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Caçando o etéreo

“We admired the stars that led the way

Keeping the course to infinity” - The Stargazers – Peter Bjärgö22

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Há diversas citações de referências por todo o texto, mas penso que é bom dar um capítulo só para este assunto, afinal, ele é bastante extenso e, como digo várias vezes, a pesquisa de referências é a parte que mais demora.

Apoteose começou com a ideia de juntar a mecânica de um jogo com a história de outro. Na série de jogos Dragon Age lançada pelo estúdio Bioware23, existe uma mecânica em que o jogador coleta anotações, páginas de livros, diários, cartas, etc. que falam sobre a história dentro do jogo. Isto inclui religião, monstros, animais, relações políticas, personalidades famosas, até mesmo letras de músicas. Apesar de não ter dado muito importância para isso no começo, quanto mais eu jogava mais me interessava e pensava no quão genial era essa mecânica, que sempre imaginei ser o personagem do jogador achando e guardando estes papéis consigo.

Já planejando fazer mil e um trabalhos iguais mas diferentes, durante as férias vi o meu amor por outra série de jogos reaparecer e como seria legal fazer um tipo de diário de viagem dentro daquele mundo. Prince of Persia:

22 Admiramos as estrelas que lideraram o caminho Mantendo o curso até o infinito (tradução minha) 23 A BioWare é uma desenvolvedora canadense de jogos eletrônicos sediada em Edmonton, Alberta. Foi fundada em fevereiro de 1995 por Ray Muzyka, Greg Zeschuk, Trent Oster, Brent Oster, Marcel Zeschuk e Augustine Yip, sendo desde 2007 uma subsidiária da Electronic Arts.

The Forgotten Sands foi lançado, em 2010, pela empresa Ubisoft24 e faz parte da série de jogos Prince of Persia. Nele, você joga como o Príncipe que está indo visitar o reino de seu irmão. Quando chega lá, descobre que a cidade está sob ataque e seu irmão, num ato desesperado, invoca o “exército do Rei Salomão”, porém, quem ele realmente conjura é um djinn25 chamado Ratash, que quer a destruição de toda a humanidade por terem o prendido. Durante o jogo, para mostrar o que aconteceria se Ratash escapasse, as pessoas da cidade foram transformadas em estátuas de areia. No final, quando o Príncipe derrota o djinn, elas são salvas e voltam ao normal; porém, ao terminar o jogo, a única coisa que conseguia pensar era: “e se ninguém tivesse sido salvo? Se, apesar de ter impedido que Ratash ficasse solto pelo mundo, este reino e estas pessoas, não tivessem sido salvas?”. A ideia de encontrar ruínas cheias de estátuas feitas de areia no meio de um

deserto e um mistério para ser resolvido era um prato cheio para mim, principalmente porque, na época, eu estava um pouco obcecada com arquitetura persa/islâmica e queria um estímulo a mais para desenhar.

E não parou por aí. Tive muitas ideias de mundos para que justificasse a criação de um novo “diário de viagem”. Por algum motivo optei pelo mais sombrio de todos. Não sei a razão exata de ter escolhido contar a história

sobre um mundo que é destruído por algo fora do controle das pessoas, afinal, o momento causado pela pandemia já é triste e fúnebre o suficiente; mas... tem algo de sedutor em descobrir como chegou ao ponto que está sendo apresentado. Se parar para pensar, Apoteose pode ser visto como uma

24 Ubisoft Entertainment SA (anteriormente Ubi Soft Entertainment SA) é uma empresa francesa de jogos eletrônicos com sede no subúrbio de Montreuil, em Paris, com vários estúdios de desenvolvimento em todo o mundo. Suas franquias de jogos eletrônicos incluem Assassin's Creed, Far Cry, For Honor, Prince of Persia, Tom Clancy's, Just Dance, Watch Dogs, Rayman e Rabbids. 25 Jinn, traduzido como gênio, indica, na religião pré-islâmica e muçulmana, uma entidade sobrenatural do mundo intermediário entre o angélico e o humano, associada ao bem ou ao mal, que rege o destino de alguém ou de um lugar; embora sejam também descritos de um modo inteiramente virtuoso e protetor.

fábula – apesar de ser maior em questão textual – em que a lição final é não mexer com o ciclo natural das coisas.

Nesta vertente tenho que admitir que, mesmo não sendo uma influência, meu trabalho e a série de jogos Dark Souls feita pela empresa japonesa FromSoftware26 , possuem temas quase que idênticos. Todo o tema de Dark Souls se baseia na luta entre luz e escuridão – não necessariamente

bem e mal – e ciclos, evidenciado no fato de que o Fogo está se apagando e é dever do jogador decidir se o reacende ou não. Independentemente de sua decisão, ela nunca afetará o jogo seguinte, pois o conflito é o mesmo, simbolizando o movimento cíclico de que, não importa o que aconteça no passado, sempre voltaremos ao início. Ao serem comparados, a semelhança mais forte entre os dois trabalhos é o ato de intervir num ciclo natural. Em

Dark Souls, o Fogo está se apagando há séculos, mas é revivido por meio de sacrifícios; em Apoteose, as Estrelas estavam morrendo e há uma tentativa de impedir esta morte, também por meio de sacrifícios. Seria impossível não comparar os dois, já que o tema central é tão importante para ambas as obras, podendo chegar a ofuscar o que vem depois. Enquanto em Dark Souls o jogador faz parte do processo de impedir o ciclo de morte, evitando assim enfrentar o declínio que a ausência do fogo causará, no meu trabalho o leitor vê as consequências quando já não há nada mais a ser feito. A única coisa que resta é registrar para que, talvez, aquilo não se repita.

Neste ponto parece que peguei inspirações apenas de jogos, não é mesmo? Ainda bem que este não é o caso. Muitos dos temas religiosos vieram de mitologias como a eslava, a russa, a grega e a uzbeque; vários pedaços que formam o panteão de Zyrunus Khor em algo complexo e cheio de vida. Os murais que ilustram estes mitos foram influenciados pelas

26 FromSoftware, Inc. é uma desenvolvedora e publicadora japonesa de jogos eletrônicos sediada em Tóquio. É uma subsidiária da Kadokawa Corporation e foi fundada em novembro de 1986. Seu primeiro jogo foi King's Field de 1994 e, desde então, a empresa desenvolveu diversos títulos de sucesso, como as séries Armored Core e Souls e os jogos Bloodborne e Sekiro: Shadows Die Twice.

Danças Macabras27 e pinturas rupestres enquanto que as imagens dos textos religiosos vieram das iluminuras de códices e livros medievais. Muitos dos monstros vieram do folclore brasileiro, como uma página que menciona “uma bruxa com fisionomia de jacaré” ou outra que fala sobre “um rebanho de mulas decapitadas”. Até mesmo a Bíblia não escapou, pois a descrição dos anjos – rodas de fogo com centenas de olhos, seres com várias cabeças de animais e seis asas – me ajudou bastante ao fazer o design dos Arautos.

Falando em livro, um pensamento desenvolvido pelo horror cósmico de Lovecraft e leituras sobre gnosticismo, “interferiu” em como Noite aparece nos desenhos. No gnosticismo, divindades menores chamadas Aeons são partes do Pleroma que, por sua vez, é o ser perfeito, o verdadeiro deus. Nunca é dito ou descrito qual é a verdadeira forma destes seres. Possuo duas interpretações: a primeira é que eles são feitos do próprio universo, luz e pó e estrelas sendo moldadas para formar estas criaturas tão estranhas e familiares; a segunda é que eles não passam de uma ideia. Em suas histórias, Lovecraft descreve e não descreve os deuses de seu panteão. Um pouco confuso, eu sei, mas explico. Uma característica dos monstros lovecraftianos, especialmente das entidades divinas, é que eles são difíceis, quase impossíveis de descrever, porém o que o leitor recebe são detalhes reconhecíveis a uma mente humana. Cthulhu, um de seus monstros mais famosos, é descrito como possuindo características que lembram polvos, humanos e dragões, mas nunca é dito que ele as tem, só que lembram. É isto que procuro deixar claro quando falo que os Aeons são uma ideia, com formas tão diferentes do que estamos acostumados que não dá nem para imaginar. Noite também é assim. Sua representação como mancha escura

27 “As Danças Macabras constituíram uma das mais importantes e populares formas de arte na Europa do século XV. Estritamente voltada para uma abordagem impetuosa e direta sobre a morte, esse tipo de expressão conseguiu reunir em imagens as três angústias mortuárias da Baixa Idade Média: o apodrecimento do corpo, a laicidade da morte e o morto que volta; tudo isso colapsado em um terrível encontro com a Morte.” (Os Quatro cavaleiros do Apocalipse: As funções da imagem e seu lugar de conteúdo em meio às produções de Albrecht Dürer (1471-1528) e A hipnose da Morte: a derradeira hora nas Danças Macabras do século XV, pag. 24)

com apêndices é a coisa mais próxima que as pessoas dentro do meu mundo conseguiram chegar a um acordo. Dar qualquer outra forma para Ela simplesmente parecia... errado. Como se estivesse delimitando uma ideia.

Estas são apenas algumas das influências que me ajudaram ao longo do caminho. Eu poderia passar horas falando sobre, já que sempre lembro de várias outras coisas que, por menor que sejam, me influenciaram mesmo que inconscientemente. Por fim, não poderia deixar de citar, de novo, toda a discografia do cantor Peter Bjärgö, que aos poucos foi tomando mais e mais espaço dentro deste trabalho.

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