Revista Atlântica de Cultura Ibero-Americana 06

Page 1


Índice 2 CARTA DE MAREAR 4 Todos os nomes 6 Lugares de partida Portimão Maria da Graça A. Mateus Ventura 10 A invenção da América Os negros no Brasil colonial Marina de Mello e Souza 18 Cem anos de solidão Las madres del Monte Julio Pantoja 24 Cidades invisíveis Cidade do México: o céu artificial Juan Villoro 30 sabores principais Os alimentos do Novo Mundo na tradição gastronómica portuguesa Isabel Drumond Braga 38 A sede do sul Alambiques & Alquimistas João Mariano 46 O que faço eu aqui João Ventura I Debaixo do vulcão II Outros abismos mexicanos III Um tequila eloquente 52 A maresia do mundo Debaixo do azul sobre o vulcão José Agostinho Baptista 54 Retratos de momento Frida Khalo Daniel Barraco 58 TRAVESSIAS Trans-Atlântico Witold Gombrowicz 66 biblioteca de babel Uma carta de Manuel Teixeira Gomes 70 Ficções A porta secreta Enrique Vila-Matas 72 Bestiário No princípio todos os homens eram burros Maria Adelina Amorim 76 outras inquirições Um transmontano e um mineiro na fundação da Casa Literária do Arco do Cego José Pacheco 78 Ficha técnica


atlântica ∙ carta de marear ∙ 2 ∙ 3

CARTA DE MAREAR

João Ventura

Lançada ao mar, há 6 anos, em Portimão – uma terra entre dois mares – a Atlântica tem navegado entre o lado de cá e o lado de lá do oceano, rumo ao Sul, para Sudoeste, para a América do Sul, para onde parece indicar o braço gigante que é o promontório de Sagres, «escarpa nua que se prolonga pelo Mar, (e onde) existe o aceno que leva para longe o nómada das águas», como escreveu Lídia Jorge no primeiro número da revista. Como nómadas das águas, em travessias de ida e volta, entre lugares de partida e de chegada da «vaga gente sem geografia cumprindo em sua carne, obscuramente, seus hábitos» - como confessou Jorge Luís Borges a Pessoa – empreendemos uma viagem circular através dos «labirintos embebidos de tinta» nas páginas da Atlântica. E eis-nos chegados, agora, aqui, a este cabo da escrita - não sabemos, ainda, se «tormentoso» ou da «esperança» - para onde nos empurra a «crise» que está aí, e que a todos, até mesmo aos trotamundos, afecta. Mas porque, como dizia Einstein, «em momentos de crise só a imaginação é mais importante do que o conhecimento», respondemos ao perigo que sobrevém e aos maquinadores de catástrofes que tudo querem levar para os abismos do mar, com a imaginação de que dispomos, temperada de inconformismo e servida

com a «inocência do agir», pondo este número 6 da Atlântica a navegar num novo formato 13x21cm, muito próximo do Moleskine, o caderno mítico que o escritor e viajante Bruce Chatwin utilizava para registar os seus pensamentos nómadas, doravante, também, para nós, o caderno onde «todos os caminhos da Ibero-América se bifurcam» e em cujos «labirintos embebidos de tinta» continuaremos a interpretar os sinais, os traços, a distinções, as semelhanças onde se espelha a alma ibero-americana cuja matriz é, também, lusófona. Respondemos, portanto, à «crise» com os meios escassos de que dispomos, mudando de formato, indo, afinal, ao encontro do sentido do próprio termo «crise» que na sua origem significa mudança, transição, e retirando dela, com intuição criativa, aquilo que ela pode gerar de adaptação e oportunidade. Dobrar, então, este cabo da escrita, rumo ao Sul, ao Sudoeste, perseguindo, como diria o escritor mexicano Sergio Pitol, uma «arte da fuga» através de crónicas, comentários, citações, glosas, histórias, imaginários, ficções, ilustrações, fotografias, representações de todo o género. Este o modo de, à escala deste projecto editorial, afrontarmos a «crise» e não sermos, glosando o filósofo alemão Hans Blumenberg, espectadores do nosso naufrágio i


Fotografia de Juan Rulfo publicada com autorização da senhora Clara Aparício Rulfo


atlântica ∙ todos os nomes ∙ 4 ∙ 5

Todos os nomes Daniel Barraco (Buenos Aires, Argentina) iniciou a sua actividade fotográfica em 1980, depois de frequentar a Escola Superior de Belas artes de Mendoza, Argentina. Realizou vários trabalhos fotográficos para os diários Libération e Le Monde. Em 2000 recebeu do governo chileno o Prémio de Mérito Artístico. Lecciona na Pontíficia Universidade Católica de Santiago do Chile, no âmbito do Curso Património e Identidade. As suas fotografias integram diversas colecções internacionais.

Enrique Vila-Matas (Barcelona, Espanha) é um dos nomes de referência da literatura contemporânea. Em 1968, exilou-se em Paris alugando um apartamento à escritora Marguerite Duras (cujas consequências relata em Paris Nunca se Acaba). Trabalhou como jornalista para a revista Fotogramas e estreou-se com o livro A Assassina Ilustrada (1977). A autoficção, género híbrido que mistura romance, ensaio e autobiografia constitui o traço peculiar da sua vasta obra de que se destaca a trilogia O Mal de Montano, Bartebly e Companhia e Doutor Pasavento. Exploradores do Abismo, Diário Volúvel e Dublinesca são os seus livros mais recentes. Isabel Drumond Braga (Lisboa, Portugal) é doutorada em História pela Universidade de Lisboa, onde integra o Departamento de História da Faculdade de Letras. Tem publicado inúmeros estudos sobre História Económica e Social, (séculos XIV-XVIII) em revistas especializadas portuguesas e estrangeiras. Dos vários livros publicados sobre temáticas Ibero-americanas destacase A Herança das Américas. Trópico dos Corpos e dos Sabores, CCT, 2007. João Mariano (Aljezur, Portugal) é fotógrafo. Editou e coordenou a fotografia do Grupo Forum, dirigiu o departamento de fotografia do portal Terràvista e actualmente dirige a agência 1000olhos – Imagem e Comunicação. Publicou diversos álbuns, livros e catálogos e expõe regularmente desde 1993. Colabora eventualmente com a revista Egoísta e com a revista Nós, do semanário i. João Ventura (Portimão, Portugal) Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação, pelo ISCTE. Foi Leitor de Língua e Cultura Portuguesas na Universidade de Paris III. Lecciona a cadeira de Teoria e Sociologia da Informação no Mestrado em Ciências Documentais na Universidade do Algarve. Entre 1998 e 2003, desempenhou as funções de Delegado Regional do Ministério da Cultura no Algarve. Actualmente é Director do TEMPO – Teatro Municipal de Portimão. É autor dos blogues literários O que cai dos dias e O leitor sem qualidades. José Agostinho Batista (Funchal, Portugal) poeta com vasta obra publicada na Assírio & Alvim, de que se destacam Morrer no Sul (1983), AutoRetrato (1986), Canções da Terra Distante (1994), Debaixo do Azul sobre o Vulcão (1995, Edição do Autor), Anjos Caídos (2003, Assírio & Alvim - Prémio PEN de Poesia), Esta Voz é Quase o Vento (2004, Assírio & Alvim - Grande Prémio APE/CTT de Poesia). Tem, ainda, assinado diversas traduções de autores como


Walt Whitman, W.B. Yeats, Tennessee Williams, Paul Bowles, Enrique VilaMatas, Rabindranath Tagore, Robert Louis Stevenson, Malcolm Lowry, David Malouf, Sergio Pitol, entre outros.

josé pacheco (Portimão, Portugal) é licenciado em Design de Comunicação, pela Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, mestre em História da Arte, pela Universidade Nova de Lisboa, e Doutorado em Ciências da Arte, pela Universidade de Lisboa. Especialista em Teoria e História do Design Gráfico em Portugal, com algumas obras publicadas, lecciona na Escola Secundária Poeta António Aleixo, em Portimão, e na Escola Superior de Artes Aplicadas do Instituto Politécnico de Castelo Branco. Juan Villoro (México D.F, México) é dos nomes de referência da litera-

tura mexicana contemporânea. Da sua vasta publicada destaca-se o romance El Testigo, (Anagrama, 2005) e o ensaio Espanha-Latino América (Anagrama, 2008). É, também, professor de literatura na UNAM e professor convidado em várias universidades como Yale, Boston e Pompeu i Fabra (Barcelona). Colabora regularmente em revistas literárias, designadamente Letras Libres e nos jornais La Jornada (México) e El País (Espanha).

Julio Pantoja (Tucumán, Argentina) fotodocumentarista, jornalista, criativo e editor. Formou-se como arquitecto e técnico de fotografia na Universidade Nacional de Tucumán, Argentina. É docente universitário e dirige, com Daniel Varsany, os ateliers de Expressão e Fotodocumentarismo. A sua obra integra colecções públicas e privadas, como a do Museu Nacional de Belas-Artes (Argentina) e a da Casa das Américas (Cuba). É membro do Instituto Hemisférico de Performance e Políticas para as Américas da Universidade de Nova Iorque. As suas fotografias foram expostas em galerias da argentina, Brasil, Chile, Venezuela, Nicarágua, El Salvador, Espanha, França, Portugal, Estados Unidos, Holanda, Alemanha, Suíça e África do Sul. Maria Adelina Amorim (Lisboa, Portugal) é Mestre em História do Brasil e Assistente convidada na Universidade Lusófona em Lisboa. É autora de vários estudos sobre a missionação no Brasil e sobre a literatura de viagens. Maria da Graça A. Mateus Ventura (Portimão, Portugal) é Doutora em Letras pela Universidade de Lisboa. Fundadora do ICIA, é Presidente desde 2002. Especialista em História Ibero-americana, com vários estudos publicados, de entre os quais se destaca a obra em três volumes, Portugueses no Peru: Mobilidades, Cumplicidades e Vivências, Imprensa Nacional-CM, 2005. Coordenadora da obra colectiva Manuel Teixeira Gomes: Ofício de Viver, Tinta-da-China, 2010. Marina de Mello e Souza (São Paulo, Brasil) é professora do Departamento de História da USP, fez mestrado na PUC-Rio e doutoramento na UFF. Tendo trabalhado com cultura popular, dedica-se, actualmente, à História da África pré-colonial, mais especificamente à região do antigo reino do Congo e de Angola. Publicou os livros Parati, a cidade e as festas, Reis negros no Brasil escravista, História da festa de coroação de rei Congo, África e Brasil africano.


atlântica ∙ lugares de partida ∙ 6 ∙ 7

Lugares de partida PORTIMÃO

Maria da Graça A. M. Ventura

Precursores da modernidade e da globalização, herdeiros do saber náutico dos povos do Mediterrâneo, os portugueses, inventores de Novos Mundos, inverteram para Sul as rotas medievais orientadas para o Norte da Europa. Era o resto do mundo que faltava... disse Miguel Torga. A viragem para Sul fez-se pelo Mar Oceano: a génese da mudança foi o espaço mediterrânico-atlântico, o Algarve. O Mar trouxe-nos, primeiro, as culturas do Mediterrâneo: durante séculos, desde a Antiguidade, fomos envolvidos num mundo vasto que cruzou povos e culturas, criou e cimentou interesses e motivações que possibilitaram a grande aventura dos Descobrimentos. Rios acima – Arade e Guadiana – fenícios, gregos, cartagineses, romanos e árabes foram penetrando no interior gerando um impacto cultural

que modelou a história e a cultura da entidade que viria a ser Portugal. Em torno dos rios juntaram-se populações que consolidaram direitos e abriram caminhos que do Mar lhes trariam vida melhor. Rios abaixo, primeiro para o Atlântico mediterrânico, de seguida para os mares do sul, partiram os portugueses que viriam a revelar uma diversidade inesperada de gentes, de culturas, de climas, de fauna e flora, de céus, de estrelas, gerando um impacto cultural que reconfigurou a identidade histórica dos povos. Tal como romanos e árabes haviam deixado marcas materiais e imateriais da sua presença, também os portugueses deixaram nos quatro cantos do mundo um património referencial moldado na cultura europeia – a língua, a toponímia, a religião, a arquitectura, o urbanismo, a organização política e administrativa –, mas sincréti-


co onde as culturas dos nativos apresentavam uma complexidade resistente. A história atribui, justamente, a Lagos um lugar de destaque no processo de descobrimento, devido à presença do Infante D. Henrique e às viagens que, a seu mando, se fizeram para a costa ocidental africana e para as ilhas atlânticas. Após a morte do Infante e a transferência da Casa de Arguim para Lisboa, o Algarve parece perder protagonismo. Ora, se Lagos empalidece, na foz do Arade nasce, no último quartel do século XV, uma Vila Nova que, graças às exceCom 40 moradores, em 1463, Portimão lentes condições de segurança do porto do conta já com 634 fogos em 1537 e com 1500 Arade, cresce e ganha na véspera do desastre de Alcácer Quibir. notoriedade pelo envolvimento dos seus moradores na construção naval e no comércio marítimo. O melhor porto do Algarve, no séc. XVI, beneficia da localização estratégica do litoral algarvio no contexto do comércio transatlântico. Com 40 moradores, em 1463, Portimão conta já com 634 fogos em 1537 e com 1500 na véspera do desastre de Alcácer Quibir. O dinamismo dos moradores de Vila Nova de Portimão levou D. Manuel, no ano em que Vasco da Gama chegou à Índia, a conceder aos arrais, pescadores, calafates e carpinteiros privilégios idênticos aos de Setúbal. No foral de 1504, a construção de navios de elevada tonelagem é incentivada com a isenção da dízima. Anos antes da sua visita a Portimão, D. Sebastião concedeu aos naturais exclusividade no corte de madeira na Serra de Monchique para a


atlântica ∙ lugares de partida ∙ 8 ∙ 9

construção de navios de pesca e de comércio, seguida de autorização para os mareantes da vila para cortarem livremente no reino as madeiras necessárias para as suas embarcações. Tais privilégios traduzem o dinamismo da actividade marítima na foz do rio Arade, da vila muralhada, dotada de Casa da Portagem e de Alfândega. Ora, mestres de navios desta vila são contratados por mercadores de Sevilha, enquanto marinheiros são recrutados para as viagens de descobrimento no espaço Atlântico. Marinheiros, pilotos, mestres e contra-mestres de Portimão rumam incessantemente a Porto Rico, Havana, Cartagena das Índias, Vera Cruz e para Sul até Buenos Aires. Muitos outros estabelecem-se na costa do Pacífico envolvidos em negócios da China na rota de Guayaquil (Equa-

território. Vamos encontrá-los na Venezuela, onde o portimonense João Fernandes Leão Pacheco fundou a cidade de Guanare, em 1591, e no Novo Reino de Granada onde o homem mais rico e influente no porto de destino das rotas negreiras, em 1620, era também um portimonense - Jorge Fernandes Gramaxo que construiu uma poderosa rede transatlântica com ligações a Lisboa, Sevilha, Madrid e Cabo Verde. A importância do Algarve no processo expansionista europeu – sobretudo no séc. XVI – no contexto das rotas americanas - explica o ataque do corsário Francis Drake à fortaleza de Sagres, em 1587, bem como a nomeação por Filipe II, nessa mesma data, de um feitor das Índias para impedir o comércio clandestino que se praticava nos portos do Algarve. De facto, o Algarve era um dos ângulos do

Marinheiros, pilotos, mestres e contra-mestres de Portimão rumam incessantemente a Porto Rico, Havana, Cartagena das Índias, Vera Cruz e para Sul até Buenos Aires. dor) e Acapulco (México) – destino da rota de Manila. Do Algarve, em particular de Portimão, partiram soldados que integram as hostes de Fernando Cortés que tomaram Tenotchitlán em 1521, como de Tavira havia partido um marinheiro com Cristóvão Colombo, em 1492. Partem mineiros para o Potosí (actual Bolívia) e negreiros para Cartagena das Índias, alheios a questões de nacionalidade, movidos pela aventura e pela ambição, mas sem perder a ligação com a família que por cá ficara. A Inquisição que cerceou os negócios e a liberdade dos conversos provocou a fuga em massa de agentes económicos fundamentais para o desenvolvimento do

chamado triângulo de rebeldia (com Açores e Lisboa) pela sua ligação à Carreira das Índias. Tavira, Lagos e Portimão eram os principais pólos do contrabando. Naus procedentes do Panamá, da Colômbia ou de Cuba com destino a Sevilha, desviavamse da rota ou abandonavam a frota, alegando naufrágios ou ataques de corsários, arribando aos portos do Algarve onde podiam descarregar o ouro e vendê-lo, eximindo-se, assim, a pagar os direitos na Casa da Contratação de Sevilha. O Algarve, pela sua cumplicidade natural estabelecida com a vizinha Andaluzia, pela situação geográfica estratégica face à Carreira das Índias, e ainda pela apetência dos seus mari-


nheiros e mareantes, integrou-se no complexo económico mediterrânico-atlântico polarizado por Sevilha, contribuindo com tripulantes e mestres de navios, pilotos e mercadores

ventos vindos da América através do Atlântico. Dizia Manuel Teixeira Gomes, o mais ilustre filho desta terra, que “aqui os pôres-do-sol são diversos e opulentos como talvez em

Dizia Manuel Teixeira Gomes, o mais ilustre filho desta terra, que aqui os pôres-do-sol são diversos e opulentos como talvez em nenhuma outra região do mundo; pôres-do-sol para todos os gostos: prodigiosos, idílicos, tremendos, paradisíacos, trágicos, heróicos, apocalípticos. para o descobrimento e colonização da América. O Algarve nunca foi terra de grandes senhores, não sendo, por isso, dotado de um património monumental, mas foi e é terra de gente empreendedora, vaga gente sem privilégios - que se aventurou na vastidão incógnita do Mar Oceano, que talhou fortalezas e igrejas, construiu casas de cal e canto, sofreu e amou, “alheio aos trâmites da arte, indecifravelmente formando parte do tempo e da terra e do esquecimento” (Jorge Luís Borges), “portugueses atirados de Sagres para a aventura indefinida, para o Mar Absoluto, para realizar o Impossível” (Álvaro de Campos). A intensidade luminosa do sol, da lua e das estrelas atinge o seu máximo na costa de Portimão, bafejada pelos

nenhuma outra região do mundo; pôres-do-sol para todos os gostos: prodigiosos, idílicos, tremendos, paradisíacos, trágicos, heróicos, apocalípticos” (Agosto Azul, 1926). O contraste entre a serra e o mar ilustra o combate incessante entre tradição e inovação e o dilema ficar ou partir. Hoje, o Algarve é de novo espaço de viagem porque o Mar, o nosso património maior, continua deslumbrante e azul, tranquilo e sedutor. Como uma Rosa dos Ventos, as rotas cruzam-se em todas as direcções, as partidas e as chegadas traduzem a geografia planetária i


atlântica ∙ a invenção da américa ∙ 10 ∙ 11

A invenção da América O Brasil foi construído a partir da conquista de parte da América pelos portugueses, que ocuparam terras antes habitadas por populações nativas, implantaram um sistema econômico e administrativo de exploração colonial, e importaram da África a mão-de-obra necessária para tocar tal empreendimento.

Presença africana no Brasil colonial

Marina de Mello e Souza O Brasil foi construído a partir da conquista de parte da América pelos portugueses, que ocuparam terras antes habitadas por populações nativas, implantaram um sistema econômico e administrativo de exploração colonial, e importaram da África a mão-de-obra necessária para tocar tal empreendimento. Nesse processo, o que aqui nos interessa diz respeito a aspectos da vida de africanos e seus descendentes, e como estes exerceram sua religiosidade e sua sociabilidade no contexto de uma sociedade escravista. Nas sociedades africanas, o que nós chamamos de religião, ou seja, as for-

mas de relacionamento com as esferas do invisível, do divino, do além, é parte indissociável das outras dimensões da vida, que chamamos de política, econômica, social. Assim como eram nas sociedades africanas, as práticas mágico-religiosas foram centrais para a organização de comunidades negras no Brasil. Com origens diversas, os africanos escravizados e traficados aos poucos organizaram um campo cultural afro-brasileiro, num processo que começou com trocas culturais entre diferentes grupos de africanos, incorporou as trocas entre africanos e negros nascidos no Brasil, e também


Grupo reunido em torno de um casal a dançar o lundu, que combinava influências africanas e portuguesas. Johann Moritz Rugendas, 1835.

entre portugueses e nativos, até que depois de 1850 os africanos deixaram de chegar e a África levada para o Brasil se tornou cada vez mais brasileira. As fontes que permitem o acesso a informações acerca de como viviam os escravos e libertos, africanos e descendentes destes, são escassas para os tempos mais remotos. Mas

por processos inquisitoriais, processos crime, por inventários, registros paroquiais de batismo e casamento, narrativas de viajantes, relatos de missionários e administradores, correspondência oficial, podemos pescar pistas mais ou menos claras a respeito das comunidades negras no Brasil colonial. Assim, principalmente por meio dos registros feitos pelo tribu-


atlântica ∙ a invenção da américa ∙ 12 ∙ 13

nal da Inquisição, podemos saber que no século XVIII eram feitos calundus em torno de altares e líderes religiosos, que se utilizavam de tambores, música, objetos variados e gestos cheios de significado. Os calunduzeiros curavam doentes, aliviavam o sofrimento, indicavam caminhos, resolviam questões amorosas e de vingança. Atuavam principalmente nas Minas Gerais e na Bahia, áreas de maior presença de escravos africanos. Os calundus são as mais antigas práticas religiosas dos negros que foram registradas e assumem enorme variedade de formas, pois diferentes ritos são chamados pelo mesmo nome na documentação conhecida. Contavam com a presença de grupos maiores ou menores de pessoas, o som de tambores, a possessão do oficiante por espíritos que o punham em contato com as forças e saberes do além, atos de cura, de diagnóstico, de julgamento. Os calundus conectavam não só o mundo dos homens com o dos ancestrais e espíritos da natureza, como o Brasil com a África. A palavra é quimbundo, língua falada por povos da região de Angola, e remete a um sentido de doença proveniente da intervenção de um ancestral na vida de um descendente seu. Para curá-la, um especialista devia realizar procedimentos mágico-religiosos que permitiam que a pessoa atacada pela doença se tornasse também especialista em intermediar a atuação das forças do além na esfera do mundo visível . No Brasil serviu para designar uma variedade de práticas com elementos estruturais comuns e perseguidas em muitas situações, o que resultou na documentação que, mesmo fragmentariamente, torna possível que saibamos da sua existência . Se no século XVIII as práticas religiosas de africanos e seus descendentes

eram chamadas de calundus e tinham forte presença de elementos bantos, no século XIX são os candomblés que emergem da documentação, localizados principalmente no recôncavo baiano, para onde afluía grande número de africanos escravizados na região do golfo do Benin. Os candomblés têm a princípio uma influência marcadamente nagô, ou jeje, com destaque para o culto aos voduns, entidades ligadas às linhagens que regiam a religiosidade dos povos que habitavam a leste do Daomé, e sobre os quais há informações para a região de Cachoeira, na Bahia. Os candomblés de Salvador tiveram uma importante ligação com essas casas de culto pioneiras, mas ali as influências iorubás – povos a leste dos nagôs organizados em diferentes unidades políticas, ou reinos, como as descreveram os europeus –, disseminou o culto aos orixás, ao oráculo de Ifá, e as festas para as entidades espirituais tornaram-se cada vez mais elaboradas e complexas, resultado dos novos contextos . A disseminação dos terreiros de candomblé levou também a que seus freqüentadores fossem cada vez mais heterogêneos, ultrapassando em muito os limites das comunidades negras e também, às vezes, incorporando elementos de religiões não africanas: católica ou indígena. Quando o candomblé se consolidou como a religião da maioria das comunidades negras, há muito o Brasil já havia se tornado independente de Portugal, mas tal fato não repercutiu na vida dos escravos e dos negros, que até 1888 continuaram a viver numa sociedade escravista, guardadas as diferenças existentes entre o início e o final do século. Calundus no século XVIII e candomblés a partir do XIX foram manifestações que congregaram pes-


soas de ascendência africana que no Brasil refizeram suas formas de sociabilidade, de organização, de relacionamento com o mundo invisível, dando origem a novas manifestações e tipos de organização que chamamos de afro-brasileiras. Mas uma outra forma de se organizar e de exercer solidariedades e sociabilidades se desenvolveu a partir das irmandades leigas católicas de negros. O catolicismo, central na construção do Brasil, também foi incorporado pelos africanos escravizados e pelos seus descendentes, havendo a constituição de um catolicismo negro, formado principalmente a partir das «irmandades de homens pretos»,

do século XVII e que ainda hoje reúnem grande número de participantes. Na visão dos brancos, o rei negro era destituído de poder verdadeiro, mas para a comunidade por ele representada era autoridade de fato e muitas vezes, em situações extremas, esta se fazia valer mesmo junto aos senhores. O rei negro congregava as pessoas em torno de si e com isso fortalecia uma identidade de grupo, tal qual um chefe africano . Danças em torno do tambor, varando noite afora, sem um caráter evidentemente religioso, também aconteciam nos terreiros das senzalas, nos largos das vilas e cidades, nos quintais, nos casebres afastados, nos

Os calundus conectavam não só o mundo dos homens com o dos ancestrais e espíritos da natureza, como o Brasil com a África. A palavra é quimbundo, língua falada por povos da região de Angola, e remete a um sentido de doença proveniente da intervenção de um ancestral na vida de um descendente seu. que proliferaram na época colonial. Essas irmandades enterravam os irmãos, ajudavam-nos na necessidade; construíam altares e igrejas para seus santos padroeiros, homenageavam-nos com festas; e elegiam reis negros, primeiro das diferentes nações agregadas nas diferentes irmandades, depois do rei do Congo, num processo de construção de uma identidade católica negra que gradualmente deixou de lado as diferenças étnicas particulares. Nos dias de festa para os santos padroeiros das irmandades, reis negros eram homenageados pelas congadas: cortejos que percorriam as ruas cantando e dançando ao som de instrumentos de percussão, descritos desde o início

quilombos, configurando momentos lúdicos, onde os parceiros dançavam e cantavam versos que diziam respeito a acontecimentos do cotidiano e faziam uma crônica da comunidade, indicando quais os valores recomendados pelo grupo. Adivinhas eram lançadas e mesmo feitiços, que tinham que ser desarmados, num desafio entre especialistas. Lundus, batuques, rodas de samba, de jongo, de capoeira eram momentos de diversão, de congraçamento, de extravasamento de tensões, de reforço de identidades, vividos por comunidades negras. Identificados à escravidão, a um passado de atraso colonial, ao peso da inferioridade à qual os africanos


atlântica ∙ a invenção da américa ∙ 14 ∙ 15



atlântica ∙ a invenção da américa ∙ 16 ∙ 17

estavam atrelados pelas ideologias então dominantes, os negros foram, no pós-abolição, violentamente marginalizados por uma total falta de oportunidades, por preconceitos de ordem racial e determinação biológica. Foram preteridos pelos imigrantes europeus brancos e asiáticos, que não traziam consigo os significados associados às tensões inerentes ao sistema escravista. Com o raiar do século XX, a jovem república brasileira começou a se industrializar e os seus índices de urbanização aumentaram, absorvendo grande contingente de trabalhadores italianos, espanhóis, portugueses, alemães, japoneses, entre outras nacionalidades. Enquanto isso, o povo miscigenava-se, uma cultura brasileira mestiça consolidava-se e o país buscava uma identidade para si. O governo populista de Getúlio Vargas e a derrocada das antigas aristocracias enraizadas na terra, o movimento modernista nas artes e a busca de uma criação genuinamente brasileira, enriquecida pelas criações populares anônimas que expressariam a alma da nação porque emanadas do povo, forneceram novos contextos que abriram espaço para a incorporação de contribuições de matrizes africanas na delimitação de uma identidade nacional. O negro passou a ser visto não apenas como inferior, mas como exótico, e a mestiçagem foi assumida como fator de diferenciação e não mais de degenerescência. Só que ao se integrar o negro, transformado em mestiço, à identidade nacional, acreditou-se, ou se quis acreditar, na inexistência de preconceito racial, na democracia racial, idéia que acabou por encobrir as tensões oriundas das relações en-

tre brancos, negros e mestiços, que ao serem ignoradas não puderam ser superadas. Toleradas no passado quando integradas a espaços de organização das comunidades negras permitidos pelos senhores, as manifestações culturais de matrizes africanas eram perseguidas e recriminadas quando era menor o grau de miscigenação apresentado. Nesses casos eram identificadas a manifestações demoníacas no período colonial e a fatores de atraso quando as idéias da ilustração já tinham se espalhado pelo império brasileiro. Hoje os parâmetros que guiam o conhecimento e a relação com o diferente são outros, assim como as aproximações com a herança africana do Brasil e com a sua população negra. Mas essa é a história que ainda estamos construindo e que mais à frente poderá ser analisada, conforme os olhos de quem sobre ela se voltar i

Página anterior: Capoeira. Johann Moritz Rugendas, 1835 À direita: O Mestiço, quadro de Cândido Portinari, 1934, retrata um tipo físico bem brasileiro.



atlântica ∙ cem anos de solidão ∙ 18∙ 19

Cem anos de solidão

Las madres del monte Julio Pantoja


O fotógrafo Julio Pantoja percorreu os bosques e as selvas do norte argentino fazendo retratos panorâmicos de mulheres camponesas que não hesitam em lutar em defesa das suas terras e famílias, ameaçadas pelo desbravamento irracional desencadeado pelas grandes empresas que enriquecem com o boom comercial da soja transgénica.


atlântica ∙ cem anos de solidão ∙ 20 ∙ 21



atlântica ∙ cem anos de solidão ∙ 22 ∙ 23



atlântica ∙ cidades invisíveis ∙ 24 ∙ 25


Cidades invisíveis

Em As Cidades Invisíveis, Italo Calvino descreve os mecanismos que explicam as urbes mais variadas do mundo. Talvez mais do que a qualquer outra cidade, esses mecanismos aplicam-se à Cidade do México cuja cartografia caótica, e sob um céu artificial, perseguimos guiados pelo escritor mexicano Juan Villoro.


atlântica ∙ cidades invisíveis ∙ 26 ∙ 27

Cidade do México

um céu artificial

Juan Villoro

A Cidade do México cresce tão rapidamente como as epidemias. A primeira coisa que chama a atenção do viajante é a dificuldade em se orientar nas suas ruas. «É o único lugar onde tive medo de perder-me para sempre», confessou o escritor triestino Claudio Magris. As nossas ruas repetem o nome dos heróis como se assim polissem a sua glória. Quem consultar o Guía Roji encontrará tantas ruas com os nomes de Zapata, Juaréz

A Cidade do México revela, antes de mais, um crescimento voraz, um caos que, diariamente, nos aniquila com frenética intensidade. ou Hidalgo que daria para construir várias metrópoles patriotas. Quando tomamos um táxi, o condutor declina a responsabilidade de orientar-se no labirinto: «Diga-me por onde deverei seguir». Nada é mais natural que os profissionais do volante ignorarem um território que ultrapassa a experiência humana. Os limites da cidade ficam tão distantes que é inexacto falar de arredores. Perdemos a noção de periferia e o aeroporto, que ocupou o extremo oriental da capital, tornou-se ruidosamente central.

De Tenochtitlan ao Distrito Federal: um palimpsesto corrigido mil vezes, rascunhos que já esqueceram o seu modelo original e jamais darão uma versão definitiva. A cidade flutuante dos azetecas, o retículo sonhado pelo vice-rei de Mendoza, as avenidas promovidas pelo regente Uruchurtu, os mercados infinitos que rodeiam os heterogéneos arranha-céus da pósmodernidade integram uma paisagem onde todas épocas se combinam sem nunca se anularem. A mesma crosta terrestre contradiz o tempo. De acordo com o sismólogo Cinna Lomntiz, em 19 de Setembro de 1985, a Cidade do México comportou-se como um lago: o terramoto surpreendeu os especialistas porque as suas ondas deslocaram-se como vagas marítimas. Do ponto de vista sismológico, a cidade deve ser estudada como uma bacia hidrográfica. Os nossos carros circulam sobre um lago implícito. A Cidade do México revela, antes de mais, um crescimento voraz, um caos que, diariamente, nos aniquila com frenética intensidade. Será possível que um território que ignora a cronologia e subjuga todos os espaços tenha um plano director, uma ordem secreta que o justifique? Os passageiros que chegam de noite ao Aeroporto Benito Juaréz contemplam um céu ao contrário. Milhares de estrelas palpitam no horizonte. O avião persegue uma galáxia. Esta paisagem desmedida fornece uma chave para entender o propósito oculto de México D. F.


Vista de la Plaza Mayor de Mexico, Octaviano D´Alvimar, Sec XIX.


atlântica ∙ cidades invisíveis ∙ 28 ∙ 29

Toda a história do lugar que nos foi destinado inscreve-se na criação de um céu artificial. Os edifícios azetecas cresceram sobre o lago e reflectiram-se nas suas águas; a cidade possuía dois céus. Desde então, temos vivido para suprimi-los e encontrar-lhes um complicado substituto. Os anos da Colónia decorreram para secar a água e os nossos delírios industriais eliminaram o ar puro. Hoje, o céu é uma bruma difusa que as crianças pintam de negro ou cinzento nos seus cadernos escolares. Na sua peculiar lógica de avanço, a moderna Tenochtitlan destrói os elementos que a tornaram possível. Não é por acaso que a literatura mexicana oferece um eloquente testemunho da queda celeste. Em 1869, Ignacio Manuel Altamirano visita a Candelária dos Patos e fala da «atmosfera deletéria» que ameaça a cidade; em 2004, Amado Nervo exclama: «Roubaramnos o céu azul!»; em 1940, Alfonso Reys pergunta: «É esta a região mais transparente do ar? Que fizeste do meu alto vale metafísico?». Três décadas mais tarde, Octávio Paz responde: «el sol no se bebió el lago/ no lo sorbió la tierra/ el agua no regressó al aire/ los nombres fueron los ejecutores del polvo». Em 1957, Jaime Torres Bidet escreve «Estatua», um poema que destaca no seu livro Sin Tregua: Fuiste, ciudad. No eres. Te aplastaron/ tranvías, autos, noches al magnesio. Para verte el paisaje/ ahora necessito un aparato/ preciso, lento/ de radiografia./ !Que enfermedad, tus árboles! Qué ruina/ tu cielo.» A literatura foi aquilo que Torres Bidet melhor encontrou para registar a cidade submersa debaixo das suas múltiplas transformações. Naquele ano sísmico de 1957, o Anjo da Inde-

pendência desceu à terra. Foi um momento simbólico na vida da cidade: o céu deixou de estar em cima. Essa era a mensagem que o Anjo oferecia na sua desorientação, mas tardámos muito em compreendê-lo. «O único problema em se ir para o céu» - escreve Augusto Monterroso «é que ali o céu não se vê». Vivemos

Esta paisagem desmedida fornece a chave para compreender o propósito oculto de Mexico D. F. Toda a história do lugar [...] inscreve-se na criação de um céu artificial. no paraíso imperfeito que não consegue ver-se a si mesmo. Pela noite, a cidade acende-se como uma constelação poderosa e desordenada. Que desígnio superior explica esta inversão do céu? Em As Cidades Invisíveis, Italo Calvino descreve os mecanismos que explicam as urbes mais variadas do mundo. Um deles aplica-se ao México. Durante anos, exércitos de pedreiros ergueram muros e entulharam vales como se obedecessem aos caprichos de um Deus enlouquecido. Chegou o dia em que os homens temem as areias e o cimento. Construir tornou-se uma voracidade. No entanto, sempre se intui o sentido das ruas e dos edifícios que se multiplicam sem fim: «Esperem que escureça e apaguem todas as luzes», disse. Quando a última lâmpada se extingue, os construtores contemplam a abóbada celeste. Então, compreendem o projecto i


No alto, brilha o mapa da cidade


Ilustração de Jean-Baptiste Debret (início do século XIX) Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional

atlântica ∙ sabores principais ∙ 30 ∙ 31

sabores principais


A herança mais significativa do Novo Mundo legada à Europa terá sido constituída pela descoberta e aproveitamento dos novos alimentos.


atlântica ∙ sabores principais ∙ 32 ∙ 33

os Alimentos do Novo Mundo na Tradição Gastronómica Portuguesa Isabel M. R. Mendes Drumond Braga A herança mais significativa do Novo Mundo legada à Europa terá sido constituída pela descoberta e aproveitamento dos novos alimentos. Não esqueçamos que a integração dos produtos americanos na dieta mediterrânica constituiu a principal diferença entre a alimentação medieval e a alimentação moderna. A influência de Portugal e de Castela na introdução desses géneros foi uma realidade incontestada. Porém, entre a descoberta desses novos bens alimentares e a sua entrada no quotidiano das populações europeias houve um espaço de tempo considerável, embora diferente, de espécie para espécie. Nem todos os novos produtos descobertos foram adoptados, destaquemos apenas o cacau (Theobroma cacao L.), a batata (Solanum tuberosum L.), a batata-doce (Ipomoea batatas L.), o tomate (Lycopersicum esculentum Mill.), o milho maís (Zea mays L.) e o peru (Meleagris gallopavo). Deixando o cacau para outra oportunidade, detenhamo-nos nos restantes produtos enunciados. Um dos géneros que mais revolucionou a dieta alimentar das populações e contribuiu largamente para acabar com os ciclos de fome foi a batata, a qual é oriunda das terras altas andinas, possivelmente do Chile à Colômbia. Batatas e batatas-doces tiveram, contudo, percursos diferentes. A segunda espécie cativou imediatamente os Europeus enquanto a primeira demorou a impor-se. No Brasil

havia batata-doce, chamada pelos indígenas jetica, a qual era usada para confeccionar pão e vários preparados doces. A expansão da batata, também conhecida como castanha da Índia, foi muito mais lenta, apesar de ter sido produzida cada vez em maior quantidade. Inicialmente era destinada aos animais, sendo também consumida pelos que tinham poucos recursos e só mais tardiamente pelos mais abastados. Começou por ser melhor aceite nas zonas pobres em cereais, não deixando o seu consumo de aumentar desde o século XVIII, não obstante estar ausente dos menus de festa, exactamente por ser considerada um prato pobre. Na Irlanda foi considerada base da alimentação a partir do século XVII, tendo depois passado a Inglaterra e daí, segundo alguns autores, para Portugal. Outros referem a entrada do tubérculo via Galiza. Até hoje o assunto não está cabalmente esclarecido. Pensa-se que a cultura da batata se generalizou em Portugal a partir de 1803, em resultado dos reflexos da Guerra dos Sete Anos (1756-1763). Então, o preço dos cereais, e consequentemente do pão, subiu, só se invertendo tal tendência com a vulgarização do consumo do tubérculo. A preparação culinária dos diversos tipos de batata variava, uma vez que, nos livros de receitas que as referem, aparecem como salada, sobremesa, prato principal e acompanhamento, desde a compilação de receitas de


Francisco Borges Henriques (17151729) até à da entusiasta obra do visconde de Vilarinho de São Romão (1841), sem prejuízo de outras obras posteriores. Apesar de ter sido conhecida por alguns Portugueses no século XVI, a batata só no século XIX assistiu à sua expansão enquanto consumo entre os abastados. A sua presença residual no receituário setecentista, mormente em doces, permite verificar que, não obstante as dúvidas acerca da cronologia deste tubérculo e a sua porta de entrada no reino, já no século XVIII havia algum consumo quer de batata quer de batata-doce, esta bem mais popular. Muito menos informações se possuem acerca do tomate (tomatl), isto é fruta redonda. Oriundo da América central, tinha um lugar destacado na alimentação dos Mexicanos,

Entre os séculos XVI e XIX, a adopção de diversos novos alimentos modificou o quotidiano das populações europeias que o consumiam verde e maduro. Estava presente, de forma habitual, em molhos, guisados e entre os condimentos utilizados na alimentação pré-colombina. Terá chegado à Europa, através dos Castelhanos, no século XVI. Para alguns era entendido como uma planta ornamental e até imprópria para a alimentação. A partir do século XVIII, o tomate passou a ser produzido e consumido um pouco por quase toda a Europa, onde se apurou a planta, embora se desconheça o processo de difusão. Este facto terá eventualmente sido responsável pela afirmação de Sebastião da Rocha Pitta que incluiu o tomate

entre as hortaliças europeias que se aclimataram no Brasil. Em Portugal, poucas são as referências ao tomate anteriores ao século XIX. Pelo menos a partir de 1767, passou a integrar a dieta alimentar dos doentes do hospital da Misericórdia de Évora durante os meses de Verão. No final do século XVIII, Link testemunhou o uso do mesmo em saladas e enquanto tempero de vários pratos. O receituário manuscrito de Francisco Borges Henriques contou com diversas receitas de tomate, as quais estiveram quase totalmente ausentes dos livros nacionais impressos até à segunda metade do século XIX, ao contrário do que acontecia em Espanha, onde já havia receitas de conserva de tomate, pelo menos, desde 1745. Para Francisco Borges Henriques, as considerações tecidas acerca do tomate foram elogiosas: “Os tomates em todo o comer ou seja em carnes nas olhas ou seja em emsopados ou nos molhos do assado em tudo poem particullar gosto e da mesma maneira no peiche tanto seco como fresco e nos legumes e se não botarão senão despoes que a carne ou peiche esteuer a meio cozer e se querem se lhe botão em quartos”. Posteriormente, o cozinheiro apresentou diversas receitas em que o tomate apareceu como o alimento principal, nomeadamente ovos com presunto e tomate, ovos com tomate, salada de tomate e sopa de tomate. Para encontrarmos mais receitas com tomate é necessário esperar pela segunda metade do século XIX. Por exemplo, na Arte de Cozinha (1876), de João da Mata, apareceram diversos pratos nos quais o tomate era um dos componentes da receita. De entre outros, caldeirada de príncipes, mãos de vitela à minut, dobrada guisada à portuguesa, ovos escalfados com cebola, bacalhau de cebolada à diplomata,



Ilustração de Jean-Baptiste Debret (início do século XIX) Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional


atlântica ∙ sabores principais∙ 36 ∙ 37

sopa de camarão à portuguesa, ovos fritos à espanhola, língua e mãos de carneiro com molho de tomates, arroz à polonesa, tomatada e pimentos catalães recheados com tomatada. Na Novissima Arte de Cozinha (1889) apresentou-se uma receita de puré de tomate. No Manual da Conserveira (1890) publicou-se uma de doce de tomate. Em O Cozinheiro Indispensavel (1894) apareceram diversas receitas em que este produto esteve presente, nomeadamente, língua com molho de tomate, molho de tomate, sopa de arroz com tomates, frango de tomatada e mãos de carneiro com molho de tomates. Finalmente, o Almanach das Cosinhas para 1899 divulgou como preparar calda de tomate, o que permitia a sua utilização mesmo no período em que não o havia fresco, ou seja o tomate era já consumido durante todo o ano. Na América, o milho foi observado por Castelhanos, alguns dos quais não deixaram de tecer comentários elucidativos. O médico Nicolás Monardes, estante em Sevilha, considerou-o tão nutritivo quanto o trigo e deu conta da sua utilização na preparação de bolos na América espanhola. No século XVI, Gabriel Soares de Sousa, cerca de 1587, referiu que os nativos chamavam ao milho abati ou ubatim e que o mesmo era cultivado entre a mandioca e as canas-deaçúcar. Era consumido por índios, escravos, brancos e até por animais alimentados pelos Portugueses, nomeadamente galinhas, porcos, cabras, ovelhas e cavalos. Sabe-se que, em Portugal, a partir de 1515-1525, começou a alterar a paisagem rural do país, especialmente no Noroeste, numa cronologia que nem sempre é totalmente precisa. O cereal também foi para a Madeira, para os Açores, Cabo Verde e continente africano. Com o cultivo do milho, as condi-

ções alimentares das populações mais desfavorecidas foram beneficiadas. No Norte do país foi-se dando a substituição do pão de centeio pelo de milho, a chamada broa, e por papas de milho, desde finais do século XVI. Na primeira metade da centúria seguinte, a broa já imperava na alimentação dos populares do Minho e da maior parte da Beira. Na segunda metade do século XVIII, o triunfo da cultura do milho na província do Minho, a par de algum centeio, marcou a paisagem rural, pois representou 75% das colheitas cerealíferas no ano de 1792. A expansão do cereal ficou a dever-se às elevadas taxas de produtividade, à enorme capacidade de se adaptar a todo o terreno, às grandes possibilidades de convívio com outras culturas e ao facto de permitir uma maior capacidade de utilização do solo pela alternância com os cereais de Inverno, sobretudo com o centeio. Não foi por acaso que, no século XVIII, o padre jesuíta João Daniel escreveu: “É a broa o mais ordinário sustento em todo o nosso Portugal (excepto na província de Alentejo), o pão mais usual no comum do povo, e ainda nos mesmos lavradores ricos, porque o trigo não abrange a todos. Além de que em algumas partes se beneficia também a broa, que à sua vista, cheiro e gosto se deixa o mais mimoso pão de trigo, como sucede no nosso mesmo reino em muitas partes, especialmente na província da Beira, onde se beneficia com tanta perfeição, que muitos criados só com o pão de trigo, depois de a gostarem, têm claramente dito que de boa vontade trocariam por ela o seu pão de trigo”. Estrangeiros que visitaram Portugal também não deixaram de verificar o hábito de consumir broa. Link, no final do século XVIII, considerou que a maior parte dos Portugueses só co-


mia pão de milho, o qual considerou pesado, adocicado e indigesto. Na segunda metade do século XIX, Maria Rattazzi notou que o milho era muito abundante em Portugal, especialmente no Norte do país, ao mesmo tempo que relatou as festas populares aliadas à colheita da gramínea. Porém, no receituário nacional as preparações com milho são inexistentes até ao final do século XIX, com excepção da obra Novíssima Arte de Cozinha, publicada pela primeira vez em 1889. Neste livro de cozinha foram apresentadas duas receitas de doces, contendo milho, seguramente de origem brasileira, nomeadamente bolos de milho e canjica. Diferente foi o percurso do peru, uma ave galiforme selvagem oriunda do Leste da América do Norte até ao México, que foi domesticada pelos Aztecas e encontrada pelos Castelhanos. Estes levaram o peru para Castela e, daí, a ave passou a Portugal. Para José de Anchieta e para Fernão Cardim, teriam sido os Portugueses a introduzir o peru no Brasil. O êxito da ave na Europa, incluindo na Península Ibérica, foi rápido. Inicialmente foi considerado um alimento de prestígio só presente nas mesas

tras aves, especialmente galinha, pato e pombo e algumas outras a pratos de carneiro e coelho. Mesmo antes de o peru ter entrado no receituário impresso português, sabemos que fez parte de refeições quinhentistas e seiscentistas. Por exemplo, na segunda metade do século XVI, as freiras do convento de Santa Clara de Santarém ofereciam perus aos padres de São Francisco, em Agosto, por ocasião da festa da padroeira. Por seu lado, entre os alimentos consumidos no auto da fé realizado em Lisboa, a 18 de Novembro de 1646, foram confeccionados três perus assados no forno. Em 1787, Beckford deu conta de uma merenda servida a D. Maria I e a sua família, durante a qual foram degustados perus recheados, entre diversas iguarias. No século XIX, estrangeiros como Carl Israel Ruders e Maria Ratazzi deram conta do hábito de comer peru pelo Natal. Entre os séculos XVI e XIX, a adopção de diversos novos alimentos modificou o quotidiano das populações europeias, dando origem a uma revolução alimentar. O facto de alguns desses novos alimentos se passarem a cultivar ou a criar na Europa – caso

Em Portugal, o primeiro livro de cozinha impresso, a Arte de Cozinha, de Domingos Rodrigues, cuja primeira edição datou de 1680, registou 24 receitas de peru. abastadas. Em Portugal, o primeiro livro de cozinha impresso, a Arte de Cozinha, de Domingos Rodrigues, cuja primeira edição datou de 1680, registou 24 receitas de peru. Lucas Rigaud, em 1780, no Cozinheiro Moderno ou Nova Arte de Cozinha, dedicou todo o capítulo oitavo à ave e apresentou 31 receitas. Em qualquer dos casos citados, as preparações culinárias são semelhantes às de ou-

do milho maís, da batata-doce, da batata, do tomate e do peru também facilitou a integração dos novos produtos no sistema alimentar europeu, incluindo na dieta mediterrânica i


atlântica ∙ a sede do sul ∙ 38 ∙ 39


A sede do Sul Alambiques & Alquimistas João Mariano

O fogo que ilumina, aquece e transforma dando origem a uma nova matéria, a aguardente de medronho. Trabalho ancestral onde a conjugação dos quatro elementos conduz uma busca incessante: a do cristalino soro ardente. Esta a alquimia captada por João Mariano nas serras de Monchique e do Espinhaço de Cão.


atlântica ∙ a sede do sul ∙ 40 ∙ 41



atlântica ∙ a sede do sul ∙ 42 ∙ 43



atlântica ∙ a sede do sul ∙ 44 ∙ 45



atlântica ∙ o que faço eu aqui ∙ 46 ∙ 47

O que faço eu aqui

João Ventura

Num ardente exercício autoficcional, o autor vai nos passos de Malcolm Lowry e, num tríptico arrancado do seu caderno de viagens, conta-nos o que faz ali, também ele, debaixo do vulcão, onde se bifurca a sua biblioteca mexicana.


I. Debaixo do vulcão Lembro-me de há uns anos ir a caminho de Taxco pela estrada que sobe desde a cidade do México e, depois, se inclina para Cuernavaca, a cidade que em Debaixo do Vulcão dá pelo nome de Quauhnahuac e onde nos habituámos a ver desesperar Malcolm Lowry. Lembro-me de errar através de um emaranhado de ruas ensolaradas; de atravessar um jardim decadente sob um céu em chamas; e, respondendo ao chamamento dolente de uma canção de Jorge Negrete vinda de uma máquina de discos, ter cruzado o umbral sombrio de uma cantina anónima que acabara de abrir as suas portas; e de, ali, depois, ter experimentado a minha primeira tequila destilada do mais puro agave mexicano. Herradura vinha escrito no rótulo da garrafa depositada sobre o balcão. E a cantina, tão real como a do romance, talvez fosse El Farolito, cuja fotografia descobri há dias no blogue da Fundação criada em Cuernavaca para recordar o inglês perseguido pelos demónios do mezcal. E é o próprio Lowry que, Lembro-me de há uns anos agora, mo confirma: ir a caminho de Taxco pela estrada «que beleza se poderá comparar à de uma que sobe desde a cidade do México e, cantina, de manhã, cedepois, se inclina para Cuernavaca, dinho? […] pensa em todos os terríveis estaa cidade que em Debaixo do vulcão belecimentos, em frente dos quais as pessoas dá pelo nome de Quauhnahuac desesperam, impaciene onde nos habituámos a ver tes por que se levantem os taipais! Nem desesperar Malcolm Lowry. as portas do céu, que para mim se abrissem de par em par, me proporcionariam uma alegria tão celestial, tão complexa e tão desesperada como a porta ondulada que se ergue com estrondo, como as gelosias que sobem, admitindo essas almas que vibram com as bebidas, levadas aos lábios com mãos vacilantes. Todo o mistério, toda a esperança, todo o desapontamento, sim, todas as misérias aqui se encontram, para lá dessas portas que se balançam num vaivém». (Debaixo do Vulcão, Relógio de Água).


atlântica ∙ o que faço eu aqui ∙ 48 ∙ 49

E agora que volto a ler o seu livro e a incandescência permanece, lembro-me de, naquele homem debruçado sobre o tampo de pedra encardida do balcão ao fundo, «afogando a dor no melhor mescal do México», parecer-me ter visto – não sei se por ter bebido aquele álcool até ao fundo, se embriagado pela atmosfera mescalianiana de El Farolito – o próprio Malcolm Lowry. E que outra visão poderia eu ter tido ali, naquela cantina debaixo do vulcão, com a garganta incendiada pelo fogo do mesmo agave que nesta dobra da noite volto a beber enquanto vou sublinhando o nome das setenta e sete bebidas alcoólicas diferentes emborcadas pelo cônsul e seus acólitos ao longo das trezentas e quarenta e seis páginas do alucinante romance de Lowry?

II. Outros abismos mexicanos E neste exercício de economato literário, como lhe poderia chamar Enrique Vila-Matas, imagino-me de novo em Cuernavaca, no Dia dos Mortos, ao crepúsculo, sentado na esplanada de Las Mañanitas de frente para os vulcões gémeos resplandecentes de neve, bebendo uma coronita gelada - essa clara cerveja mexicana que vem numa garrafa transparente e que, às vezes, no Verão, ao segundo entardecer, gosto de beber sentado no meu terraço sob um céu que se vai quebrando num esplendor vermelho. E ali - isto é, aqui, agora, não na esplanada de solitários atravessada por um cortejo de máscaras e disparos mentais que vislumbro na dobra de uma página - imagino um país que, escreve Juan Villoro, é uma «indecifrável realidade que por convenção chamamos México». Um país cujo imaginário transforma os escritores que ousam cruzar os seus admiráveis abismos de festa, alucinação e morte em exploradores de um território literário vertiginoso donde, nem sempre, regressam incólumes. Como Lowry, o «cônsul da embriaguez e dos vulcões» [José Agostinho Baptista] engolido nos abismos do mescal. Abandono, entretanto, o cenário de ruínas e amargura de Cuernavaca e, num recanto da minha biblioteca mexicana, vou procurando outras bifurcações de um país onde toda a ficção é possível. Primeiro, os mexicanos. Juan Rulfo, claro. E Carlos Monsivais e Sergio Pitol e Juan Villoro. E os estrangeiros. Talvez aqueles que melhor visionaram o México. Escreve


Fotografia de Julio Pantoja


atlântica ∙ o que faço eu aqui ∙ 50 ∙ 51

Roberto Bolaño – o escritor chileno prematuramente desaparecido – que “dos muitos romances que já se escreveram sobre o México, os melhores provavelmente serão os ingleses e um ou outro americano. D. H. Lawrence (A Serpente Emplumada) desata a novela agonista, Graham Green o romance moral (O Poder e a Glória) e Malcolm Lowry a novela total” (Entre Paréntesis, Anagrama, 2004). E, acrescentaria eu, Enrique VilaMatas que em Longe de Vera Cruz desata uma exaltada mitografia do México. E que desata o próprio Roberto Bolaño que nos legou dois extravagantes romances «mexicanos» que guardo numa prateleira muito especial da minha biblioteca? Os Detectives Selvagens, “o melhor romance mexicano desde A Região mais Transparente (Carlos Fuentes), ou o melhor romance sobre o México desde Debaixo do Vulcão”, segundo Jorge Herralde; um delírio de labirintos crepusculares derramando-se sobre arredores estranhos de uma cidade, México D. F., território de sobrevivência de uma geração encarcerada à beira do precipício. E 2666 espécie de romance pulp fiction, buraco negro

do crime múltiplo sem solução cuja cratera se situa em Ciudad Juárez, lugar de todas as vertigens, de todos os pesadelos? Desata, sobretudo, uma nova ordem literária – a do realismo visceral – que corta com o chamado realismo mágico latinoamericano dos galos da Amazónia e das virgens em levitação e com as visões estrangeiras de uma Cuernavaca que só sobrevive no romance de Lowry.


III. Uma tequila eloquente Garanto que não queria continuar a escrever sobre éteres mexicanos, para não atribuírem à tequila, que raramente consumo, os estímulos espirituosos para as páginas deste diário que aqui vou destilando. E a prová-lo, a circunstância de em cada uma das duas garrafas de Herradura que trouxe do México, restar ainda metade do seu líquido dourado; e do mezcal, apenas conhecer aquele que tomei com o «cônsul da embriaguez» em cantinas decadentes debaixo do vulcão. É que nisto das bebidas – que não na literatura –, embora não abstémio, assemelho-me a um sóbrio. Mas uma crónica do escritor mexicano Juan Villoro – também ele um sóbrio, mas só no que respeita a tequilas e outros álcoois, que encontro por acaso na net, convida-me, agora, para uma tequila eloquente. Uma tequila culta cujo nome, El Diablo, propõe o inferno sincero aos paraísos artificiais; e que, no verso do rótulo, para ser lido através da transparência dourada do líquido, como um peixe embriagado num «aquário ardente», oferece um poema de Eduardo Hurtado que nos recorda as irregulares qualidades etéreas da tequila: «El Diablo inventó los sueños/ la lujuria y el tequila,/ al fondo de esta botella/ duermen pasiones y asombros,/ mil años de amor punzante,/ las nubes en las cañadas/ y otras cosas intranquilas.» Onde guardar, então, esta garrafa? Na garrafeira ou na livraria?


atlântica ∙ a maresia do mundo ∙ 52 ∙ 53

A maresia do mundo

Debaixo do azul sobre o vulcão José Agostinho Baptista

Vi o caleidoscópio do mundo e o mundo era uma esfera obscura, equívoca, contida de sinais. Nas estradas do meu corpo errante, lento, atirado ao vento, fixaram-se os cactos, o mar, os passos do tempo. No tempo, a obra. Na obra, a pedra, a lava, a semente, o sangue mais eloquente. Os vulcões dominavam a ascese da coloração. Os tecidos expandiam-se numa espiral de alucinações, cromaticamente imprevistos, com a sua flora inquieta, com os animais da lenda passeando-se sem temor. Dormi junto às neves eternas. A brancura pode ser uma ferida a mais na face da terra. E a terra abrese, carnal e fecunda, e assim nos recolhe, sonambulamente. A lava refugia-se num absoluto segredo, como uma pedra antiga. Os lábios rochosos ameaçam as paragens à volta, e aí se juntam eles, índios e órfãos, resistindo à celeridade dos relógios. O tempo reside sempre além da quotidiana representação: a siesta, a oração, as festas que repercutem a vertigem dos sons. O ritual multiplica-se, alheio aos pretextos. Se a vida não vale nada, tudo vale um afecto, uma canção,

uma rosa desmedida. E eu vi tudo até à dor. Vi o amor e a dança do amor. Frente a frente, a paixão e a morte combatiam sem tréguas. O sangue procurava, obsessivamente, os becos da noite como uma ribeira quente e devoradora. Caíam os amigos, cantando. Só quem ama pode acabar assim, cheio de um riso louco. Rosita acenderá, todas as noites, uma vela no alpendre à vista do mar, para que um dia, ao voltar, o seu estrangeiro saiba onde mora aquela que deixou no meio dos navios e das palmeiras, em Veracruz. Mas ele não regressará aos dias felizes desse porto onde conheceu a música e o amor. Não conheço outro modo de falar quando o coração pensa. Demasiadas âncoras me prendem ao sortilégio do lugar, ao lume da sua cicatriz. Bebi, sorvi a arquitectura, os frutos e o sol, perdi-me ao longo das inumeráveis aldeias e na vastidão das ruínas. Subi, de pirâmide em pirâmide, os degraus da sabedoria. Não há compêndio que registe a fulminante carícia dos dedos no relevo da pedra. Viajei com o peyotl ao outro lado da


vida. Não revelarei o segredo das celebrações, o destino esmagado pelo peso dos astros. Não há fuga, estrangeiro. Vives intempestivamente, entregas-te à evidência das armas e, com estrondo, abres as tuas portas de par em par. Verte o sangue, de frente para os deuses. Imola-te nos altares de Chichén Itzá e Monte Albán, parte para sempre pelas grandes estradas do céu e diz: eu sou aquele que viu espantosamente, eu sou aquele que lembra. Seduzido pelas águas do lago, soltaste a noite dos cabelos da amada. E ela era todos os rostos, as fontes, a sublimação da flor nos pátios de Oaxaca. E ela era uma harpa, um punhal, uma corda sonora, quebrada pela ternura. E ela sorria obscuramente no interior da música. E o riso e a música subiam muito alto, cegavam-me. Em Janitzio, quando Novembro começa, também sorri, voltado para a

morte. Cantei, dancei, bebi o levantamuertos da ressurreição, saciei-me de calaveras de açúcar e chocolate, provei pan de muerto e a morte era uma orgia dos sentidos e da alma. Depus as flores de muerto, os cempazúchiles, no túmulo do meu amigo e já os sinos tocavam em alvoroço. Li a minha morte na página local: se enlouquecer, serei como aqueles jovens belos e aztecas caminhando com alegria para a casa de Huitzilopochtli. Com as minhas plumas de quetzal oferecer-me-ei a Tezcatlipoca, o senhor da vida, o senhor da morte. Nada apagará a obsidiana do meu coração i

Fotografia de Juan Rulfo publicada com autorização da senhora Clara Aparício Rulfo.


atlântica ∙ retratos de momento ∙ 54 ∙ 55

Retratos de momento

FRIDA KHALO

Ilustrações de Daniel Barraco



atlântica ∙ retratos de momento ∙ 56 ∙ 57



atlântica ∙ travessia ∙ 58 ∙ 59

Travessias Trans-Atlântico Witold Gombrowicz

Ilustrações de Daniel Barraco


Witold Gombrowicz, escritor polaco que viveu durante vinte e três anos na Argentina, escreveu os seus Diários (1953-1969) durante o exílio na Argentina, no início da segunda guerra mundial. Sobre esses Diários, disse Enrique Vila-Matas que eles não só nos ajudam a viver, como nos tornam inteligentes. Desses Diários que tardam a ser publicados entre nós, aqui fica um excerto ou, se preferirmos, alguns instantes de deslumbramento que ele próprio designou por retratos de momento. Parti para a Argentina um mês antes de estalar a guerra e ali permaneci durante vinte e três anos. Tudo aconteceu por casualidade. Casualidade? Um dia no café Zodiac, em Varsóvia, conheci um escritor da minha idade. Czeslaw Straszewicz. Disseme: «Viajo para a América do Sul.» «Como?» «Dentro de um mês, o novo vapor transatlântico polaco Chorbry sai para Buenos Aires. A sua viagem inaugural. Fui convidado como escritor, para escrever algumas colunas para os jornais». «Parece-te que me convidariam, também, a mim?» «Talvez. Vou indicar o teu nome. Quem sabe, talvez funcione. A travessia será mais divertida se formos dois.» Funcionou. Às vezes leio nos jornais que fui para a Argentina para fugir à guerra. Engano. Preparei-me para a viagem sem pensar demasiado, e foi apenas por casualidade (casualidade?) que não fiquei na Polónia. Um dia antes de partir tinha tudo preparado, os meus papéis em ordem, e passei pelo café. «Tens a licença das autoridades militares, não?» perguntaram-me. «Tenho o meu passaporte. Mostrei todos os certificados miitares que possuia». Com isso não consegues!» «Necessitas de uma licença especial das autoridades militares. Trata-se apenas de uma formalidade, mas sem isso não te deixarão subir ao barco.» Olhei para o relógio. Eram sete me-

nos vinte. Os escritórios do exército fechavam às sete. Apanhei um taxi e corri até ao quarto andar. As portas estavam fechadas. Passavam três minutos das sete. Bati ruidosamente à porta. «O escritória está fechado. Por favor acabe com esse barulho.». A porta voltou a fechar-se. Adeus América! Desgostoso, Comecei a descer as escadas: de repente, em baixo, um barulho terrível. Era a equipa de futebol que partia para jogar uma partida internacional na Dinamarca Também tinham chegado tarde. Batemos à porta novamente. Desta vez o porteiro deixou-nos entrar, e por especial favor concederam-nos as licenças. Já se vê, os meus vinte e três anos dependeram de uns minutos... Como aconteceu esta viagen? Foi como se uma gigantesca mão me tivesse agarrado pelo pescoço para me afastar da Polónia e atirar-me nesta terra perdida no meio do oceano – perdida mas europeia... apenas um mês antes da guerra. Interroguei-me porque razão aquela mão não me colocou na Europa ocidental. Porque, suponho, teria ficado em Paris. Se não tivesse deixado a Europa, quase de certeza, teria vivido em Paris depois da guerra. Mas a mão não quis que assim fosse, porque Paris ter- meia transformado num parisiense. E eu sentia o dever de ser anti-parisiense. É que, nessa época, não estava suficientemente imunizado. O meu desti-


atlântica ∙ travessiass ∙ 60 ∙ 61



atlântica ∙ travessiass ∙ 62 ∙ 63

no era passar longos anos anos nas margens da Europa, longe das suas capitais, e longe das suas convenções literárias, escrevendo, como dizem hoje na Polónia, «para os cestos de lixo». Observem o mapa. Seria difícil escolher um lugar melhor que Buenos Aires. A Argentina é um país europeu. Sente-se ali a presença da Europa, ainda mais fortemente que na própria Europa – e além disso, naquele país ganadeiro, não se aprecia a literatura. Magia. Uma forma de vida quase preconcebida. Quanto mais nos afastamos da Europa, mais nos submetemos ao seu poder. Misteriosas contradições, contrastes... Desembarcámos em Buenos Aires, em 22 e Agosto (2 é o meu número) de 1939 (a soma dos dígitos é também 2) depois de uma tranquila travessia que durou três semanas. A situação internacional parecia melhorar. Mas no dia seguinte ao da nossa chegada, os telegramas de Moscovo e Berlim anunciando o pacto Nazi-Soviético caíram no mundo como um raio. Guerra! Uma semana depois as primeiras bombas alemãs caíam em Varsóvia. Ainda vivia no barco com o meu amigo Straszewicz. Quando soube que se tinha declarado a guerra, o capitão decidiu regressar a Inglaterra (já não havia qualquer discussão sobre se se deveria regressar à Polónia). Straszewicz e eu fizemos um conselho de guerra. Ele optou pela Inglaterra. Eu permaneci na Argentina. No meu romance Trans-Atlântico recapitulei estes incidentes e pintei-me no papel de desertor. Mas não se tratou de uma questão de deserção, já que a Polónia tinha sido separada do resto do mundo. Mal deixei o barco, apresentei-me imediatamente na Embaixada polaca em Buenos Aires. Mais tarde, quando um exército polaco se estava formando em Inglaterra, apresentei-me na Embaixada, nu em frente da comissão de recrutamento. Resumindo, a nível oficial tudo estava em ordem. Se me revelo como um desertor em Trans-Atlântico é porque, moralmente, eu era um desertor. Estava angustiado, desesperado, mas ao mesmo tempo agradecido por me encontrar milagrosamente protegido atrás do oceano. Escrevi algo sobre os meus primeiros anos na Argentina no meu diário (volume 1, capítulo 7). Duzentos dólares, toda a minha fortuna, duraram-me quase seis meses. A Argentina era incrivelmente barata. Vivi em hotéis de terceira categoria. Alguns polacos ajudaram-me e comecei a escrever um pouco para os jornais – nada mais do que séries de crónicas sob pseudónimo. Durante algum tempo a nossa Embaixada deume um modesto subsídio. Mas isso não era suficiente não sabia como iria sobreviver no mês seguinte, e tive que pedir emprestados alguns pesos para comer. Assim continuou tudo, umas vezes melhor outras pior, conforme as circunstâncias, até 1947, para depois trabalhar os sete anos seguintes no Banco Polaco.



atlântica ∙ travessiass ∙ 64 ∙ 65

Mas o amargo, trágico, poético sabor dos primeiros anos marcaram-me. Mal posso falar das minhas primeiras experiências na Argentina, mas não posso deixá-las de fora. Vivi, como disse, em hotéis baratos, até em conventos. Eu, o Sr. Gombrowicz, sumergi na degradação com paixão! Até que, repentinamente, rejuvenesci, moral e fisicamente. Nas ruas, as pessoas chamavam-me jovem, como se eu não tivesse já trinta e cinco anos. Nunca fui tão poeta como então, naquelas calorosas ruas a abarrotar de gente, completamente perdido (perdido na multidão, e perdido também quanto ao meu destino). Enxames de gente, multidões, luzes, barulho ensurdecedor, odores e a minha pobreza eram a minha alegria; a minha queda foi o meu novo contrato de vida. Deixei-me arrastar sem hesitar, sem preconceitos, nesta Babel de línguas. Fiz parte dela. E os meus conhecidos circunstanciais, com os quais travei amizade com surpreendente facilidade (descobri em mim esta neutralidade, o eu artificial, que se revelou como o mais precioso tesouro, uma piedade, uma respiração, uma libertação), ajudaram-me como puderam. Um dia, caminhando pela rua Corrientes, fixei o meu olhar, prolongado, numa montra (Que honra para o Sr. Gombrowicz!). Disse ao rapaz que estava comigo que tinha fome (Que honra!) “Não te preocupes”, disse-me. “Tenho um defunto. Haverá o suficiente para os dois”. Apanhámos um eléctrico e fomos até aos subúrbios, a uma casa num bairro proletário onde, efectivamente, um homem morto jazia no seu caixão. Não sei de que nacionalidade seria, mas estava coberto de flores. E a sua família, amigos e conhecidos aceitavam a sua partida num silêncio macabro. Depois de dizermos as nossas orações, passámos à sala contígua

onde havia um buffet para os presentes – sandwiches e vinho! Enquanto comíamos, o meu amigo disse-me que, habitualmente, procurava defuntos naquele bairro, e que a melhor maneira de obter as suas moradas era perguntar ao sacristão. Esta «cadavérica» passagem, este imaturo e elegante consumo de um defunto, parece simbolizar agora aquele período. Um banquete cadavérico devorado com juvenil voracidade, a que, dada a minha idade, já não tinha direito. Além disso, a minha natureza não procurava outra coisa senão a diversão e os jogos – mas os mais sublimes, gloriosos jogos que pudessem ser jogados comigo mesmo. Graças ao paradoxal gosto pela decomposição que descobri em mim, sobrevivi triunfalmente à guerra e à pobreza. E hoje não sinto remorsos por ter usado a derrota, a minha desgraça ou a da minha família – ou, na prática, a da metade do mundo – como ponte para um amargo, condenado regozijo. Não, tinha direito a fazê-lo. Mas mantive certa prudência burguesa e nunca me deixei arrastar para actividades mais perigosas. Fui parar à prisão em várias ocasiões, mas nunca por muito tempo, e quase sempre por culpa dos meus amigos e não por crimes que tivesse cometido. E surge-me aqui outra recordação, que também resulta simbólica: em Março de 1942, o dono do meu hotel começou a exigir com demasiada energia os seis meses atrasados que lhe devia, pelo que decidi mudar-me. Uma noite deixei o hotel e o meu vizinho, Don Alfredo, generosamente, passou-me os meus haveres pela janela. Levei-os para um café, e sentei-me a uma mesa sem saber o que fazer. A minha sorte tinha terminado. De repente oiço: “Tu aqui?” era um polaco, um jornalista chamado Taworski que vivia na Argentina havia muitos anos.


Contei-lhe o que me tinha sucedido. «Sabes», replicou, «Agora tenho uns sócios e alugámos um chalet perto de Buenos Aires, em Morón, para montar uma pequena fábrica textil. Podes viver aí». O chalet não era mau – cinco quartos com vista para o jardim, embora sem qualquer mobília. Taworski dormia numa cama e eu sobre um monte de jornais. Assim que cheguei avisou-me misteriosamente: «Se alguém entrar de noite pela janela, pelo amor de Deus não te mexas. Não mostres qualquer sinal de vida». Passei umas quantas noites tranquilas sobre o meu monte de jornais. Depois, uma noite, pelas três da manhã, uns ruídos despertaram-me e vi dois indivíduos enormes que estavam desenroscando as lâmpadas e removendo os fusíveis. Não me mexi. Desapareceram. Vim a saber que eram os sócios de Taworski, que não conseguindo desligar-se dele tratavam de fazer-lhe todo o tipo de patifarias. Taworski, que tinha uma pena de prisão suspensa, devida a alguma pequena travessura, não se atrevia a protestar, e os tipos sabiam-no. Assim, face à impossibilidade de nos defendermos, estas intempestivas e ébrias visitas nocturnas (habitualmente estavam bêbados), tornaram-se um símbolo tão patético como significativo. Passei cerca de seis meses no chalet, que ia sendo gradualmente despojado. Taworski era a bondade em pessoa e tratava-me como um pai. Vivíamos quase exclusivamente à base de carne fumada e milho que ele cozinhava uma vez por semana. Eu era muito popular em Morón, tanto na pizzeria da praça como no café onde jogava bilhar e xadrez. Tomava o meu copo diário de leite e comia o meu pão ao sol, sentado na esplanada, observando a rua. Na pizzeria, um empregado que se me afeiçou deu-me uma sandwiche de vinte

centavos com uma fatia de presunto quatro vezes mais grossa que o habitual – era quase um bife. Até que, um dia, no suplemento literário de La Nación, apareceu um artigo meu na primeira página. A partir desse momento, a minha posição social em Morón iluminou-se. Começaram a tratar-me com consideração. A vida não era fácil. Sobrevivia por catástrofes. A minha catástrofe pessoal, a catástrofe da Polónia, a catástrofe da Europa. Vivi cerca de seis meses no chalet que ia sendo gradualmente despojado. Taworski era a bondade em pessoa e tratava-me como um pai. Vivíamos quase exclusivamente à base de carne fumada e milho que ele cozinhava uma vez por semana. Eu era muito popular em Morón, tanto na pizzeria da praça como no café onde jogava bilhar e xadrez. Tomava o meu copo diário de leite e comia o meu pão, sentado na esplanada, ao sol, observando a rua. Na pizzeria, um empregado que se me afeiçoou ofereceu-me um sanduíche de vinte centavos com uma fatia de presunto quatro vezes mais grossa que o habitual – era quase um bife. Até que um dia, no suplemento literário de La Nación, apareceu um artigo meu na primeira página. A partir desse momento, a minha posição social em Morón iluminou-se. Começaram a tratar-me com consideração. A vida não era fácil. Sobrevivia no meio de catástrofes. A minha catástrofe pessoal, a catástrofe da Polónia, a catástrofe da Europa i


atlântica ∙ biblioteca de babel ∙ 66 ∙ 67

biblioteca de babel uma carta de manuel teixeira gomes

No ano em que se celebra o 150º aniversário do nascimento de Manuel Teixeira Gomes, reproduzimos aqui um excerto de uma carta enviada a João de Barros - escrita em Túnis, a 20 de Abril de 1927 -, onde o escritor, político e intrépido viajante inquire sobre transacções linguísticas entre Portugal e o Brasil. Este era, aliás, um dos objectivos programáticos da Atlântida, mensário artístico, literário e social para Portugal e Brazil, dirigida por João de Barros e João do Rio. Recorde-se que João de Barros, professor e pedagogo, desempenhou vários cargos dirigentes na Instrução Pública da I República e que Manuel Teixeira Gomes, seu grande amigo e um dos numerosos colaboradores da Atlântida - cuja publicação se iniciou em 1915 -, manteve com ele assídua correspondência epistolar cuja temática oscilava entre a evocação memorialista, a literatura e a linguística. Outras inquirições, portanto, extraídas de uma Atlântida pretérita que tal como a Atlântica de hoje estendia pontes entre as duas margens atlânticas de expressão portuguesa.


E, ao fim e ao cabo, qual é, em resumo, o quadro que nos oferece actualmente o chamado «mundo das letras»? Será ele, na verdade, tão diferente do que era há quinze ou vinte anos? Evidentemente lavra hoje, por todos os países neo-latinos, uma desordem na linguagem - e no emprego da gramática - muito para assustar as vestais da vernaculidade, se as houvesse. Porque esses escritores pretensiosos (como nós, por exemplo, temos) que supõem dispor dos segredos da Língua, e segregam, entre apertos e torturas de dispépticos, períodos de uma rijeza óssea, onde os vocábulos figuram a miúdo com a propriedade e oportunidade de Pilatos no credo: esses escritores são mil

aberrativos, os deliberadamente excêntricos, e os ignorantes ávidos de reclamo, que não convém perder de vista, na perspectiva de lhes aparar algum «golpe de preto». Não existe no Brasil - no Brasil até agora o inexpugnável baluarte da nossa vernaculidade - uma corrente que se quer libertar da língua portuguesa, a qual, em seu conceito, anda inçada de termos cujo sentido não satisfaz às necessidades espirituais das recentes gerações cariocas? E na Itália (onde se não fala ainda o italiano, mas cem dialectos titubeantes) outras correntes não pretendem que o mais perfeito, intelectual, e delicado dos idiomas existentes, o francês, não passa de um vulgar

E os tresloucados muitas vezes assumem o papel de precursores, abrindo súbitos e grandes rasgões no desconhecido, no inédito, embora não disponham nem de vigor, nem de paciência, nem de método, para lhes explorar o âmago. vezes mais nocivos à graça e à energia da língua, do que os tresloucados que a esmaltam de palavras trazidas a trouxe-mouxe, e acomodadas pela sonoridade, ou pela obscuridade, ou por qualquer outra razão de «música» ou de «mistério», que longe de causar a morte do padre Manuel Bernardes, se os lesse, o despertaria para outras tentativas de «número e ritmo», que ele buscava na prosa, e aí ficam tão bem como no verso. E os tresloucados muitas vezes assumem o papel de precursores, abrindo súbitos e grandes rasgões no desconhecido, no inédito, embora não disponham nem de vigor, nem de paciência, nem de método, para lhes explorar o âmago. A par dos inovadores de intenções pulcras, vêm os

«esperanto» ou «volapuk», digno sòmente de ser utilizado pela difusão mundial, e propondo-se aproveitá-lo como tal para uma revista literária (!) a que puseram o nome de Novecento? Há ainda o estilo cinematográfico, que não faz mal a ninguém; e o estilo de «tenesmo», em que o escritor passa a vida aos puxos intelectuais, amontoando livros recheados de coisas encobertas, e que nunca se desvendam, morrendo por fim falido, tal como tinha nascido. Se realmente grassa uma enfermidade na Língua, que desvirtua o genuíno significado das palavras, e busca designações insensatas para a «orquestrar» consoante o «mundo» de sensações que pejam a alma do escritor actual, essa enfermida-



de não é de hoje, e grassou em mil épocas diversas: nas coloridas decadências, nas fases de gongorismo (que as houve anteriores ao Gôngora), nos períodos de afectada preciosidade, sem empecer de modo algum o aparecimento dos génios, possantes, saudáveis, e organizadores, que tudo meteram novamente na ordem. Nós temos no Camões o melhor exemplo conhecido, de uma repentina e salutar renascença

com a insubordinação daqueles que, possuindo o estro, desacatam, por ignorância ou resolutamente, os ditames da gramática e do léxicon. A meu ver tudo se resume em acidentes sem valor considerável, que aumentam as vicissitudes inerentes ao desenvolvimento de uma obra humana, e cujo registo serve à crítica para novas considerações e desinvoluções, propícias ao estudo do mais formoso monumento que existe, e

O importante é avaliar até que ponto a Língua pode ganhar ou perder, com a insubordinação daqueles que, possuindo o estro, desacatam, por ignorância ou resolutamente, os ditames da gramática e do léxicon da pureza de formas, e claridade de ideias e de estilo. E o Camões para escrever os Lusíadas, obra-prima de luminosa e equilibrada arquitectura; de limpidez, colorido, e propriedade de linguagem; teve de reagir principalmente contra o rebuscado e amaneirado cinzelador de preciosidades, e o inventor de trocadilhos, que ele próprio fora nas suas prosas, e nas poesias soltas. Sucede também que o excessivo subjectivismo, em que se comprazem os moralistas e filósofos da época adversas ao naturalismo, engendra expressões vagas, peculiares do «conhecimento obscuro» de que falam os místicos. As liberdades que tomam alguns analistas com o seu próprio «eu», para o porem à frente da vida, levam igualmente à deturpação do sentido de muitos vocábulos, que eles empregam na exaltação da embriaguez espiritual: o êxtase. [...] O importante é avaliar até que ponto a Língua pode ganhar ou perder,

no qual se esteiam as nossas justíssimas pretensões de superioridade sobre os outros animais…


atlântica ∙ ficções ∙ 70 ∙ 71

Ficções a pOrta SECRETA

Enrique Vila-Matas

Todos hotéis são por natureza lugares transitórios. Alguns são hotéis de passe para amantes ocasionais. Outros são hotéis de passagem para transeuntes nocturnos roçando abismos por cruzar. E outros há, ainda, que são protagonistas de histórias em que a realidade supera a ficção, como um tal Hotel Cervantes, situado numa rua do centro de Montevideu, que aparece em dois contos de Julio Cortázar e Adolfo Bioy Casares, e que serve de motivo para a auto-ficção que, faz algum tempo, Enrique Vila-Matas, generosamente, nos enviou para publicação. Uma versão reformulada deste texto seria, depois, publicada no seu Dietario Voluble, entretanto, traduzido e editado entre nós pela Teorema. Tanto a versão que aqui se publica como a publicada no Dietario Voluble ignoram a modernização que, entretanto, o Hotel Cervantes foi objecto, retirando, definitivamente, do horizonte da vida de E V-M aquela porta secreta. Dei comigo a pensar em La puerta condenada, um conto de 1956, onde, num hotel de Montevideu, um comerciante escuta, durante a noite, atrás do armário que esconde uma porta fechada, o misterioso pranto de uma criança. O conto de Julio Cortázar começa assim: “Petrone gostou do Hotel Cervantes por razões que teriam desagradado a outros. Era um hotel sombrio, tranquilo, quase deserto. Alguém que conhecia na altura recomendou-lho quando cruzava o

rio no Vapor da carreira, dizendo-lhe que ficava no centro de Montevideu. Petrone aceitou um quarto com casa de banho no segundo andar, que dava directamente para a recepção”. Lembro-me que a minha amiga argentina, Vlady Kociancich, escreveu um ensaio sobre uma casualidade de tipo fantástico entre La puerta condenada e Un viaje o El mago immoral, um conto escrito por Bioy Casares, por esses mesmos dias, e de enredo idêntico ao de Cortázar. Dizia Ko-


ciancich que se a casualidade argumental já era insólita, a presença de muitas outras coincidências tornava tudo, ainda, mais estranho. Petrone, o personagem de Cortázar e o narrador de Bioy têm a mesma profissão e viajam para a mesma cidade, Montevideu (no Vapor da carreira, um barco que saía de Buenos Aires às 10 da noite e chegava na manhã seguinte ao seu destino), e estiveram quase a registar-se no mesmo hotel sombrio e tranquilo. “Petrone gostou do Hotel Cervantes por razões que teriam desagradado a outros”, diz Cortázar. “Juraria ter dito ao taxista que me levasse ao Hotel Cervantes”, interroga-se o personagem de Bioy com inquietante perplexidade quando o taxi pára em frente do Hotel La Alhambra. E ainda mais. A melancólica vista da casa de banho surge quase idêntica no início dos dois contos. E a coincidência encontra-se também nas vozes nocturnas dos vizinhos de quarto que despertam os personagem: enquanto o enigmático pranto de uma criança, atrás do armário que tapa uma porta fechada não deixa Petone dormir, ao don Juan fracassado de Bioy cabe-lhe o castigo de um casal que faz amor ruidosamente. Cortázar, que sempre falou do poder mágico dos hotéis montevidenses,

Não sei, mas é bom saber que há no horizonte da minha vida uma porta secreta dizia numa entrevista: “Eu queria que o quarto tivesse a atmosfera do Hotel Cervantes, porque, para mim, representava um pouco muitas coisas de Montevideu. Havia o personagem do Gerente, a estátua que está (ou es-

tava) no hall, uma réplica de Vénus, e o ambiente geral do hotel. Não sei quem me recomendou o Cervantes, onde, com efeito, havia um quarto minúsculo. Entre a cama, uma mesa e um grande armário que tapava uma porta fechada, o espaço que restava para mover-me era mínimo”. O Hotel Cervantes, na rua Soriano entre Convención e Andes, continua de pé. Assim, se algum dia for a Montevideu, irei vê-lo e tratarei de hospedar-me no segundo andar, num “quarto minúsculo”, onde talvez permaneça esse grande armário que tapa a misteriosa porta fechada. Pesquisei na Internet e parece que o hotel não mudou muito, continua sombrio e tranquilo, ainda que melhor seja dizer relativamente tranquilo. Pode imaginar-se que o hotel não se modernizou. Ignoro se continua ali a mítica estátua do hall, a réplica de Vénus, mas o que é certo é que às sextas-feiras e sábados há «troca de casais»; vêm os chamados swingers, que a mim me parecem recordar a troca de enredos nos contos de Bioy e Cortázar. Coisas que acontecem. No blogue de uma rapariguinha uruguaia, sem dúvida totalmente alheia ao conto de Cortázar, pode ler-se acerca do Hotel Cervantes: “o seu telefone é o 900-7991 e ganhou um lugar no tema swinger. É um hotel velho e decadente, conforme me contou a minha prima que uma vez lá ficou com o namorado e viu uma barata, e por isso, então, foi à recepção exigir que lhe restituissem o dinheiro”. A verdade é que tanto acidente e barata me permitem acalentar esperanças de que tenham deixado intacta a enigmática porta secreta, de tal modo que, se um dia for a Montevideu, irei vê-la nesse hotel. Não sei, mas é bom saber que há no horizonte da minha vida uma porta secreta i


Fotografia de Juan Rulfo publicada com autorização da senhora Clara Aparício Rulfo.

fotografia de Juan Rulfo publicada com autorização da senhora Clara Aparício Rulfo

atlântica ∙ bestiário ∙ 72 ∙ 73


bestiário

NO PRINCÍPIO TODOS OS HOMENS ERAM BURROS

Maria Adelina Amorim

Simpaticamente, todos me chamam burrinho, burrito, burriquito, como se tivessem vergonha de me chamar BURRO. Raramente usam o meu nome no aumentativo, embora, de vez em quando, deixem escapar um «burrão». Já sei que até o nome inventaram sobre mim, uma vez que teimam em dizer, com ar depreciativo, que sou um «cavalo pequeno», um burricus, como se diz etimologicamente, e daí, por «derivação regressiva», se ter formado a palavra «burro». Desculpem, mas tive que ir ao dicionário para tentar perceber alguma coisa do que se passa na minha vida, ainda que por ser tão burro, tenha ficado na mesma (cf. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa). Lá está ... burro velho não aprende línguas. Há anos que sou um coleccionador de mim próprio. Não acredito que haja entre os homens, algum António ou João, ou Francisco, que tenha de si mesmo tantos textos, tantas gravuras, tantos provérbios, tantos contos, tantas metáforas… como eu. Ora venham visitar o meu Gabinete de Curiosidades, e espantem-se com o que tenho conseguido reunir ao longo da minha vida de burro. Por

exemplo, na secção dos provérbios: «a pensar morreu um burro»; «quem não pode, aluga um burro»; «andar de cavalo para burro»; «antes bom burro que ruim cavalo»; «antes burro vivo que ruim cavalo»; «albarde-se o burro à vontade do dono»… E isto é apenas uma pequena – embora seleccionada – amostra da minha selecta colecção. Continuemos a visita ao meu Museu do Burro. Gravuras; Imagética; Pinturas; Lâminas; Quadros. Nem o Louvre tem uma tal quantidade de obras de arte burrínicas (esta palavra não deve estar no dicionário, mas como não me vão chamar mais burro por causa disso, fica mesmo assim. Privilégios de um burro). Vamos lá falar, a sério, isto é zurrar a sério, mesmo que digam que vozes de burro não chegam ao céu. Realmente, é muita falta de cultura… como não chegam ao céu as minhas palavras, se fui escolhido desde o princípio dos tempos para transportar no meu dorso a Virgem Maria com o Menino Jesus na sua Fuga para o Egipto? Leiam, estudem, aprendam qualquer coisa, «seus homens»! Se não, escutem: “Levanta-te, toma o menino e sua mãe e foge com eles


atlântica ∙ bestiário ∙ 74 ∙ 75

para o Egipto. Deixa-te lá estar até que eu te diga, porque Herodes vai procurar o menino para o matar” (Mateus 2, 13-15), disse o anjo a São José durante o sono. E logo nos metemos a caminho durante a noite a caminho do Egipto. Quantos e quantos artistas me pintaram carregando o Salvador do Mundo? Quantas vezes pousei para eles a caminhar pela noite fora guiado pelo Anjo? Quantas a refrescar-me comendo umas ervinhas no Descanso durante a Fuga, enquanto a tamareira cumpria o seu papel dobrando-se a pedido do Menino para deliciar a Virgem com os seus frutos. Houve quem dissesse que eram cerejas, outros ginjas, mas eu é que sei, eu é que sou o burro. Vejam lá se o São José foi buscar um garboso cavalo, um robusto hipopótamo, um elefante africano para tão difícil jornada pela noite, apenas iluminado pelo brilho das estrelas e um gordo luar? Foi tanta a inveja, que começaram logo a inventar que eu não estava na história, que eram imaginações de textos apócrifos. O Diabo que os carregue, porque nas minhas costas não os hei-de transportar. Se eu não tivesse levado a Virgem, porque acham que me fizeram tantos retratos? Toda a fina flor dos pintores internacionais me quiz representar desde Pietro de Po a Nicolas Poussin, e aqui em Portugal por exemplo o Gabriel del Barco ou o Baltasar Gomes Figueira que preferiu pintar a Virgem a repousar debaixo da cerejeira (ou como dizem, das ginjas), depois desta os ter saciado, e já das suas raízes correrem águas frescas como ribeiros (não digam nada, mas a verdade é que no caminho para o Egipto, quem nos matou a sede foi a árvore das tâmaras... Foi ela, a phoenix dactilifera, a das folhas sempre verdes, a árvore do paraíso, a palmeira da terra onde abunda o azeite e o mel).

Mas eu sou tão burro, tão burro, que todos acham que podem dizer o que lhes apetece sobre mim. E eu faço de conta que não percebo e armo-me em burro. Inventam histórias, contam contos do género «o velho, o rapaz e o burro», como se eu algum dia andasse às costas do rapaz, quanto mais do velho. Eu nasci para transportar o Menino, carregar o Mundo todo, ainda não perceberam? Até pensaram que eram minhas as marcas das patas que os meus tetravós dinossáurios deixaram na Serra de Sesimbra, aqui por bandas de Portugal. As patinhas da mula, que por ali «cavalgou» transportando a Virgem. E lá ficou o meu nome a baptizar o sítio, O Monte da Burra. E foi tal o tamanho da fé que todos garantiram ver uma luz naquele lugar. E assim nasceu a pequena ermida para dar graças à Senhora, e que depois deu lugar a um dos maiores e mais antigos lugares de culto mariano de Portugal e do mundo: o Santuário do Cabo Espichel. Para disfarçar os mal-entendidos, chamam-me nomes: onagro, mula, jegue… e usam-me para todo o género de coisas extraordinárias. Imaginem que no meu acervo de curiosidades guardo também a cópia de um breve de Alexandre VI (de 3 de Julho de 1502) em que o Papa absolvia o rei de Portugal D. João II, no caso de ele ter morrido com «manifestos sinais de penitência» pela excomunhão em que incorrera ao estender aos eclesiásticos a proibição de cavalgarem mulas (Rio de Janeiro, IHGB, DL 1063, 07. 04, cópia feita a partir do original do Arquivo Secreto do Vaticano). Vejam que até cheguei a ser motivo de contenda entre os vizinhos ibéricos das Américas. Leiam o título do seguinte documento, que também encontrei durante as minhas incursões pela pesquisa histórica:


1761,06,19 “Portaria expedida pela Secretaria de Estado Ultramarina por ordem do rei (d. José I) a João Pereira Caldas, governador e capitão general do Piauí, proibindo a entrada de bestas muares provenientes de domínios espanhóis na América Portuguesa em benefício da repartição dos cavalos produzidos por sua capitania” (IHGB, DL284,03.02). É o que eu digo: de cardeais a reis, todos se metem comigo, todos me usam, cavalgam, insultam, carregam. Vejo muito poucas dessas bes-

Virgem com os seus frutos. Houve quem dissesse que eram cerejas, outros ginjas, mas eu é que sei, eu é que sou o burro. Vejam lá se o São José foi buscar um garboso cavalo, um robusto hipopótamo, um elefante africano para tão difícil jornada pela noite, apenas iluminado pelo brilho das estrelas e um gordo luar? tas meio quadradas, de duas patas a preocuparem-se com os meus direitos, e a pedirem a esses animais a que chamam homens, que deixem de nos bater enquanto levamos todo o peso deles em cima de nós, que não nos abandonem à fome e ao frio quando ficamos velhos e doentes e já não servimos para burros de carga. Um dia ainda voltamos à terra, sob a forma de onagros silvestres disfarçados de burros mansos. Daqueles iguais ao da Dama-Pé-de-Cabra do Alexandre Herculano, ainda se lembram? Eu avisei que era burro, muito burro, por isso é que sei estas coisas. Mas não se preocupem, que como diz o escritor, a misericórdia de Deus é grande. À cautela rezem um Pater e um Ave. Se não lhes aproveitar, seja por mim. Ámen i


atlântica ∙ outras inquirições ∙ 76 ∙ 77

OUTRAS INQUIRIÇÕES Um transmontano e um mineiro na fundação da Casa Literária do Arco do Cego

José Pacheco Ao aproximarem-se os bicentenários da morte de D. Rodrigo de Sousa Coutinho (Chaves, 1755 – Rio de Janeiro, 1812) e de frei José Mariano da Conceição Veloso (S. José del-Rei, 1742 – Rio de Janeiro, 1811), valerá a pena recordar, numa breve resenha, a importância destes dois homens na implementação de um projecto literário que propunha a aproximação entre Portugal e o Brasil, através de uma estratégia que passava pela dinamização da agricultura. Responsáveis pela fundação da Casa Literária do Arco do Cego, instituição à qual ficou ligada a célebre frase “sem livros não há instrução”, um político e um naturalista, com uma visão universalista da diplomacia e da ciência, dão corpo à ideia, protagonizada por Gutenberg, com a sua invenção da mecanização da escrita, de uma

curiosa e interessante globalização do conhecimento útil. Porém, divulgar meios, métodos e práticas que abriam novas perspectivas à dinamização da agricultura no Brasil, para onde eram enviadas as obras impressas em Portugal, permitiria despoletar a teoria de uma nova lógica da relação entre o belo e o útil, designadamente colocando a gravura ao serviço da ilustração, tendo o vocábulo ilustração o duplo sentido de instrução e representação gráfica de apoio à compreensão da palavra escrita. E é neste contexto que nasce a necessidade da criação da célebre, mas efémera, Typographia Calcographica e Typoplastica e Litteraria do Arco do Cego. Em 1788, Machado dos Santos, no seu Discurso sobre as utilidades do desenho, dedicado à Rainha D. Maria I,


chamava a atenção para o Bom-Gosto como uma faculdade só possível através de um “perfeito conhecimento da coisa que se julga, ou executa, juntando a este conhecimento muitas meditações filosóficas para indagar no feio da natureza, onde reside a verdade, o Belo e o útil”. Discurso que, afinal, ainda antes do final do século, começava a ganhar expressão

traordinário de obras editadas no âmbito dos seus objectivos políticos, culturais e científicos, mas que estariam na base da criação da primeira escola de gravura em Portugal, não podemos deixar de referenciar a tradução do Tratado da gravura a água forte, e a buril, e em maneira negra com o modo de construir as prensas modernas, e de imprimir em talhe doce, de Abraham

divulgar meios, métodos e práticas que abriam novas perspectivas à dinamização da agricultura no Brasil permitiriam despoletar a teoria de uma nova lógica da relação entre o belo e o útil. teórica, vindo a ter repercussões na Casa Literária do Arco do Cego, onde Conceição Veloso, com grande empenhamento, defendia o recurso aos textos ilustrados. Se por um lado este sacerdote marianense não tinha dúvida em integrar o desenho e a gravura nas chamadas belas-artes, por outro, não deixava de defender que estas, associadas à literatura, e portanto como ilustrações, deviam assumir o papel didáctico imprescindível ao conhecimento e à ciência. E discurso a que Vieira Portuense, em 1803, na abertura da Academia de Desenho e Pintura na cidade do Porto, não fica alheio quando discorre sobre a necessidade de que padeciam as nossas manufacturas e fábricas do socorro da Pintura, “tanto para desenhos e combinações de máquinas, como para se chegar ao conhecimento dos verdadeiros ornatos e finos matizes com que as cores se diferenciam”. Entre 1799 e 1801, período percorrido entre a Fundação da Casa Literária do Arco do Cego e a sua integração no projecto da criação de uma grande oficina tipográfica do Estado, a que José Custódio de Oliveira, na sua Diagnosis Typographica, designaria como a Arquitipografia Régia, do número exi

Bosse, onde, no prefácio, José Joaquim Viegas Menezes refere o buril como “uma dama de um talhe e de uma beleza regular, cujos vestidos são de um pano rico e precioso e de que o amanho e arte fazem valer até os menores encantos que ela possui”, enquanto a água-forte é descrita como “uma donzela galante e encantadora, natural e sem afectação nos seus gestos, mas que não sabe tirar menos partido de todos os seus encantos”. Com um trabalho nem sempre reconhecido, dado que a cultura, a ciência e a arte nunca foram o grande paradigma deste país, Rodrigo de Sousa Coutinho e Conceição Veloso, lavraram a terra onde lançaram a semente que floriria na ideia que presidiria aos estatutos da Imprensa Nacional de Lisboa como editora de obras de interesse social e cultural, mas economicamente inviáveis para as editoras comerciais. Ao acompanharem a Família Real e a Corte de nobres portugueses na sua ida para o Brasil, onde viriam a falecer, deixaram--nos milhares de livros que ocuparam um largo espaço físico reclamado, ao longo de décadas, por aqueles que jamais vislumbraram a linha do horizonte para além do rio Tejo i


atlântica ∙ ficha técnica ∙ 78 ∙ 79

ficha técnica EDIÇÃO

Instituto de Cultura Ibero-Atlântica (Associação Cultural, Entidade Colectiva de Utilidade Pública, DR n.º II, 11 de Junho de 2006)

DIRECTOR João Ventura

PROJECTO EDITORIAL João Ventura

DESIGN

Patrícia Romão

FOTOGRAFIA

João Mariano . Julio Pantoja

ILUSTRAÇÕES Daniel Barraco

COLABORARAM NESTA EDIÇÃO

Daniel Barraco . Enrique Vila-Matas . Isabel Drumond Braga . João Mariano . João Ventura . José Agostinho Baptista . José Pacheco . Juan Villoro. Julio Pantoja . Maria Adelina Amorim . Maria da Graça A. Mateus Ventura . Marina de Mello e Souza

TRADUÇÃO, REVISÃO & COPY DESK João Ventura

CRÉDITOS FOTOGRÁFICOS

Arquivo do Museu de Portimão . Fotografias de Juan Rulfo publicadas com autorização de Clara Aparício de Rulfo

PROPRIEDADE

Instituto de Cultura Ibero-Atlântica Presidente: Maria da Graça A. Mateus Ventura Vice-Presidente: José Gonçalves Canelas Vogal: Patrícia Canha

REDACÇÃO E ADMINISTRAÇÃO

Casa das Artes – Urbanização Santo Expedito Três Bicos – 8500-714 Portimão e-mail: icia.geral@gmai.com http://www.icia-portimao.org/ http;//www.revista-atlantica.com


IMPRESSÃO

SIG – Sociedade Industrial Gráfica, Lda.

DISTRIBUIÇÃO ICIA

ISSN

1646-1002

DEPÓSITO LEGAL 219149/04

PREÇO 5€

SÓCIOS DO ICIA GRATUITO

© INSTITUTO DE CULTURA IBERO-ATLÂNTICA E AUTORES DOS TEXTOS E DAS FOTOGRAFIAS ATLÂNTICA

AGRADECE A GENEROSIDADE DOS AUTORES QUE TORNARAM POSSÍVEL ESTA EDIÇÃO. OS TEXTOS ASSINADOS SÃO DA EXCLUSIVA RESPONSABILIDADE DO(S) AUTORE(S).

APOIOS


Atlântica A revista onde todos os caminhos da Ibero-América se bifurcam http://www.revista-atlantica.com

INSTITUTO DE CULTURA IBERO-ATLÂNTICA Associação Cultural sem Fins Lucrativos e de Utilidade Pública DR II série, n.º 8, 11.01.06 http://www.icia-portimao.org/






Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.