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Lúpus (com entrevista

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Lúpus

úLpus, nome masculino de dois números, derivado do latim do étimo lupus, cujo significado é lobo. Este nome designa uma doença autoimune cuja maior taxa de incidência é no sexo feminino, entre os 18 e os 55 anos. Atualmente, em Portugal, estima-se a existência de quatro mil casos, sendo 80% diagnosticados em mulheres.

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A primeira vez que esta patologia foi detetada foi no século XIII, quando o médico Rogerius descreveu as lesões faciais como uma mordida de um lobo. Durante a Idade Média e até meados do século XIX, lúpus era descrito apenas como algo dermatológico, sendo somente em 1872 que o dermatologista Kaposi descreveu pela primeira vez muitas das manifestações sistemáticas do lúpus. Estas incluíam nódulos subcutâneos, artrite com hipertrofia sinovial nas pequenas e grandes articulações, linfadenopatia, febre, perda de peso, anemia e ainda envolvimento do sistema nervoso central. Foram, no entanto, apenas no século XX alcançados notáveis avanços científicos, devido à descoberta da célula de lúpus eritematoso na medula óssea dos pacientes. Apesar destas descobertas, lúpus é, mesmo hoje em dia, um enigma clínico. Apresenta-se como doença autoimune crónica, na qual o sistema imunitário em vez de proteger o corpo ataca os tecidos podendo causar inflamação e dor em qualquer parte do corpo. Existem 4 tipos de lúpus: lúpus sistémico, lúpus discóide, lúpus induzido por fármacos e ainda lúpus neonatal. O primeiro, mais comum, consiste na produção e eliminação defeituosa de anticorpos, na circulação e deposição tecidual de imunocomplexos e ainda na ativação do sistema do complemento (sistema composto proteínas da membrana plasmática que auxilia no combate à infeção), o que conduz a inflamações na pele, nas articulações, nos pulmões, nos rins, no sangue e no coração. No segundo, as únicas manifestações da doença são na pele, apresentando as lesões cutâneas formas de disco, dando assim o nome a este tipo. A terceira condição é causada por certos medicamentos, sendo os sintomas similares com os sintomas do lúpus sistémico, ainda que menos severos. Alguns dos fármacos que lhe estão comummente associados são a hidralazina, medicação para a hipertensão; a procainamida, tratamento da arritmia cardíaca; e ainda a isoniazida, usada para tratar a tuberculose. Este tipo de lúpus deixa, usualmente, de apresentar sintomas seis meses após a paragem da medicação. Finalmente, o último ocorre quando a mãe do bebé passa ao mesmo, através da placenta, certos anticorpos provocadores da doença. Os sintomas de lúpus variam de acordo com a fase em que a doença se encontra e quais os órgãos, tecidos e/ou articulações que são afetados. Existe, portanto, uma grande variedade de manifestações, consoante a parte do organismo que afetam. Entre elas destacam-se: manifestações articulares, cujos sintomas variam desde artralgias intermitententes a

poliartralguas agudas; manifestações cutâneas, cujas lesões da pele incluem eritema malar em asa de borboleta, ausência de pápulas e de pústulas e fotossensibilidade; manifestações cardiopulmonares, com sintomas como pleurisia recidivante, com ou sem derrame pleural; manifestações neurológicas, caracterizadas por dificuldade de concentração e transtorno de personalidade; manifestações renais, com a proteinúria como sintoma mais comum; e manifestações hematológicas, incluindo anemia, leucopenia e trombocitopenia. Apesar de ainda não ser conhecida uma causa exata do lúpus, acredita-se que existe uma série de fatores que, quando combinados, resultam no desenvolvimento desta doença. Três dos principais fatores são, como em muitas doenças, as hormonas, a genética e o ambiente. O primeiro não está ainda comprovado que realmente cause esta patologia, verificando-se, contudo, que com o aumento do estrogénio existe um aumento dos sintomas de lúpus. Ao longo dos últimos anos, investigadores da John Curtin School of Medical Research, parte da Universidade Nacional da Austrália identificaram mais de 50 genes associados ao lúpus, no entanto, estes não são condição suficiente para causar a doença. Grupos étnicos como Africanos, Asiáticos e Hispânicos possuem um maior risco de desenvolver lúpus, talvez devido aos genes que têm em comum. Se já existir histórico de doenças autoimunes na família, a probabilidade de contrair lúpus é maior. Por último, um agente ambiental, como um vírus ou um químico, pode representar um motivo para provocar a doença. Ainda não se sabe ao certo se a doença se deve à existência de um agente em específico, mas luz ultravioleta, infeções, exposição a pó de sílica em ambientes industriais e agrícolas, exaustão, stress, cirurgia, ou até mesmo gravidez são alguns dos fatores mais comumente identificados. Após a análise dos sintomas, o médico pode suspeitar da existência de lúpus, sendo, no entanto, necessário realizar mais testes para confirmar o diagnóstico. Examinar as análises laboratoriais, bem como ter em conta o histórico familiar, são fatores importantes para garantir um diagnóstico correto. Usualmente, são realizados exames ao sangue, à urina, e ainda um exame designado anticorpo antinuclear (ANA) que testa a presença de autoanticorpos e que se for positivo é sinal que sofre de uma doença autoimune. Por vezes, quando em dúvida, o médico pode recorrer à realização de biópsias tanto da pele como dos rins. O tratamento do lúpus deve ser orientado pelo reumatologista de acordo com o tipo da doença, sintomas apresentados e frequência com que acontecem. Apesar de não existir um tratamento que cure o lúpus, o médico pode indicar o uso de alguns medicamentos que ajudam a aliviar os sintomas durante os períodos de crise, entre os quais: antiinflamatórios, coritcoides e imunossupressores. É ainda recomendada a prática de exercício físico regular, o uso de protetor solar e alimentação saudável. Existem outros tratamentos que podem ser complementares ao do médico, por exemplo: vitaminas e suplementos, acunpuntura e terapia mente-corpo, não existindo, porém, qualquer prova de que estes sejam eficazes no tratamento de lúpus. Para complementar o artigo, segue-se uma entrevista realizada com Sofia Ribeiro, diagnosticada com lúpus.

Entrevista

Falámos com Sofia Silva Ribeiro, diagnosticada com lúpus há mais de 11 anos. Sofia acredita que “é possível viver com qualidade a partir do conhecimento, aceitação e responsabilização pela nossa doença. ”

É psicóloga, aluna de Doutoramento em Psicologia da saúde no ISCTE, com um projeto que “pretende desenvolver uma intervenção digital para promover a qualidade de vida de mulheres com lúpus. ” O seu trabalho está disponível na sua página de Instagram, @psicologasofiasilvaribeiro.

Immunitas: Como soube que algo estava errado? Sofia Ribeiro: Foi em 2010, quando comecei a sentir os primeiros sintomas e basicamente eu acordava de manhã com dores articulares e rigidez que não me permitiam, por exemplo, atar os atacadores das sapatilhas ou apertar o botão das calças, precisava de ajuda para me vestir de manhã. Na primeira aula da manhã não conseguia tirar apontamentos, porque não conseguia pegar na caneta, além de me sentir bastante cansada e muitas vezes ter febre ao início da manhã. Então quando estes sintomas surgiram eu senti que alguma coisa não estava bem e que não era suposto eles existirem, mesmo estando sobre algum stress, como implica o primeiro ano da universidade, e foi aí que decidi procurar ajuda médica. Comecei por procurar um fisiatra por ter dor articular e suspeitaram de várias coisas, mas depois do fisiatra fui a muitos outros médicos tentar descobrir o que é que eu tinha.

. I: Como e quando descobriu que tem lúpus? S: Descobri que tinha lúpus quando fui a uma consulta de reumatologia, num reumatologista já com muita muitos anos de experiência. Primeiro ele deume três possíveis diagnósticos: artrite reumatoide, doença de Behçet ou lúpus. Foi quando fiz alguns exames que ele acabou por me diagnosticar Lúpus. Assim contando parece que foi simples, mas até chegar aqui demorou bastantes meses, não sei se chegou até a um ano, e passei por vários médicos como disse na pergunta anterior. Acabou por ser um processo longo e bastante doloroso, porque antes de descobrir o diagnóstico, não conseguimos ser medicados devidamente e por isso as dores continuavam e simplesmente não sabia o que é que tinha.

I: Como é que a sua vida mudou desde o seu diagnóstico?

S: Na verdade tendo em conta o que eu partilhei antes, o facto de ter o diagnóstico em si até ajudou a melhorar a minha qualidade vida porque finalmente aquilo que eu tinha, tinha um nome e os médicos conheciam e sabiam como tratar. Comecei a medicação e comecei a sentir-me bastante melhor logo após as primeiras tomas, porque os sintomas começaram a ficar controlados ou seja no fundo a primeira mudança, a primeira sensação foi de alívio. Senti que mudou para melhor porque finalmente consegui tratar aquilo que eu sentia. Claro que se eu comparar com os anos sem sintomas a mudança foi muito grande, porque eu tinha sintomas que afetam as atividades no dia-a-dia, como o cansaço, as dores, as dores de cabeça que também tinha bastantes, tudo isso para quem está a iniciar a universidade é bastante desafiante. No fundo acaba por ser uma grande mudança, e há uma grande adaptação necessária, porque com 18 anos passei a viver com dor e cansaço praticamente diários mesmo quando tomava medicação e acho que esse foi o maior desafio. Foi aceitar que apesar da minha idade havia muitas coisas que eu antes fazia que deixei de conseguir fazer. Hoje vejo que a minha vida se adaptou totalmente ao meu diagnóstico e ele tornou-se até o meu propósito e é por causa do lúpus que eu trabalho todos os dias. Claro que se eu pudesse escolher não tinha lúpus, mas tendo eu penso que a minha vida acabou por se adaptar e eu hoje sou considero que sou muito mais do que o meu diagnóstico e consigo felizmente ter uma vida muito confortável, feliz e com qualidade.

I: Quais são os maiores desafios de viver com uma doença crónica? S: Eu acho que o primeiro grande desafio de viver com uma doença crónica é aceitar que vamos ter essa doença para a vida toda, que não existe uma cura e que provavelmente teremos a vida toda a preocupação de como é que podemos estar amanhã. Mas os desafios da vida com uma doença crónica depende muito da doença e das limitações que ela traz à própria pessoa. No meu caso felizmente as limitações são muito poucas e por isso, para mim o grande desafio foi aceitar a doença. Eu demorei sete anos a conseguir falar sobre o lúpus, conseguir partilhar que tinha e adaptar a minha vida ao diagnóstico. Depois os desafios prendem-se com o próprio dia-a-dia com aquilo que são os sintomas e a forma como eles acabam por influenciar as decisões que nós tomamos, e as decisões que nós tomamos na nossa vida influenciam os nossos sintomas. Outro desafio que eu considero que existe é o cansaço dos sintomas em si, ou seja, quando nós passamos vários dias com dor ou com fadiga, muitas vezes acumulamos um cansaço que há dias em que nós voltamos, não diria voltar a não aceitar, mas voltamos a sentir alguma revolta com o diagnóstico, e a ter pensamentos mais de adaptativas como: “Porque é que isto me está acontecer?” , “Estou farta de estar cansada todos os dias” ou “Quando é que eu tenho um dia sem dores?” , e esse desafio de voltar a aceitar, e de voltar a retomar o nosso equilíbrio, a nossa vida também é grande e é continuo tendo em conta que é uma doença crónica.

I: Partilhe alguns mitos com que já se deparou sobre o lúpus. S: Acho que o principal mito é que não é possível viver com qualidade com lúpus. Ainda existem alguns artigos na internet que ditam uma esperança média de vida para as pessoas com lúpus e que estão baseados em estudos muito muito antigos, que hoje em dia felizmente já não se aplicam. E por isso penso que este é o mito que é mais importante desmistificar, para que quem recebe este diagnóstico não pense que a sua vida acabou, ou que tem poucos

anos de vida, ou que não é possível viver bem com o diagnóstico. Porque é possível vivermos bem e com qualidade e ter uma vida dita “normal” mesmo com o lúpus. Existem outros mitos associados à doença, como as mulheres que têm lúpus não podem engravidar que também é um mito, ou que é uma doença contagiosa, esse infelizmente é muito grave porque pode ter muitas consequências sociais, mas eu acho que já se está a dissipar, acho que a maior parte das pessoas já não acreditam nele. Por outro lado, também podemos considerar mitos o facto das pessoas não acreditarem no impacto que as emoções têm na doença, porque têm bastante impacto, e daí a psicologia ter muito a dizer também no lúpus. Depois também não acreditarem que o nosso estilo de vida, como a alimentação e atividade física, têm impacto na doença. E penso que estes serão assim os mitos que mais me chamam à atenção e que eu própria acreditei em alguns deles quando tive o diagnóstico.

I: Que conselhos daria a outros com a mesma doença? S: Acho que o principal conselho que eu daria às pessoas que tem lúpus é para tentarem conhecer a doença através de fontes fidedignas de informação, para se rodearem de exemplos de superação e de pessoas que as possam ajudar, que tenham vivido os mesmos desafios, e que tenham também exemplos de esperança para dar. Depois que tentem trabalhar no controlo da doença, em conhecer o seu Lúpus, porque existe um lúpus para cada pessoa, e que tentem conhecê-lo para conseguir controlá-lo da melhor forma e sentirem-se mais eficazes a fazê-lo. E para juntar ao conhecer e controlar o lúpus, diria que é essencial trabalhar na aceitação do lúpus. Por isso, eu diria que o principal conselho resumidamente é: conheçam e aceitem o lúpus, aprendam a viver com ele e a controlá-lo e que não deixem que seja ele a controlar a vossa vida. I: Viver com lúpus afetou a sua carreira? Se sim, como? S: No fundo acredito que afetou mas no sentido positivo, porque basicamente definiu aquilo que eu faço hoje, se eu faço o que faço é porque tenho lúpus, e portanto o lúpus afetou a minha carreira mas num sentido positivo, porque me ajudou a perceber como é que eu, enquanto psicóloga, posso ajudar outras pessoas com lúpus, ou até com outras doenças crónicas. Em termos negativos felizmente não, não sinto que tenha afetado a minha carreira.

I: De que forma a convivência com esta doença a afetou a nível psicológico? S: Eu acredito que no início do meu diagnóstico pode ter afetado por me ter feito sentir emoções mais negativas, como raiva ou tristeza por ter o diagnóstico, e isso fez-me ter comportamentos em que eu escondia o diagnóstico e não consegui adaptar o meu dia-a-dia, a minha vida ao lúpus. E isso também afetou a minha qualidade de vida, porque fazia com que eu não tivesse comportamentos adaptativos e que me ajudassem a viver com mais qualidade. Hoje em dia, acredito que em termos psicológicos estou muito confortável com o diagnóstico e vivo bem com ele. Claro que, como todas as pessoas com ou sem lúpus, tenho dias piores e dias melhores, e tenho dias em que tenho algumas emoções negativas ainda associadas ao lúpus, mas esses dias já não são representativos. O próprio lúpus pode causar sintomas de foro psicológico ou psiquiátrico como as alterações de humor, algumas perdas de memória e perdas de concentração e claro que quando os meus sintomas são mais ativos, eu também tenho alguns desses sintomas, mas felizmente são raros e não afetam a normalidade da minha vida.

I: O que a levou a criar a sua página de Instagram? S: Decidi criar a minha página do Instagram porque ao longo do doutoramento, o meu objetivo é desenvolver uma intervenção para ajudar mulheres com Lúpus a viverem mais adaptadas ao seu diagnóstico, e este processo tem muitas aprendizagens, teóricas e práticas, da vida com lúpus que eu acredito que pode ajudar muitas outras pessoas com lúpus. Além disso, eu estou a fazer o meu doutoramento com uma bolsa de doutoramento, e isso significa que existe um investimento da sociedade no meu projeto, e, portanto, também me faz sentido retribuir à comunidade. Muitas vezes na academia aquilo que nós produzimos são artigos científicos em inglês e teses de doutoramento que, infelizmente, não são acessíveis ao público em geral, e portanto com a minha página pretendo dar à comunidade acesso direto e fácil numa linguagem acessível, àquilo que é o que eu vou aprendendo ao longo do meu doutoramento, mas também acrescentando um pouco da minha própria experiência enquanto pessoa com lúpus.

I: Realiza algum tratamento? Se sim, qual? S: Felizmente, neste momento, não necessito de realizar nenhum tratamento farmacológico, porque tenho o lúpus bastante controlado. A única opção neste momento seria tomar medicação por prevenção, para o caso de surgir algum sintoma no futuro e eu optei por não o fazer com o conhecimento da minha médica. Aquilo que eu tenho é muito cuidado, ou o cuidado possível em relação à alimentação, pratico exercício físico com acompanhamento profissional, e tento reduzir o stress. No fundo tento levar uma vida saudável dentro daquilo que é possível, tomando sempre muita consciência do meu corpo, escutando sempre que os sintomas estão a reaparecer para atuar sobre eles. Mas neste momento, felizmente, não estou a fazer qualquer tipo de tratamento farmacológico.

I: Obrigada pela sua colaboração!

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