Revista Atlântica de Cultura Ibero-Americana 02

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ILHAS

Conta do tempo em que a ilha não tinha contato com terra nenhuma, narrativas de desterro, bruxas, lobisomens

Nenêm conhece os tipos de camarão (branco, rosa, pintado, perereca), fala do jereré e da pesca noturna na lagoa da Conceição

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por enseadas, dunas, praias, lagoas, rios, promontórios, manguezais e pequenas ilhas esparsas, o conjunto forma um contraponto verdeazulado que fulgura entre o mar e a cidade, cujo centro abriga construções oitocentistas, uma cidade universitária e centenas de empreendimentos imobiliários. «O mar é maior três vezes que a Terra», explica seu José Agostinho, pescador da barra da lagoa, que toca cavaquinho na igreja, trova, tira versos, sabe picadinho e fandango, além de infinitas lendas. «Sem tanta ladineza como tinha antes», aos 84 anos canta boi-de-mamão, sabe de bruxas, barcos, peixes, um homem viajado: pelos navios Itatinga, Itabirá, Itassussé foi ao Rio Grande do Sul, Paraguai, Chile, depois ao Rio de Janeiro, de avião, como convidado. «A vida é um jeitinho, morrer é um descuido», confessa com sabedoria esse contador de histórias, guardador de uma enormidade de provérbios, capaz de inscrever nos seus dizeres a poluição, o dinheiro, a mulher, a evolução dos meios de comunicação. Analfabeto, conta do tempo em que a ilha não tinha contato com terra nenhuma, narrativas de desterro, bruxas, lobisomens, vestuário, plantas, pesca e redes, feitas de embira, caroá, ticum, barbante, perna-de-moça, gerbo e finalmente nylon. Histórias do tempo em que as moças usavam sete saias, quando sua mãe teve 24 filhos e quando um cantador podia roubar a noiva na hora do casamento, devolvendo-a ao seu verdadeiro amor, que a arrebatava da festa a cavalo. Cheia de sedução, Florianópolis é um paraíso turístico fertilizado pelos canais da ilha da magia, onde o cheiro de peixe se funde com lendas como a da

praia do Itaguaçu e muitas outras recolhidas por Franklin Cascaes, grande defensor da tradição popular. Nas palavras de Agostinho, ser bruxa é um condão, qualquer mulher pode ser bruxa se alimentar o mal no pensamento: «hoje a mulher avançou demais, boiou n’água e depois botou a cabeça de fora», pondera, trazendo tempos em que negócios eram pagos com bananas, distantes de hoje, quando o mundo mudou e «temos de ser como um aviador, ver os quatro cantos da terra». E o peixe? pode acabar por causa dos óleos dos navios, dos aviões, da poluição que envenena a natureza. «Ai que terra tão brejeira/mãos de fadas a rendar/ Tem Maria padroeira/ Ensinando a gente a amar.» Seguindo velhas rendeiras, junto à Lagoa da Conceição a Tenda da Vá tem blusas, batas, saias, chapéus, bolsas, adereços, toalhas, caminhos de mesa, croché, agulha de rede, filé e bilro. Além dos 140 tipos de rendas, o velho pescador lembra os folguedos, «farra do boi, boi-de-mamão e ratoeira, uma brincadeira para iniciar namoros: Atirei o limão verde/ Por cima da Sacristia/ Deu no cravo deu na rosa/Deu no moço que eu queria», sem esquecer outros modos de pegar uma moça, como torrar um beija-flor na sexta-feira santa, ou o Pão-por-Deus, quadras de amor em papel recortado em forma de coração. Já Seu Nenêm, pescador, fiscal da pesca, hoje coordenador do Terno de Reis, também mora com a família na Barra da Lagoa e conta dos santos que eram levados às casas na noite de 6 de Janeiro, costume de um tempo bem anterior à televisão, quando não havia sequer capelas. Tive a sorte de colher outros improvi-


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