Memorial Desenho

UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MINAS GERAIS ESCOLA GUIGNARD

ISABELA SALVADOR VIVEIROS DE LIMA

APOTEOSE: ESTRUTURAS E QUEDAS

Belo Horizonte 2021

UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MINAS GERAIS ESCOLA GUIGNARD

ISABELA SALVADOR VIVEIROS DE LIMA

APOTEOSE: ESTRUTURAS E QUEDAS

Trabalho de conclusão de Habilitação em Desenho apresentado ao curso de Bacharelado em Artes Plásticas da Escola Guignard - UEMG como requisito parcial para obtenção do título de bacharel em Artes Plásticas.

Professora Renault

Belo Horizonte 2021

Orientadora:

Cláudia

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO BACHARELADO ARTES PLÁSTICAS | HABILITAÇÃO EM DESENHO UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MINAS GERAIS | ESCOLA GUIGNARD PROFESSORA ORIENTADORA | PROFA. DRA. CLAÚDIA TAMM RENAULT BELO HORIZONTE | 14 DE FEVEREIRO 2022

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________________ PROFESSORA ORIENTADORA: CLÁUDIA RENAULT

__________________________________________________________ PROFESSORA MARIA MÁRCIA FRANCO GOMES

_________________________________________________________ PROFESSOR JOSÉ ROBERTO SCHNEEDORF FERREIRA DA SILVA

Agradecimentos

Agradeço a todos que me acompanharam e me apoiaram nesta longa jornada curta. Obrigada por acreditarem e apoiarem todas as loucuras, milagres

e

blasfêmias

que

saíram

desta

mente

caótica.

Obrigada,

principalmente, aos que me ouviram tagarelar sobre um mundo imaginário e tiveram paciência quando eu me perdia nos meus próprios.

Obrigada, de coração, por perceberem em mim a capacidade de criar.

Um texto é feito de imagens invisíveis Edith Derdyk

Sumário

Lista de imagens ............................................................................................. 8 Um novo mundo é revelado ........................................................................... 13 Sonhando com algum propósito .................................................................... 15 Catedral Interna............................................................................................ 20 Primeira parede: Desintegração da mente ...................................................... 26 Segunda Parede: A translucidez da decadência da mente .............................. 30 Terceira Parede: A Arquitetura da Melancolia ................................................ 38 Caçando o etéreo........................................................................................... 42 Considerações Finais .................................................................................... 49 Bibliografia ................................................................................................... 50

Lista de imagens

Tormento Isabela Salvador 15 x 31 cm Desenho digital 2021

Iluminura I Isabela Salvador 29 x 21 cm Desenho digital 2021

Iluminura II Isabela Salvador 29 x 21 cm Desenho digital 2021

Consequências Isabela Salvador 15 x 31 cm Desenho digital 2021

Capa

Pág. 19

Pág. 20

Pág. 23

Iluminura III Isabela Salvador 29 x 21 cm Desenho digital 2021

Mapa Alviora Isabela Salvador 32 x 35 cm Desenho digital 2021

Estátua de Narubog I Isabela Salvador 15 x 31 cm Desenho digital 2021

Pág. 24

Pág. 25

Pág. 29

Pág. 30

Abominação Isabela Salvador 29 x 21 cm Desenho digital 2021

Arauto (Eligos) Isabela Salvador 29 x 21 cm Desenho digital 2021

Fantasmas Isabela Salvador 29 x 21 cm Desenho digital 2021

Mapa “Zyrinus Khor” Isabela Salvador 31 x 67 cm Desenho digital 2021

Pág. 34

Pág. 34

Pág. 35

Pág. 36 e 37

Floresta dos Chorões I Isabela Salvador 15 x 31 cm Desenho digital 2021

Mula-sem-cabeça Isabela Salvador 15 x 31 cm Desenho digital 2021

Cuca Isabela Salvador 15 x 31 cm Desenho digital 2021

Pág. 41

Pág. 47

Pág. 48

Um novo mundo é revelado

“In another life, another time, a new world was revealed We gazed into the beauty of the depth of our imagination” -

The Stargazers – Peter Bjärgö1

Através tanto do desenho quanto da escrita, pude explorar algo que só estava na minha imaginação e mostrar um pouco a criança que habita em mim. Trago, com este trabalho, várias páginas de um sketchbook que retrata outro mundo; um mundo criado entre música, livros e a esperança de que a situação atual melhore o mais rápido o possível. Inspirado por um mecanismo de notas usado por desenvolvedores de jogos eletrônicos para ensinar ao jogador mais sobre o mundo que o próprio está sendo inserido, Apoteose: Estruturas e Quedas é o meu jeito de transmitir a minha história.

No decorrer desta leitura desenvolvo com mais profundidade a linha de raciocínio e pesquisa que empreguei durante a feitura do trabalho prático. A forma de como o assunto foi divido pelos capítulos segue cronologicamente a ordem em que as ideias foram surgindo. Optei por usar frases de músicas como títulos pois, além de ser um hábito nomear meus trabalhos a partir das mesmas, elas são reflexos do que falo dentro de cada seção. Inspirada pela letra de Internal Cathedral de Peter Bjärgö que fala que atrás de cada parede da catedral existe um mundo - todo

Em outra vida, em outro tempo, um novo mundo foi revelado Olhamos para a beleza da profundidade de nossa imaginação (tradução minha) 1

capítulo é como se o leitor atravessasse uma dessas paredes e adentrasse mais fundo na história.

Sonhando com algum propósito conta a breve, ao mesmo tempo longa, jornada que tive com o desenho até a elaboração deste trabalho; Catedral Interna é apresentado de onde surgiu a ideia e o tema. Primeira Parede, Segunda Parede e Terceira Parede são capítulos onde ocorre um mergulho mais fundo no processo de pesquisa e desenvolvimento do trabalho, falando, respectivamente, sobre o tipo de mundo, como este foi afetado e o que aconteceu além do que a personagem sabe. Caçando o etéreo é onde explico as influências que inspiraram este trabalho.

Mesmo que todos os desenhos tenham partido de estudos feitos com materiais tradicionais, utilizo o desenho e a pintura digital para o resultado final dos trabalhos. Além de ser um tipo de arte que me fascina e interessa desde que me entendo por gente, foi algo que me permitiu explorar mais e ir além do que pensei ser possível.

Apresento durante todo o trabalho, páginas de algo parecido com um diário, em que a personagem principal – que nada mais é do que uma ferramenta para contar a história – guarda momentos, pensamentos, curiosidades, pistas que podem resolver o grande mistério, qualquer coisa que ache interessante. Exploro diferentes estilos de desenho para dar a sensação de que foram feitos por pessoas diferentes, várias fontes que aparecem aqui e ali em anotações que foram rasgadas de outros lugares e enfiadas neste diário. Mapas feitos em épocas diferentes, rabiscados para algo mais atual. Todas as decisões tomadas para que a imersão fosse a maior possível. Qualquer comentário escrito no trabalho prático foi feito pelas personagens.

Sonhando com algum propósito

Eu poderia falar que minha relação com o desenho é um pouco conturbada e cheia de altos e baixos, algumas vezes cheguei até pensar em desistir. O desenho começou cedo, quando eu era criança - assim como todos que tinham a minha idade, afinal, é isso o que criança faz, brinca, desenha, ri; porém foi por volta dos doze anos que comecei a querer investir tempo no desenho. Não porque eu me interessava no ato de desenhar, mas sim porque eu lia bastante, o que me levou a escrever e, por algum motivo, eu queria dar vida aos personagens e aos lugares que imaginava; o desenho foi apenas o meio que encontrei para fazê-lo.

Lembro-me de passar bastante tempo procurando em diversos sites desenhos que se aproximassem o máximo possível do que eu queria.

Segredo: nunca nada me satisfazia. No momento até que servia, porém mais uma vez estava lá, passando horas e mais horas procurando por um desenho que nunca acharia.

Então, resolvi fazê-los eu mesma.

Comecei a experimentar aqueles tutoriais de como desenhar olhos de “anime/mangá” indo para como desenhar cabelo, boca, nariz, rostos inteiros. Ainda tenho meu primeiro retrato - que claramente dá para perceber que veio de um tutorial - e como me senti orgulhosa de tê-lo feito.

Secretamente me achava a última Coca-Cola do deserto por ter aquele nível de habilidade.

Os anos se passaram, minha técnica não mudou muito - afinal eu desenhava, no máximo, umas cinco vezes no ano - e comecei a me preocupar mais em entrar numa faculdade. Designer gráfico foi minha opção por muito tempo. Toda vez que alguém me perguntava o que eu cursaria a resposta era “design gráfico”. O engraçado é que, depois de insistir tanto, não me candidatei em nenhuma faculdade de design, desviando completamente para biblioteconomia e artes plásticas. E, por algum milagre, entrei numa faculdade de artes plásticas e decidi que queria seguir por este caminho.

No começo não foi fácil ter uma relação boa com o desenho. Tudo o que restava daquela confiança que eu tinha quando criança acabou assim que comecei a ver os trabalhos de amigos e colegas. Nada nunca estava bom e a frustração era grande, já que eu queria fazer desenhos e pinturas grandiosas, de coisas que não existem no nosso mundo. Comecei a me esforçar mais, praticar com mais frequência, inserir cor - existia um medo muito grande de estragar o desenho -, testar novos materiais. De lá para cá fiz um grande avanço, mas ainda é difícil cultivar o hábito de desenhar todo dia - principalmente porque no começo eu era bastante teimosa e não queria sair da minha zona de conforto. Hoje em dia, apesar de não estar sempre fazendo trabalhos finalizados, não se passa mais do que três dias sem que eu faça nem que seja um rascunho muito do mal feito que - com toda a certeza - terei dificuldade de entender depois. É – relativamente – mais fácil de um desenho ficar de um jeito que me agrade, posso focar mais em como passar as minhas estórias para as outras pessoas. Passo horas e mais horas tentando construir um mundo imaginário

com

reis

e

rainhas,

dragões,

batalhas

de

proporções

inimagináveis, deuses estranhos e magia para tudo quanto é lado; centenas de folhas com meios capítulos e tramas sem qualquer sentido ou ligação entre os próprios personagens. Não que algumas delas sequer vejam a luz do dia, entretanto, o fato é que eu ainda tento escrever algo

concreto e uso isso para criar meus trabalhos. É muito raro dar início a qualquer coisa sem que eu tenha um nome ou um conceito. Às vezes é algo simples, porém, normalmente, costuma ser temas que me tomam horas só de pesquisa para que minha simbologia esteja certa. Depois que esse processo ocorre é mais fácil de criar a composição que vai contar melhor a narrativa. Agora, conseguir que o desenho passe o que quero é uma tarefa monstruosa, que, de vez em quando, não estou apta a alcançar no momento e o resultado acaba por me frustrar um pouco. Com o objetivo de contar algo, é muito fácil que me perca em todas as minúcias que coloquei por trás de tudo e, que no final, apenas eu saberei o que significam e quão importantes são para a narrativa.

Ideias podem vir a partir de qualquer coisa, sendo completamente aleatórias as influências que o desenho recebe durante sua feitura. Títulos de álbuns de música, letras de música, melodias, trechos de livros, sensações, sonhos, palavras, jogos; independente do que for, um desenho pode surgir a qualquer momento. Às vezes é fácil e logo sai pelo menos um rascunho, entretanto isso acaba com um “problema”: fico acomodada em coisas que são fáceis para mim. Acontece com cores também. Então preciso me forçar a experimentar com outras coisas, seja tema ou material. Chegou até mesmo ao ponto de escrever palavras aleatórias em pedacinhos de papel, colocar em um pote de vidro e ficar sorteando dois de cada

vez.

É

engraçado

as

combinações

que

saem,

por

exemplo

lareira/templário e dragão/suéter e como me desafiam a conseguir relacioná-los de forma “coerente”, para que as ideias não pareçam deslocadas uma da outra. Na maior parte do tempo as únicas coisas que tenho são uma música e a sensação que quero passar, tornando o trabalho de formar uma narrativa mais difícil, o que, consequentemente, aumenta o tempo que passo pesquisando e reunindo referências.

Claro que teve momentos em que me perdi desse foco. Teve momentos que até mesmo pensei em desistir de desenhar. Às vezes a gente cansa;

talvez por um fator exterior ou interior. Não sei exatamente o que me levou a querer desistir, mas ainda bem que não o fiz. Minha relação atual com o desenho - mesmo com seus altos e baixos - é muito bonita para só acabar.

Nos últimos tempos percebi como o desenho é importante para mim e como, por meio dele, consigo dar sentido ao meu turbilhão de pensamentos. Percebi que, além de querer contar minhas estórias para o mundo, eu quero contá-las para mim.

Catedral Interna “There's an inner cathedral behind that wall.

A world to others unknown, but for you to be in.

Inside there are echoes, from the past, from the future.

Just let them guide you, let them surround you.”

-

Inner Cathedral - Peter Bjärgö2

Uma vez, quando expliquei para uma professora que precisava de música para conseguir fazer meus trabalhos, ela me disse que “é como beber um copo de água antes de começar a pintar” e, mesmo que eu tentasse explicar que não é – e nunca vai ser -, ela continuou insistindo. É uma comparação errônea – devo admitir que fiquei até um pouco ofendida – e que não leva em conta meu processo de criação. Ela falou como se fosse algo banal, que faz parte de uma rotina que não acrescenta em nada.

A função da música é a mesma que a dos materiais que vou usar. Não que meu trabalho fique limitado a ela para ser feito, mas sinto que ele pode alcançar todo seu potencial mais facilmente.

O início deste projeto veio através de duas palavras que eu estava guardando para fazer uma série baseada nelas: Apoteose3 e Entropia4.

Além de achá-las extremamente bonitas de se falar, seus significados me cativam e, na minha imaginação, dariam uma pesquisa e trabalho fascinantes. Entretanto, sozinhas elas não me servem. Apoteose: Estruturas e Quedas é um ótimo exemplo de como isto se aplica a um trabalho. Como gosto de dar ênfase as sensações que meus desenhos devem passar, pesquiso com cuidado o tipo de música que me ajudará a fazer isso.

Há uma catedral interna atrás dessa parede.

Um mundo desconhecido para outros, mas para você estar. Lá dentro existem ecos, do passado, do futuro.

Deixe-os guiá-lo, deixe-os cercá-lo. (tradução minha) 3 Ação de incluir deuses, deificação.

[História] Cerimônia de deificação dos imperadores e heróis, depois de sua morte.

Elevação à glória eterna; glorificação, exaltação.

4 Termo usado para descrever a evolução de um sistema de ordem para a desordem; Quanto maior o processo de alteração de um estado, maior será a sua desordem.

2

Neste caso, a ideia que tive foi trocar os significados e criar um contexto para os meus desenhos; algo que me desse a oportunidade de explorar várias temáticas visuais. Então nasceu Alviora, o mundo que tento representar. Em um breve resumo, Alviora é um reino que está em um estado de paralisia, pois seus habitantes, na tentativa de impedir a morte de seu deus e o fim dessa era de prosperidade, acabaram por interromper o ciclo de vida e morte, distorcendo algo natural e corrompendo todas as coisas. Acredito que, com o passar do tempo e sem conseguirem resolver o problema, o mundo foi tornando-se vazio e o que eu desenho são as ruínas que sobraram.

The Earth is littered with the ruins of empires that believed they were eternal.5(PAGLIA, 2017, pag.224) 6

Para o sentimento de vazio e melancolia que eu queria passar, a trilha sonora perfeita finalmente apareceu. Havia um tempo que eu conhecia o cantor suéco Peter Bjärgö7 e suas canções soturnas com letras que nos apresentam visões de universos vazios, decadentes, cheios de pó e infinita beleza. Atrevo-me a dizer que é como uma canção de ninar que nos deixa em transe, imaginando como seria estar nesses mundos. Com todos estes fatores em mente, comecei a dar forma aos meus pensamentos.

Toda vez que vou desenvolver um sketch para um desenho “finalizado”, sempre há muita pesquisa. Sendo esta a parte que mais me toma tempo – e a que mais gosto de fazer se for ser sincera -, ela pode acabar se tornando um hábito bastante perigoso, pois a tendência de descer em uma espiral sem fim de assuntos a serem pesquisados é muito grande e acontece com mais frequência do que gostaria. Sei que não dá para colocar todas as coisas que descubro em um único trabalho, Não quero que um desenho fique preso a algo difícil de ser entendido. Não que um pouco de mistério faça mal, porém, estou tentando contar uma história. Do que adianta ter todo o trabalho de pesquisa e feitura se o entendimento depende de um símbolo desconhecido que achei na quinta página do google?8

5

“A Terra está repleta de ruínas de impérios que acreditavam ser eternos.”

Camille Paglia é acadêmica e Ph.D pela Universidade de Yale. Ensaísta, crítica de arte e crítica social americana. Paglia é professora da University of the Arts em Philadelphia.

7 Peter Bjärgö é um cantor suéco, tem 47 anos e trabalha com música desde seus 30 anos. Seu primeiro trabalho foi com a banda Arcana (1993 - presente) e lançou seus primeiro álbum solo em 2009. (Bandcamp) 8 Nos próximos capítulos contarei sobre a história que criei para dar contexto aos meus desenhos.

6

Primeira parede: Desintegração da mente

“Just as the world disintegrates, so does my mind.”

-

Desintegration of the mind - Peter Bjärgö9

A primeira etapa é tudo o que corresponde à parte teórica do meu trabalho. É tudo o que preciso saber do assunto, é tudo o que vem a partir dele em contexto escrito. Quando tive a ideia de criar um mundo para contextualizar essa série, comecei escrevendo um breve parágrafo sobre o que estava acontecendo, inicialmente pensando em retratar os monstros.

Não demorou muito para que esse tema - apesar de vasto - diminuísse minhas opções.

O mundo não era para continuar na Era da Apoteose. Era tempo para a próxima era, porém as pessoas tentaram estender a vida da Estrela de Narubog e tudo foi corrompido.

Aqueles que sobreviveram pensaram: “Hey! Nós precisamos matar a estrela para que tudo volte a ser como era antes”, mas como alguém mata uma estrela morta-viva que corrompeu e absorve tudo?10

Até este momento eu tinha uma visão muito clara de que seriam desenhos escuros, muito influenciados pelo período gótico e por H.P. Lovecraft11. Então parei para pensar o motivo de querer esses elementos, principalmente o gótico. Porque não o breve momento da Art Nouveau? Ou

Assim como o mundo se desintegra, o mesmo acontece com minha mente. (tradução minha) 10 Toda citação sem qualquer tipo de crédito ao autor foi escrita por mim.

11 Howard Phillips Lovecraft (1890-1937) foi um escritor americano que difundiu o horror cósmico como gênero literário. Considerado atualmente um dos maiores escritores de terror do século XX. (Wikipédia) 9

o Japão durante o período Edo? Ou a Rússia no século XVIII? Porque, especificamente,

arquitetura

gótica?

Essa

pergunta

estava

me

incomodando muito e eu não conseguia outra resposta além de “porque eu gosto, é a minha preferida”. Esta não é uma resposta que me agrada, já que me impede de explorar novos caminhos e experimentar. Então veio outra pergunta - toda a minha vida é baseada em perguntas como já deu para perceber - e foi como uma luz no fim do túnel: e porque não o barroco mineiro?

A partir desta revelação milagrosa, as coisas começaram a caminhar num ritmo mais rápido. Sempre aparecem perguntas durante a pesquisa e eu tento respondê-las ao máximo sem ficar presa nelas. Muitas vezes são coisas que não interessam para a feitura do desenho, mas que me ajudam.

Alguma dessas são fáceis, por exemplo: “Isabela, não existe Nossa Senhora nem Jesus em Alviora, porque você está colocando a imagem dela e da cruz nas igrejas?”

Este tipo de questão é muito comum enquanto desenho e vão aparecendo coisas que entram em conflito com o mundo que criei e o nosso mundo, o que me força a parar o processo prático. Neste caso, pesquisei em várias mitologias (com enfoque na mitologia eslava) sobre entidades relacionadas à estrelas12 e o misticismo por trás tanto da prata13 quanto do número seis14. A partir de tudo isso nasceu outras cinco divindades, a forma como Narubog é representado, a Igreja das Seis Estrelas e como a religião afeta o que as pessoas vestem. Inclusive, é no momento que começo a me aprofundar na moda brasileira do século XIX, “(...) uma criança com braços até o cotovelo que eram de ouro sólido e pernas do quadril aos joelhos de prata. Estrelas juntas em volta de sua têmpora; de cada fio de cabelo em sua cabeça se pendurava uma pérola; a lua brilhava de suas costas, e o sol irradiava de seus olhos.” (Encyclopedia of Russian and Slavic myths and legends. Pág. 93) 13 A prata representa a energia lunar e a balança entre preto e branco. Simboliza pureza, força, clareza, foco e energia feminina.

14 O número seis representa amor incondicional, família, compaixão e empatia. Pode ter conotações negativas por conta da associação com o Diabo no cristianismo através do número 666.

12

que se consolida o uso de elementos culturais brasileiros, especificamente elementos mineiros.

Dúvidas mais complexas também aparecem e penso que elas são divertidas, dando mais contexto e realismo para Alviora, mas que, se eu fosse responder, levaria muito tempo de pesquisa. Nestes casos entra a suspensão de descrença em que a resposta é magia. Porque uma rocha prateada brilhante sustenta o mundo? Magia. Como tentaram manter essa coisa viva? Magia. Porque a corrupção existe? Magia. É um processo demorado, que dá uma canseira e que, muitas das vezes, não serve para nada além de satisfazer minha curiosidade. Mesmo com esse pensamento, acho que além de me ajudar a dar mais riqueza e profundidade ao meu trabalho, esses nuances permitem que outras pessoas criem narrativas próprias com base no que eu apresentei.

Segunda Parede: A translucidez da decadência da mente

“We walk amongst these ruins, a reminiscence of our past Everything must come to an end, transforming into dreamlike memories” -

The Translucency of Mind’s Decay – Peter Bjärgö15

O processo de decidir como a corrupção funciona e afeta as coisas foi um pouco conturbado para dizer o mínimo. Sendo Narubog uma estrela – ou seja, um corpo associado ao espaço – a chance de que fosse algo gosmento e com tentáculos era grande e, sinceramente, mais fácil de incorporar dentro da história. Entretanto, quando fiquei sabendo que existe uma doença que calcifica tecidos moles como tendões, ligamentos e músculos – fibrodisplasia ossificante progressiva (FOP) -, uma luz se acendeu em minha cabeça.

Se comportando como raízes de árvores e musgos, a Aflição de deus – nome como a corrupção ficou conhecida – toma conta de tudo em um curto espaço de tempo. O primeiro lugar a ser dominado foi a Igreja das Seis Estrelas na capital de Alviora, Ravenna, aonde fica a estrela de Narubog. O ritual que supostamente impediria a morte do deus aconteceu no dia em que é comemorada a vitória contra os deuses falsos e havia muitas pessoas em volta da igreja. O Alto Cardeal Nonvarti, seguro de que seus padres conseguiriam – por meio de magia – terminar a cerimônia, começou a missa mais cedo, atraindo muitos para a praça principal.

Supõe-se que todos aqueles estavam há dois quilômetros da Igreja foram mortos e virou um terreno impossível de ser atravessado pela grande quantidade de ossos.

Caminhamos entre essas ruínas, uma reminiscência do nosso passado Tudo deve acabar, transformando-se em memórias oníricas (tradução feita por mim) 15

A partir deste ponto, a Aflição começou a se espalhar pela cidade.

Tendo um crescimento parecido com o da planta kudzu16, em questão de meses tomou toda a cidade, passando para o país e, eventualmente, o continente. Penso que, depois do primeiro impacto que foi a falha do ritual, o índice de letalidade diminuiu, não transformando as pessoas em estatuas de ossos; entretanto, assim como kudzu, a corrupção é muito difícil de se controlar e, como as pessoas que a haviam criado morreram, ninguém sabia como resolver o problema. Todo e qualquer tipo de planta murchou ou foi mumificada; lavouras e campos foram dizimados, cobertos pela camada dura que era impossível de quebrar; casas foram invadidas e caíram com o peso extra. Uma tragédia atrás da outra.

Aqueles que restaram tiveram que lidar não só com a falta de comida como também mutações causadas por pulsos de magia17 provenientes da Igreja. A magia – um tipo de energia bastante instável – usada durante o processo era do tipo equivalente à energia nuclear; a falha causou acumulo dela dentro de Narubog que, sofrendo algo parecido com morte cerebral, não conseguiu segurar a pressão de todo este poder. O primeiro pulso aumentou os animais de tamanho, porém deixou-os magros, cadavéricos. O segundo fundiu animais e humanos, dando-os sintomas parecidos com os da raiva18 porém o tempo de incubação era menor e ossos começaram a brotar de seus corpos. Ao mesmo tempo que foi uma maldição, também foi um benção. Os ossos não paravam de crescer, prendendo suas vítimas no lugar em que estivessem. Tais abominações

O Kudzu é uma videira que foi introduzido na América do Norte em 1876, no sudeste dos EUA para controle da erosão, tornando-se uma praga por seu crescimento invasivo.

Pode crescer 30 centímetros por dia tendo vinhas que chegam a 30 metros de comprimento.

17 Parecido com o pulso eletromagnético (PEM), que é uma onda de alta energia que danifica materiais eletrônicos dentro da área afetada.

18 A raiva é uma doença infecciosa viral aguda, que acomete mamíferos, inclusive o homem. O período de incubação é variável entre as espécies, desde dias até anos, com uma média de 45 dias no ser humano, podendo ser mais curto em crianças. Os sintomas incluem mal-estar geral, anorexia, náuseas, irritabilidade, inquietude, febre, delírios, espasmos musculares involuntários, generalizados, e/ou convulsões e hidrofobia.

16

eram fortes e, de certa forma, imortais, ainda vivas depois de séculos sem poderem se alimentar; mas era só evitá-las que tudo estava bem. O real problema – se tudo o que ocorreu até agora já não é – veio com o terceiro e último pulso e o surgimento dos Arautos de Narubog, que acabaram com a chance de sobrevivência, por pequena que fosse, de qualquer um.

O critério usado para definir como a Aflição de deus afetaria as pessoas surgiu a partir do momento em que pensava sobre as consequências de tal ato. No mundo de Apoteose os deuses são reais.

Noite, Narubog e seus irmãos, os falsos deuses e os deuses de outras culturas são todos reais, então teria que haver retribuição pelo o que o Alto Cardeal de Ravenna e dos outros países fizeram com as estrelas.

Gosto da ideia de que deuses são seres imperfeitos – como os deuses gregos, que agem como humanos, a única diferença é que eles tem poderes – e possuem sentimentos “feios” como ódio, ressentimento e inveja. Noite, imagino, apesar de ter libertado a raça humana dos falsos deuses, não aceitaria a profanidade que foi não só negar a morte à seus filhos, como também forçar a extensão da vida deles. Então Ela os puniu, mandando os Arautos. Porém, mais do que deuses com defeitos, gosto de consequências.

Nonvarti teve uma péssima ideia que foi aceita pelos outros Altos Cardeais e que ninguém impediu – pelo menos ninguém que tinha poder para se opor. A probabilidade de alguma coisa dar errado era muito grande para que só acelerasse a morte de Narubog ou não acontecesse nada. O triste é que quem arcou com os efeitos foi o povo que não sabia nem que seus deuses estavam morrendo.

Para a criação dos monstros eu os dividi em três categorias: Abominações, Arautos e Fantasmas.

Abominações são seres humanos e

animais

afetados

pela

corrupção.

Havia

uma

população

grande

dentro

de Ravenna até a chegada dos

Arautos,

com

a

maioria deles paralisados pela aflição. Não são burros, mas sua capacidade mental

foi

reduzida para um instinto assassino

e,

hipopótamos,

como atacam

qualquer

um.

são

casos

os

Raros que

conseguem reter um pouco desta capacidade para falar, mas existem relatos escritos de que se pode ouvi-los implorar pela morte.

Arautos, mandados por Noite, são seres estranhos e alienígenas. armaduras

e

constituem

Reconhecíveis os

laços

seus

de

por

suas

energia

que

corpos,

como

se

estivessem puxando o próprio ar para se formarem. No início costumavam caçar pessoas e abominações, mas com o passar dos anos se limitaram a guardar a área em volta da Igreja.

- Fantasmas

isso,

são

apenas

fantasmas. Espíritos das pessoas que morreram. Ficam vagando por todo o continente, em especial as capitais que possuem as estrelas; são feitos de fumaça azul escura e brilham dependendo do ângulo que se observa.

Acho que é perceptível o quão difícil eu fiz com que a vida fosse em Alviora, acontecendo um desastre em cima do outro. Sobreviver é tão difícil, que, no momento em que conto esta história, não há pessoas vivas que se tenha registro. O mundo só não está vazio por causa dos monstros e penso que há uma certa beleza nisto.

Terceira Parede: A Arquitetura da Melancolia

“Everyday I experience the death of the Sun. And the ground that I stand upon, caves in… (…)

I close my eyes and wait for the numbness to set in, And I embrace the stillness of eternal sleep.”

-

The Architecture of Melancholy – Peter Bjärgö19

Quando comecei este projeto Ravenna mal existia. Eu sabia que cidades históricas como Ouro Preto e Tiradentes, havia uma igreja na parte mais alta da cidade e que a rua era de tijolinho, com algumas casas.

Se a população era grande? Ah... tinha pessoas, sabe.

Isto mudou no momento em que fui desenhando e expandindo o que já possuía. Igreja das Seis Estrelas? Quer dizer que existem cinco outros deuses além de Narubog, mas Alviora só venera um deles. Nessa linha de raciocínio, ganhei outros cinco países que seguem a mesma religião, porém dedicados a um só deus. Ao decidir fazer o mapa, o que era para ser algo misterioso, apenas insinuando um mundo maior do que aquele que apresento como foco, tornou-se um continente cheio de lugares a serem explorados e uma pergunta (dentro de várias) apareceu: eles foram afetados pela Aflição de deus? Te conto de prontidão que a resposta é sim.

Todos os dias eu experimento a morte de nosso Sol E o solo em que estou, cede (...)

Eu fecho meus olhos e espero que o entorpecimento se instale E eu abraço a quietude do sono eterno. (tradução minha) 19

Fazendo um rápido worldbuilding20, decidi que além de Alviora, Dunum, Arabona, Firnos, Belzano e Savirnum também seguiriam as Seis Estrelas, e esses países ocupam quase todo o continente. Apesar de terem uma rede de comércio entre si, são bem fechados para o resto do mundo – especialmente Savirnum que fica um pouco isolado por causa da cadeia de montanhas - então, até chegar o momento que os outros países perceberam o problema, já era tarde demais para agir – alguns como Carcas e Castra, ocupados demais lutando entre si por território, só se deram conta quando dois quartos de Carcas haviam sido invadidos.

Aqueles que conseguiram fugir, fugiram por mar, tendo pouco tempo de sentir alívio, pois as ilhas nas quais ancoraram também foram tomadas pela corrupção.

Os países restantes tentaram lutar. Usaram magia da mais familiar até a que mal havia uma teoria sobre; um número considerável de magos sucumbiu à exaustão e todo este trabalho só serviu para acelerar a propagação

dos

ossos.

Exércitos

inteiros

foram

dizimados

pelas

Abominações, obrigados a recuarem para as capitais. Preces foram feitas e, quando as pessoas perceberam que seus deuses não as salvariam, suicídios em massa começaram a acontecer.

Não sei se é uma comparação correta mas o destino do mundo de Apoetose me lembra muito o final do filme O Nevoeiro, lançado 2007.

Baseado no conto O Nevoeiro, do livro de 1985, Tripulação de Esqueletos, de Stephen King21, a história é basicamente a mesma – levando em conta que houve a tradução da linguagem escrita do conto para a escrita de roteiro para a linguagem visual – diferenciando-se no final. No conto, o

É o processo de construção de um mundo imaginário, muitas vezes associado a todo um universo fictício. A construção de mundos geralmente envolve a criação de mapas, uma história de fundo e raças (se estiver a escrever uma ficção especulativa), incluindo costumes sociais e, em alguns casos, uma linguagem inventada para o mundo em processo de criação.

21 Stephen Edwin King (Portland, 21 de setembro de 1947) é um escritor norte americano de terror, ficção sobrenatural, suspense, ficção científica e fantasia.

20

final termina em aberto com os personagens passando a noite dentro de um carro no meio do nevoeiro sem realmente saber se era possível continuar a viagem ou se sobreviveriam. No filme, depois que a gasolina acaba e desesperados, os personagens decidem cometer suicídio, porém a arma só tinha balas o suficiente para três deles. Tomando uma decisão difícil, o pai mata seu próprio filho e sai no nevoeiro para ser morto pelos monstros. Nesta hora o exército chega, com civis que resgataram durante o caminho, fazendo o nevoeiro recuar. O filme então termina com o pai vivo, agoniado porque tinha matado o filho.

A diferença entre Alviora e O Nevoeiro é apenas o fato do exército não existir, então não tem como alguém ser salvo.

Caçando o etéreo “We admired the stars that led the way Keeping the course to infinity” - The Stargazers – Peter Bjärgö22

Há diversas citações de referências por todo o texto, mas penso que é bom dar um capítulo só para este assunto, afinal, ele é bastante extenso e, como digo várias vezes, a pesquisa de referências é a parte que mais demora.

Apoteose começou com a ideia de juntar a mecânica de um jogo com a história de outro. Na série de jogos Dragon Age lançada pelo estúdio Bioware23, existe uma mecânica em que o jogador coleta anotações, páginas de livros, diários, cartas, etc. que falam sobre a história dentro do jogo.

Isto

inclui

religião,

monstros,

animais,

relações

políticas,

personalidades famosas, até mesmo letras de músicas. Apesar de não ter dado muito importância para isso no começo, quanto mais eu jogava mais me interessava e pensava no quão genial era essa mecânica, que sempre imaginei ser o personagem do jogador achando e guardando estes papéis consigo.

Já planejando fazer mil e um trabalhos iguais mas diferentes, durante as férias vi o meu amor por outra série de jogos reaparecer e como seria legal fazer um tipo de diário de viagem dentro daquele mundo. Prince of Admiramos as estrelas que lideraram o caminho Mantendo o curso até o infinito (tradução minha) 23 A BioWare é uma desenvolvedora canadense de jogos eletrônicos sediada em Edmonton, Alberta. Foi fundada em fevereiro de 1995 por Ray Muzyka, Greg Zeschuk, Trent Oster, Brent Oster, Marcel Zeschuk e Augustine Yip, sendo desde 2007 uma subsidiária da Electronic Arts.

22

Persia: The Forgotten Sands foi lançado, em 2010, pela empresa Ubisoft24 e faz parte da série de jogos Prince of Persia. Nele, você joga como o Príncipe que está indo visitar o reino de seu irmão. Quando chega lá, descobre que a cidade está sob ataque e seu irmão, num ato desesperado, invoca o “exército do Rei Salomão”, porém, quem ele realmente conjura é um djinn25 chamado Ratash, que quer a destruição de toda a humanidade por terem o prendido. Durante o jogo, para mostrar o que aconteceria se Ratash escapasse, as pessoas da cidade foram transformadas em estátuas de areia. No final, quando o Príncipe derrota o djinn, elas são salvas e voltam ao normal; porém, ao terminar o jogo, a única coisa que conseguia pensar era: “e se ninguém tivesse sido salvo? Se, apesar de ter impedido que Ratash ficasse solto pelo mundo, este reino e estas pessoas, não tivessem sido salvas?”. A ideia de encontrar ruínas cheias de estátuas feitas de areia no meio de um deserto e um mistério para ser resolvido era um prato cheio para mim, principalmente porque, na época, eu estava um pouco obcecada com arquitetura persa/islâmica e queria um estímulo a mais para desenhar.

E não parou por aí. Tive muitas ideias de mundos para que justificasse a criação de um novo “diário de viagem”. Por algum motivo optei pelo mais sombrio de todos. Não sei a razão exata de ter escolhido contar a história sobre um mundo que é destruído por algo fora do controle das pessoas, afinal, o momento causado pela pandemia já é triste e fúnebre o suficiente; mas... tem algo de sedutor em descobrir como chegou ao ponto que está sendo apresentado. Se parar para pensar, Apoteose pode ser visto como uma fábula – apesar de ser maior em Ubisoft Entertainment SA (anteriormente Ubi Soft Entertainment SA) é uma empresa francesa de jogos eletrônicos com sede no subúrbio de Montreuil, em Paris, com vários estúdios de desenvolvimento em todo o mundo. Suas franquias de jogos eletrônicos incluem Assassin's Creed, Far Cry, For Honor, Prince of Persia, Tom Clancy's, Just Dance, Watch Dogs, Rayman e Rabbids.

25 Jinn, traduzido como gênio, indica, na religião pré-islâmica e muçulmana, uma entidade sobrenatural do mundo intermediário entre o angélico e o humano, associada ao bem ou ao mal, que rege o destino de alguém ou de um lugar; embora sejam também descritos de um modo inteiramente virtuoso e protetor.

24

questão textual – em que a lição final é não mexer com o ciclo natural das coisas.

Nesta vertente tenho que admitir que, mesmo não sendo uma influência, meu trabalho e a série de jogos Dark Souls feita pela empresa japonesa FromSoftware26, possuem temas quase que idênticos. Todo o tema de Dark Souls se baseia na luta entre luz e escuridão – não necessariamente bem e mal – e ciclos, evidenciado no fato de que o Fogo está se apagando e é dever do jogador decidir se o reacende ou não.

Independentemente de sua decisão, ela nunca afetará o jogo seguinte, pois o conflito é o mesmo, simbolizando o movimento cíclico de que, não importa o que aconteça no passado, sempre voltaremos ao início. Ao serem comparados, a semelhança mais forte entre os dois trabalhos é o ato de intervir num ciclo natural. Em Dark Souls, o Fogo está se apagando há séculos, mas é revivido por meio de sacrifícios; em Apoteose, as Estrelas estavam morrendo e há uma tentativa de impedir esta morte, também por meio de sacrifícios. Seria impossível não comparar os dois, já que o tema central é tão importante para ambas as obras, podendo chegar a ofuscar o que vem depois. Enquanto em Dark Souls o jogador faz parte do processo de impedir o ciclo de morte, evitando assim enfrentar o declínio que a ausência do fogo causará, no meu trabalho o leitor vê as consequências quando já não há nada mais a ser feito. A única coisa que resta é registrar para que, talvez, aquilo não se repita.

Neste ponto parece que peguei inspirações apenas de jogos, não é mesmo? Ainda bem que este não é o caso. Muitos dos temas religiosos vieram de mitologias como a eslava, a russa, a grega e a uzbeque; vários pedaços que formam o panteão de Zyrunus Khor em algo complexo e cheio

FromSoftware, Inc. é uma desenvolvedora e publicadora japonesa de jogos eletrônicos sediada em Tóquio. É uma subsidiária da Kadokawa Corporation e foi fundada em novembro de 1986. Seu primeiro jogo foi King's Field de 1994 e, desde então, a empresa desenvolveu diversos títulos de sucesso, como as séries Armored Core e Souls e os jogos Bloodborne e Sekiro: Shadows Die Twice.

26

de vida. Os murais que ilustram estes mitos foram influenciados pelas Danças Macabras27 e pinturas rupestres enquanto que as imagens dos textos religiosos vieram das iluminuras de códices e livros medievais.

Muitos dos monstros vieram do folclore brasileiro, como uma página que menciona “uma bruxa com fisionomia de jacaré” ou outra que fala sobre “um rebanho de mulas decapitadas”. Até mesmo a Bíblia não escapou, pois a descrição dos anjos – rodas de fogo com centenas de olhos, seres com várias cabeças de animais e seis asas – me ajudou bastante ao fazer o design dos Arautos.

Falando em livro, um pensamento desenvolvido pelo horror cósmico de Lovecraft e leituras sobre gnosticismo, “interferiu” em como Noite aparece nos desenhos. No gnosticismo, divindades menores chamadas Aeons são partes do Pleroma que, por sua vez, é o ser perfeito, o verdadeiro deus. Nunca é dito ou descrito qual é a verdadeira forma destes seres. Possuo duas interpretações: a primeira é que eles são feitos do próprio universo, luz e pó e estrelas sendo moldadas para formar estas criaturas tão estranhas e familiares; a segunda é que eles não passam de uma ideia. Em suas histórias, Lovecraft descreve e não descreve os deuses de seu panteão.

Um pouco confuso, eu sei, mas

explico. Uma

característica dos monstros lovecraftianos, especialmente das entidades divinas, é que eles são difíceis, quase impossíveis de descrever, porém o que o leitor recebe são detalhes reconhecíveis a uma mente humana.

Cthulhu, um de seus monstros mais famosos, é descrito como possuindo características que lembram polvos, humanos e dragões, mas nunca é dito que ele as tem, só que lembram. É isto que procuro deixar claro quando “As Danças Macabras constituíram uma das mais importantes e populares formas de arte na Europa do século XV. Estritamente voltada para uma abordagem impetuosa e direta sobre a morte, esse tipo de expressão conseguiu reunir em imagens as três angústias mortuárias da Baixa Idade Média: o apodrecimento do corpo, a laicidade da morte e o morto que volta; tudo isso colapsado em um terrível encontro com a Morte.” (Os Quatro cavaleiros do Apocalipse: As funções da imagem e seu lugar de conteúdo em meio às produções de Albrecht Dürer (1471-1528) e A hipnose da Morte: a derradeira hora nas Danças Macabras do século XV, pag. 24) 27

falo que os Aeons são uma ideia, com formas tão diferentes do que estamos acostumados que não dá nem para imaginar. Noite também é assim. Sua representação como mancha escura com apêndices é a coisa mais próxima que as pessoas dentro do meu mundo conseguiram chegar a um acordo. Dar qualquer outra forma para Ela simplesmente parecia... errado. Como se estivesse delimitando uma ideia.

Estas são apenas algumas das influências que me ajudaram ao longo do caminho. Eu poderia passar horas falando sobre, já que sempre lembro de várias outras coisas que, por menor que sejam, me influenciaram mesmo que inconscientemente. Por fim, não poderia deixar de citar, de novo, toda a discografia do cantor Peter Bjärgö, que aos poucos foi tomando mais e mais espaço dentro deste trabalho.

Considerações Finais Depois de tanto tempo achando que nunca terminaria um trabalho tão grande, hoje posso falar que consegui. Sempre tive dificuldade de manter o foco em algo que demorasse muito, perdendo a paciência pelo fato de que nunca fica pronto rápido o suficiente ou porquê nunca está bom o suficiente É triste o tanto de histórias que larguei por não estar satisfeita, sendo muito rígida quanto as minhas expectativas. Este trabalho me ajudou a entrar no caminho para acabar com estes pensamentos bobos. Não que ainda não exista a insegurança, sempre me perguntando “e se ninguém gostar?” ou “está bom o suficiente?”, porém, acho que deu uma avançada para um futuro em que esse tipo de dúvida não ocupe tanto espaço em minha mente – afinal, duvido que algum dia elas desaparecerão por completo. Apoteose foi um abridor de portas, a primeira história que saiu de minha cabeça, se fez palavra, tomou forma e desenho. É a prova de que posso juntar todos os pensamentos caóticos e assuntos que não tem nada haver um com o outro em algo coerente.

Preciso admitir que não foi fácil fazer este trabalho. Não em questão prática, mas sim na questão de fazer algo que outros vão ver. É uma história que eu criei, que veio e faz parte de mim, quase que um filho; eu me despi para que este trabalho acontecesse. Ajudou muito toda a liberdade que recebi da professora Cláudia na feitura tanto do trabalho prático quanto do memorial, algo que usei até o limite – as regras da ABNT. Tenho certeza que não está terminado. Existem outros lugares para ir e descobrir, vidas para serem contadas. Este é apenas um começo de várias histórias.

Bibliografia

APOTEOSE. Dicionário Online de Português, 2021. Disponível em: <https://www.dicio.com.br/apoteose/>. Acesso em: 24 de jun. de 2021.

SPROVIERO, Dr. Mario Bruno; LAUAND, Jean. Entropia: “Progresso” para destruição.

Hottopos, 2021. Disponível em: <http://www.hottopos.com/vdletras2/mario.htm>. Acesso em: 24 de jun. de 2021.

ENTROPIA. Significados, 2021. Disponível em: <https://www.significados.com.br/entropia/>. Acesso em: 24 de jun. de 2021.

BJÄRGÖ, Peter. Dreaming of Some Purpose. Bandcamp, 2021. Disponível em: <https://peterbjargo.bandcamp.com/track/dreamingof-some-purpose>. Acesso em: 03 de jul. de 2021.

BJÄRGÖ, Peter. Inner Cathedral. Bandcamp, 2021. Disponível em: <https://peterbjargo.bandcamp.com/track/inner-cathedral>. Acesso em: 03 de jul. de 2021.

BJÄRGÖ, Peter. Disitengration of the Mind Bandcamp, 2021. Disponível em: < https://peterbjargo.bandcamp.com/track/disintegration-of-themind >. Acesso em: 03 de jul. de 2021.

BJÄRGÖ, Peter. The Translucency of Minds Decay. Bandcamp, 2021. Disponível em: < https://peterbjargo.bandcamp.com/track/thetranslucency-of-minds-decay >. Acesso em: 03 de jul. de 2021.

BJÄRGÖ, Peter. The Achitecture of Melancholy. Bandcamp, 2021. Disponível em: < https://peterbjargo.bandcamp.com/album/thearchitecture-of-melancholy-2 >. Acesso em: 03 de jul. de 2021.

DIXON-KENNEDY, Mike. Encyclopedia of Russian and Slavic myths and legends. ABCCLIO, Inc, 1998.

PAGLIA, Camille. Free Women, Free Man: Sex, Gender, Feminism. Pantheon Books, 2017.

VALENTE, Francisco Couto. Fibrodisplasia ossificante progressiva (FOP): o que é, sintomas e tratamento. Tua Saúde, 2021. Disponível em: < https://www.tuasaude.com/fibrodisplasia-ossificante-progressiva/>. Acesso em: 03 de ago. de 2021.

FIBRODISPLASIA Ossificante Progressiva. Wikipédia, 2021. Disponível em: < https://pt.wikipedia.org/wiki/Fibrodisplasia_ossificante_progressiva>. Acesso em: 03 de ago. de 2021.

PUERARIA Lobata. Wikipédia, 2021. Disponível em: < https://pt.wikipedia.org/wiki/Pueraria_lobata#:~:text=lobata%20cham ada%20pelos%20japoneses%20de,uma%20esp%C3%A9cie%20nativa% 20 do%20Jap%C3%A3o.&text=A%20prefer%C3%AAncia%20no%20habit at%20da,onde%20h%C3%A1%20muita%20luz%20abundante.>. Acesso em: 03 de ago. de 2021.

KUDZU: The invasive vine that ate the south. The Nature Conservancy, 2021. Disponível em: < https://www.nature.org/enus/about-us/where-we-work/unitedstates/indiana/stories-inindiana/kudzu-invasive-species/>. Acesso em: 03 de ago. de 2021.

PULSO Eletromagnético. Wikipédia, 2021. Disponível em: < https://pt.wikipedia.org/wiki/Pulso_eletromagn%C3%A9tico>. Acesso em: 03 de ago. de 2021.

WORLDBUILDING. Wikipédia, 2021. Disponível em: < https://pt.wikipedia.org/wiki/Worldbuilding>. Acesso em: 20 de ago. de 2021.

STEPHEN King. Wikipédia, 2021. Disponível em: < https://pt.wikipedia.org/wiki/Stephen_King>. Acesso em: 20 de ago. de 2021.

BIOWARE. Wikipédia, 2021. Disponível em: < https://pt.wikipedia.org/wiki/BioWare>.

Acesso em: 03 de nov. de 2021.

UBISOFT. Wikipédia, 2021. Disponível em: < https://pt.wikipedia.org/wiki/Ubisoft>. Acesso em: 03 de nov. de 2021.

GÊNIO (mitologia árabe). Wikipédia, 2021. Disponível em: < https://pt.wikipedia.org/wiki/G%C3%AAnio_(mitologia_%C3%A1rabe)> . Acesso em: 03 de nov. de 2021.

FROMSOFTWARE. Wikipédia, 2021. Disponível em: < https://pt.wikipedia.org/wiki/FromSoftware>. Acesso em: 03 de nov. de 2021.

GNOSTICISM. Wikipédia, 2021. Disponível em: < https://en.wikipedia.org/wiki/Gnosticism>. Acesso em: 20 de out. de 2021.

SOFIA. Wikipédia, 2021. Disponível em: < https://pt.wikipedia.org/wiki/Sofia_(gnosticismo)>. Acesso em: 20 de out. de 2021.

DEMIURGO. Wikipédia, 2021. Disponível em: < https://pt.wikipedia.org/wiki/Demiurgo>.

Acesso em: 20 de out. de 2021.

LAYTON, Bentley. The Hypostasis of the Archons (The Reality of the Rulers). The Gnostic Society Library, 2021. Disponível em: < http://www.gnosis.org/naghamm/hypostas.html>.

Acesso em: 17 de out. de 2021.

NERDOLOGIA. A vida de HP Lovecraft e seu Cthulhu . Youtube, 19 mar. de 2019. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=udk5uWt1GSE>. Acesso em: 19 ago. de 2021.

BELLA, Alisson Guilherme Gonçalves. Os Quatro cavaleiros do Apocalipse: As funções da imagem e seu lugar de conteúdo em meio às produções de Albrecht Dürer (14711528) e A hipnose da Morte: a derradeira hora nas Danças Macabras do século XV. Universidade Estadual de Londrina. Acesso em: 17 de out. de 2021.

BJÄRGÖ, Peter. The Stargazers. Bandcamp, 2021. Disponível em: < https://peterbjargo.bandcamp.com/track/the-stargazers >. Acesso em: 03 de nov. de 2021 MECHERI, Danny; ROMIEU, Sylvain. Beyond the Grave: Vol.1 Demon’s Souls, Dark Souls, Dark Soul II. Third Editions, 2017.

MECHERI, Danny; ROMIEU, Sylvain. Beyond the Grave: Vol.2 Bloodborne, Dark Soul III. Third Editions, 2018.

KING, Stephen. Tripulação de Esqueletos. Editora Objetiva. Ltda, 2011.