor?”. A partir dela, lançamos um convite para sentir, refletir e, quem sabe, reinventar as formas de amar e existir.

Conheça a programação completa da mostra em itaucultural.org.br. Lá também estão disponíveis os conteúdos das edições anteriores, como versões digitais das publicações e depoimentos em vídeo. Além disso, a coleção

Todos os Gêneros, disponível em itauculturalplay.com.br, apresenta o

melhor da produção LGBTQIAPN+

brasileira no audiovisual, com curtas e longas-metragens ficcionais e documentais que confrontam o preconceito e celebram as diferenças.

Itaú Cultural

Amor é coragem

Entre Eros e Philia: refazer as tramas do amor

Ernani Chaves amor

É muito conhecida a narrativa acerca do nascimento de Eros contada por Aristófanes em O banquete, de Platão. No princípio dos tempos, os seres humanos eram constituídos em dobro: duas cabeças, quatro braços, quatro pernas, mas também com os sexos duplicados, e assim por diante. Sentindo-se poderosa, a humanidade se rebelou contra Zeus, e o castigo chegou rápido: Zeus dividiu ao meio todos os humanos e, assim, cada um de nós se dedicou à tarefa de encontrar a metade perdida. Tais encontros, por sua vez, não se adequavam ao binarismo, desta forma, um homem poderia encontrar sua metade em outro homem; e uma mulher, em outra mulher.

Aristófanes, conhecido comediógrafo, não cessou de ridicularizar os filósofos em suas obras, em especial Sócrates. Platão, ao colocar na boca de Aristófanes a narrativa dos seres cindidos, condenados a buscar sua metade, tinha

como objetivo ridicularizar aquele que zombava dos filósofos, em especial de seu amado mestre, pois, para Platão, uma tal busca pela outra metade era apenas digna de riso. Inventar o mito da busca pela metade perdida não passava de uma piada, de uma zombaria. Só mais adiante, quando entrou em cena uma mulher, uma sacerdotisa e estrangeira chamada Diotima, é que a concepção platônica de Eros foi aparecer.

Eros, na verdade, não é um deus, mas o fruto de uma relação não desejada, concebido às margens da festa que celebrava o nascimento de Afrodite, a deusa da beleza. Embriagado pelo néctar dos deuses, Poros, belo jovem, adormece. Pênia, símbolo da penúria e da carência, que recolhia as migalhas da festa, aproveita-se dele, e dessa união nasce Eros. Do pai, ele herda a atração pelo que é belo. Da mãe, a carência, a falta. O modelo do Eros propriamente platônico (não sua representação

Parece bem fácil reconhecer nessa história os destinos da noção de Eros na nossa cultura ocidental. Aclimatada pelo cristianismo, a concepção de Eros, agora também chamado de Amor, continua marcada pela busca da outra metade, mas também foi ampliada para outras formas de manifestação do amor, entre as quais o amor ao próximo no interior da comunidade fraterna e, pairando acima de nós, o maior dos amores, o de Deus pela humanidade. Essa concepção ganhou mais força no Romantismo, embora se reconheça já

15 renascentista, do amor a distância ou nunca declarado) é marcado, portanto, pela busca incessante de algo que nos falta – no caso do filósofo, por exemplo, a sabedoria. Muitos séculos depois, na segunda metade do século XX, ou seja, bem perto de nós, essa concepção de Eros se transformou na própria concepção do sujeito como ser desejante marcado, justamente, pela falta.

nesse momento que essa busca pela outra metade é marcada pela paixão, pelo sofrimento. Por outro lado, que o Amor sinaliza para a carência e a falta também faz parte de nossa relação com esse sentimento. A descrição platônica da herança materna (poderíamos falar muitas coisas sobre essa relação entre o feminino e os destinos da nossa cultura) não deixa de nos assustar no seu realismo tão conhecido por nossa experiência: carente e faltoso, Eros é um mendigo, sem abrigo, sem lar, faminto, batendo de porta em porta em busca de ajuda. Eros não apenas nos faz celebrar a beleza e os encantos dos prazeres, levando-nos a sonhar com as promessas de uma eternidade feliz (“E foram felizes para sempre” é um desfecho comum das histórias românticas), mas também nos coloca na condição de escravos e submissos em relação a quem amamos. Em outras palavras, quando amamos, perdemos muito de nossa capacidade

crítica e supervalorizamos o objeto de nosso amor, concedendo-lhe o lugar de um “ideal”, de uma perfeição, diante da qual só resta nos recolhermos à nossa apaixonada reverência.

Essa concepção de Eros, que nos acompanha desde os gregos e que se renovou e se fortaleceu dos primórdios do cristianismo até o Romantismo do século XIX, está enraizada em contextos históricos, sociais e políticos bem definidos. Tais ideais nos conformam, nos constituem como sujeitos desejantes, carentes, desamparados desde sempre. Mas nos constituem em tempos e espaços bem específicos. O desamparo pode até ser um traço comum, que nos marca, mas o desamparo na sua materialidade, na sua experiência singular, é ele mesmo marcado pelas tensões e contradições da época na qual os sujeitos o experimentam.

Numa sociedade marcada por desigualdades de várias espécies como a nossa, as situações em que a carência amorosa se apresenta para a comunidade LGBTQIAPN+ ganham um contorno singular, uma vez que as chamadas dissidências de gênero atingem um dos pilares que sustentam nossa ideia de “cultura”, qual seja, a de que o mundo se divide entre homens e mulheres e, portanto, essa definição constitui a nossa natureza, o nosso ser, a nossa essência, desde a Bíblia até os manuais de medicina, fisiologia e psiquiatria do século XIX. Alijadas da normalidade e da vida virtuosa, as pessoas que fazem parte dessa comunidade parecem condenadas a um destino irremediável: não são dignas nem de amar nem de serem amadas. Parece que elas fazem parte do grupo de “desamparados” por excelência, e, assim, pelo seu reverso, o desamparo ganha toda a sua legitimidade enquanto constitutivo de nossa existência. Um desamparo que não encontra nenhuma possibilidade de refrigério ou consolação. E, se Eros é

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falta e carência, eis aí o grupo que legitima de uma maneira especial, ou seja, cruel e violenta, essa dimensão tornada irremediável.

Caberia indagar, por fim, se esse quadro que acabo de apresentar, com seus exageros prováveis e suas tintas fortes, como uma espécie de beco sem saída, não nos desafia, como membros dessa comunidade, a procurar saídas. Não está na hora de encontrar outras estratégias de luta, nas quais os laços de afeto, de cuidado, de companheirismo e de ajuda mútua não estejam tão dependentes das idealizações em torno do amor que nossa cultura constituiu ao longo dos séculos? Será que o modelo do amor e do amar, tão fortemente atado às estratégias heteronormativas, não está sendo repetido por nós à exaustão? Não está na hora de apostarmos na possibilidade de construir outra maneira de viver, na qual a força da Philia, da amizade, poderia se tornar uma aliada do amor?

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ernani chaves (ele/dele) é professor titular da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Pará (UFPA).

Mestre em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), com pós-doutorado na Alemanha e na França, é autor de Foucault e a psicanálise; No limiar do moderno: estudos sobre Friedrich Nietzsche e Walter Benjamin; e Michel Foucault e a verdade cínica.

É tradutor de Nietzsche, Benjamin e Freud. Publicou inúmeros artigos no Brasil e no exterior. É membro da Rede

Ibero-Americana de Estudos Foucaultianos, com sede na Universidade Complutense de Madri, na Espanha.

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Amor é caminho

Amor é estar presente, mesmo na ausência

Luto e amor

por Carla Rodrigues

Desde que Freud publicou Luto e melancolia, em 1917, muito do que se escreveu, pensou e elaborou sobre o luto veio em pares. Luto e despossessão, em Judith Butler; luto e desejo, em Jacques Lacan; luto e estado de exceção, em Giorgio Agamben; luto e semiluto, em Jacques Derrida; luto e invenção, em Jean Allouch. No campo de estudos brasileiro, luto e finitude, em Christian Dunker; luto e memória, em Jeanne Marie Gagnebin. Tenho me inscrito nessa série com o par luto e amor, a partir do qual pergunto: o que é, afinal, o luto? Trabalho, processo, ato, criação, o luto carrega a ambivalência de ser, ao mesmo tempo, um sofrimento, uma dor – individual e coletiva – e uma política, determinada pelos rituais simbólicos, públicos ou pessoais, de enlutamento que a constituem. Herdamos essa duplicidade do termo alemão Trauer, escolhido por Freud para inaugurar o tema na psicanálise. Em português, usamos também um só termo para

duas tarefas: luto significa enlutar e promover rituais fúnebres. (Já em inglês, há pelo menos duas palavras, mourning e grief, diferenciando os dois sentidos do que condensamos em luto.)

Luto é, portanto, uma expressão indicativa tanto do processo interno de elaboração quanto dos rituais públicos. Ao longo do assim chamado trabalho de luto, estamos diante da dificuldade de separar aquilo que do ser amado perdido estará para sempre perdido e aquilo que poderá ser guardado, rememorado e inscrito no registro simbólico de quem fica. Não sabemos, como argumenta Butler, tudo o que perdemos naquelas pessoas que partiram. Há um segredo, algo que resta inacessível tanto na experiência da perda quanto no ser amado perdido. É perturbador sentir que quem morre leva um pedaço de nós desconhecido até para nós mesmos, algo que não pode ser nomeado, descrito ou dito

pela linguagem. Vemo-nos, assim, impedidos de relatar ou de contar, aqui em dois sentidos: o de contar uma história – daí a necessidade de contá-la sempre, de novo e mais uma vez – e o de contabilizar danos, sofrimentos, dores. Essas perturbações não cessam apenas com o passar do tempo – o tempo, sozinho, não faz nada, é preciso trabalhar com ele – nem com algum tipo de consolo que o senso comum costuma oferecer para nos afastar da finitude. É a essa perturbação que Butler se refere quando argumenta que somos feitos e desfeitos uns pelos outros – outro modo de dizer que só há luto onde houve e ainda há amor, laço, união, interdependência.

Cabe sublinhar o quanto a palavra amor é sobrecarregada de determinações, do romântico ao religioso, passando pela banalização do “amor, I love you” do mundo pop e incluindo a ampla oferta de consumo de emoções e afetos.

Beloved one, expressão tão simples quanto difícil de traduzir, singulariza “ser amado”, indicando a existência de uma pessoa que é amada por outra e a experiência de ser objeto de amor do outro. Essa colagem entre sujeito que ama e objeto amado é evidenciada de maneira mais intensa na perda. O processo de luto seria, então, um percurso errático que comporta separação e união, ausência e presença, deixar ir e fazer ficar, escolher a cada dia o que esquecer e o que lembrar do/de ser amado.

Se todo esse movimento é sustentado pelo amor, é justamente porque o amor está enlaçado ao desamparo constitutivo que faz de nós um sistema de cicatrizes mais ou menos visíveis, mais ou menos doloridas, bem costuradas ou em carne viva. São suturas que vamos fazendo a cada perda e que, por isso, constituem aquilo que nos tornamos. Estranho movimento esse, em que pedaços do outro que parte se integram

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como um pedaço de mim e me fornecem contornos. É com esse laço que proponho o par luto e amor, gesto e ato de ir me tornando eu mesma conforme vou reconhecendo o que persiste do outro em mim. Luto, no entanto, também comporta um elemento de desigualdade. Nem todas as vidas perdidas são enlutadas e enlutáveis da mesma forma – há aquelas para as quais a política de Estado decreta luto oficial, há aquelas para as quais a política de Estado só tem a oferecer violência e violação. Erra quem acredita que essa distinção se dá apenas na hora da morte. Bem ao contrário, uma vida é mais ou menos cuidada a partir do seu nascimento, quanto mais for enlutável desde o começo. É assim que o desamparo inicial de todo vivente se transforma em condição estrutural permanente e premissa para estabelecer a distinção entre vidas vivíveis e vidas matáveis.

Cabem nessa classificação todas as pessoas cuja humanidade seja considerada de segunda categoria, e aqui é importante notar o quanto esse critério se modifica ao longo do tempo e do espaço. Aos marcadores de gênero, raça e classe se somam sexualidade, corporificação, território, idade, religião, nacionalidade e cisgeneridade, produzindo fronteiras entre os humanos que são considerados humanos – e, portanto, enlutáveis – e os que, mesmo sendo humanos, vivem como se não fossem, pagam com suas vidas, o que Denise Ferreira da Silva chamou de dívida impagável e Achille Mbembe de necropolítica.

Somos constituídos pelas nossas perdas, outro modo de dizer que nossa história é escrita pelos lutos que vivemos, melhor ou pior, com mais ou menos acerto, sozinhos ou com os outros, em rituais individuais ou coletivos. Há lutos públicos, como o dedicado à vereadora carioca Marielle Franco, ca-

pazes de fazer uma revolução. Há lutos insistentes, como os das mães que perdem seus filhos para a violência policial, com o poder de transformar quem enluta e dar sentido à vida de quem partiu – aqui, mais um aspecto fértil do par luto e amor, diante da política de apagamento do Estado. Há lutos atravessados pela catástrofe, como os milhões de vidas perdidas para a covid-19, os Yanomami mortos por abandono, as vítimas da tragédia climática no Rio Grande do Sul. Desde a Grécia Antiga, as tragédias têm a intenção de nos ensinar algo sobre a existência sem fazer disso uma lição de moral. O trágico e a morte constituem a nossa humanidade, e o luto expurga da morte seu aspecto dramático. Por isso, enlutamos a quem amamos como último e necessário gesto de inscrever o amor como condição primordial e laço de união entre os vivos e os mortos que, um dia, também seremos.

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carla rodrigues (ela/dela) é professora de ética no Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É pesquisadora dos programas de pós-graduação em filosofia da UFRJ e da Universidade Federal Fluminense (UFF). Atua como bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e do programa Cientista do Nosso Estado, da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), e coordena o Laboratório Filosofias do Tempo do Agora (Lafita), coletivo de pesquisa e de tradução filosófica da obra de Judith Butler. É autora, entre outras obras, de O luto entre clínica e política: Judith Butler para além do gênero (Autêntica, 2021). É integrante da Internacional dos Fóruns – Escola de Psicanálise do Campo Lacaniano (IF/EPCL).

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Amor é paisagem multissensorial

entrevistas

Toda forma de amor

por Icaro Mello

A gente sabe, não há manual para o amar. Como um saber ancestral, ele é transmitido pela oralidade, pelos corpos, danças, cantos, poesias, pela vivência e, principalmente, pela convivência. É como uma receita de família que, a cada pessoa que prepara – e a cada pessoa que degusta –, algo se modifica, trazendo a marca de quem se entrega ao ofício.

Da mesma maneira, não há um único modo de lidar com a perda. Cada amor perdido desencadeia seus próprios terremotos, suas tempestades e suas transformações. Cada um de nós que lida com a ausência, segurando nas mãos um amor perdido, busca dar um novo sentido a algo que já não é mais ação, não é mais troca. Manifestação última do amor, é no luto que a ação cotidiana, mútua, se cristaliza em sua maior potência. E é essa potência, densa como uma estrela de nêutrons, que nega a indiferença da morte e resgata a

incondicional afirmação da vida que é o amor. Se o amor só existe na vivência e a partir da experiência, é essencial investigar as diferentes maneiras em que ele pode se configurar. Mesmo que tais possibilidades sejam infinitas, trazemos, nas próximas páginas, entrevistas com pessoas da comunidade LGBTQIAPN+, dos mais diversos caminhos da vida, que compartilham suas percepções do amor, suas experiências com a perda e de quais formas o amor movimenta suas vidas e suas expressões artísticas.

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elu/delu, ele/dele

Escreve, traduz, revisa e oferece as oficinas esc/ritos, encarnar-se e textos, tecidos translúcidos. Pesquisou sobre os estudos feministas da tradução e/m queer~cu-ir no doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Publicou a plaquete with a leer of love (2019) e os livros querides monstres (2021; 2023), a mística do bestiário não binário (2023) e transmigrações (2024). Traduziu só e em parceria textos de literatura e não ficção do inglês, do espanhol e do catalão. É integrante do grupo literário Membrana.

o que é o amor para você?

Também acho que não existe amor sem a dimensão do cuidado. É importar-se.

Se você ama algo, você se importa com aquilo, quer cuidar, dar atenção, não só como escuta, mas como percepção. Eu acho que percepção é uma boa palavra para evitar um capacitismo. Ao falar de percepção, a gente não se restringe a um sentido que está sendo acionado.

Eu acho que é uma dimensão relacional, uma afetação, uma paisagem multissensorial que se expande e nos conecta. Eu gosto da ideia de paisagem porque é uma coisa que se conecta entre vários elementos. Podemos sentir o amor conosco, mas ele nunca existe isoladamente, ele não se nutre isoladamente. E não só com seres humanos. Essas paisagens também constroem relações profundas de amor com não humanos e com seres mais que humanos.

Há uma citação da Ursula K. Le Guin de que eu gosto muito: “O amor não fica simplesmente parado, como uma pedra. Ele precisa ser feito, como um pão, refeito o tempo todo e reinventado”. O amor não é algo que está dado, é instável, envolve investimento de energia, dedicação.

e como você expressa o amor?

Eu acho que a primeira palavra que me vem à cabeça é interesse, no sentido de me interessar por. Se eu amo alguma coisa, me interesso por ela. Se eu amo pedras, e eu amo, vou observar como elas são. Se é uma pessoa, vou querer conhecê-la. Quais são as histórias de vida dessa pessoa? Do que ela gosta ou não gosta? Eu lembro que Helen Torres, que é inclusive uma pesquisadora da [filósofa] Donna Haraway e de outras teóricas, fala do interesse como um “inter” “esse”, um ser que se forma entre nós.

Eu manifesto o amor no interesse pela pessoa ou pela coisa. Pode passar por uma dimensão mental, mas não só – é uma abertura de corpo todo em direção àquilo que me interessa. E isso se manifesta de diversas maneiras, inclusive com atos de cuidado. Além disso, eu acho que o amor tem algo de muito cotidiano. Não são gran-

des gestos; às vezes são pequenas coisinhas. Às vezes uma pessoa está passando por um perrengue, você também está passando por um perrengue e fala: “Queria poder te dar um abraço”, mas você não tem como estar lá fisicamente. Essa intenção já é um gesto de amor.

o quanto é importante lutar pelo amor?

Para mim, as palavras lutar e amor não combinam. Amor é dedicação. E é entender as minhas próprias limitações também, porque acho que um grande problema que acontece nos debates não monogâmicos é que as pessoas pensam que podem muito. Mas, no cotidiano, quem você prioriza? Quem é que cuida de você? É bonito falar que dá para amar todo mundo, mas na prática não é assim, não.

Primeiro de tudo, eu acho que é preciso ter consciência de si, no sentido do que eu sou capaz, quais são os meus limites

e quais são as minhas possibilidades e necessidades. São parâmetros que podem ser um pouco duros, porque às vezes o sentimento, esse amor, pode surgir de qualquer forma, rompendo todas essas bordas dos limites, da necessidade e da possibilidade, mas [é preciso] sustentá-lo e não [deixar] se tornar apenas um sentimento efêmero, uma coisa que foi só um rompante. E, na realidade, às vezes isso se confunde com paixão, e eu acho que o amor tem algo de duracional, é esse pão que se faz todo dia. Não é um banquete que você ofereceu num dia por aquela paixão que você teve. Você não tem condições de ficar fazendo banquete todo dia.

Para mim, tem essa dimensão de dedicação duracional, especialmente daquilo que me nutre e eu posso nutrir. você reconhece momentos ou circunstâncias na sua vida em que acha que o amor lhe foi negado ou em que você negou o amor?

Quem nunca passou por isso, não é mesmo? Desde experiências de infância até a vida adulta. Eu acho que, primeiro, o amor não tem que ser uma obrigação. Óbvio que todo mundo é digno de amor. Acho que essa é uma forma vital de a gente seguir pelo mundo, necessária e importante. Mas não é obrigatório a gente amar todo mundo. Então, acho complicado discutir amor que foi negado, porque partimos do pressuposto de que ele deveria ser oferecido.

Não sei se eu consigo navegar por essa questão nesses termos, mas, sim, no sentido de que possibilidades afetivas foram bloqueadas por certas questões. Eu já passei por situações de homofobia, de transfobia, como muitas pessoas que circulam por essas identidades, por essas expressões de sexualidade e gênero. E acho que isso é algo sobre o que temos que continuar falando. Existem muitas pessoas trans que são isoladas, vivem uma solidão

muito profunda, por causa dos padrões de afetação, dos padrões do que é o amor. Eu tenho sorte de conhecer muitas pessoas trans que estão em relacionamentos saudáveis e eu fico muito feliz com isso, mas a gente sabe que a solidão trans é ainda real, muito real.

Na minha vida, tirando essas circunstâncias mais estruturais, as outras foram muitas vezes incompatibilidades. Eu me afetei por alguma coisa que não necessariamente se afetaria por mim, e está tudo bem. Neste caso, não foi uma negação.

o que você nunca ouviu sobre o amor, mas gostaria que lhe tivessem dito?

Tem algo que eu talvez tenha ouvido, mas não exatamente com as palavras que precisavam ter sido ditas: o mundo vai apresentar muitas formas de amar, e vai dizer que algumas são mais certas para algumas pessoas e outras mais

certas para outras pessoas, mas tente se orientar por aquilo que é verdadeiro para você. Desde cedo, sendo sapatão, com 14 anos de idade, o que era o ideal heterossexual já foi rompido. Mas aí eu acabei caindo em outras armadilhas, idealismos em outros lugares. Situações em que me feri e me violentei só porque era o “politicamente correto” da militância. É por isso que eu digo que os seus termos com outras pessoas são próprios dessa relação e não vão seguir nenhuma cartilha, nem a hegemônica nem a contra-hegemônica. É uma paisagem que se compõe nas afetações.

Para mim, é muito importante entender o que é o ideal de amizade, o ideal de relacionamento com a família, o ideal romântico. Eu acho que eles geram extremismos que muitas vezes sufocam as possibilidades reais do amor.

Acho que eu queria ter ouvido que, dentro dessas polaridades de ideais presentes na sociedade, deve-se encontrar a sua medida e ir sintonizando com outros seres com os quais você compõe essas paisagens. como você lida com a perda do amor e com o luto que ela traz?

Experiências de luto, no sentido de perda definitiva de pessoas, eu só tive na minha família, e não eram tão próximas, então foram afetações através do sofrimento de uma figura familiar que foi mais tocada por aquela perda.

Eu percebo que a reverberação dessa afetação da pessoa perdida permanece. Mas ela vai sendo reconfigurada, e sinto que minha experiência é de alguém que está presente durante esse processo.

Acho que a melhor coisa que a gente pode fazer é dar espaço para essa pessoa poder atravessar esse momento, mas estando disponível. Apesar dessa dimen-

são individual, o luto é sempre coletivo. De cada pessoa que se vai, há todo um universo que estava ao redor.

Mas há outras formas pelas quais processo cotidianamente a perda. Eu tive algumas experiências de ter muita proximidade com algumas pessoas, que eram minhas melhores amigas, mas as vidas foram sendo tocadas e elas foram indo embora. E isso me dói muito. Eu demoro muito tempo para processar essa perda. Essa perda “nebulosa” é a pior de todas. Não é como perder algo porque houve uma briga, essas situações são mais “fáceis”. Essas perdas se tornam “presenças ausentes”, e são das dores de amor mais difíceis de lidar, porque você não consegue amarrar as pontas soltas, não consegue ressignificar e interpretar o que aquilo representa na sua vida. Não consegue viver o luto.

como o amor, a perda, o luto e a rejeição se expressam no seu processo criativo e na sua obra? Cem por cento. Eu gosto de escrever sobre processos que abordam dinâmicas interpessoais. Eu escrevo muito sobre erotismo. E erotismo é conexão, é relação, é paisagem multissensorial.

Como sociedade, precisamos conseguir pensar em formas coletivas de construir conjuntamente o mundo em que queremos viver, e eu estou sempre buscando questionar o que se entende por relação. Quais são essas relações?

Como essas afetividades se constroem? Sempre imaginando outras possibilidades, principalmente as que escapem das polaridades discursivas.

Além disso, tenho realmente um amor por escrever e por construir frases. Não só enquanto frases, mas no que elas têm de som, as imagens que elas despertam. É muito sensorial, um tex-

to não são só letras que, juntas, criam palavras. Quais são as cores, as texturas e os ritmos que estão ali presentes? Isso, para mim, é uma relação de “profetação”. É uma forma de eu conseguir imaginar e contribuir para manifestar esses atravessamentos que me habitam. No texto, eu consigo ter o tempo e o espaço para me dedicar com cuidado e atenção a juntar todas essas palavras que são importantes para mim, numa relação de amor.

Marina Vergueiro

ela/dela

Poeta de nascimento, jornalista de formação e ativista por obrigação.

Seu primeiro livro de poesia, Exposta (2020), aborda questões relacionadas à afetividade, à gordofobia e ao feminismo. Integra diversas antologias de poesia, como Uma vez poetas ambulantes (2013), O livrin sagrado (2014) e Verso em verso (2019). Desde 2012 vive com HIV, tema que se apresenta também em sua obra. Dirigiu o curta-metragem

Cartas para mim (2022), que aborda os desafios do amor após o diagnóstico de HIV, e também Indetectável, ainda não lançado.

o que é o amor para você? O amor é a razão de eu viver. É um desafio, porque nós, mulheres, na nossa

sociedade machista, já nascemos duvidando de nós mesmas. Então, é muito importante trabalhar esse amor por si mesma, que a gente não consegue ter de maneira inata, porque desde muito cedo é bombardeada com discursos dizendo que a gente não merece. Ou a gente é gorda demais, ou fala palavrão demais, ou não fecha a perna na hora de sentar, ou gosta de jogar bola e não de brincar de boneca.

É muito difícil esta questão do amar a si e ao outro e permitir ser amado. Ao longo da minha vida, eu questionei muitas vezes o amor. Inclusive me confundi muitas vezes, achando que determinados atos de violência eram amor. Da mesma maneira que a gente precisa de um letramento racial, de classe e de gênero, também tem que fazer esse estudo e essa investigação sobre o amor. Ele é muito poderoso, é um motor que faz com que a gente deite na cama com vontade de acordar no dia seguinte.

Não falo só de um amor afetivo, sexual, entre duas ou mais pessoas, mas do amor em relação a tudo.

Eu acho que essa vontade de viver é amor. A gente tem uma vida muito curta, muito volátil, muito frágil. Eu percebi isso quando quase morri. Quando eu tinha 29 anos, me descobri muito doente, e demorei para saber o que eu tinha. Nunca imaginei que pudesse ser aids,1 porque eu sempre fui bastante cuidadosa com a minha saúde em geral, e mais especificamente com a minha saúde sexual. Como muitas pessoas, contraí a doença em uma relação monogâmica e heterossexual. Demorei para ser diagnosticada, mesmo já estando muito 1. A aids, sigla em inglês para síndrome da imunodeficiência adquirida, é a doença infecciosa causada pelo vírus da imunodeficiência humana, o HIV. Os crescentes desenvolvimentos terapêuticos e de diagnósticos e o aumento do acesso à prevenção e a tratamentos permitiram que, mesmo sem cura definitiva, pessoas portadoras do vírus HIV não desenvolvam a doença.

doente no hospital, porque os médicos não imaginavam que uma mulher como eu (branca, de classe média-alta, jovem) pudesse ter aids. Os sintomas eram todos muito óbvios, mas isso mostra como os estigmas ligados ao HIV e à aids ainda são muito presentes.

Depois disso, percebi que não valia a pena me esconder no medo. O contrário do amor não é o ódio ou a raiva, é o medo. O medo é o que nos paralisa.

Eu tento cultivar o amor dentro de mim, fora de mim, na minha casa, com quem eu conheço, com quem eu não conheço. Muitas vezes eu tenho que vasculhar nos escombros do meu peito em busca do amor por mim mesma e pela vida, porque as violências e as opressões do mundo podem me deixar depressiva, mas eu não desisto dele. Eu realmente não desisto. Acho que o amor é a única coisa que é realmente capaz de transformar as pessoas por

dentro. Não adianta se converter a uma religião, não adianta começar a fazer ioga, subir montanha com coach; a única coisa que vai transformá-lo é uma verdadeira entrega ao amor. Não uma entrega narcísica ou egocêntrica, mas de maneira que eu sinta que “eu sou parte do mundo e o mundo é parte de mim”.

O amor é meu farol, para onde eu caminho, minha utopia. e como você expressa o amor? Tento ser uma pessoa cuidadosa com quem eu amo. Muitas vezes eu sou mais cuidadosa com quem eu amo do que comigo mesma, o que é um problema. Acho que demonstro o amor por meio da minha presença, da minha alegria de viver, do meu senso de humor, das minhas palavras, porque eu gosto muito de falar às pessoas o que sinto por elas. Eu sou a emocionada em pessoa. Eu sou poeta, gosto de falar.

Aprendi muito com a morte da minha mãe. Eu a perdi um ano antes de descobrir que eu vivia com o HIV. Quando a perdi, pensei: “Nossa, nunca mais vou ser amada como eu fui. Perdi o maior amor do mundo. O que vou fazer?”. Apesar de todas as nossas brigas de mãe e filha, completamente normais, eu sempre falei e demonstrei muito o meu amor por ela; por isso, depois que ela morreu, senti uma tranquilidade no coração, porque ela sabia que eu a amava. A partir de então, eu faço questão de mostrar às pessoas que estão próximas de mim que eu as amo.

Eu sou aquela pessoa que, depois que sai do encontro, manda uma mensagem: “Adorei te ver hoje. Foi muito gostoso”. Às vezes a gente precisa sublinhar, passar o marca-texto, desenhar. Muitas vezes, quando mandam um buquê de flores para nossa casa, ainda não nos sentimos amados, então precisamos mandar o buquê de flores,

a banda de mariachis, soltar fogos de artifício, colocar um letreiro bem Las Vegas. É bonito ser brega. qual surpresa o amor lhe trouxe?

A aids com certeza foi a maior surpresa que o amor me trouxe. Ao mesmo tempo, o amor foi a maior surpresa que a aids me trouxe. Eu contraí o HIV numa relação de amor, na qual eu fui responsável pela minha própria exposição.

A gente nunca deve terceirizar a nossa saúde física e mental para outra pessoa. Portanto, foi minha responsabilidade.

A maioria das mulheres que eu conheço que vivem com o HIV também contraíram o vírus em uma relação de amor. E o mais louco é que, quando a gente recebe o diagnóstico do vírus, a primeira coisa que pensa é: “Não somos mais merecedoras de amor. Não podemos mais ser amadas. Nunca mais ninguém vai nos amar”.

Quando eu cruzei esse portal do amor

da família da aids, quando me fortaleci emocionalmente e comecei a trocar ideias com várias outras pessoas que viviam com o HIV, isso me trouxe uma explosão de amor tão grande, um amor por mim mesma. Eu encontrei meu propósito de vida. E esse propósito é o amor.

A família da aids, eu acho que é a única comunidade que é realmente inclusiva.

Lá a gente encontra uma mulher de 70 anos, com vários netos, que só transou com um homem na vida, seu marido – de quem ela pegou o HIV –, conversando com uma mulher trans, que ela nunca conheceria. Talvez ela tivesse preconceito contra pessoas trans antes, mas a aids foi lá e colocou todo mundo no mesmo patamar.

você reconhece momentos ou circunstâncias na sua vida em que acha que o amor lhe foi negado ou em que você negou o amor?

Acho que, primeiramente, eu mesma me neguei o amor quando me olhei no espelho na infância e vi que meu corpo era diferente do das minhas amiguinhas, que eram muito magrinhas, e já achei que eu não merecia ser amada.

Acho que a segunda vez em que senti que o amor me foi negado foi quando saí do hospital [após o diagnóstico de aids], porque achei que eu nunca mais fosse amar. Achava que eu nunca mais poderia beijar na boca – mesmo que a médica tivesse me falado que eu podia beijar, que o vírus não é transmitido pelo beijo. Mas eu tinha tanto medo de ser responsável por transmitir um vírus incurável para alguém, ainda mais alguém que eu amasse, que fiquei uns dois anos sem me permitir. Aos 29, 30 anos, eu estava me negando a possibilidade de amar, de viver minha sexualidade no auge dela. É isso que o estigma, a discriminação e as fake news sobre o HIV fazem com a gente.

Precisei de uns bons anos de terapia, poesia e muito amor da minha família, dos meus amigos e de parceiros e parceiras para que eu pudesse sentir que merecia ser amada de novo. como você lida com a perda do amor e com o luto que ela traz?

Eu entro em colapso quando sinto que perdi um amor, seja ele qual for, por quem for. Sinto um luto muito forte, tenho muita dificuldade de superar. Hoje em dia, acredito que a perda do amor de uma amiga ou de um amigo talvez seja das separações mais difíceis. Felizmente, eu enfrentei essa situação pouquíssimas vezes, mas é algo que me deixa em frangalhos.

Às vezes o que a gente precisa mesmo é de um pouco de tempo, espaço para deixar o amor ir avançando dentro da gente de novo, ocupando, invadindo nossas células, bombeando de novo o

oxigênio dentro das nossas veias e chegando no peito, na cabeça.

A morte da minha mãe, que aconteceu há 13 anos, ainda é muito difícil para mim. Eu sinto muita falta dela. Tento me lembrar dela sempre de uma maneira positiva e divertida. Ela era uma mulher engraçada e gente boa. Mas dói muito.

O duro do luto é entender que esse amor não está mais ali fisicamente, do meu lado. Eu demorei para perceber que esse amor ainda existe, e ele aumenta a cada dia. A sensação da perda do amor é lancinante e devastadora, mas, quando começa a cicatrizar, você vê a casquinha e fala: “Poxa, ainda existe esse amor, ele só é diferente”. É o próprio amor que cura essa ferida. Então, eu sou otimista em relação ao amor. como o amor, a perda, o luto e a rejeição se expressam no seu processo criativo e na sua obra?

Em tudo. A arte que um ser humano produz não é neutra. Ela está ensopada do nosso DNA, da nossa infância, da nossa educação formal. A gente é o que a gente vive. E a minha arte é fruto de quem eu sou.

Acho que, no começo, na necessidade de me entender como artista, de entender sobre o que eu queria falar, meu maior medo era que as pessoas me associassem à aids. Hoje em dia, eu quero que me chamem de “Marininha da aids” mesmo. Pode me chamar, porque eu sei que sou muito maior que isso, mas essa é uma parte importante da minha vida. Não porque eu esteja doente, não porque eu esteja transmitindo, mas pelo simples motivo de que isso toca de uma maneira muito íntima e profunda toda a nossa sociedade, e ainda assim a gente se nega a enxergar, a escutar e a falar sobre isso.

Apesar de tentarmos dar uma aparada nas arestas, polir um pouco, a arte é como outro fluido corporal, como nosso sangue, como as gotículas que saem quando a gente fala e também o nosso gozo. Muitas vezes minha arte é um vômito, muitas vezes minha arte é um orgasmo, muitas vezes ela só é um grito.

Gil Oliveira

ele/dele

Cabeleireiro, maquiador, ator, artista, fotógrafo, visagista, figurinista, consultor de imagem e professor. É bacharel em artes cênicas e pós-graduado em história da arte. Natural de João Pessoa (PB) e radicado na capital paulista desde a década de 1990, tem um trabalho fortemente marcado pela cultura e pela estética nordestinas.

o que é o amor para você?

Eu acho que o amor é um sentimento, mas ele também é atitude. É um sentimento que nos move, que nos traz desejo, que nos traz sonhos, que nos impulsiona. Mas esse amor só é realidade quando a gente começa a colocá-lo em prática. Eu estou muito oxigenado, muito mergulhado nas palavras que Gilberto Gil trouxe no show recente dele, da turnê Tempo rei. Em

determinado momento, ele escuta todo o estádio gritando “Gil, eu te amo” e faz uma pausa para citar um filósofo que diz que “o amor é mais importante que a morte”. Depois da morte, não tem muito mais o que fazer. E o amor é o agora, é o dia a dia, é o esforço que fazemos para viver bem com o outro, para demonstrar ao outro que ele é importante para nós. Também é o esforço que fazemos para estar bem, para nos proporcionar o melhor materialmente e espiritualmente, buscando sempre a nossa plenitude.

Quando criança, a gente aprende que o amor é uma coisa fácil, mas, quando vamos viver esse amor, percebemos que depende muito de nós, das nossas atitudes, da nossa sabedoria, da nossa paciência. e como você expressa o amor? Amar, para mim, não é uma coisa difícil. Meu temperamento e minha natureza são de olhar para as coisas sempre com olhar de amor. Sou empático, sou paciente, sou positivo e carismático. Eu sempre procuro me conectar com o amor que existe dentro de mim e procuro me conectar com a beleza dos outros. Estou sempre buscando os meus desejos, os meus projetos e os meus sonhos no que o outro já tem realizado. Também procuro expressar o meu amor no meu trabalho.

Expresso o meu amor no meu dia a dia, com as oportunidades que eu tenho de dizer ao outro “Eu te amo”, trazendo uma atitude amorosa, paciente, uma palavra de conforto, de confiança, uma palavra que impulsione.

Minha mãe, por ser uma mulher muito ocupada, para ajudar dentro de casa, para trazer a nossa subsistência, sempre foi uma pessoa que demonstrou o amor nesse lugar de cuidado. Eu não fui uma criança que teve momentos de carinho físico, de receber beijo, ser

Mesmo que durante muito tempo eu ficasse chateado porque não via a minha mãe fazendo esse carinho físico, essa atitude amorosa do cuidado para que nada faltasse permaneceu comigo, uma herança que até hoje procuro exercer com os meus também.

você reconhece momentos ou circunstâncias na sua vida em que acha que o amor lhe foi negado ou em que você negou o amor?

Eu já passei por muitos momentos de crueldade do mundo para comigo. O amor já me foi negado muitas vezes, mas por egoísmo do outro, por ignorância do outro. O contrário do amor, que vibrava no outro, era o ódio, o racismo, a homofobia.

45 abraçada, colocada no colo. Mas minha mãe falava: “Eu nunca vou deixar faltar comida, roupa limpa e oportunidade para você estudar”.

Esse sentimento nobre que é o amor muitas vezes não atravessa algumas pessoas, não está no coração, ou elas acham que ele é limitado e que não dá para estender para o mundo todo. Sofri muitas dores, não só na escola, mas nas minhas amizades de infância, em que mães das minhas amigas foram maldosas, foram violentas comigo nas palavras, sem considerar que eu era uma criança e que eu não precisava ouvir aquilo.

Quando a pessoa não vibra nesse lugar do amor, ela demonstra o seu preconceito, o seu racismo e a sua falta de humanidade. Acho que quem tem amor dentro de si não se limita a simplesmente passá-lo adiante. Esse esplendor que o amor traz para dentro de nós é como se fosse um raio de luz, que brilha, e precisamos pegar essa pontinha de amor que tem dentro de nós e ter coragem de fazer com que ela se expanda para além de nós.

Se você não consegue colocar isso no mundo, enxergar a vida e as pessoas nesse lugar, é porque não está fazendo com que isso ganhe a proporção que tem dentro de você. E aí você nega a vida, você nega a individualidade.

o que você nunca ouviu sobre o amor, mas gostaria que lhe tivessem dito?

Que a gente tem que usar o amor com sabedoria. Nem sempre o outro vai entender que isto que você está trazendo abertamente é amor. Se o outro não está na mesma conexão, se o outro não está na mesma vibração, você é recebido de maneira diferente, se decepciona e acaba achando que o amor não vale a pena.

Para você viver amando, tem que ter cautela, porque nem todo mundo está no mesmo lugar em que você está. Então o amor deve ser usado com sabedoria, entendendo que nem todo mundo

ama como você, que ele não se expressa da mesma maneira para todo mundo.

Isso tem a ver com acreditar na vida.

Acreditar que vale a pena viver e que você tem que agradecer. Mesmo havendo muitas faltas, você deve saber valorizar as coisas que estão ao seu redor.

qual surpresa o amor lhe trouxe? Viver o meu casamento hoje. É um relacionamento em que ambas as partes exercitam esse amor, esse bem-querer. Posso dizer que foi uma surpresa porque eu busquei isso durante muito tempo, e acho que hoje eu de fato o vivo.

Por mais que eu tenha vivido outros relacionamentos com aspectos muito bons, a minha conexão hoje com o Felipe é mais madura do que em relacionamentos anteriores. Para estarmos juntos, precisamos ter paciência, respeitar a individualidade do outro, precisamos alimentar o sentimento que nos uniu.

Eu já almejava isso e acreditava que fosse possível. A surpresa é que, depois de tanto tempo, ele chegou.

Tive vários relacionamentos em que eu ficava atribuindo às pessoas coisas que eu deveria fazer para mim. Depois de um tempo, decidi que não queria mais me relacionar com ninguém e fiquei dez anos sozinho. Durante esse período, só olhei para mim e me proporcionei tudo aquilo que eu tinha buscado nos outros e achava que tinham que me dar.

Quando eu estava no meu ápice, na minha plenitude, conheci o Felipe.

Acho que nesse momento eu estava realmente preparado para viver um relacionamento bonito, que respeitasse minha individualidade.

um pouquinho da minha verdade para viver essa relação. como você lida com a perda do amor e com o luto que ela traz?

Em outros relacionamentos, eu sempre tive que ceder [em relação a] quem eu era, como se eu tivesse que abrir mão de

Eu acho que é sempre uma grande oportunidade de olhar para mim ainda mais. É dolorido, obviamente, principalmente quando você não queria que aquilo acontecesse, mas é sempre uma oportunidade de recomeçar. Juntar todos os seus cacos e seguir. Eu tenho em mim, de maneira muito consciente, a ideia de que cheguei neste mundo sozinho e vou voltar sozinho. O que existe entre um tempo e outro são os encontros. Se for bom, se for maravilhoso, eu vou tentar viver intensamente aquele momento. Mas eu sei que isso vai acabar em algum momento, essas relações entre o nascimento e a morte são passagens.

Vai ter o tempo de luto, vai ter o tempo de dor, mas eu vou precisar continuar. Depois desse fim, tem o início de um novo tempo, de uma nova vida, de um novo lugar, repleto de memórias. E eu vou seguir, mais maduro. como o amor, a perda, o luto e a rejeição se expressam no seu trabalho?

Eu trabalho com beleza. E o trabalho do artista passa por esse lugar, embora nem sempre pelo que o outro entende como belo. O amor está presente no meu trabalho quando materializo esse amor que há dentro de mim, e o amor que eu imagino que exista no mundo, em um objeto, em uma produção. Sempre colocando meu amor para fora para que ele seja visto, impacte as pessoas, fazendo com que elas reflitam e acreditem que o amor existe.

Stephanie Borges ela/dela

Poeta e tradutora nascida no Rio de Janeiro. Traduziu A unicórnia preta, Irmã outsider e Sou sua irmã, de Audre Lorde, Olhares negros: raça e representação e Tudo sobre o amor, de bell hooks, além de obras das pessoas poetas Jericho Brown, Claudia Rankine e Tracy K. Smith. É autora de Talvez precisemos de um nome para isso (2019) e Um nome não é uma chave (2024).

o que é o amor para você?

Eu acabei de fazer 40 anos e, ao longo da vida, a gente pensa que o amor são várias coisas. Acho que tenho chegado num momento em que olho para trás, para o que vivi, para o que construí, e entendo que na verdade existem vários amores na minha vida. Tem o amor

que vivo na minha família – com a minha mãe e a minha irmã –, o amor que tenho pelos meus amigos, que são a minha família estendida, os amores pelas pessoas com quem me relacionei romanticamente e que de algum modo ainda estão em minha vida. Mas também fico pensando que, além desses amores que já vivi e de que procuro cuidar, ainda existe muita coisa que não sei sobre o amor.

Ter traduzido Tudo sobre o amor, da bell hooks, me fez pensar muito sobre o amor durante meses. Há duas coisas que ela fala nesse livro que me fazem pensar muito sobre os amores que quero viver daqui para a frente. Ela fala que “o amor é o que o amor faz”. Isso é muito importante, porque a gente vê algumas situações um tanto violentas em que uma pessoa diz que te ama e te faz se sentir péssima, e você precisa acreditar no que aquilo está te fazendo sentir, e não no que aquela pessoa está dizendo.

Ela também fala que o amor é feito de vários elementos – tem que ter comunicação, tem que ter respeito, tem que ter paciência, tem que ter tesão também, tem que ter curiosidade em relação ao outro. Para mim, o amor é olhar para alguém e pensar “Como é que quero ser tratada?”, “Consigo oferecer para essa pessoa o carinho, a paciência, a parceria que acho que eu mereço?”, “Essa pessoa está me devolvendo isso?”.

e como você expressa o amor? Embora eu seja uma escritora, uma poeta, uma mulher da palavra, levei muito tempo para descobrir que expresso o amor por atitudes. Isso vem muito da minha criação, da minha família. Venho de uma família de mulheres muito fortes, algumas por questão de personalidade e outras porque não tiveram outra opção a não ser ter que ser forte. Às vezes, a maneira como o carinho se expressa não é necessaria-

mente com um abraço ou um beijo. Eu me lembro muito de chegar na casa de minha avó e ela falar para mim: “Você quer que eu faça aquele macarrãozinho de que você gosta?”. Minha mãe também faz isso. Às vezes, na sexta-feira à noite, ela me fala: “Você vai estar em casa amanhã? O que você quer comer?

Vou fazer uma comidinha para você”.

o quanto é importante lutar pelo amor?

Acho que são várias lutas. Primeiro porque a gente está vivendo uma época muito dura, de muita violência não só física, mas simbólica. A bell hooks fala que a cultura nos bombardeia o tempo todo de ideias muito limitadas e codificadas sobre o que é o amor, fazendo-nos pensar que está faltando amor nas nossas vidas o tempo todo. Falamos muito de empatia ou de responsabilidade afetiva, mas, quando tratamos de responsabilidade, estamos falando de se conhecer e se comprometer. Não

posso esperar receber amor se não estou disposta a me arriscar.

O amor bagunça a sua vida em alguma medida, você se abre para outras histórias, seja a dos seus amigos que o levam para um lugar aonde você nunca foi, seja a dos que lhe apresentam uma comida que você nunca comeu. Ele amplia o nosso mundo de várias maneiras, e talvez precisemos lembrar as pessoas que isso envolve certo desconforto. Todos estes amores, o amor da amizade, o amor das relações românticas, tudo vai nos desestruturar em alguma medida.

Adotar um bicho, amar um bicho, é bagunçar a sua casa, é aceitar que você vai ter pelo na sua roupa, muita coisa para limpar, gastos veterinários. O amor nos desorganiza para irmos nos entendendo de outras formas.

Lutar pelo amor também é não se deixar tomar pelo sentimento de escassez. A gente vê o tempo todo que “existe

muito amor nas comédias românticas, nas propagandas do Dia dos Namorados, na rede social, na vida dos outros, e não tem para mim”. Será que não tem?

Nesse sentido, foi muito importante quando li O desafio poliamoroso, da Brigitte Vasallo, porque me deparei com uma coisa que eu não entendia dentro dessa lógica da escassez, a tal primazia do casal: essa ideia, essa ilusão de que, quando você tem um relacionamento sexual afetivo com alguém, aquilo ali vai suprir todas as suas necessidades. Isso não vai acontecer, seja no casal monogâmico, seja no não monogâmico. Foi muito libertador entender que esse amor romântico das comédias românticas não é para mim. Os meus amores são coisas que preciso inventar com cada pessoa que aparece. Dá trabalho?

Dá, mas vale a pena.

Essa luta começa, de certa forma, como uma escolha de não endurecer. Tenho

um problema seríssimo com o discurso da solidão da mulher negra. No fundo, não é a solidão da mulher negra, é a incapacidade social de entenderem as mulheres negras como pessoas amáveis. É uma inversão em que você culpabiliza a vítima. Não é uma escolha da mulher negra estar sozinha; ela constrói diferentes relações afetivas, diferentes arranjos de famílias estendidas justamente porque tem amor para caramba para dar e para viver. A questão é: quem topa chegar junto?

você reconhece momentos ou circunstâncias na sua vida em que acha que o amor lhe foi negado ou em que você negou o amor?

Acho que, em certa medida, todo mundo acaba passando por isso, nem que seja o famoso pé na bunda – você está a fim da pessoa e a pessoa não está a fim de você.

Você me pergunta se eu já neguei o amor. Já! Em alguns momentos da

minha vida, eu não estava gostando nem de mim, que dirá gostar dos outros. Além disso, existem questões sociais que refletem na nossa vida íntima. Por exemplo, eu sou uma mulher que precisa escrever; então, para qualquer pessoa se relacionar comigo intimamente, é preciso entender que, se eu falar “Espera aí que eu estou escrevendo”, é realmente “Espera aí que eu estou escrevendo”. O fato de eu precisar escrever não é negar amor, mas às vezes é muito delicado, porque, se você está numa relação que é muito carregada de heteronormatividade, por exemplo, espera-se da mulher uma abnegação, um cuidado, uma doação.

E a ideia da escassez é também aplicada à nossa subjetividade. A gente vê a todo tempo esse discurso de aprimoramento, de ser a melhor versão de si mesmo. Parece que você nunca vai estar pronto para ser amado porque você nunca vai ser a melhor versão de si

mesmo. A gente está sempre devendo.

Mas o amor não é assim. Todo mundo merece amor, cada um pelos seus motivos, cada um pelas suas qualidades, cada um pelos seus defeitos.

E a gente precisa saber recusar. Recusar o que se vende como amor, mas é abuso; a gente tem que recusar o que se diz amor, mas quer isolar você de seus amigos, de sua família, de outras convivências; a gente precisa recusar o que se diz amor, mas na verdade é codependência.

como você lida com a perda do amor e com o luto que ela traz?

O luto é uma coisa muito delicada, e este mundo capitalista tem cada vez menos tempo para isso. Acho que a pandemia deixou isso claríssimo. Sou uma pessoa muito ativa, e a minha tendência no luto é me ocupar, o que eventualmente dá problema. Quando vejo,

estou sobrecarregada. Eu escrevo muito quando estou de luto, faço diários há anos. Nem tudo que escrevo durante o luto vai prestar para a literatura, mas é muito mais a minha regulação com a escrita, porque ela é um espaço de liberdade para mim, de intimidade.

Eu entendi que há alguns aspectos da minha humanidade que, se eu não preservar, se eu não cuidar, vão ser totalmente ignorados, atropelados, vão ser tratados como se não existissem. E o luto é um deles, porque a imagem da mulher negra forte, da resistência, da resiliência é muito presente: “Você está triste, mas você aguenta”. E aí tem hora que você precisa falar: “Não, eu não aguento”.

Lembrando a pergunta anterior, o medo do amor vem muito da consciência de que ele vai acabar de alguma maneira; no entanto, acho que a coisa mais louca é quando você fala de amar

alguém que morreu, pois é justamente entender como é que você reacomoda esse amor na sua vida. Você não deixa de amar. Você precisa aprender a viver carregando esse amor por alguém que não está mais aí.

O primeiro momento é o do peso da ausência, mas, depois que passa essa ausência mais crua, a gente precisa entender o que fazer com esse amor. Há dias em que faço o macarrãozinho da minha avó para matar a saudade dela, exatamente do jeito que ela me ensinou a fazer.

como o amor, a perda, o luto e a rejeição se expressam no seu processo criativo e na sua obra?

Acho que, por eu ter perdido muita gente muito cedo, minha poesia é atravessada por algumas coisas com certo sentido de urgência ou certa consciência da fragilidade da vida, um entendimento de que a morte está logo

ali, expresso de diversas formas. Escrevo poemas para pessoas que morreram, escrevo poemas sobre o luto, escrevo poemas em que a morte surge de maneira irônica. E durante muito tempo evitei escrever sobre o amor, porque achava que existe, sim, a expectativa social em torno da poeta mulher. Se você é uma mulher poeta, vai escrever o quê? Os “poeminhas” de amor.

No meu livro Talvez precisemos de um nome para isso, aparecem muitas negociações em torno do amor, do desejo, de certa intimidade que só o amor permite, e do reconhecimento de que o amor acabou e temos que ir embora. Mas ele nunca está sendo mencionado diretamente. Conforme eu fui querendo escrever outras coisas, me dei conta de que não escrever sobre o amor seria me limitar criativamente. Fui entendendo que posso escrever poemas de amor para as minhas ami-

gas, posso escrever poemas de amor sobre os meus bichos, posso escrever poemas de amor para pessoas que já se foram e fazem falta, escrever poemas de amor para pessoas que achei que poderia amar, mas não deu tempo.

Meu projeto literário vai muito numa chave de que “as coisas não parecem o que são”. As pessoas estão dizendo o tempo todo como tudo deveria ser, mas vamos olhar com um pouquinho mais de calma, porque não é bem assim.

A poesia me deu um vocabulário para lidar com várias coisas na minha vida para as quais eu não tinha linguagem, e acho que a primeira coisa foi o luto.

Um dia encontrei o poema “Ausência”, de Carlos Drummond de Andrade, e passei a entender que a minha vida não era feita de ausências, que eu não sou a negatividade, não sou o que falta.

Outros poemas que fui encontrando pelo caminho foram me ajudando a entender a minha curiosidade, o meu

processo criativo, o tipo de vida que quero viver. As coisas estão sempre acabando e recomeçando, sendo reconstruídas e ressignificadas.

Edu O.

ele/dele

Artista da dança, da performance, do teatro e da literatura. Natural de Santo Amaro, na Bahia, é professor na Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia (UFBA), instituição pela qual é graduado em artes plásticas e mestre em dança. Em seu doutorado em difusão do conhecimento, desenvolveu o conceito de bipedia compulsória, refletindo acerca da relação entre dança, deficiência e capacitismo. É autor dos espetáculos Judite quer chorar, mas não consegue!, Odete, traga meus mortos e O corpo perturbador, entre outros.

o que é o amor para você?

De imediato, eu penso que o amor são modos de nos relacionarmos, no sentido de reconhecer o outro. Nisso entram questões afetivas, sexuais, familiares,

fraternais, amizades. Eu penso que amar é reconhecer a outra pessoa como ela é, e nos reconhecermos na outra pessoa. Nisso perpassam outros sentimentos, como admiração, o desejo de estar junto ou, mesmo não estando, de saber-se junto no mundo.

Eu acho que o amor não é uma coisa única, mas agrega outros sentimentos. Não se faz unicamente, isolado. O amor só pelo amor talvez não seja tão valioso assim, mas, quando a gente agrega esses outros sentimentos, parece-me que é o que o fortalece. e como você expressa o amor?

Eu sou bastante carinhoso. Pelo toque, às vezes pelo silêncio. Acho importante que a gente saiba se silenciar, saiba a hora de sair, a hora de não se colocar. Saber a hora de demonstrar também é amar. Então, eu me expresso pelo toque, pelo abraço, pela preocupação, por ações. Pela proatividade de cola-

borar. Penso que demonstrar o amor também tem várias facetas.

Eu tento não cair nas armadilhas do que dizem que deve ser o amor. A arte às vezes traz isso, na música ou mesmo na mídia, de apresentar uma maneira de amar. A gente precisa ter cuidado para não cair nas estratégias capitalistas de demonstrar amor, não acreditar que está amando só porque está reproduzindo um modelo.

A honestidade também é um modo importante de demonstrar amor. Se algo me faz bem na outra pessoa, acho que é importante que ela saiba que aquilo me faz bem. Do mesmo modo que, quando não me faz bem, também é honesto e uma forma de demonstrar amor dizer que aquilo está me ferindo, que não está sendo tão positivo para a nossa relação.

como a gente aprende as diferentes maneiras pelas quais o amor é possível?

Eu acredito que haja um cunho muito cultural. Determinadas sociedades e comunidades pensam o amor de maneiras diferentes. E no diálogo com o mundo é que a gente vai se afetando de outras maneiras.

Nessas lógicas hegemônicas, às vezes a gente também não tem acesso a outros modos de pensar o amor. Quando não é por influência midiática, é na própria educação. São projetos políticos que nos afetam e que têm especificidades de acordo com questões de religião, trabalho, classe, raça, deficiência.

A gente aprende a não amar pessoas que não estejam dentro de estruturas hegemônicas, como na minha experiência como pessoa com deficiência. É constantemente dito que nós não somos amáveis. Há a repulsa, a piedade

e outros sentimentos agregados que impediriam o desejo.

Essas lógicas vão criando dicotomias que reforçam o discurso de que é permitido que alguns tipos sejam mais desejáveis e amáveis.

você reconhece momentos ou circunstâncias na sua vida em que acha que o amor lhe foi negado ou em que você negou o amor?

Pensando no amor romântico, eu só vim reconhecer que o amor que eu estava devotando estava sendo recíproco aos 26 anos. Não é somente pela questão da deficiência, não acho que era apenas isso. Na adolescência isso pesou muito, porque, na minha realidade lá em Santo Amaro, eu não era considerado dentro das lógicas hegemônicas do padrão. Eu era o amigo a quem todo mundo vinha contar seus segredos, vinha desabafar, mas nunca a pessoa que poderia ser desejada. Eu

me apaixonava loucamente, mas nunca havia essa reciprocidade.

Só aos 26 anos que eu fui entender isso.

Também foi a primeira vez que eu senti o sofrimento da distância, desse desejo de estar junto. Havia uma questão do corpo também, eu lembro que com essa pessoa eu transava de calça no quarto escuro para poder esconder as minhas pernas finas, atrofiadas, flácidas. E ele dizia: “Mas, Edu, eu te conheço e eu te amo do jeito que você é”. Nessa cultura do que é permitido, de quem é autorizado a ser amado ou não, a gente também vai introjetando muitas questões e vai reproduzindo outras coisas.

você também vivenciou essa negação da possibilidade de amar fora do aspecto romântico?

Sim! E minha pesquisa de doutorado e minha terapia ajudaram bastante a reconhecer isso. Não é tão óbvio assim, mas, quando minha família exige que

eu faça uma cirurgia para poder voltar a andar, acho que tem uma falta de amor. Por que para me amarem eu preciso ser outra pessoa?

A gente precisa reconhecer a outra pessoa no que ela é, no que ela vai se transformando. Nestes 18 anos que eu estou com meu marido, fomos nos acompanhando, nos reconhecendo nas novidades, no que fomos nos tornando.

Além da questão familiar, há a questão religiosa. Como pessoa gay, como pessoa com deficiência, quantas violências a religião causa, não aceitando e não reconhecendo a gente como a gente é?

o que você nunca ouviu sobre o amor, mas gostaria que lhe tivessem dito?

Nunca me disseram que o amor não é uma coisa só. Não tem um manual.

O amor não é igual para todo mundo.

Há pessoas com quem eu me rela-

cionei, há amigos que passaram pela minha vida que já não estão mais aqui, porque a gente já se distanciou, mas não significa que deixamos de amar.

Eu o reconheço, entendo e valorizo no que você é. Você não vai deixar de ser importante porque aconteceu alguma coisa entre a gente, uma complicação, um distanciamento. Você muda, seus interesses mudam, mas algo fica daquela relação, daquilo que a gente vivenciou, daquela experiência, daquela troca, daquele contato.

Nunca me disseram que o amor não é uma coisa só, e foi ao entendê-lo que eu me compreendi muito mais.

como você lida com a perda do amor e com o luto que ela traz?

Para mim sempre é devastador. Até hoje eu sofro bastante em relação a isto: a morte, o distanciamento, os términos, os rompimentos.

Quando há algum rompimento, eu tenho a necessidade de me afastar, de dar um tempo. É como quando a gente se afoga. A gente precisa daquele tempo na beira do mar para respirar. Às vezes precisa de uma respiração boca a boca. Precisa de outra pessoa para nos salvar, seja a terapia, uma viagem, uma pessoa que vai tomar uma cerveja com a gente, que chore com a gente, um travesseiro ou um colchão em que a gente se deite. Eu preciso me dar esse tempo de deitar na areia e olhar para cima para poder compreender também como é que eu estou e como é que eu posso me salvar disso.

Eu me angustio demais. Eu choro, o coração aperta, o peito dói. Perco a fome. no luto, esse processo é parecido?

Faz muito tempo que eu não passo por um. Mas, pensando no luto pela morte do meu avô: ele foi uma pessoa que me amou incondicionalmente. A gente

teve uma relação muito bonita, de compreensão e de muita entrega naquilo que a gente podia se entregar e se cuidar.

Quando ele morreu, era um sentimento de vazio, mas a certeza do amor era tão grande que também nutria. Talvez, no luto, ter esta certeza de que não ficou faltando nada, nenhuma pecinha do quebra-cabeça da relação, eu acho que faz com que ele seja amenizado. Quando ele faleceu, há muitos anos, eu tinha certeza de que a gente havia se amado profundamente. O que fica é a ausência, mas não há falta.

como o amor, a perda, o luto e a rejeição se expressam no seu processo criativo e na sua obra?

De todas as maneiras. Lembro que desde criança eu entendia isso. Escrevia poesias, e aquele amor infantil, idealizado, estava ali.

O primeiro trabalho que eu fiz no palco foi um monólogo chamado Aguarrais, que falava dessa devastação e destruição causada pela ausência do amor. Era eu, sozinho, ligando para o serviço 102, que era um número para o qual a gente ligava a fim de saber o telefone de alguém. Eu queria saber onde uma pessoa estava, e ela não aparecia. A última frase desse trabalho era: “É enlouquecedor passar a vida sem ter sido amado”.

Aí vem Judite quer chorar, mas não consegue!, que é meu solo, e a peça fala disso, da solidão. Judite quer chorar, mas não consegue. É uma lagarta que tem medo de virar borboleta, tem medo de ser rejeitada, medo do desconhecido, e acaba só.

Mas ali tem algo da autoestima também, de mostrar “Olha como eu sou”, “Olha como eu sou desejável”. Socialmente, é um corpo que parece que ninguém deseja, mas olha, tem os de-

votados que nos devotam. Apesar de a história toda dizer que nós éramos jogados nos abismos gregos, nós permanecemos aqui. Acho que fui passeando, no meu trabalho, por estes vários amores: de reconhecimento de comunidade, de grupo, do amor ao trabalho; esses vários caminhos do amor.

Houve um momento que me marcou em Judite. Houve um momento em que a peça se transformou em um espetáculo infantil. Inicialmente não era, fiz para comemorar meus 30 anos com 30 amigos, e meus amigos já eram todos adultos. Mas fiz uma temporada de três meses em um museu que era próximo de muitas escolas e instituições de pessoas com deficiência e, com as apresentações acontecendo à tarde, transformei a peça.

Em uma cena, Judite chorava com as mãos, eu fazia o choro com os dedos.

Uma das jovens que estavam assistindo ao espetáculo, com deficiência intelectual, se levantou no momento em que Judite chorava, pegou na minha mão e falou: “Judite, não chore. Eu estou aqui, Judite. Não chore, estou aqui, estamos juntos. Eu te entendo, eu sou uma Judite, então não precisa chorar”. Eu me emociono até hoje. Dedico-me para que as pessoas se reconheçam e que eu seja minimamente um instrumento de transformação social e pessoal. E esse momento foi muito forte.

Amor é o agora

Amor

é reivindicar a dignidade

Amor de salvação

Neide Archanjo

Celebrar amores flores mansas que em suicídios mansos murcharam.

Celebrar amores flores novas que em aparições novas desabrocharam.

lnventar delírios vastos leitos musas e procuras a sangrar o peito.

Gozar (carne resplendente) dos altos júbilos da paixão nascente.

Depois, muito depois, ganhar um amor e feliz saber que dele não se vai morrer.

ensaio fotográfico

Cia. Fundo Mundo

Ao longo das páginas desta publicação, pudemos perceber como, apesar de sermos constantemente inundados por discursos sobre o que é (ou deve ser) o amor, somente aprendemos suas possibilidades de manifestação – livres e idiossincráticas – por meio da vivência. Como afirmação da vida, o amor é um esforço ético de reconhecer, respeitar e evidenciar a pluralidade e a singularidade da existência, rompendo as fronteiras daquilo que é constantemente afirmado como hegemônico.

Em 2018, estreou seu primeiro espetáculo, Sui generis, com o qual tem circulado por diversos espaços e festivais. Sua obra mais recente é Espetáculo cancelado, de 2024, realizada por meio do Programa de Ação Direta do Estado de São Paulo. Como compromisso com a comunidade LGBTQIAPN+, o grupo desenvolve ações de mediação cultural que vão desde oficinas e laboratórios de criação até a pesquisa sobre presença e contribuição de pessoas trans no meio circense, tema de seu documentário e livro Circo em transição.

Neste ensaio, adentramos a esfera afetiva da companhia – na casa de Vulcanica Pokaropa, uma das integrantes da Cia. Fundo Mundo – em uma das ex-

Nesse esforço de quebrar barreiras de representação predominantes, convidamos a Cia. Fundo Mundo, grupo circense formado por pessoas trans, travestis e não binárias, para um ensaio fotográfico que representasse a beleza do amor que compartilham entre si, pela arte, pela vida e pelos momentos espontâneos e oportunos. Criada em Florianópolis, em 2017, a companhia propõe um mergulho na potência de corporalidades dissidentes como mote criativo. Seu trabalho é fortemente marcado pela comicidade e pela palhaçaria, com uma assinatura ácida, debochada e provocativa.

pressões mais cotidianas do afeto e do amor: cozinhar conjuntamente. Passamos uma tarde com Helen Maria, Lui Castanho, Noam Scapin e Vulcanica, compartilhando histórias, memórias e muitas risadas.

Serviço

Confira a programação completa de Todos os Gêneros:

Mostra de Artes e Pluralidades.

Conheça a coleção Todos os Gêneros da Itaú Cultural Play. Acesse pela TV, pelo celular ou pelo computador e aproveite.

Em nosso perfil no Spotify, você encontra uma playlist inspirada no tema desta edição da mostra.

todos os gêneros:

mostra de artes e pluralidades

Qual é o peso (da falta) do amor?

terça 24 a domingo 29 de junho de 2025

Verifique a classificação indicativa no nosso site.

itaú cultural itaucultural.org.br fone 11 2168 1777 atendimento@itaucultural.org.br

Avenida Paulista, 149, São Paulo/SP 01311-000

[estação Brigadeiro do metrô]

entrada gratuita

dados internacionais de catalogação na publicação (cip)

fundação itaú | itaú cultural

Todos os gêneros: mostra de artes e pluralidades: Qual o peso (da falta) do amor? / vários autores; organizado por Itaú Cultural. – São Paulo: Itaú Cultural, 2025. 33 MB; 80 p.

ISBN: 978-85-7979-193-2

1. Cultura. 2. Arte. 3. Diversidade. 4. LGBTQIAPN+.

5. Gênero. I. Instituto Itaú Cultural. II. Fundação Itaú.

III. Título

CDD 306.76

Bibliotecário Fernando Galante Silva

CRB-8/10536

fontes Sentinel e Verlag junho de 2025

De: Para:

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