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Segunda Parede: A translucidez da decadência da mente

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“We walk amongst these ruins, a reminiscence of our past Everything must come to an end, transforming into dreamlike memories” - The Translucency of Mind’s Decay – Peter Bjärgö15

O processo de decidir como a corrupção funciona e afeta as coisas foi um pouco conturbado para dizer o mínimo. Sendo Narubog uma estrela –ou seja, um corpo associado ao espaço – a chance de que fosse algo gosmento e com tentáculos era grande e, sinceramente, mais fácil de incorporar dentro da história. Entretanto, quando fiquei sabendo que existe uma doença que calcifica tecidos moles como tendões, ligamentos e músculos – fibrodisplasia ossificante progressiva (FOP) -, uma luz se acendeu em minha cabeça.

Se comportando como raízes de árvores e musgos, a Aflição de deus –nome como a corrupção ficou conhecida – toma conta de tudo em um curto espaço de tempo. O primeiro lugar a ser dominado foi a Igreja das Seis Estrelas na capital de Alviora, Ravenna, aonde fica a estrela de Narubog. O ritual que supostamente impediria a morte do deus aconteceu no dia em que é comemorada a vitória contra os deuses falsos e havia muitas pessoas em volta da igreja. O Alto Cardeal Nonvarti, seguro de que seus padres conseguiriam – por meio de magia – terminar a cerimônia, começou a missa mais cedo, atraindo muitos para a praça principal. Supõe-se que todos aqueles estavam há dois quilômetros da Igreja foram mortos e virou um terreno impossível de ser atravessado pela grande quantidade de ossos.

15 Caminhamos entre essas ruínas, uma reminiscência do nosso passado Tudo deve acabar, transformando-se em memórias oníricas (tradução feita por mim)

A partir deste ponto, a Aflição começou a se espalhar pela cidade. Tendo um crescimento parecido com o da planta kudzu16, em questão de meses tomou toda a cidade, passando para o país e, eventualmente, o continente. Penso que, depois do primeiro impacto que foi a falha do ritual, o índice de letalidade diminuiu, não transformando as pessoas em estatuas de ossos; entretanto, assim como kudzu, a corrupção é muito difícil de se controlar e, como as pessoas que a haviam criado morreram, ninguém sabia como resolver o problema. Todo e qualquer tipo de planta murchou ou foi mumificada; lavouras e campos foram dizimados, cobertos pela camada dura que era impossível de quebrar; casas foram invadidas e caíram com o peso extra. Uma tragédia atrás da outra.

Aqueles que restaram tiveram que lidar não só com a falta de comida como também mutações causadas por pulsos de magia17 provenientes da Igreja. A magia – um tipo de energia bastante instável – usada durante o processo era do tipo equivalente à energia nuclear; a falha causou acumulo dela dentro de Narubog que, sofrendo algo parecido com morte cerebral, não conseguiu segurar a pressão de todo este poder. O primeiro pulso aumentou os animais de tamanho, porém deixou-os magros, cadavéricos. O segundo fundiu animais e humanos, dando-os sintomas parecidos com os da raiva18 porém o tempo de incubação era menor e ossos começaram a brotar de seus corpos. Ao mesmo tempo que foi uma maldição, também foi um benção. Os ossos não paravam de crescer, prendendo suas vítimas no lugar em que estivessem. Tais abominações eram fortes e, de certa forma, imortais, ainda

16 O Kudzu é uma videira que foi introduzido na América do Norte em 1876, no sudeste dos EUA para controle da erosão, tornando-se uma praga por seu crescimento invasivo. Pode crescer 30 centímetros por dia tendo vinhas que chegam a 30 metros de comprimento. 17 Parecido com o pulso eletromagnético (PEM), que é uma onda de alta energia que danifica materiais eletrônicos dentro da área afetada. 18 A raiva é uma doença infecciosa viral aguda, que acomete mamíferos, inclusive o homem. O período de incubação é variável entre as espécies, desde dias até anos, com uma média de 45 dias no ser humano, podendo ser mais curto em crianças. Os sintomas incluem mal-estar geral, anorexia, náuseas, irritabilidade, inquietude, febre, delírios, espasmos musculares involuntários, generalizados, e/ou convulsões e hidrofobia.

vivas depois de séculos sem poderem se alimentar; mas era só evitá-las que tudo estava bem. O real problema – se tudo o que ocorreu até agora já não é – veio com o terceiro e último pulso e o surgimento dos Arautos de Narubog, que acabaram com a chance de sobrevivência, por pequena que fosse, de qualquer um.

O critério usado para definir como a Aflição de deus afetaria as pessoas surgiu a partir do momento em que pensava sobre as consequências de tal ato. No mundo de Apoteose os deuses são reais. Noite, Narubog e seus irmãos, os falsos deuses e os deuses de outras culturas são todos reais, então teria que haver retribuição pelo o que o Alto Cardeal de Ravenna e dos outros países fizeram com as estrelas. Gosto da ideia de que deuses são seres imperfeitos – como os deuses gregos, que agem como humanos, a única diferença é que eles tem poderes – e possuem sentimentos “feios” como ódio, ressentimento e inveja. Noite, imagino, apesar de ter libertado a raça humana dos falsos deuses, não aceitaria a profanidade que foi não só negar a morte à seus filhos, como também forçar a extensão da vida deles. Então Ela os puniu, mandando os Arautos. Porém, mais do que deuses com defeitos, gosto de consequências. Nonvarti teve uma péssima ideia que foi aceita pelos outros Altos Cardeais e que ninguém impediu – pelo menos ninguém que tinha poder para se opor. A probabilidade de alguma coisa dar errado era muito grande para que só acelerasse a morte de Narubog ou não acontecesse nada. O triste é que quem arcou com os efeitos foi o povo que não sabia nem que seus deuses estavam morrendo.

Para a criação dos monstros eu os dividi em três categorias: Abominações, Arautos e Fantasmas.

Abominações são seres humanos e animais afetados pela corrupção. Havia uma população grande dentro de Ravenna até a chegada dos Arautos, com a maioria deles paralisados pela aflição. Não são burros, mas sua capacidade mental foi

reduzida para um instinto assassino e, como hipopótamos, atacam qualquer um. Raros são os casos que conseguem reter um pouco desta capacidade para falar, mas existem relatos escritos de que se pode ouvi-los implorar pela morte.

Arautos, mandados por Noite, são seres estranhos e alienígenas. Reconhecíveis por suas armaduras e os laços de energia que constituem seus corpos, como se estivessem puxando o próprio ar para se formarem. No início costumavam caçar pessoas e abominações, mas com o passar dos anos se limitaram a guardar a área em volta da Igreja.

- Fantasmas são isso, apenas fantasmas. Espíritos das pessoas que morreram. Ficam vagando por todo o continente, em especial as capitais que possuem as estrelas; são feitos de fumaça azul escura e brilham dependendo do ângulo que se observa.

Acho que é perceptível o quão difícil eu fiz com que a vida fosse em Alviora, acontecendo um desastre em cima do outro. Sobreviver é tão difícil, que, no momento em que conto esta história, não há pessoas vivas que se tenha registro. O mundo só não está vazio por causa dos monstros e penso que há uma certa beleza nisto.

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