Revista Atlântica de Cultura Ibero-Atlântica 05

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Revista atlântica de cultura ibero-americana | Número 05 Outono Inverno 2006 2007

Revista atlântica de cultura ibero-americana N.º 05 Outono Inverno 2006 2007 15C_

LUGARES DE PARTIDA L I S B OA URBANO TAVARES RODRIGUES CIDADES INVISÍVEIS VALPARAÍSO NERUD A E A I N V E N Ç Ã O DE VALPARAÍSO SERGIO VUSKOVIC ROJO SANTOS DA CASA O DIABO E AS VIRGENS JULIO PANTOJA O QUE FAÇO EU AQUI CUIABÁ JOSÉ LUÍS PEIXOTO RESIDÊNCIAS NA TERRA MÁRIO CESARINY DUARTE BELO OUTRAS INQUIRIÇÕES PERTENÇA E CONTRADIÇÃO LÍDIA JORGE

Instituto de Cultura Ibero-Atlântica



Revista atlântica de cultura ibero-americana

Número 05 Outono Inverno 2006/2007

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PERTENCER AO SUL João Ventura TODOS OS NOMES HERÓIS DO MAR

A flor do sal João Mariano 12

LUGARES DE PARTIDA

Lisboa Urbano Tavares Rodrigues 18

VAGA GENTE

Tomé Álvares, um carpinteiro algarvio nas Índias do Mar Oceano Maria da Graça A. Mateus Ventura 22

TRAVESSIAS

Sem regresso Carmen Yáñez 26 28 36

CIDADES INVISÍVEIS

VALPARAÍSO Neruda e a invenção de Valparaíso Sergio Vuskovic Rojo A BIBLIOTECA DE BABEL

Arquivo Histórico Ultramarino Caio Boschi 42

SANTOS DA CASA

O diabo e as virgens Julio Pantoja 52 54 58 70 74

A INVENÇÃO DA AMÉRICA

A descoberta imperial do selvagem Boaventura de Sousa Santos As sociedades ameríndias da floresta tropical Jorge Couto Vasco Fernandes e a visão do Índio Bom Vítor Serrão CEM ANOS DE SOLIDÃO

Doriselma (Guatemala) Grau Sierra Espriu e Roger Sogues Marco 76

RIOS PROFUNDOS

Douro José Manuel Fajardo 84

ALTAS SOLIDÕES

Aconcágua, a rainha das Américas João Garcia 88

BESTIÁRIO

O ovo do pinguim ou crónica de um amor maior Maria Adelina Amorim 92

SABORES PRINCIPAIS

Erotismo e gula na América, desde o tempo colonial Virginia Vidal 100

ALGUM CHEIRINHO A ALECRIM

Portugal, sempre Luís Antônio de Assis Brasil 104

O QUE FAÇO EU AQUI

Cuiabá José Luís Peixoto 106

CRUZEIRO DO SUL

Pancho regressa ao mar Volodia Teitelboim 110

ESTÁDIO DE SÍTIO

Com o coração na boca (La Bombonera) Maria Mansilla 116

A MARESIA DO MUNDO

Mar absoluto António Ramos Rosa 118

RESIDÊNCIAS NA TERRA

Mário Cesariny Duarte Belo 124

OUTRAS INQUIRIÇÕES

Pertença e contradição Lídia Jorge 132 134 144

A MUDANÇA DA TERRA

O retratista de corações Luísa Monteiro A COMPANHIA DOS LIVROS João Ventura PROCEDIMENTOS DE ARBITRAGEM CIENTÍFICA



Pertencer ao Sul João Ventura jventura_atlantica@yahoo.com

Discorre Lídia Jorge, num belíssimo ensaio que publicamos nesta edição, sobre a noção de pertença, sobre a noção de cisma, traição ou singularidade, o que leva, também, a uma interpelação a nós próprios sobre o lugar de pertença da Atlântica.Terá esta revista um lugar de pertença? E, se sim, a que lugar pertence? Quais os territórios ambíguos que nela atravessamos? Na sua génese partimos da ideia de travessia oceânica, de aproximação de margens, de territórios, de regiões e, sobretudo, de representação de um certo imaginário ibero-americano. Diríamos, então, que a revista pertence aos portos e praias da memória partilhada entre as duas margens atlânticas, donde empreendemos, depois, a viagem de intromissão, de indagação através dos territórios sobrepostos da literatura, da história, da política, dos usos, das identidades para descobrir no rasto das vivências comuns iniciais a ressonância de um passado que irrompe no musgo da história. Mas ressonância que indicia todas as metáforas que este exercício de curiosidade partilhada persegue, como se a Atlântica fosse a região mais transparente onde, entre nós, se espelha a alma ibero-americana. Vozes múltiplas ecoam na revista como

Fotografia de Paulo Barata

num búzio onde se escuta a maresia do Sul.Vozes de navegantes da escrita que aqui deixam o seu rasto num conto, num poema, num ensaio, numa crónica, num testemunho, numa fotografia, cujo sopro continua a empurrar a revista cada vez mais para o Sul. A eles pertence também esta revista. Nesse movimento em direcção ao Sul, à utopia do Sul, para onde o promontório de Sagres parece apontar, guardamos, ainda, a herança do nosso próprio território de pertença pessoal, o Algarve. Porque é nesse Sul português que se faz a Atlântica, transportando consigo o lastro de uma terra em mudança, que muitas vezes já não reconhecemos, talvez já sem redenção, mas onde batem, ainda, as nossas horas mais íntimas. Por isso, embora nesta edição continuemos a navegar rumo ao Sul, aportando em Valparaíso sob os céus secretos do Cruzeiro do Sul, procurando Coloane em cada maré, ou atravessando os cem anos de solidão de um Chile que não esquece as feridas de um passado recente, é à Lisboa azul de muitas cores que regressamos, para logo descermos ao Algarve iluminado, ainda, pela brancura da flor do sal.


TODOS ??????OS NOMES

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ANTÓNIO RAMOS ROSA (Faro, Portugal) é um dos grandes poetas portugueses contemporâneos. Poeta das coisas primordiais, da luz, da pedra e da água, recebeu inúmeros prémios nacionais e estrangeiros, entre os quais o Prémio Pessoa, em 1998. A sua vasta obra poética e ensaística encontra-se publicada em inúmeros livros, revistas e antologias. BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS (Coimbra, Portugal) é doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale, professor titular na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Distinguished Legal Scholar da Faculdade de Direito da Universidade de Wisconsin – Madison. É director do Centro de Estudos Sociais e do Centro de Documentação 25 de Abril da mesma Universidade. Tem trabalhos publicados sobre sociologia do direito, globalização, epistemologia, direitos humanos e democracia. Os seus trabalhos encontram-se traduzidos em inglês, espanhol, francês, italiano e alemão. CAIO BOSCHI (Belo Horizonte, Brasil) é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e professor titular jubilado do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). É director do Centro de Pesquisa Histórica da PUC-Minas. Tem como área de investigação: História do Brasil, Arquivos Históricos e História da Expansão Portuguesa. CARMEN YÁÑEZ HIDALGO (Santiago do Chile) viveu o seu exílio na Suécia entre 1981 e 1997. Em Gijón (Astúrias) desde 1997, publicou aí o seu primeiro livro de poesia Paisaje de Luna Fría. Em 2002, foi-lhe atribuído o prémio de poesia Nicolás Guillén. Alas del Viento é o seu último livro. Actualmente, integra o conselho de redacção da revista do Salão do Livro Ibero-Americano de Gijón. DANIEL BARRACO (Buenos Aires, Argentina) iniciou a sua actividade fotográfica em 1980, depois de frequentar a Escola Superior de Belas-Artes de Mendoza, Argentina. Realizou vários trabalhos fotográficos para os diários Libération e Le Monde. Em 2000 recebeu, do Governo chileno, o Prémio de Mérito Artístico. Lecciona na Pontifícia Universidade Católica de Santiago do Chile, no âmbito do curso Património e Identidade. As suas fotografias integram diversas colecções internacionais. DUARTE BELO (Lisboa, Portugal) é licenciado em Arquitectura pela Universidade do Porto. Paralelamente à arquitectura, desenvolve actividade em fotografia. Desde 1986, tem percorrido Portugal num levantamento fotográfico de unidades de paisagem, formas primitivas de ocupação e domínio do território, lugares arqueológicos, aspectos das cidades e da suburbanidade, arquitecturas e vias de comunicação. São da sua autoria as fotografias da obra Portugal – O Sabor da Terra, desenvolvida com José Mattoso e Suzanne Daveau. Em aproximações à poesia portuguesa, publicou Ruy Belo – Coisas de Silêncio e O Leitor Escreve para que Seja Possível. Com Nuno Júdice, é autor de Esfera do Caos. O seu trabalho está representado em colecções públicas e privadas, em Portugal e no estrangeiro. GRAU SIERRA ESPRIU (Barcelona, Espanha) é cineasta documental, formado no Centro Nacional de las Artes, do México D.F. Com o apoio da UNESCO, realizou no México o seu primeiro documentário intitulado Última Palabra, sobre os últimos falantes das línguas indígenas do México. Actualmente prepara a realização de vários documentários para televisão sobre temas etnológicos e sociais em diversos países de África, América Latina e Ásia. O seu último projecto, ainda inacabado, é uma reportagem fotográfica, para a ONG Fundación Intervida, sobre problemáticas da infância em países como o Bangladesh, a Índia, o Senegal, a Guatemala e a Bolívia. HENRIQUE CAYATTE (Lisboa, Portugal) é presidente do Centro Português de Design e professor convidado da Universidade de Aveiro. Foi fundador e autor do design global, editor gráfico e ilustrador do jornal Público. Consultor para os projectos especiais de design da EXPO'98 e do respectivo plano de pormenor do recinto. Co-autor do sistema de sinalética e comunicação da EXPO’98. Co-autor e responsável pelo design da revista Egoísta. Comissário e autor do design de diversas exposições em Portugal e no estrangeiro. Entre os vários galardões, recebeu em 2003 o Prémio Nacional de Design e o Prémio Dibner Award. JOÃO GARCIA (Lisboa, Portugal) é o montanhista (alpinista /himalaísta) português com maior currículo. Das catorze montanhas com mais de 8000 metros de altitude existentes no Planeta, já ascendeu a oito delas. Foi o primeiro português a alcançar o cume do Evereste, sem recurso a oxigénio e sem carregadores de altitude. É actualmente o único português cameraman de altitude e de condições extremas, tendo realizado vários documentários sobre as suas expedições que têm sido transmitidos nas televisões portuguesas. João Garcia é autor dos livros A Mais Alta Solidão, que já vendeu mais de 30 mil exemplares, e Mais Além – Para Além do Evereste, lançado em Fevereiro deste ano. JOÃO MARIANO (Aljezur, Portugal) é fotógrafo. Editou e coordenou a fotografia do Grupo Forum, dirigiu o departamento de fotografia do portal Terravista e actualmente dirige a agência 1000olhos – Imagem e Comunicação. Publicou diversos álbuns, livros e catálogos, e expõe regularmente desde 1993. Colabora, eventualmente, com a revista Egoísta e com o semanário Dna. JOÃO VENTURA (Portimão, Portugal) é mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação pelo ISCTE e pós-graduado em Ciências Documentais (área de Bibliotecas) pela Universidade de Lisboa. Foi leitor de Língua e Cultura Portuguesas na Universidade de Paris III e docente convidado na Escola Superior de Educação da Universidade do Algarve. Entre 1998 e 2003, foi delegado regional do Ministério da Cultura no Algarve. Actualmente, desenvolve actividade na área da gestão cultural como director do projecto «Fórum Cultural de Portimão». JORGE COUTO (Lisboa, Portugal) é mestre em História do Brasil e professor assistente na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi presidente do Instituto Camões. Actualmente, é director da Biblioteca Nacional. É autor de diversas publicações sobre os Descobrimentos Portugueses, entre as quais a construção do Brasil. JOSÉ LUÍS PEIXOTO (Lisboa, Portugal) é licenciado em Línguas e Literaturas Modernas pela Universidade Nova de Lisboa. Recebeu o Prémio Jovens Criadores (área de literatura) nos anos 1997, 1998 e 2000. Em 2001, o seu romance Nenhum Olhar recebeu o Prémio Literário José Saramago. Está representado em diversas antologias de prosa e de poesia nacionais e estrangeiras. É colaborador de diversas publicações nacionais e estrangeiras. Os seus romances estão publicados em França, Itália, Bulgária, Turquia, Finlândia, Holanda, Espanha, República Checa, Croácia, Bielorússia e Brasil. O seu último romance é O Cemitério de Pianos. JOSÉ MANUEL FAJARDO (Granada, Espanha) é jornalista e escritor, vivendo actualmente em Paris. Colaborou em vários jornais e revistas espanhóis como o El Mundo e o El País, assim como em publicações de Itália, França e América Latina. Foi redactor do programa da RTVE Tiempo de Papel. Enquanto residiu no País Basco, participou activamente no movimento cidadão pela paz e contra a ditadura do terrorismo, tendo também a seu cargo uma coluna de opinião no jornal El Mundo del País Basco. Entre as várias obras publicadas, conta-se a participação com diversos autores, como Luis Sepúlveda, Antonio Sarabia ou Rosa Montero, entre outros, nas antologias de relatos Contos Apátridas e Histórias do Mar.


Tem quatro romances editados em Portugal: Cartas do Fim do Mundo, Terra Prometida, Os Demónios à Minha Porta e Água na Boca. JULIO PANTOJA (Tucumán, Argentina) Fotodocumentarista, jornalista, criativo e editor, formou-se como arquitecto e técnico de fotografia na Universidade Nacional de Tucumán (Argentina). É docente universitário e dirige, com Gabriel Varsanyi, os Ateliers de Expressão e Fotodocumentalismo. A sua obra integra colecções públicas e privadas, como a do Museu Nacional de Belas-Artes (Argentina) e a da Casa das Américas (Cuba). É membro do Instituto Hemisférico de Performance e Políticas para as Américas da Universidade de Nova Iorque. As suas fotografias foram expostas em galerias da Argentina, Venezuela, Brasil, Chile, Nicarágua, El Salvador, Espanha, França, Estados Unidos, Holanda, Alemanha, Suíça e África do Sul. LÍDIA JORGE (Boliqueime, Portugal) é uma das mais prestigiadas romancistas portuguesas. É licenciada em Filologia Românica pela Universidade de Lisboa. A partir de O Dia dos Prodígios (1979) tornou-se uma das mais importantes romancistas portuguesas. Recebeu vários prémios literários, entre os quais o Prémio Europeu Jean Monnet com a obra O Vale da Paixão (1998), em 2003, o Grande Prémio de Romance da Associação Portuguesa de Escritores, com o romance O Vento Assobiando nas Gruas, e, em 2006, foi distinguida na Alemanha com a primeira edição do Albatroz, Prémio Internacional de Literatura da Fundação Günter Grass, atribuído pelo conjunto da sua obra. Acaba de publicar o romance Combateremos a Sombra. LUÍSA MONTEIRO (Albufeira, Portugal) é licenciada em Ciências da Comunicação e pós-graduada em Literaturas Românicas Modernas e Contemporâneas. Ao longo de 17 anos, exerceu jornalismo e publicou artigos literários em diversas revistas. Escreve essencialmente romances, embora também se dedique ao texto dramático, ensaio e biografia, poesia, crónicas, contos e novelas. Tem 17 obras publicadas, e diversos textos seus subiram já ao palco. Colabora regularmente com algumas revistas literárias. LUIZ ANTÔNIO DE ASSIS BRASIL (Porto Alegre, Brasil) é escritor com uma vasta obra publicada, tanto no Brasil como no estrangeiro. Em 1988, recebeu, com o romance Cães da Província, o Prémio Literário Nacional do Instituto do Livro e, ainda nesse ano, o Prémio Literário Erico Veríssimo pelo conjunto da sua obra. Em 1995, recebeu o Prémio Açoriano de Literatura com Pedra da Memória e Senhores do Século. MARIA ADELINA AMORIM (Lisboa, Portugal) é mestre em História do Brasil e autora de vários estudos sobre a missionação no Brasil e sobre a literatura de viagens. Investigadora do CLEPUL e membro da ACLUS, colaborou na organização do Dicionário de Lusofonia (Texto Editora, 2006). MARIA DA GRAÇA A. MATEUS VENTURA (Portimão, Portugal) é doutora em Letras pela Universidade de Lisboa. Fundadora do ICIA, foi vice-presidente da Direcção de 1995 a 2002, sendo presidente desde 2002. Foi professora visitante na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Algarve no âmbito da Cátedra de Estudos Ibero-Americanos, da qual foi coordenadora executiva (2003-2006). É especialista em história da Ibero-América, com numerosos textos publicados nesta área, com destaque Os Portugueses no Peru ao Tempo da União Ibérica: mobilidade, cumplicidades e vivências (2005, INCM). MARIA MANSILLA (Buenos Aires, Argentina) é jornalista e coordenadora de redacção da revista Hecho en Buenos Aires.Tem artigos editados na National Geographic em espanhol, em Etiqueta Negra do Peru, ELLE (Argentina, México e Índia) e Página 12 (Argentina). É bolseira da Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano (FNPI), presidida por Gabriel García Márquez. PAULO BARATA (Moçâmedes, Angola) é fotógrafo freelancer, colabora com a imprensa portuguesa e espanhola. Trabalha também como fotógrafo de cena para teatro e cinema, e making of para publicidade. Expõe desde 1999. ROGER SOGUES MARCO (Barcelona, Espanha) formou-se na Escola de Cinema da Catalunha, em Barcelona. É realizador e guionista de documentários onde aborda temáticas sociais relacionadas com a cultura, os direitos humanos, o meio ambiente e as desigualdades sociais, em países como Espanha, México, Guatemala, El Salvador e Estados Unidos. Actualmente, prepara o seu novo projecto documental relacionado com a recuperação da memória cultural. SERGIO VUSKOVIC ROJO (Illapel, Chile) Na campanha presidencial do Chile, em 1952, conheceu, em Valparíso, Pablo Neruda e Salvador Allende, com quem manteve amizade até à morte de ambos. Durante o Governo de Allende, foi alcaide de Valparaíso. Após o golpe de Estado de 1973, esteve encarcerado três anos, passando pelos campos de concentração de Puchuncaví e Ritoque. Durante os seus 11 anos de exílio, foi professor de filosofa na Universidade de Bolonha, em Itália. Actualmente, é professor de filosofia nas Universidades de Valparaíso e de Playa Ancha, e director do Centro de Estudos do Pensamento Latino-Americano e da revista Cuadernos del Pensamiento Latinoamericano. Escreveu várias obras sobre filosofia, sendo a última Filosofía Latinoamericana. URBANO TAVARES RODRIGUES (Lisboa, Portugal) é escritor, ficcionista, investigador e crítico literário. É professor catedrático jubilado da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, membro efectivo da Academia de Ciências de Lisboa e membro correspondente da Academia Brasileira de Letras. Sendo um dos mais prolíficos e prestigiados escritores da segunda metade do século XX em Portugal, a sua obra, que está traduzida em diversas línguas, atinge várias dezenas de títulos, entre conto, romance, crónica e ensaio. Em 2002, foi-lhe atribuído o Grande Prémio Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores e, em 2000, o Prémio de Consagração de Carreira da Sociedade Portuguesa de Autores. VÍTOR SERRÃO (Lisboa, Portugal) é doutor em História da Arte pela Universidade de Coimbra. É director do Instituto de História da Arte e coordenador do Departamento de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. É membro efectivo da Academia Nacional de Belas-Artes e do ICOMOS, vice-presidente do CICOP-Portugal, comissário das exposições «Josefa de Óbidos e o Tempo Barroco» (catálogo de 1992: Prémio Nacional Gulbenkian de História da Arte) e «A Pintura Maneirista em Portugal – Arte no Tempo de Camões» (1995). É autor de diversos livros e estudos sobre arte portuguesa do Renascimento, do Maneirismo e do Barroco. VIRGINIA VIDAL (Santiago, Chile) é escritora e jornalista. Exilada em 1976, viveu na ex-Jugoslávia e na Venezuela até 1987. Os seus textos foram traduzidos e publicados em diversas línguas.Tem inúmeros artigos de crítica cultural em revistas e diários da Venezuela. O seu romance Cadáveres del Incendio Hermoso recebeu o Prémio María Luisa Bombal de Viña del Mar em 1989. Trabalhou no programa cultural do Canal 9 da Universidade do Chile. Integrou o conselho de redacção da revista Araucária. Actualmente, é directora da revista Anaquel Austral e directora da Sociedade de Escritores do Chile. VOLODIA TEITELBOIM (Chillán, Chile) é um dos nomes mais ilustres das letras chilenas e americanas do século XX. É um escritor multifacetado, autor de uma vasta obra, que inclui romances, crónicas, memórias, biografias e ensaios. Integrou a Geração de 38 e é autor das biografias de Gabriela Mistral,Vicente Huidobro, Jorge Luis Borges [Temas e Debates] e Pablo Neruda [Temas e Debates]. Foi galardoado com o Prémio Nacional de Literatura do Chile em 2002.


HERÓIS DO MAR

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A flor do sal João Mariano

As águas oceânicas da costa algarvia, aquecidas nos dias estivais no quadriculado das salinas, produzem um tempero de requinte: a flor do sal. Os cristais finos e transparentes, colhidos diariamente pelos marenotos, são o toque mágico dos sabores intemporais da comida mediterrânica.







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Lisboa Urbano Tavares Rodrigues

Esta é a Lisboa de Álvaro de Campos, pavorosamente perdida, cidade triste e alegre. A Lisboa azul de muitas cores, como a viu Pedro Tamen. A cidade de José Cardoso Pires, luminosa e enigmática, navegando sobre o Tejo. Cais de aventurosas e, também, dolorosas partidas ou precipitadas fugas para Urbano Tavares Rodrigues, que nos leva aqui pelos arredores da sua memória através de uma cidade que navega. Lisboa. Fotografia de Paulo Barata



LUGARES DE PARTIDA

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Lisboa. Fotografia de Paulo Barata

Não tenho qualquer memória de Lisboa antes dos dez anos, idade em que vim do Alentejo para aqui fazer o exame de admissão ao liceu. Mas, se para mim começou por ser lugar de chegada, também é certo que, pela vida fora, Lisboa foi o meu cais de múltiplas partidas. Num plano menos pessoal, embora tudo isso ainda me toque e me respeite, pois sempre vivi um pouco na história e no futuro, Lisboa foi teatro, quantas vezes dramático, de aventurosas e também dolorosas partidas ou precipitadas fugas. Penso nos nossos navegadores de Quatrocentos e Quinhentos e nos soldados que os acompanharam às Áfricas, Índias e Brasis e que se tornaram, muitos deles, povoadores ou comerciantes. Penso no melhor da nossa intelectualidade, os judeus ameaçados ou expulsos pela Inquisição e que deitaram raízes na Holanda, em França ou demandaram as zonas do Bósforo, em procura de mais tolerância. E recordo a emigração económica para o Brasil, para os Estados Unidos e Canadá e, já em anos mais recentes, para a França, Suíça, Alemanha, Inglaterra... Como se Portugal, pátria madrasta, não conseguisse dar a seus filhos o sustento nem a paz de alma. E houve os exílios políticos, o dos liberais no século XIX, o dos antifascistas sob as ditaduras de Salazar e Caetano. E as lacrimosas partidas para as guerras, a de 14-18, no século XX, e depois a Guerra Colonial, com o seu aparato propagandístico e o sentimento de absurdo que muitos experimentavam, ao despedirem-se de Lisboa e das famílias, dos amores, dos projectos, no Cais da Rocha. Foi muito cedo, em 1949, depois de me licenciar e de me casar, que deixei a redacção do Diário de Notícias e, como leitor da Universidade de Montpellier, parti para os céus claros do Midi, ao encontro de um mundo mais culto, mais livre. Em Dezembro desse mesmo ano estava em Paris, a passar as férias do Natal, com alguma neve e muitas luzes, cinemas, teatros, chansonniers, caves existencialistas, os


imprescindíveis museus e passeios, com a Maria Judite (de Carvalho) deslumbrada e feliz. Nos seis anos que vivi em França, primeiro no Sul depois em Paris, visitei, ainda quase de saco às costas, a Suíça, a Bélgica e a Holanda, a Inglaterra e as duas Alemanhas e voltei muitas vezes a Portugal, por pouco tempo. Dessas andanças, mais ou menos demoradas, quase sempre de comboio ou de autocarro, deixei registos e vivências transpostas, figuras de carne tornadas em papel, cenários, episódios, nos meus primeiros contos e romances. O meu lugar de partida, nesse intervalo de existência, não foi Lisboa, mas Paris, de onde eu partia também para a leitura de infindáveis livros, nas bibliotecas e nas preciosas livrarias da Rive Gauche ou nos bouquinistes. Com o regresso definitivo a Lisboa, instalámo-nos na zona de S. Sebastião da Pedreira, perto das Picoas, mas não perdi o hábito dos meus tempos de estudante de passear pela Lapa, pela Madragoa, por toda a área ribeirinha, de Belém ao Terreiro do Paço e à Casa dos Bicos, a Alfama. Creio que essa constante atracção está muito marcada nos meus romances de fundo lisboeta, de Os Insubmissos a O Eterno Efémero ou Ao Contrário das Ondas. A paisagem do rio e da sua foz, dos cais, dos navios, velhos petroleiros, embarcações à vela sempre me fascinou. Em 1958, no ano da campanha eleitoral do general Humberto Delgado, fiz uma longa viagem até ao Brasil, onde meu irmão Miguel já estava exilado. Fui num paquete italiano, o «Ana C», em terceira classe, fazendo escala na Madeira e em Cabo Verde, outros lugares de partida, até ao lumioso milagre da chegada a Guanabara e depois a Santos, onde meu irmão me esperava para subirmos até ao planalto de São Paulo. Foi o Jorge Amado o meu cicerone no Rio, com ele vi o autêntico Brasil e vi as marcas de Portugal no Brasil, na arquitectura e nos seres humanos. Primeiro contacto com o Rio Grande do Sul, onde muito mais tarde havia de assistir a uma discussão do orçamento

aberto e visitar, com a viúva de Vítor Jara, um acampamento dos Sem-Terra. Quantas partidas, quantas noites de farra nos cais de Lisboa. Não os olhei, esses cais, tal o Pessoa na Ode Marítima, como porta do mundo sonhado que dali se deseja, se espreita, se imagina, sem ousar viagem alguma que não seja interior. Foram as aerogares, para voos de curta ou de longa duração, os meus bem familiares lugares de partida: para Roma, para Paris (a minha rotina dourada de escritor, jornalista e professor de literatura francesa), Londres, Manchester, Colónia e Roma, Berlim; e mais tarde a Rússia, de São Petersburgo ao lago Baikal ou ao Norte da Sibéria. E Praga, sob um nevão desumano, Viena e Budapeste, Sófia, Belgrado... Um período do século XX então prestes a terminar. Amei cidades e mulheres, o exotismo ou o classicismo de paisagens diversas. Por vezes reencontrei, em fulgores de saudade, o Alentejo na Ásia Menor turca; o solo mediterrânico, os seus olivais de prata no Afeganistão, se bem me lembro perto de Kandahar. Gente tão diversa, mas sempre humana, quer no mistério de Cabul, durante a curta república do poeta Nur Mohamed Taraki, quer nos países do Médio Oriente, sempre em convulsão, quer na América Latina, apesar da violência de certos bairros, onde a miséria empurrava os mais pobres para o crime. Estive em Caracas, em Buenos Aires; vivi em Cuba, em 1962-63, a delirante euforia da vitória em Playa Girón. De Lisboa, nesse ano de 1963, em que conheci os «curros» do Aljube, andei por Florença, extasiado com os Botticelli, com a visão do Arno, com os Giotto da Piazza della Signoria, com os frescos do Fra Angelico. Voltei à Grécia, que já conhecia, mas desta vez de barco, com inolvidáveis paragens em Nápoles e na Sicília; vi teatro na Acrópole, percorri as igrejas bizantinas de Atenas; e fui a Delfos, à Acrocorinto; escutei os ecos da Sibila; repensei Teixeira-Gomes, frente à harmoniosa paisagem helénica.


LUGARES DE PARTIDA

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Em Nova Iorque fiz da Broadway o meu centro, de começo sempre a olhar para cima, apesar da neve, para fixar bem os arranha-céus. Convivi com escritores e jornalistas e com alguns subi ao topo do Empire State Building, percorri Central Park e os museus, as galerias; ousei entrar em Harlem à hora do maior movimento, reconheci a China Town do cinema; e em Greenwich Village vieram até mim as sombras dos grandes escritores que ali moraram. Lisboa era a alegria da chegada, o retomar do trabalho, que aumentara com a ausência, e a serena reflexão não só sobre as terras desvendadas, mas, e talvez sobretudo, sobre a real dimensão das nossas cidades, o carácter um pouco bisonho do povo, sob o salazarismo. E o repensar dos nossos mitos, que com o tempo vêm mudando, neles permanecendo sempre, todavia, o sentimento da grandeza perdida, que desde D. João III e depois de Alcácer Quibir faz tocar as nossas guitarras de alma e nos leva a incessantemente partir, emigrar, ou maldizer da pequena Pátria que não torna a achar o segredo das vitórias, nem o resplendor da Índia, o ouro do Brasil. Por algum tempo, pouco, houve o sonho transformador de Abril, a curta epopeia da fraternidade, a euforia da mudança que trouxe até nós, no local onde a história avançava, gente de todo o mundo, coleccionadores de esperança.

Lisboa. Fotografia de Paulo Barata

O entusiasmo da partida, a vontade do novo esmoreceram um pouco em mim com o abrandar da curiosidade e da inquietação. Foi, no entanto, com renovada surpresa e enlevo, e por vezes desgostos e outras vezes exaltação, que visitei, como escritor e conferencista, a China e a Índia (1999 e 2002). Enquanto puder, continuarei regularmente a percorrer, de preferência acompanhado, os bairros ribeirinhos, de Alcântara e Alfama, Lisboa cidade-cais, e a prender mais uma vez o olhar nas velhas casas de azulejos, nos palacetes meio arruinados, a pedirem restauro, nas estreitas ruas onde o rio ressoa, da Lapa ou Santa Catarina às Janelas Verdes, ao Adamastor, à sardinha assada, à brisa picante onde o sol marinho e sobretudo a pimenta evocam as especiarias; e as mulheres continuam a balançar-se como no Sentimento de um Ocidental. Até me acontece relembrar poemas do Cancioneiro de Resende ou a Ode Triunfal de Pessoa. Lisboa, lugar de partida, às vezes definitiva, mas também lugar de chegada, ainda hoje orienta para o Tejo, de envolta com frustrações, mau passadio, direitos sociais a desaparecer, o sopro brando da viagem redentora. E por vezes há vozes que sussurram: com esta fuga dos jovens cérebros para o estrangeiro, também os meus filhos partirão. Eles que são tão dotados. Lá é que os portugueses se afirmam.



VAGA GENTE

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Tomé Álvares, um carpinteiro algarvio nas Índias do Mar Oceano Maria da Graça A. Mateus Ventura

Christoph Weiditz, 1529. Biblioteca Nacional, Madrid



VAGA GENTE

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AGI (Sevilha), Testamento de Tomé Álvares, Contratación, 922A, nº12.

1 Archivo General de Índias (Sevilha), Contratación, 922ª, N.12

Tomé Álvares, natural da cidade de Tavira, vizinho de Triana, enfermo do corpo e são da vontade, em seu perfeito juízo e entendimento, ditou um testamento1, poucos dias antes de falecer, a 18 de Março de 1582, em Santiago de Guayaquil. Nasceu no reino de Portugal, filho de Lázaro Fernandes e de Inês Martim, e emigrou para Triana, bairro de marinheiros na margem direita do Guadalquivir, frente à cidade de Sevilha, reino de Espanha. Daqui partiu para as Índias do Mar Oceano com outros algarvios e andaluzes por companheiros. Instalou-se bem longe daqui, na margem oriental do Oceano Pacífico, na cidade portuária de Guayaquil, reino do Peru. Não sabemos a sua idade, apenas que, à data do seu testamento, os seus pais eram defuntos e não tinha filhos. Casara em Triana, segundo a ordem da Santa Madre Igreja Católica Romana, com Catalina Garcia, filha de Francisco Garcia e de Isabel Peres, naturais de Vila Nova de Portimão e vizinhos desse bairro marítimo. Tomé partiu para as Índias, Catalina ficou em Triana, com a mãe, cuidando da casa e da fazenda com a ajuda das negras que tinha ao seu

serviço. O dote que levara consigo havia sido duplicado em bens pela habilidade do marido que, agora, no outro lado do mundo, falecia deixando-lhe apenas um testamento que pouco acrescentava àquilo que ficara por dizer: universal herdeira dos bens em Triana e de mais ou menos seiscentos pesos de prata corrente, cobradas as dívidas alheias e o salário de carpinteiro de ribeira do marido. Partira do Algarve para a Andaluzia, de Portimão ou Tavira para Aiamonte ou Sevilha em busca de uma viagem para a Índia, desassossego que não passava disso mesmo, desassossego por fortuna muitas vezes transformada em má sorte. Tomé não enriqueceu. Não tinha casa própria em Guayaquil, apenas um colchão, um cobertor, uma almofada e lençóis gastos. A roupa que vestia era modesta, o melhor ficou registado no testamento – um capote negro guarnecido de passamanes, uns imperiais negros de terciopelo e um velho saio azul. Entre os seus parcos bens, fez questão de nomear a ferramenta de carpinteiro com a qual ia construindo o barco que o alcaide ordinário de Guayaquil encomendara ao mestre António Fernandes e que lhe valeria os 280 pesos de salário por cobrar. Os seus albaceias eram o mestre de fazer navios e o alcaide ordinário da cidade. Testemunhas do testamento e dos últimos dias de vida de Tomé foram outros algarvios, como António Resio, mercador natural de Vila Nova de Portimão que era vizinho de Aiamonte e viajava de cá para lá do Atlântico ao Pacífico. António mal teve tempo de satisfazer uma vontade do seu amigo enfermo – comprar-lhe 36 pesos de queijos. Foi também António que trouxe para Sevilha os 120 ducados que Tomé devia aos herdeiros do bretão Francisco Martins. Chegado a Sevilha com cópia do testamento para Catalina, não resistiu à insistência desta para que lhe entregasse os ducados de prata. Isabel Fernandes, viúva do bretão, mandou António para a cadeia por este não lhe ter pago a dívida do carpinteiro defunto, e este vê-se envolvido num processo motivado pela má-fé da viúva do seu amigo. Coisas de mulheres, disputas de herdeiros.


Bem longe daqui a alma do nosso defunto, sepultado, conforme sua vontade, com o hábito de São Domingos, na capela de Nossa Senhora do Rosário, no mosteiro de S. Paulo, na cidade de Guayaquil, carecia do bom senso das partes mais que das missas de requiem cantadas e rezadas pelo cura e pelos religiosos da cidade. Triana, bairro de mareantes, era ninho de algarvios com ramificações familiares em todo o garb andaluz. O porto de Santiago de Guayaquil atraía os homens do mar pelas excelentes oportunidades resultantes da sua estratégica localização entre o Peru e o Panamá. Não é, por isso, de estranhar que aí encontremos marinheiros aos molhos, reunidos quando é necessário testemunhar as últimas vontades dos enfermos que insistem em fechar o círculo de uma relação familiar ditando um testamento que sintetiza a sua identidade e apazigua a sua consciência.

Christoph Weiditz, 1529. Biblioteca Nacional, Madrid.

De Sevilha, o Guadalquivir era o atalho para o Mar Oceano, devassado continuamente por mestres, marinheiros, pilotos e mercadores naturais do Algarve, vizinhos dos portos andaluzes, residentes ou estantes temporariamente nos portos indianos. Tomé Álvares, António Resio e António Fernandes ilustram o padrão de mobilidade dos portugueses e, particularmente, dos algarvios que se dispersaram num amplo território cuja fronteira fluida não era obstáculo eminente à busca de fortuna. Neste vaivém se foi formando a idiossincrasia da vaga gente que fez do Sul espaço de viagem e do Atlântico um mar de oportunidades.


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Sem regresso Carmen Yáñez


Por vias sinuosas, clandestinas, atravessaram a noite densa de chacais, pesada de amargura. Era um tempo de renĂşncia no Chile. RenĂşncia das coisas e dos afectos deixados para trĂĄs. Um testemunho de quem atravessou a sombra.


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Já não estão os meus pais Nem o fogo que acenderam Carlos Liscano

Eu tinha uma casa, marido, filho, pais, um pequeno jardim de ervas aromáticas, algumas árvores que davam os seus frutos, um parreiral para as tardes estivais, uma rua, uma vereda até ao sul, uma cidade dentro de um país. Um país que um dia amanheceu sombrio e hostil. Suponho que começou ali a minha viagem, apesar de o ignorar naqueles primeiros tempos de horror. Eram os anos setenta e começava o êxodo. Muitos procuraram embaixadas, consulados, a Nunciatura da Igreja Católica, vias clandestinas entre os caminhos das cordilheiras para partir rumo à Argentina, ou pelo norte até ao Peru e à Bolívia, ludibriando os guardas fronteiriços. Procuravam uma via rápida de fuga desesperada para fugir dos institucionalizados e recém-estreados métodos de tortura, desaparecimento e morte quase certa. Nessa tentativa, grande parte deles ficaram pelo caminho: as mãos negras da ditadura chegavam até às entreabertas portas salvadoras para alcançar as presas. Assim, a ditadura aplicava o terrorismo de Estado em nome da Doutrina da Segurança Nacional, combatendo as ideias e o pensamento livre dos agora depostos opositores ao seu regime militar. Sergio Leiva Molina, militante socialista, tinha 34 anos, mulher e uma filha. Uns dias depois do golpe do 11 de Setembro de 1973, começou a ser perseguido e fugiu. Algumas semanas mais tarde, emergiu da sua clandestinidade; com uma escada feita de cânhamo e paus de bambu sobressaindo da sua mochila, disse-nos adeus e pediu-nos que cuidássemos da sua mulher e da sua filha Aleida.

Nesse dia tentaria ludibriar a vigilância dos carabineiros que estavam de guarda à embaixada argentina; utilizaria a escada para saltar o muro das traseiras da embaixada, num sítio descampado e escuro. Não sei como o fez, mas conseguiu. Pensávamos que o nosso amado companheiro se encontrava a salvo, já a pedir asilo como refugiado, mas o seu espírito intrépido e solidário levou-o a contactar com outros que, como ele, tentavam dar o salto: assim, a sua improvisada e engenhosa escada aparecia e desaparecia do muro. Sergio assomava de vez em quando do outro lado para ver se algum fugitivo necessitava de ajuda; nesse caso, assobiava e voltava a lançar imediatamente a escada flexível. Salvou muitos, mas no dia 4 de Janeiro de 1974, atraído por um ruído, assomou-se cautelosamente. Caiu destroçado pela bala assassina que o esperava, espreitando-o, incessantemente. A televisão, já nas mãos das hordas fascistas, emitiu a notícia entre comunicados militares sobre o recolher obrigatório, falseando-a com o característico tom distorcido que costumava imprimir à explicação dos assassinatos de Estado. Não sabíamos que o dia em que Sergio nos abraçou seria a última vez que o veríamos. Agora e depois de muitos anos, o seu nome é mais um dos que estão presentes no Memorial em honra das vítimas daqueles 17 anos de ditadura, no Cemitério Geral de Santiago do Chile, mais um na categoria dos fuzilados. Creio que ali começou a esboçar-se a minha viagem, ainda sem regresso. Aos que conseguimos continuar em pé, despertava-nos a


constante vigília; por onde se espreitava, apareciam a crosta do medo, a ferida, a morte. Os funerais celebravam-se uma e outra vez com a presença sinistra de capangas e delinquentes a soldo; por todo o país proliferaram os cárceres clandestinos, as prisões e os desaparecimentos, mas resistia-se secretamente pelo regresso da democracia, em todas as cidades e de mil modos. Pode-se conviver com o medo, desafiá-lo, tomar partido, mas render-se-lhe não constitui uma vida digna, e esse pensamento foi o alento de muitos para continuarem a resistir apesar da repressão. No entanto, a pátria dividiu-se; as denúncias entre vizinhos opuseram cada família, cada bairro. O medo quebrava os laços; a resistência devia proteger-se até da sua própria sombra. Os que ficávamos despedíamo-nos de amigos e companheiros que partiam para o exílio. E eu continuava sem saber que, um dia, partilharia da sua sentença. Durante o Golpe Militar, Augusto Pinochet dirigiu o assalto a «La Moneda», o Palácio do Governo, a partir da Villa Grimaldi – a casa convertida em forte militar que passou a denominar-se Cuartel Terranova. No final de 1973, o local converteu-se na sinistra casa de tortura Villa Grimaldi sob o comando do general do Exército Manuel Contreras Sepúlveda, que recebia ordens directas do seu comandante-chefe Augusto Pinochet. Contreras era o chefe da DINA, posteriormente CNI. Muitos dos detidos-desaparecidos passaram por ali – estima-se que à volta de 5000 pessoas. A quase todas foram aplicadas diversas formas de tortura e vexames.

Às três da manhã de um dia de Outubro de 1975, e durante o recolher obrigatório, pararam dois carros à porta da minha casa e desceram seis homens armados que me levaram, com os olhos vendados, à Villa Grimaldi perante uma viscosa personagem que consegui reconhecer muitos anos depois, graças ao testemunho de outros

Pode-se conviver com o medo, desafiá-lo, tomar partido, mas render-se-lhe não constitui uma vida digna.

prisioneiros que tinham passado pelas suas mãos: Osvaldo Romo Mena, torturador e violador. Apesar desta situação, não planeava a fuga e agarrava-me ao meu território. Avançava-se a pouco e pouco desafiando o medo. Eu e o meu filho refugiámo-nos no Sul do país, mas em 1980 decidi voltar a Santiago.

Soube que parte da organização da resistência tinha sido presa. Os militares foram a minha casa e deixaram-me em prisão domiciliária; nos primeiros meses do ano seguinte, dirigi-me aos Organismos do Alto-Comissariado das Nações Unidas e preparei-me para sair do país. Foram as horas mais tristes da minha vida; o meu filho separava-se dos seus brinquedos e dos seus avós, e tínhamos perdido o rasto do meu marido – Luis Sepúlveda. Eu deixava para trás todos os meus haveres, sonhos e pesadelos. Não voltaria a ver os meus pais durante mais de dez anos, e cada hora subtraía as raízes à minha vida. O país e a cidade tinham mudado. Regressaram os tempos democráticos, mas a casa está em ruínas, os meus pais faleceram, as árvores e o parreiral secaram, e as ervas aromáticas deram lugar às ervas daninhas. Se é certo que o exílio foi uma forma de castigo, uma condenação ao desmembramento familiar, também nos proporcionou uma visão original do mundo que marcou profundamente o nosso olhar; os diversos cenários geográficos proporcionaram-nos uma compreensão mais ampla do ser humano e, em particular, de nós próprios. Ao fim de muitos anos, consegui reunir-me com o meu marido e os meus filhos, consegui imprimir uma ordem afectiva ao nosso ambiente familiar e, hoje, vivo num país que escolhi por minha própria vontade. Da minha parte, sei que venci a morte emboscada na Villa Grimaldi e a que farejava atrás de cada esquina do desenraizamento: a bagagem não foi leve, mas a viagem valeu a pena.


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VALPARAÍSO Fotografias de Daniel Barraco

Valparaíso é um velho balcão debruçado sobre o Pacífico. Viajantes, cineastas, poetas, pintores, fotógrafos gravaram a sua história sob os céus secretos do Cruzeiro do Sul. Mas quem melhor descobriu a sua alma profunda de porto de partidas e de chegadas foi Neruda, que a reinventou a partir da sua casa La Sebastiana, construída no cerro Florida.



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Neruda e a invenção de Valparaíso Sergio Vuskovic Rojo


«Não será simplesmente [Valparaíso] o fantasma de uma cidade que nunca pôde pertencer inteiramente a nenhum presente?» Agustín Squella

Sempre me questionei sobre a atracção que Valparaíso exerceu sobre Neruda desde a sua mocidade até à sua maturidade criadora. Num exemplar do diário La Nación de 1973, a poetisa Sara Vial reproduziu algumas das palavras que proferiu em Paris, depois de receber o Prémio Nobel: «Mais do que nunca sinto falta do Chile e, com Matilde aqui a meu lado, da nossa querida Valparaíso.» No Estádio Nacional, aquando do seu regresso de França, após renunciar à embaixada, começa a sua história pessoal: «Nasci no centro do Chile, criei-me em La Frontera, iniciei a minha educação em Santiago, Valparaíso conquistou-me.»

Vaticinando o seu encontro com a morte, escreveu docemente: «Em Isla Negra os espero, entre ontem e Valparaíso.» E desta preocupação nasceram em mim algumas reflexões filosóficas e sociais. Valparaíso é um lugar metafísico, situado para lá da física, para lá do tempo e do espaço, para lá da história, uma urbe parada no tempo, fora desta época e que, todavia, vive e muda constantemente, é um centro mágico da existência. É talvez a única povoação deste país que não foi fundada pelos espanhóis, mas sim, no seu estatuto nobiliário, por vários poetas e escritores. Desde Nicanor Parra, que fala de «Valparaíso afundada para cima», a Gon-


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zalo Rojas, que considera a cidade como «obscuridade que sobe, obscuridade que desce», ou a Joaquín Edwards Bello, que defende que «Valparaíso não impõe ideias feitas. Cada qual a imagina à sua maneira», exaltando o carácter tolerante da primeira cidade chilena que acolheu imigrantes de todo o mundo, especialmente da Europa.Até à chegada do cigano Rodríguez que descobriu que «Valparaíso amarra como a fome». Cidade milagrosa criada pelos «cerrenhos» e pelos poetas. Naturalmente que deste afã de criação não escaparia Pablo que, num livro chamado Geografía, criou uma orografia imaginária: «Vamos a Valparaíso, vamos ao insólito porto sem portas, à porta dos vastos mares. Valparaíso é mínima e universal, sórdida e gloriosa: Valparaíso obscura arde na areia do Pacífico como uma brasa fria, como uma estrela de mil pontas.Valparaíso usurpou-me, submeteu-me ao seu domínio, ao seu dislate:Valparaíso é um montão, é um racimo de casas loucas, é um pássaro que cai sobre a tua cabeça, é uma criança pobre no meio do ferro velho, é uma mulher angustiada, é uma distância. Um casal, uma cama, Valparaíso é uma escada e três cavalos, outra escada que conduz às nuvens e outra que nos convida às vidas alheias, à intimidade escorregadia que nunca conseguiremos partilhar senão com os degraus pisados por um milhão de pés que passaram enfiando-se nos lençóis de Domingo, quando tudo corre escadas acima, para os cerros, para as famílias numerosas, para a pobreza de cima, pobreza orgulhosa e férrea temperada em todos os combates de terra e mar.»

VALPARAÍSO É UM LUGAR METAFÍSICO, SITUADO PARA ALÉM DA FÍSICA, PARA LÁ DO TEMPO E DO ESPAÇO, PARA LÁ DA HISTÓRIA, UMA URBE PARADA NO TEMPO, FORA DESTA ÉPOCA E QUE, TODAVIA, VIVE E MUDA CONSTANTEMENTE, É UM CENTRO MÁGICO DA EXISTÊNCIA. Valparaíso não é uma cidade, pois, por muito que falemos da cidade, esta, na verdade, não existe: é uma confederação de 42 cerros e um vale. E, como se não bastasse, é fácil constatar que não tem um centro. Cada um imagina-o como quer. Por isso, Lukas afirmava que Valparaíso é a única cidade do Chile que não se parece com Quillota: aqui não há uma Praça de Armas ou uma Praça Maior. E, no entanto, existe uma harmonia subjacente na sua desordem. Como cidade, padece de irrealidade, tanta que, às vezes, o duque de Goicolea exclama, surpreendendo-se a si mesmo: «Valparaíso não existe.» E, por isso, o poeta Arturo Morales lhe recomenda: «Não gires, a cidade não existe» (23.º poema itinerante), desinventando Valparaíso. Como é possível que os cemitérios desfrutem da melhor vista sobre o mar, já que todos

estão no cimo de alguns cerros? Durante o terramoto de 1965, no cemitério n.º 2 quebraram-se vários mausoléus e sepulturas comuns, produzindo-se uma «chuva de mortos na cidade», como anunciou o El Mercurio. Quem poderia imaginar que apareceria um leão afogado na praia de Las Gaviotas à saída do leito da avenida Argentina? Valparaíso, cidade de África?! Melhor, parece que é um estado de alma. Manuel Peña Muñoz, por sua vez, sentiu: «Nada mais triste que o Cerro Alegre. Sobretudo num Domingo de Outono, quando no meio da neblina aparece o tocador de realejo, pela rua Munich, a tocar Violetas Imperiais». Ou o «mote mei» que irrompe com o seu farol entre as cascatas de neblina que anunciam as primeiras gotas de chuva. Na realidade, verdadeiramente, Valparaíso padece de um sentimento de irrealidade que evidencia o seu tom metafísico, como história do ser de Valparaíso, no qual são frequentes as rajadas de vento norte e também os ventos de irracionalidade e os encontros fortuitos. O professor alemão, doutor em literatura, Thomas Brons, o primeiro que propôs que Valparaíso fosse declarada Património Cultural da Humanidade pela UNESCO em 1993, escreveu: «No plano simbólico, eu diria que esta cidade cresce em busca do seu centro desconhecido» e, na forma de haiku, «Valparaíso, porta aberta a qualquer ser». Procurando o seu centro, andaremos pelo vale, subiremos ou desceremos por qualquer escadaria, mas poderá ocorrer que alguma não levará a parte nenhuma, como a que existe na avenida Francia com Colón, na


esquina do Liceu Eduardo de la Barra, atrás da bomba de gasolina. Ou, então, sofreremos uma espécie de ilusão óptica ao observarmos, de cima, as casas do porto porque nos mostram cinco paredes em vez de quatro, sendo a quinta o tecto multicor. Este espírito de tolerância também foi intuído por Pablo Neruda que, ao escrever o livro Valparaíso, exerceu a sua função criadora com uma topografia imaginária na qual aparecem 50 cerros, quatro ou cinco dos quais são fruto da sua imaginação prodigiosa, mas que tinham nomes muito bonitos como El Árbol Copado, Del Buey, Del Cardenal, e termina com um toque de realidade nomeando El Cerro de la Florida: «Neste cerro está a minha casa», ainda que os vizinhos do cerro Bella Vista digam que a Sebastiana está no seu cerro. E reclamam porque o poeta se esqueceu de o nomear. O logos portenho exibe-se através de uma arquitectura contorcionista, com casas velhas desequilibradas, imbricadas umas nas outras, amparando-se mutuamente, nos bairros antigos, dentro de labirintos de becos sujos em terra batida, alguns tão estreitos como o caminho de uma mina subterrânea. Becos em ziguezague, com escadas e escadinhas deformadas, com os degraus a diferente altura que, de vez em quando, terminam numa parede cega ou em casas malignas, criando uma atmosfera de pesadelo, de medo, ao ter que percorrê-los de noite ou quando as sombras começam a cobrir o mundo. Becos propensos a encontros fortuitos, devidos à ocorrência de circunstâncias ou da cumplicidade inverosímil entre fenómenos opostos. Em total contradição com a ilumina-

O LOGOS PORTENHO EXIBE-SE ATRAVÉS DE UMA ARQUITECTURA CONTORCIONISTA, COM CASAS VELHAS DESEQUILIBRADAS, IMBRICADAS UMAS NAS OUTRAS, AMPARANDO-SE MUTUAMENTE, NOS BAIRROS ANTIGOS, DENTRO DE LABIRINTOS DE BECOS SUJOS EM TERRA BATIDA. ção dos bares ou dos restaurantes do vale. Esta convivência entre a sombra e a luz constitui, em grande parte, o logos da Valparaíso oitocentista que ressuscitou no século XXI, transmitido pelas gerações anteriores no século XX, e que devemos transmitir às gerações do século XXI. O seu logos sempre foi e é aventureiro, perigoso e fascinante porque não cessa de atrair com os seus encantos e abismos. Valparaíso não liberta os que cativou, como sucede com o jovem poeta norte-americano Todd Temkins e com o pintor francês Thierry Defert, Loro Coirón. Entretanto, Ennio Moltedo e Allan Browne mantinham erguida a bandeira dos portenhistas. O arquitecto Carlos Alberto Cruz sustenta que, «entre 1850 e 1920, Valparaíso possui o conjunto mais homogéneo de arqui-

tectura do século XIX que se conserva na América, o que, porventura, lhe granjeará, num futuro próximo, o estatuto de cidade-museu viva, tal como Quito, Veneza e Edimburgo» (El Mercurio, 20.11.1994). Os cerros e o raio verde: ao caminhar pelos becos ou pelas escadas dos cerros, no segundo crepúsculo que anuncia a noite, sempre sopra algo misterioso, ambíguo, tão indefinível como o próprio nome da cidade que não admite o seu gentílico correspondente (a não ser que aceitemos «valparaisino», proposto, em italiano, pelo professor Mauricio Nocera), já que portenho se refere ao porto; mas o que a define são os cerros e a sua sismografia, áreas encantadas da imaginação e a partir dos quais se pode ver correr o azul-lavanda da atmosfera cristalina ou o raio verde. Fulgor infinito, o último a aparecer sobre o mar antes que o Sol se esconda nos crepúsculos claros do fim de tarde, ao cair da noite, e que eu pensava que só existia como metáfora num verso de Pablo Neruda, até que o vi afundar-se no horizonte límpido, acompanhado de Nenita e Rodolfo Pumpin, como testemunhas. Todos os cerros e não apenas os da fundação, isto é, Cordillera, Alegre e Concepción, têm casas solarengas com estruturas e andares de madeiras nobres – tepa, carvalho americano, pinho «oregón», lariço das Guaitecas – guardadas por portas com maçanetas de bronze em forma de punho ou de cabeça de leão e as janelas de guilhotina que emitem sons e ruídos característicos ao abrir ou fechar. As divisões da casa apresentam geralmente rodapés de madeira, às vezes de pau duro de Caiena,


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A ÂNSIA DE MAR, DE LIBERDADE E AVENTURA FOI O QUE CONTRIBUIU PARA QUE AS GERAÇÕES PASSADAS NOS LEGASSEM ESTE VALPARAÍSO DO SÉCULO XIX, A NÓS, GENTE DO SÉCULO XX, QUE TEMOS COMO MISSÃO DEIXÁ-LO, COMO HERANÇA CULTURAL, ÀS GERAÇÕES DO SÉCULO XXI,

trazido das Guianas e que, passado um século, ainda exalam uma suave fragrância vegetal. Os escritórios, as salas de jantar e os quartos de dormir possuem formosas lareiras construídas por operários ingleses, trazidos especialmente de Londres. Os móveis eram da famosa oficina Cruz Montt, de Santiago. O Palácio Baburizza e as casas Astoreca e Antoncit tinham as suas respectivas salas de música. Nas casas antigas, os jardins são pequenos: copihues1, alfazema, filodendros paraguaios, aspidistras, etc. Com sebes de trepadeiras e canteiros cobertos de aromáticos jasmins e, nos maiores das casas solarengas, podem encontrar-se palmeiras, palmas chilenas, araucárias e camélias. Manuel Rojas, no seu romance Lanchas en la Bahía, não deixou de se fixar no gosto portenho pelos jardins e pelas árvores, o que também é visível nas casas mais modestas: «Alguns ranchos pendiam dos muros dos cerros, ostentando vasos de barro com cravos, malvas, cardenales e achiras.»

Sendo muito importante o património material – arquitectónico, urbanístico e doméstico, com uma vida vivida nas casas e nos becos –, não é menos importante o património espiritual, ético que aqui se construiu: a emigração multiétnica e de diferentes continentes produziu a virtude da tolerância, típica do ser portenho, que sabe que detém uma parte da verdade, mas não toda a verdade; no próprio cerro Concepción, a um quarteirão de distância, encontram-se a Igreja Luterana, alemã, e a Igreja Anglicana de São Paulo, inglesa. Perto delas está a Igreja de São Luís, católica, nas imediações da qual os mormones construíram, recentemente, a sua igreja. Os antigos comerciantes e industriais eram, por sua vez, homens de cultura e, em alguns casos, refinada; Don Joaquín Edwards Bello sustenta que «a cortesia e a boa educação de Valparaíso têm uma parte do cunho inglês». Este espírito de tolerância, de cavalheirismo nas maneiras e certo bom gosto é a base da


ausência de fanatismo que envolve a cidade e que encontramos reflectida nos resultados de morte, na sequência do golpe de 11 de Setembro, em comparação com o massacre que se verificou em Santiago e nas zonas agrárias. Encontramos também esta ausência de fanatismos num dos seus locais mais belos, o cemitério n.º 2. Aí, onde se manteve até hoje, D. Vicente Martínez de Morentín, falecido a 29 de Agosto de 1914, mandou inscrever no seu jazigo de mármore: «Quarto do dono da casa.» No mesmo cerro La Cárcel, encontra-se o primeiro cemitério de dissidentes do Chile. Este espírito de tolerância e esta ausência de fanatismo parecem encontrar uma das suas raízes na ânsia de mar e de vastidão que sempre esteve presente na cultura portenha. O romancista Salvador Reyes escreveu em Los Tripulantes de la Noche: «Nas tardes mais luminosas, o porto era um grande barco. Cortava as amarras e lançava-se empurrado pelo vento das grandes aventuras»; e Carlos León, em Hombre del Traje Blanco,

também investigou sobre o seu sentido metafísico e a sua abertura ao mundo: «Valparaíso é uma terra diferente. Sobe à cabeça como un vinho generoso»; e, em Hombres de Palabras, transforma-o num amigo: «o porto de Valparaíso que escolhi para viver como a um amigo». A ânsia de mar levou «aquele chileno» à tripulação do capitão Acab em Moby Dick, de Herman Melville, ou «àquele portenho» que D. Benjamín Subercaseux encontrou nas ruas de Tóquio conduzindo um riquexó, segundo conta num velho Pacífico Magazine. A ânsia de mar, de liberdade e aventura é que contribuiu para que as gerações passadas nos legassem esta Valparaíso do século XIX, a nós, gente do século XX, que temos como missão deixá-la, como herança cultural, às gerações do século XXI, libertando-a da especulação idílica e fazendo suas as aquisições provadas pela história e pela estética. Sara Vial, no seu imprescindível Neruda en Valparaíso, recorda a advertência feita pelo poeta nesta

mesma sala, quando eu era alcaide desta cidade: «Todos os dias, vemos que voa um edifício e que dá lugar a um caixote de cimento. Não sou inimigo dos caixotes de cimento, mas há que saber onde construí-los, uma vez que, depois, virão as queixas e as lamentações.» O orador oceânico Augusto D´Halmar, o eterno viajeiro pela passagem Elias, afirma que «o seu nome sugere distância, exotismo, aventura. O seu nome, só por si, infiltra já nas veias dos sedentários ou dos inquietos o feitiço da viagem»; ainda mais agora que é património cultural da Humanidade. «Vamos a Valparaíso», venha a Valparaíso e invente a sua própria Valparaíso.

1 Planta trepadeira que dá uma flor vermelha, muito formosa, por vezes de cor branca. (N. da T.)


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Arquivo Histórico Ultramarino Caio Boschi

São livros (em grande parte encadernados em pergaminho e em carneira); são incontáveis papéis manuscritos, de diversa tipologia (como cartas, requerimentos, alvarás, ofícios, decretos, provisões); são plantas de diferentes núcleos urbanos e populacionais; são desenhos representativos, por exemplo, da fauna e da flora ultramarinas; são fotografias de missões científicas, viagens... eis o que se pode encontrar no Arquivo Histórico Ultramarino se nos aventurarmos pelos quinze quilómetros de documentação que aí se guardam. Salão Pompeia, sala nobre do Palácio da Ega. Fotografia do Arquivo Histórico Ultramarino



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Ao lançar-se à aventura marítima que o gloricia ao Ministério das Colónias e, na altura, estava ficaria, Portugal já se apresentava como país que, custodiada no Arsenal da Marinha e na Cordoaria desde sempre, cuidou de preservar testemunhos Nacional. A ela se aduziu, naquela circunstância, o escritos sobre sua trajetória histórica. No momenArchivo da Marinha e Ultramar ou Secção Ultramarina da to inaugural dos Descobrimentos, uma torre Biblioteca Nacional de Lisboa. O objetivo da nova albarrã do castelo de São Jorge passou a abrigar o instituição era inequívoco: congregar, em um só Livro do Tombo. Em simultâneo, criou-se o cargo de local, a dispersa documentação respeitante às posguarda-mor da Torre do Tombo, cujo primeiro sessões portuguesas do Ultramar; organizá-la e titular, recordemo-nos, foi, cumulativamente, o tratá-la tecnicamente, para, de seguida, oferecê-la cronista do Reino, ninguém menos do que Fernão à consulta. Lopes. O advento do Ultramarino, forA saga das navegações e malmente institucionalizado, em das conquistas, mais do que, 1931, pelo Decreto-Lei n.°19.869, obviamente, fazer crescer a se explica muito bem à luz da dimensão e o volume da política estadonovista para as posmassa documental, diversifisessões ultramarinas portuguesas. cou a sua tipologia e a sua Ou seja, a criação do novo órgão, natureza. Quando nada porpara além de propugnar inerenteque a Expansão exigia e trou- A saga das navegações mente pela centralização dos funxe consigo os relatos que lhe dos arquivísticos relativos àqueles e das conquistas, eram inerentes e o estabeleciterritórios, tinha claro propósito mais do que, mento de novos órgãos admiprático-político, porquanto passanistrativos. va a permitir às autoridades de obviamente, Os documentos produzientão acesso mais rápido e eficaz fazer crescer dos e recebidos pelas autoria documentos que lhes facultasdades e repartições, metro- a dimensão e o volume sem melhor e mais vertical compolitanas e ultramarinas, foram preensão de realidades históricas tendo a Torre do Tombo como da massa documental, nas quais a seiva colonialista lusiseu desaguadouro e depósito tana ainda se mantinha forte e diversificou naturais. O Império se ativa. a sua tipologia ampliou, se complexificou. E Apesar de as aparências equiteve vida longa! Proliferavocadamente nos levarem a assim e a sua natureza. ram-se as fontes históricas a considerá-lo, o acervo do Ultraele relacionadas. marino não se esgota ou não se Há tempos, o Tombo deilimita a documentos relativos às xou de ser o celeiro que aliex-colônias portuguesas. O corrementa e faz as delícias dos to seria dizer que se trata de fonestudiosos da História do tes respeitantes a lugares e a colevasto império colonial portividades nos quais os portuguetuguês. Ainda que não excluses se fizeram presentes e com as sivo, o locus privilegiado para tais incursões é o quais (man)tiveram relações da mais variada natuArquivo Histórico Ultramarino, o AHU, como se aprereza. Assim, nas amplas e agradáveis instalações do senta nos rodapés bibliográficos, ou o Ultramarino, número 30 da Calçada da Boa Hora nos deparacomo ficou cunhado no jargão de seus freqüenmos com as alentadas e variegadas espécies docutadores. mentais. São livros (em grande parte encadernaSucessor do Arquivo Histórico Colonial, o dos em pergaminho e em carneira); são incontáUltramarino tem sede, desde 1929, no antigo Palácio veis papéis manuscritos, de diversa tipologia da Ega, à Junqueira, isto é, nas cercanias de Belém (como cartas, requerimentos, alvarás, ofícios, e do Restelo, inserção espacial que bem condiz decretos, provisões); são plantas de diferentes com a evocação da epopéia expansionista lusitana. núcleos urbanos e populacionais; são desenhos A massa documental que lhe deu origem pertenrepresentativos, por exemplo, da fauna e da flora


ultramarinas; são fotografias de missões científimentação como, por exemplo, as mudanças das cas, viagens oficiais e que documentam a vida nos instalações físicas e o trânsito de partes dos fundos espaços africanos e asiáticos de língua portuguesa, ocorridos no início do Dezenove, aquando da eis o que encontramos quando nos aventuramos transferência da sede da Monarquia para o Rio de nessa Babel de fundos ultramarinos que é o Janeiro, ou as trajectórias diversas dos arquivos Arquivo Histórico Ultramarino. Enfim, um conapós a extinção dos organismos de Antigo siderável repertório de fontes históricas sobre o Regime, como o Conselho Ultramarino, ou do passado colonial do Brasil (1548-1825), Timor Estado Novo, após o 25 de Abril de 1974, caso do (1642-1975), Macau (1603-1975), Índia (1509Ministério do Ultramar, seja porque documentos -1960), Cabo Verde (1602-1975), Guiné-Bissau concernentes à administração colonial, por distin(1614-1975), São Tomé e tas razões, permaneceram ou Príncipe (1538-1975), Angola foram incorporados aos fundos (1610-1975) e Moçambique arquivísticos de outros órgãos, (1608-1975). Lá também nos decomo no caso dos que se queleitamos com documentos sobre daram ou afluíram para a Torre o Norte Africano (1596-1832), do Tombo, para a Biblioteca do sobre a Serra Leoa, sobre as relaPalácio Nacional da Ajuda, para ções luso-persas (entre 1589 e a Divisão de Manuscritos da Ao simbolizar 1798), sobre o Japão (em partiBiblioteca Nacional de Lisboa cular, sobre a missionação e a ou para o Arquivo Histórico do a Babel presença religiosa dos portuTribunal de Contas, seja, ainda, dos fundos gueses, séculos XVI-XVII), sobre pela ação de impróprias condia região platina (entre os sécuarquivísticos de povos ções de aclimatização no armalos XVII e XIX) e sobre as ilhas zenamento ou pelo deletério mae de cultura da Madeira (1513-1834) e dos nuseio e consulta, posto que Açores (1607-1834). estes nem sempre são realizados ibero-americanos, Totalizando 15 quilómetros por consulentes conscienciosos. de documentação textual, carto- o Ultramarino se aninha, A riqueza documental do gráfica e iconográfica, à qual se AHU, a pouco e pouco, vem oportuna junta uma biblioteca com cerca sendo divulgada em meio a sise adequadamente, de 14.000 títulos de livros e temática política de acessibilià Atlântica. 680 de periódicos, o acervo do dade ao acervo. Sem desdouro AHU se estrutura hoje, grosso pelos ingentes esforços e resulmodo, em três grandes conjuntos tados que se expressaram em (ou fundos) documentais: o do outros tempos, enfatizem-se Conselho Ultramarino (século XVI a algumas iniciativas levadas a 1833), o da Secretaria de Estado cabo nas últimas duas décadas. dos Negócios da Marinha e Assim, enquanto do ponto de Domínios Ultramarinos, dita vista do espaço físico e da infraSecretaria de Estado da Marinha e -estrutura um moderno e aproUltramar (1833 a 1910), e o do Ministério do Ultramar priado edifício se construiu e se acoplou ao pré(1911 a 1975), sem esquecer de fundos menores dio histórico do AHU, novos e sofisticados e singulares, como os do Instituto de Apoio ao equipamentos foram incorporados, e importanRetorno de Nacionais, da Agência Geral das tes empreendimentos se desenvolvem no que Colónias, do Banco Nacional Ultramarino e da respeita à democratização de acesso aos fundos Procuradoria dos Estudantes Ultramarinos. documentais. Com tudo isso, ou melhor, a despeito da Exemplo ilustrativo dessa segunda diretriz é intenção original, o que se constata, tal como a que se configurou no âmbito do Projeto Resgate, ocorre em quase todas as instituições do gênero, é implementado a partir de 1996, como expresque o acervo do Ultramarino não tem sentido de são operacional da Comissão Luso-Brasileira completitude, seja pelas idas-e-vindas da docupara Salvaguarda e Divulgação do Património


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Plantas do Brasil, Jacaranda Caroba, c. 1801. Ilustração do Arquivo Histórico Ultramarino

Documental – COLUSO. Trata-se de gigantesca operação que objectivou, no que respeita à documentação manuscrita avulsa sobre o Brasil depositada no AHU, conferir-lhe tratamento técnico e, a partir dele, elaborar instrumentos de busca e disponibilizar mais facilitadamente aquela documentação à consulta pública. Este propósito efectivamente se cumpriu com a correspondente microfilmagem. Significa dizer, então, que o conteúdo de mais de duas mil caixas de documentos foi organizado, lido, sumariado e catalogado, permitindo que os verbetes-sumários servissem de sinaléticas para os cerca de três milhões de fotogramas dos microfilmes. Ainda como parte do Projeto, microfilmaram-se os 759 Códices do Fundo da Secretaria do Conselho Ultramarino relativos ao Brasil. O producto mais patente e utilitário desses esforços, afora evidentemente a reprodução microfílmica, é uma colecção de 279 CD-ROM que, produzidos entre 1996 e 2002, foram ofertados a instituições universitárias e centros de investigação.

Ademais, cumpre salientar um efeito colateral desta iniciativa: o desejável intuito de estender as actividades do Resgate à documentação concernente às outras partes do império colonial português que se encontra igualmente armazenada no AHU. Ou mesmo de se efetuar a identificação definitiva e o tratamento arquivístico do Reino, núcleo composto por 500 caixas de documentos avulsos e cuja organicidade só agora começa a ser detectada e identificada criticamente. Com tais actividades e utilizando-se alargadamente os avanços tecnológicos, mais do que nunca vai sendo possível investigar e analisar, com maior segurança, o real sentido e significado do império ultramarino português. É nesse horizonte, pois, que conhecer a potencialidade informativa do acervo do AHU se apresenta como necessidade ímpar para, por exemplo, alcançarmos maior discernimento nem tanto sobre as afinidades existentes entre os lusofalantes, mas, sobretudo, das diferenças que nos singularizam. É flagrante o dinamismo no cotidiano do Ultramarino. Por conseguinte, tecer loas à qualidade do seu recheio documental implica conhecer as condições de acessibilidade ao mesmo. Nesse sentido e para finalizar, há que se referir a iniciativas, em grande parte já materializadas, concernentes quer ao tratamento técnico e à acomodação física do acervo, quer à informatização do acervo, quer, ainda, à produção e veiculação de instrumentos de pesquisa. Em outras palavras, abrem-se portas e janelas para que, quando nada, se possa desmonumentalizar a documentação ali recolhida. Ao simbolizar a Babel dos fundos arquivísticos de povos e de cultura ibero-americanos, o Ultramarino se aninha, oportuna e adequadamente, à Atlântica.

Figurinos militares da Baía, 1806. Ilustração do Arquivo Histórico Ultramarino



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O diabo e as virgens texto e fotografias Julio Pantoja

As celebrações oscilam entre sinceras promessas à Virgem e oferendas ao Diabo e a Pachamama; entre passeios familiares e o álcool ou o sexo urgente com alguma mascarinha. Coisas de santos da casa.



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Em Oruro, tecto do continente e coração do altiplanalto boliviano, houve uma vez um grande centro cerimonial a quase 4000 metros de altitude. Ali, os índios urus adoraram, desde a Pré-história, Huari, deus da força e o fogo da montanha.

Com o tempo, a cultura quechua fez seu esse deus, transformando-o em Zupay, que mais não é do que a versão indígena do Diabo da fé católica, o protector dos socavones, a que os mineiros chamam «El Tío» e ao qual levam como oferenda folhas de coca e cigarros para que não se aborreça, porque, se se aborrecer, provocará tremores de terra e desabamentos.

Noutra etapa histórica de dualismo religioso, entre os anos 1700 e 1900, aproximadamente, a Pachamama andina (Mãe Terra) transformou-se na Virgem do Socavón, ampliando o sincretismo e a dinâmica da fé por intermédio desta mutação religiosa. Hoje, o seu templo está exactamente no lugar onde os bruxos e os feiticeiros faziam os seus conciliábulos. Ali mesmo, nessa igreja, também desemboca a galeria de uma velha jazida que, transformada num museu mineiro, é presidida pelo mesmíssimo Diabo. E para esse centro sagrado se dirigem ainda os que sentem nos seus espíritos o peso do misticismo milenário. Tudo isto foi sempre patrocinado pela Igreja Católica do colonizador espanhol que, durante séculos, procurou o modo de hegemonizar a religiosidade em todo o continente, ainda que à custa de esvanecer os seus contornos tradicionais. Os sacerdotes construíram os seus templos nos antigos lugares sagrados, para que os indígenas entrem nesses recintos, agora católicos, para cantarem e dançarem à sua maneira. Não lhes importava. O objectivo era transculturizar os que resistiam a crer na fé trazida de outro continente. As datas das celebrações, que a princípio tinham a ver com a estação das chuvas, foram-se ajustando a pouco e pouco aos feriados autorizados pelos padres e patrões, até ficarem definitivamente integradas no Carnaval do calendário oficial. Actualmente, tão curiosa mistura permite que, em cada ano, mais de 40.000 peregrinos, na sua maioria disfarçados de diabos, e encabeçados pelo bispo da cidade, desfilem dançando ao longo de vários quilómetros, enquanto adoram ao mesmo tempo a Virgem católica e o Diabo. Dentro desse paradoxo, as celebrações oscilam entre sinceras promessas à Virgem e oferendas ao Diabo e a Pachamama, entre passeios familiares e o álcool ou o sexo urgente com alguma mascarinha. Coisas de virgens e diabinhos.



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Tal como Waldseemüller se precipitou ao baptizar o Novo Mundo de América, também Colombo cometeu o erro fatal de designar os seus habitantes como índios. Pior que o termo foi o conceito que foi dando corpo a uma acesa polémica, representada por Bartolomeu de las Casas e Juan Ginés de Sepúlveda, que duraria séculos e que, ainda hoje, segundo o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, alimenta preconceitos culturais subjacentes ao sistema capitalista. A generalização do termo índio a toda a América mistificou o retrato de um con-


tinente que apresentava, no alvor da modernidade europeia, uma óbvia complexidade cultural. Do México ao Peru, das ilhas caribenhas ao litoral brasileiro e ao rio da Prata, o panorama era muito diverso – de sociedades fortemente hierarquizadas a comunidades seminómadas e recolectoras. Fiquemos, por ora, pelo Brasil, acompanhando Jorge Couto e Vítor Serrão. O primeiro apresenta-nos as comunidades pré-cabralinas, e o segundo, a representação do índio na pintura portuguesa de Quinhentos. Organização de Maria da Graça M. Ventura


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O selvagem Boaventura de Sousa Santos

É, ainda, o paradigma fundado na violência civilizadora do Ocidente que mobiliza subterraneamente os projectos de desenvolvimento, depois enfeitados com declarações de solidariedade e direitos humanos, escreve Boaventura de Sousa Santos no terceiro volume da Gramática do Tempo. Aqui fica um excerto dessa obra fundamental que visa fundar uma nova cultura política e um novo senso comum. Índio tupi. Albert Eckout, 1641. Copenhaga, National Museum of Denmark



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1 Num dos relatos recolhidos por Ana Barradas, os índios são descritos como «(…) verdadeiros seres inumanos, bestas da floresta incapazes de compreender e fé católica (…), esquálidos selvagens, ferozes e vis, parecendo-se mais animais selvagens em tudo menos na forma humana (…)» (1992: 34). 2 Rousseau, no seu «Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens», publicado em 1755, defende que o homem nasce bom e sem vícios – o bom selvagem –, mas é pervertido pela sociedade civilizada (Rousseau, 1971 (1755). 3 Num trabalho anterior, Frei Bartolomé de Las Casas denuncia a «destruição de África» (1996), através do roubo, comércio de escravos, etc.

Se o Oriente é, para o Ocidente, o lugar de alteridade, o selvagem é o lugar da inferioridade. O selvagem é a indiferença incapaz de se constituir em alteridade. Não é o outro porque não é sequer plenamente humano1. A sua diferença é a medida da sua inferioridade. Por isso, longe de constituir uma ameaça civilizacional, é tão-só ameaça do irracional. O seu valor é o valor da sua utilidade. Só merece a pena confrontá-lo na medida em que ele é um recurso ou a via de acesso a um recurso. A incondicionalidade dos fins – a acumulação dos metais preciosos, a expansão da fé – justifica o total pragmatismo dos meios: escravatura, genocídio, apropriação, conversão, assimilação. Os jesuítas, despachados quase ao mesmo tempo, ao serviço de D. João III, para o Japão e para o Brasil, foram os primeiros a testemunhar a diferença entre o Oriente e o selvagem: «Entre o Brasil e esse vasto Oriente, a disparidade era imensa. Lá, povos de requintada civilização… Aqui florestas virgens e selvagens nus. Para o aproveitamento da terra pouco se poderia contar com sua rarefeita população indígena cuja cultura não ultrapassava a idade da pedra. Era necessário povoá-la, estabelecer na terra inculta a verdadeira «colonização». Não assim no Oriente, superpovoado, onde a Índia, o Japão e, sobretudo, a China haviam deslumbrado, em plena Idade Média, os olhos e a imaginação de Marco Polo» (Viotti, 1984: 12). A ideia do selvagem passou por várias metamorfoses ao longo do milénio. O seu antecedente conceptual está na teoria da «escravatura natural» de Aristóteles. Segundo esta teoria, a natureza criou duas partes, uma superior, destinada a mandar, e a outra inferior, destinada a obedecer. Assim, é natural que o homem livre mande no escravo, o marido, na mulher, o pai, no filho. Em qualquer destes casos, quem obedecer está total ou parcialmente privado da razão e da vontade e, por isso, é do seu interesse ser tutelado por quem tem uma e outra em pleno. No caso do selvagem, esta dualidade atinge uma expressão extrema, na medida em que o selvagem não é sequer plenamente humano: meio animal, meio homem, monstro, demónio, etc. Esta

matriz conceptual variou ao longo do milénio e, tal como sucedeu com o Oriente, foi a economia política e simbólica da definição do «Nós», de Montaigne a Rousseau, de Bartolomé de Las Casas ao Padre António Vieira que esteve na base das visões positivas do selvagem, o «bom selvagem»2. No segundo milénio, a América e a África, enquanto «descobertas» ocidentais, foram o lugar por excelência do selvagem. E a América, talvez mais do que a África, dado o modelo de conquista e colonização no «Novo Mundo», como significativamente foi designado por Américo Vespúcio, o continente que rompia com a geografia do mundo antigo, confinado à Europa, à Ásia e à África. É a propósito da América e dos povos indígenas submetidos ao jugo europeu que se suscita o debate fundador sobre a concepção do selvagem no segundo milénio. Este debate que, contrariamente às aparências, está hoje tão em aberto como há quinhentos anos, inicia-se com as descobertas de Cristóvão Colombo e Pedro Álvares Cabral e atinge o seu clímax na «Disputa de Valladolid», convocada em 1550 por Carlos V, em que se confrontaram dois discursos paradigmáticos sobre os povos indígenas e a sua dominação, protagonizados por Juan Ginés de Sepúlveda e Bartolomé de Las Casas. Para Sepúlveda (1979), fundado em Aristóteles, é justa a guerra contra os índios porque estes são os «escravos naturais», seres inferiores, animalescos, homúnculos, pecadores graves e invertebrados, que devem ser integrados na comunidade cristã, pela força, se for caso disso, a qual, se necessário, pode levar à sua eliminação. Ditado por uma moral superior, o amor do próximo pode, assim, sem qualquer contradição, justificar a destruição dos povos indígenas: na medida em que resistem à dominação «natural e justa» dos seres superiores, os índios tornam-se culpados da sua própria destruição. É para seu próprio benefício que são integrados ou destruídos. A este paradigma da descoberta imperial, fundado na violência civilizadora do Ocidente3, contrapôs Las Casas (1992) a sua luta pela libertação e emancipação dos povos indígenas das Américas, que conside-


rava seres racionais e livres, dotados de cultura e instituições próprias, com as quais a única relação legítima era a do diálogo construtivo assente em razões persuasivas «suavemente atractivas e exortativas da vontade». Fustigando a hipocrisia dos conquistadores, como mais tarde fará o Padre António Vieira, Las Casas denuncia a declaração da inferioridade dos índios como um artifício para compatibilizar a mais brutal exploração com o imaculado cumprimento dos ditames da fé e dos bons costumes. Pese embora o brilho de Las Casas, foi o paradigma de Sepúlveda que prevaleceu. Porque só esse era compatível com as necessidades do novo sistema mundial capitalista e colonial, centrado na Europa. No terreno concreto da missionação, dominaram quase sempre as ambiguidades e os compromissos entre os dois paradigmas. O padre José de Anchieta é talvez um dos primeiros exemplos. Tendo repugnância pela antropofagia e pela concupiscência dos brasis, «gente bestial e carniceira», o padre Anchieta acha legítimo sujeitar os gentios ao jugo de Cristo que «assim (…) serão obrigados a fazer, por força, aquilo a que não é possível levá-los por amor»4, ao mesmo tempo que de Roma os seus superiores lhe recomendam que evite atritos com os portugueses, «pelo que importa mantê-los benévolos»5. Mas, por outro lado,

tal como Las Casas, Anchieta embrenha-se no conhecimento dos costumes e das línguas indígenas e vê nos ataques dos índios aos portugueses o castigo divino «pelas muitas sem-razões que têm feito a esta nação, que dantes eram nossos inimigos, salteando-os, cativando-os, e matando-os, muitas vezes com muitas mentiras e enganos»6. Quase vinte anos depois, haveria Anchieta de se lamentar que «a maior parte dos índios, naturais do Brasil, está consumida, e alguns poucos, que se hão conservado com a diligência e trabalhos da Companhia, são tão oprimidos que em pouco tempo se gastarão7. Com matizes vários, é o paradigma de Sepúlveda que ainda hoje prevalece na posição ocidental sobre os povos ameríndios e os povos africanos. Apesar de expulsa das declarações universais e dos discursos oficiais, é, contudo, a posição que domina as conversas privadas dos agentes do Ocidente no Terceiro Mundo, sejam eles embaixadores, funcionários da ONU, do Banco Mundial ou do Fundo Monetário Internacional, cooperantes, empresários, etc. É esse discurso privado sobre pretos e índios que mobiliza subterraneamente os projectos de desenvolvimento, depois enfeitados publicamente com declarações de solidariedade e direitos humanos.

4 Carta de 1.10.1554, em Obras Completas, volume 6: 79. 5 Carta do general Everardo para o padre José Anchieta, de 19 de Agosto de 1579. Em Obras Completas, volume 6: 299. 6 Carta de 8 de Janeiro de 1565, em Obras Completas, volume 6: 210. 7 Carta a 7 de Agosto de 1583, em Obras Completas, volume 6: 338.

SANTOS, Boaventura de Sousa.

A Gramática do Tempo – para uma nova cultura política – Para um novo senso comum. A ciência, o direito e a política na transição paradigmática. Porto: Edições

Maximiliano de Wied-Neuwied, «Caçador surpreendendo araras no Rio Grande de Belmonte» (Outubro de 1816). Aguarela e pena. Colecção Robert Bosch, Stuttgart

Afrontamento, 2006, volume 4, cap. 5, pp. 173-175.


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As sociedades ameríndias da floresta tropical Jorge Couto

«Mappa do Continente da Colonia do Sacramento, Rº. Grande de S. Pedro the a Ilha de S. Catharina com a Linha divizoria da Arraya ajustada pelo Tratado de Limites Celebrado entre as Corôas de Portugal e Castela em o anno de MDCCL», posterior a 1750. Biblioteca Pública Municipal do Porto



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1 Cf. Aryon Dall’Igna RODRIGUES, Línguas Brasileiras. Para o conhecimento das línguas indígenas, São Paulo, 1987, pp. 41-98. 2 Cf. Alfred MÉTRAUX, La Civilisation Matérielle des Tribus Tupi-Guarani, Paris, 1928, p. 312. 3 Cf. Aryon Dall’Igna RODRIGUES, «A Classificação do Tronco Linguístico Tupi», in Revista de Antropologia (São Paulo), 12 (1964), pp. 103-104. 4 Donald W. LATHRAP, O Alto Amazonas, trad. port., Verbo, Lisboa, 1975, pp. 81-84.

Ao longo do milenar processo de povoamento do território que viria a denominar-se Brasil, verificou-se uma progressiva diferenciação linguística e civilizacional entre os descendentes dos primitivos povoadores. Por volta de 5000 anos A.P. (Antes do Presente), registou-se um acentuado crescimento demográfico e ocorreram diversos movimentos migratórios que estiveram na origem do aparecimento de grupos populacionais crescentemente individualizados. Os ameríndios, que se fixaram no espaço brasílico e nas imediações das suas actuais fronteiras, são agrupados, de acordo com critérios linguísticos, do seguinte modo: troncos (Macro-Tupi e Macro-Jê); grandes famílias (Caribe, Aruaque e Arauá); famílias menores situadas a norte do Amazonas (Tucano, Macú e Ianomámi) e famílias menores estabelecidas a sul do mesmo rio (Guaicurú, Nambiquára,Txapacúra, Páno, Múra e Catuquína), bem como grupos isolados (Aricapú, Auaquê, Irántche, Jabutí, Canoê, Coiá, Trumai e outras)1. O tronco Macro-Tupi é constituído por sete famílias (Tupi-Guarani, Mundurucu, Juruna, Ariquém, Tupari, Ramarama e Mondé) que se dividem em vários grupos (línguas) e subgrupos (dialectos). Refira-se, a título exemplificativo, que o subgrupo Guajajara pertence ao grupo Teneteára, integrado, por sua vez, na família Tupi-Guarani, um dos sete ramos do Macro-Tupi. Desde o século XIX têm sido desenvolvidas diversas tentativas, iniciadas por Carlos Frederico von Martius (Leipzig, 1867), para determinar o centro de dispersão da família Tupi-Guarani. Segundo Alfred Métraux, esse local situava-se na região limitada a norte pelo Amazonas, a sul pelo rio Paraguai, a este pelo rio Tocantins e a oeste pelo rio Madeira2. Por seu turno, Aryon Dall’Igna Rodrigues, baseado em elementos linguísticos e no método da glotocronologia, aponta a zona do rio Guaporé (alto Madeira) como centro de difusão dos falantes do tronco Macro-Tupi há 5000 anos A.P., sugerindo que a separação da família Tupi-Guarani ocorreu ao redor de 2500 anos A.P.3.

Apoiados na análise comparativa das características da cerâmica amazónica e tupi-guarani e em estudos de natureza linguística, diversos antropólogos e arqueólogos (Evans, Meggers, Lathrap) defendem que o centro de diferenciação do tronco Macro-Tupi deve ser procurado na Amazónia. O último autor considera acertado localizar «a zona de origem da comunidade de idiomas prototupi-guarani na margem sul do Amazonas, um pouco abaixo da confluência do rio Madeira» (há cerca de 5000 anos A.P.), apontando a foz do Amazonas como área de dispersão, ao redor de 2500 anos A.P., dos falantes da «protolíngua tupi-guarani propriamente dita»4. Uma tese datada de 1982 e baseada nos métodos da glotocronologia sugere que o tronco Macro-Tupi teve a sua origem, por volta de 5000 anos A.P, na região situada entre os rios Jiparaná e Aripuanã, tributários da margem direita do rio Madeira, um dos afluentes do baixo Amazonas. Os recursos alimentares fornecidos pela borda meridional amazónica – zona de florestas entrecortadas de cerrados – terão possibilitado aos grupos de caçadores-recolectores do tronco Macro-Tupi, no período compreendido entre 4000 a 2000 anos A.P., um importante acréscimo da densidade populacional que esteve na origem de um primeiro movimento de expansão geográfica e de diferenciação linguística que os conduziu a leste até ao alto Xingu, a oeste ao alto Madeira e a sul ao rio Guaporé, processo de que resultou a formação das sete famílias deste tronco e, consequentemente, a individualização dos Tupi-Guarani. Nesta fase, é altamente provável que tenham adquirido e desenvolvido as técnicas da domesticação de plantas, da fabricação de cerâmica, da confecção da rede-de-dormir e da navegação fluvial. Por volta do início da Era Cristã, o crescimento demográfico e os efeitos de um persistente surto de seca que afectava, desde cerca de 3000 anos A.P., a floresta equatorial amazónica, bem como a generalidade do território brasílico, provavelmente obrigaram os Tupi-Guarani a buscar novos nichos ecológicos que proporcio-


nassem condições de subsistência adequadas a horticultores da floresta tropical e ceramistas: zonas de mata situadas na proximidade de cursos de água navegáveis; áreas pouco acidentadas, húmidas, pluviosas e quentes ou, no mínimo, temperadas. Pelo contrário, as regiões semiáridas, montanhosas ou frias nunca despertaram o seu interesse. As migrações destas populações levaram-nas a ocupar, sobretudo, a vizinhança das terras banhadas pelos mais importantes rios e a progredir para sul, alcançando, pelo interior, há cerca de 1800 anos, os férteis vales do Paraguai, Paraná, Uruguai e Jacuí, bem como dos seus afluentes. A partir dessa área, irradiaram, posteriormente, para leste, ocupando paulatinamente a orla marítima compreendida entre o Rio Grande do Sul e o Ceará5. Das importantes movimentações empreendidas pelos Tupi-Guarani no decurso da presente Era resultou, por volta dos séculos VIII-IX, a sua separação em dois grupos linguísticos distintos: o tupi («pai supremo, tronco da geração») e o guarani («guerra»). O primeiro abrange as populações que se instalaram ao longo da maior parte da região costeira tropical; o segundo engloba os grupos que estabeleceram o seu habitat na área subtropical – Mato Grosso do Sul, região meridional do Brasil, Paraguai, Uruguai e Nordeste da Argentina – após expulsarem os seus primitivos ocupantes, povos exclusivamente caçadores-recolectores précerâmicos, tecnologicamente inferiores e criadores de indústrias líticas designadas por «Tradição Humaitá»6. Os Prototupi apropriaram-se das terras mais quentes da faixa atlântica, dedicando-se à cultura da mandioca amarga, enquanto os Protoguarani colonizaram as terras temperadas, especializando-se no cultivo do milho7. O processo de diferenciação dos Tupiguarani repercutiu-se, também, nas tradições cerâmicas, tendo os Tupi desenvolvido a «subtradição pintada», e os Guarani a «subtradição corrugada». Uma proposta de reconstrução das migrações Tupi-Guarani – elaborada a partir dos resultados de investigações linguísticas, etnográficas e arqueológicas – adian-

ta que a separação entre os Prototupi e os Protoguarani se terá verificado, há cerca de 2500 anos A.P., numa área situada entre a foz do rio Madeira e a ilha de Marajó. Uma forte pressão demográfica teria impelido os Protoguarani para sul, através dos cursos dos rios Madeira e Guaporé, chegando, por volta do início da presente Era, ao sistema fluvial Paraná-Paraguai-Uruguai. Os Prototupi, por seu turno, estabelecidos na bacia amazónica, ter-se-iam fragmentado em vários subgrupos que, entre os séculos VI-XI, ocuparam paulatinamente o litoral até às proximidades do Trópico de Capricórnio, onde depararam com os Guarani. Iniciaram, então, a penetração no planalto meridional, estabelecendo-se a fronteira entre os dois grupos linguísticos ao sul do curso do Tietê8. O modelo explicativo mais recente sobre a origem e dispersão do tronco Macro-Tupi – que utiliza o método da reconstrução desenvolvido na linguística comparativa para determinar as relações genéticas entre as línguas e, desse modo, elaborar as respectivas árvores genealógicas – defende a hipótese de que este tronco linguístico teve o seu berço algures na região delimitada pelos afluentes orientais do Madeira e as cabeceiras dos rios Tapajós e Xingu, em áreas de altitudes da ordem dos 200 a 1000 metros e, em média, acima dos 500 metros, eventualmente o chapadão dos Parecis. No período compreendido entre 5 a 3000 anos A.P., ter-se-á iniciado o processo de dispersão dessas populações, numa área localizada aproximadamente entre as nascentes dos rios Madeira e Xingu, de que resultou a individualização das sete famílias do tronco Macro-Tupi, entre as quais assumiu posição de relevo a Tupi-Guarani. Há cerca de 2000 a 3000 anos, ter-se-á verificado a primeira grande movimentação expansionista da família Tupi-Guarani, que provocou a migração dos Cocama e dos Omágua para norte, rumo à região amazónica, dos Guaiaqui para sul, em direcção ao Paraguai, e dos Xirionó para sudoeste, onde penetraram em território actualmente pertencente à Bolívia. Seguidamente, eclodiu a fase de separação do

5 Cf. Ernest C. MIGLIAZZA, «Linguistic Prehistory and the Refuge Model in Amazonia», in Biological Diversification in the Tropics, ed. de G.T. Prance, Nova Iorque, 1982, pp. 497-519. 6 Cf. Arno Alvarez KERN, «Les Groupes Préhistoriques de la région Sud-brésilienne et les changements des páleo-milieux: une analyse diachronique», in Revista de Arqueología Americana (Cidade do México), 4 (1991), pp. 101-121. 7 Cf. Pedro Ignácio SCHMITZ, «Migrantes da Amazónia: a tradição tupiguarani», in Arqueologia Pré-Histórica do Rio Grande do Sul, pp. 301-302. 8 Cf. José Proenza BROCHADO, «A Expansão dos Tupi e da Cerâmica da Tradição Policrômica Amazónica», in Dédalo (São Paulo), 27 (1989), pp. 65-82.


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9 Cf. GREG URBAN, «A História da Cultura Brasileira segundo as Línguas Nativas», in História dos Índios no Brasil, dir. de Manuela Carneiro da Cunha, São Paulo, 1992, pp. 92-100. 10 Cf. Estêvão PINTO, Os Indígenas do Nordeste, vol. I, São Paulo, 1935, pp. 115-117. 11 Cf. Idem, ibidem, pp. 136-137.

núcleo central, que levou os Pauserna e os Cauaib para oeste, os Oiampi para as Guianas, os Caiabi e os Camaiurá para o curso do Xingu, os Tapirapé e os Teneteára para as imediações da foz do Amazonas, e os Xetá para o extremo sul do Brasil. Depois do ano 1000 da nossa Era, ter-se-á verificado a última cisão da família Tupi-Guarani, dando origem aos grupos Tupi e Guarani9. Quando os tripulantes da armada de Cabral desembarcaram na Terra de Santa Cruz, os Tupi e os Guarani efectuavam denodados esforços para completar a conquista do litoral. Os seculares conflitos que se verificaram entre os vários grupos indígenas pela posse da faixa costeira foram provocados pela imperiosa necessidade de procurar dominar um nicho ecológico que fornecia alimentos abundantes, designadamente peixe, tartarugas, moluscos, crustáceos e sal, imprescindíveis para a dieta aborígene, sobretudo se se atender ao facto de que os recursos cinegéticos eram insuficientes para fornecer a quantidade de proteínas indispensável à sua conveniente nutrição. A ambição de uma comunidade ameríndia em exercer o domínio sobre uma região favorecida teria de se traduzir na conquista de uma parte da várzea amazónica ou da orla marítima. Naturalmente, ganhavam a disputa os grupos tribais mais coesos, numerosos e tecnologicamente mais bem apetrechados. Em 1500, os Tupi ocupavam a mais significativa parcela da zona costeira compreendida entre o Ceará e a Cananeia (São Paulo), e os Guarani, estabelecidos exclusivamente a sul do Trópico de Capricórnio, dominavam a faixa litorânea situada entre a ilha da Cananeia e a lagoa dos Patos (Rio Grande do Sul), além de importantes regiões no interior desse espaço. A reconstituição da distribuição espacial dos grupos tribais aborígenes ao longo do litoral brasílico, no final do século XV-início do século XVI, apresenta-se como uma tarefa problemática devido à escassez de elementos de origem indígena, à imprecisão dos testemunhos dos autores quinhentistas e à mobilidade das áreas fronteiriças decorrente do estado de guerra endé-

mica existente entre os diferentes grupos autóctones. Conjugando as informações fornecidas por várias fontes, é, contudo, possível traçar um quadro geral aproximativo das diversas «nações» ameríndias que controlavam a costa e os sertões adjacentes nos primórdios de Quinhentos. A orla marítima era ocupada, no sentido norte-sul, pelos seguintes grupos tribais: o Aruaque habitava o Norte desde a foz do Oiapoque (Amapá) até à costa paraense, incluindo o delta amazónico e as respectivas ilhas, designadamente a de Marajó (território do grupo aruã, «pacífico»)10; o Tremembé («alagadiço»), pertencente à família Cariri e ao tronco Macro-Jê, por seu lado, estava sobretudo fixado no Meio-Norte (Maranhão-Piauí), estendendo-se a sua área de influência das desembocaduras dos rios Gurupi (no limite sul do Pará) ao Camocim ou ao Mucuripe (Ceará)11. A partir, grosso modo, da foz do rio Jaguaribe (Ceará), entrava-se em território maioritariamente Tupi: os Potiguar («comedor de camarão») dominavam a zona costeira localizada entre aquele rio e o Paraíba; os Tabajara («senhor da taba») viviam no litoral situado entre o estuário deste curso de água e Itamaracá, e os Caeté («mata verdadeira») predominavam no trecho de costa compreendido entre este marco geográfico e a margem norte do rio de São Francisco (Alagoas). Nos sertões nordestinos (serras da Borborema, dos Cariris Velhos e dos Cariris Novos e vales do Acarajú, do Jaguaribe, do Açú, do Apodi e do baixo São Francisco), refugiaram-se os Cariri («silencioso»), pertencentes ao tronco Macro-Jê, após terem sido expulsos do litoral pelos Tupi. Numa parcela do interior cearense (sobretudo na serra de Ibiapaba), do Rio Grande do Norte e da Paraíba imperavam os tabajaras. Os Tupinambá («descendentes dos Tupi») ocupavam a costa desde a margem direita do São Francisco até à zona norte de Ilhéus, depois de terem vencido os seus anteriores habitantes; no entanto, a sua divisão em dois grupos rivais – o primeiro abarcando a área enquadrada pelos rios de São Francisco e Real (Sergipe), e o segundo senhoreando o litoral desde aí até ao Camamu –


deu origem a um estado de guerra permanente. Por outro lado, os moradores da região onde veio a ser edificada a vila do Pereira e, posteriormente, a cidade do Salvador eram inimigos dos habitantes das ilhas de Itaparica e Tinharé e da costa norte de Ilhéus, situação que provocava acesos combates entre aqueles bandos. Nos sertões baianos fixaram-se os Tapuia, os Tupina e os Amoipira («os da outra banda do rio»), um ramo segregado dos Tupinambá, após terem sido derrotados em sucessivas guerras quer entre si, quer com os Tupinambá. Aí viviam, também, os Ibirajara («senhor do pau»), pertencentes ao grupo Caiapó da família Jê. Do estuário do Camamu (a norte de Ilhéus) até ao do Cricaré ou São Mateus (Espírito Santo), as zonas litorâneas pertenciam aos Tupiniquim («colaterais dos Tupi») que, contudo, se debatiam com as duras investidas dos Aimoré (vocábulo tupi que designa uma espécie de macacos), pertencentes à família Botocudo (Macro-Jê), que lhes disputavam o território. Nos sertões de Porto Seguro e do Espírito Santo viviam os Papaná, que foram forçados a abandonar o litoral devido aos ataques dos Tupiniquim e dos Aimoré. Os Goitacá («nómadas») provinham do tronco Macro-Jê e viviam no trecho de costa compreendido entre o rio Cricaré e o cabo de São Tomé, ocupando também o interior dessa região. A área costeira fluminense, delimitada pelo cabo de São Tomé e Angra dos Reis, era controlada pelos Tamoio («avô») – outro ramo dos Tupinambá – que dispunham, ainda, de algumas povoações mais a sul: Ariró, Mambucaba, Taquaraçu-Tiba, Ticoaripe e Ubatuba. Todavia, ainda restavam nessa área alguns núcleos de Temiminó («netos do homem»), designadamente na ilha de Paranapuã ou dos Maracajá (actual ilha do Governador, na baía da Guanabara), que resistiam às constantes investidas dos seus implacáveis inimigos. O domínio do litoral paulista, localizado entre Caraguatatuba e Iguape-ilha Comprida, pertencia aos Tupiniquim que também viviam numa parcela do sertão. Os Guaianá («gente aparentada») predominavam na

Das importantes movimentações empreendidas pelos Tupi-guarani no decurso da presente Era resultou, por volta dos séculos VIII-IX, a sua separação em dois grupos linguísticos distintos: o tupi («pai supremo, tronco da geração») e o guarani («guerra»).


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zona de matas de pinheiro, a 300 metros de altitude, e na área de planalto correspondente à faixa que se estende de Angra dos Reis à Cananeia. Pertenciam à família Jê, devendo ser considerados antepassados dos actuais Caingangues. A partir da Cananeia, entrava-se no espaço dos Guarani e dos autóctones por eles assimilados ou «guaranizados» – conhecidos por diversas designações locais, nomeadamente Carijó, Tape, Patos e Arachã – que se estendia até à lagoa dos Patos, numa extensão de cerca de 80 léguas de costa. Estes tinham como vizinhos e adversários populações pertencentes aos grupos pampeanos: os Charrua, no Sudoeste, fixados em ambas as margens do rio Uruguai e respectivos afluentes, e os Minuano, no Sudeste, que detinham a posse do trecho de costa que se iniciava na lagoa dos Patos e alcançava o estuário platino (nas imediações do local onde, no século XVIII, viria a ser edificada a cidade de Montevideu). No decurso da longa luta pelo domínio do litoral, os Tupi-guarani – mais bem organizados, mais bem armados, dispondo das técnicas da agricultura de coivara e da cerâmica, bem como da construção de habitações, estruturas defensivas e canoas – derrotaram e expulsaram as populações que habitavam o litoral. Estas foram apodadas de Tapuia, vocábulo tupi que significa os «outros ou selvagens» e que era utilizado depreciativamente pelos vencedores com o sentido de «inimigos bárbaros». Esta denominação foi atribuída aos membros de todos os outros troncos linguísticos – sobretudo Jê – que ainda não tinham atingido o seu estádio civilizacional. Quando entraram em contacto com os portugueses, os Tupi transmitiram-lhes o seu menosprezo pelos povos Jê, tendo aqueles perfilhado idêntica posição e adoptado, inclusivamente, a expressão tapuia para designar todas as populações não pertencentes à família Tupi-Guarani. Os tapuias correspondiam, pois, na generalidade dos casos, às populações Jê. Os autores quinhentistas tinham clara consciência de que – anteriormente à chegada dos portugueses ao Brasil e até já depois do início da colonização – os gru-

pos tribais do ramo tupi, constituídos por sociedades de horticultores-caçadores-recolectores-pescadores, tinham derrotado e expulsado de grande parte do litoral brasílico os seus primitivos ocupantes, na sua maioria comunidades de caçadores-recolectores pertencentes ao tronco Macro-Jê, instalando-se nesses territórios. Estas sociedades caracterizavam-se pela prática de uma horticultura de raízes, pela importância vital da caça e da pesca, pela mudança periódica dos povoados, pela menor densidade populacional comparativamente com as sociedades de agricultura sedentária, bem como pela inexistência, na generalidade dos casos, de diferenciações sociais significativas, de tipos coercivos de organização do poder, do pagamento de tributos ou de formas institucionalizadas de religião. As populações que desenvolveram este modelo civilizacional estavam estabelecidas em largas faixas do Leste da América do Norte, no Norte do México, em algumas zonas da Colômbia e do Chile, nas ilhas ocupadas pelos Caribe e em grande parte da América do Sul, da Venezuela ao Paraguai. No litoral sul-americano – da costa caribenha da Colômbia até ligeiramente a sul do estuário platino (Argentina) – predominavam as sociedades semi-sedentárias, ou seja, comunidades de horticultores-caçadores-recolectores-pescadores que baseavam o seu modo de subsistência no cultivo intensivo de raízes, sem recurso à utilização do arado ou de adubos que são característicos da agricultura sedentária, na caça, na pesca, na colecta de animais, vegetais e matérias-primas, adoptando um padrão cultural chamado «cultura da floresta tropical». A generalidade dos grupos tribais da floresta tropical especializou-se na horticultura de raízes ou agricultura de coivara («ramos secos que ficam nas terras depois de roçadas») caracterizada pelo cultivo através de mudas e não por semeadura. Na escolha das terras destinadas ao cultivo, davam preferência aos solos argilosos e a áreas com declives, de modo a permitir a drenagem da água e a evitar o apodrecimento das raízes.


As tarefas de preparação da mata para o cultivo exigiam grande esforço. Na época da estiagem, efectuava-se a limpeza preliminar, recorrendo-se a machados de pedra para cortar os arbustos. A etapa seguinte – passados dois meses para secar a lenha – consistia na queimada, geralmente em forma de círculo, fazendo fogueiras em torno das grandes árvores. Esta etapa ocorria antes das primeiras chuvas. Seguidamente, empregavam-se «bastões de cavar» (paus pontiagudos) para rasgar o solo e cavavam-se buracos, onde eram enterradas as mudas, recobrindo-os de terra. A área desmatada era dividida em parcelas distribuídas pelas famílias nucleares e cultivada, em média, durante três a quatro anos, sendo abandonada ao fim desse tempo. Deixava-se à natureza a tarefa de regenerar a cobertura vegetal destruída (processo que demorava entre 20 e 100 anos), repetindo-se o mesmo procedimento noutro trecho da floresta. As espécies cultivadas variavam conforme as condições ecológicas. Os Tupi, que habitavam na faixa tropical, optaram pela mandioca, os Guarani, que colonizaram as terras subtropicais, preferiram o milho, e, nas regiões de planalto, os Jê cultivavam o amendoim. Além destes alimentos básicos, plantavam feijão, batata-doce, cará (inhame), jerimum (abóbora) e cumari (pimenta). Entre as plantas não alimentares, destacavam-se a purunga (cabaça), o jenipapo e o urucu (corantes), o algodão e o tabaco. A caça era mais abundante e diversificada nas proximidades de rios e lagoas – devido à abundância de alimentos – do que nas matas afastadas de cursos de água, relativamente pobres, pelo que os Ameríndios caçavam, nas zonas mais ricas, uma grande variedade de animais, nomeadamente antas, pacas, capivaras, cutias, caititus, queixadas, veados, preguiças, tamanduás, tatus, além de onças, macacos, aves e répteis. Entre os métodos de caça utilizados, figurava o mutá, posto de observação construído em árvores altas, até cerca de 15 metros do solo, onde se instalavam os caçadores, aguardando a passagem dos animais para os atingir com flechas. Outra das téc-

nicas empregues era o mundéu, armadilha que consistia em covas escavadas nos trilhos, recobertas de ramos e folhas, ou numa estacada de pau a pique, com uma só entrada dotada de um dispositivo que se fechava quando a presa lá entrava. Destinava-se a capturar as espécies de maior porte, designadamente a onça-pintada. Recorriam, ainda, à caça com laço e à utilização do fogo para forçar os animais a sair das tocas. Os aborígenes procuravam atrair a benevolência dos seres sobrenaturais, com o objectivo de garantir o sucesso da caçada. Utilizavam práticas mágicas como, por exemplo, esfregar o corpo com determinados vegetais ou ingerir infusões adequadas ao tipo de fauna que pretendiam abater. Os guerreiros Tupi apreciavam sobremaneira a ingestão da carne de espécies velozes, pois acreditavam que, ao comê-la, absorveriam a agilidade do animal abatido, rejeitando incluir na sua alimentação carne de espécies lentas. Quando habitavam na faixa costeira ou nas margens dos rios e das lagoas, os Ameríndios preferiam as actividades piscatórias que lhes davam abundantes e concentradas quantidades de peixe, moluscos e crustáceos, obtidas com menor dispêndio de energia e em menos tempo do que os exigidos pela caça. Os Tupi tinham predilecção pelo parati (tainha), que desova nos rios no mês de Agosto, época que aproveitavam para o capturar em grandes quantidades. Pescavam numerosas espécies de água salgada e doce e abatiam baleias e tubarões quando estes penetravam nos rios ou encalhavam na costa. Desenvolveram várias técnicas de pesca, que se revestiam de carácter essencialmente colectivo. Uma das mais eficientes consistia em utilizar venenos vegetais, nomeadamente o timbó, que atordoa e asfixia os peixes, solução que se transformou num hábito cultural profundamente arraigado nas populações indígenas da América do Sul. A eficácia deste método é atestada por um testemunho quinhentista que informa que, numa única operação desse tipo, eram «apanhados mais de doze mil peixes grandes».


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Em 1500, os Tupi ocupavam a mais significativa parcela da zona costeira compreendida entre o Ceará e a Cananeia (São Paulo), e os Guarani, estabelecidos exclusivamente a sul do Trópico de Capricórnio, dominavam a faixa litorânea situada entre a ilha da Cananeia e a lagoa dos Patos (Rio Grande do Sul), além de importantes regiões no interior desse espaço.

Uma variante mais complexa assentava na organização de pescarias nocturnas, atraindo os cardumes com archotes de facheiro, atordoando-os, em seguida, com essas plantas. Outra das técnicas consistia na construção de armadilhas nos perequês («estuário onde os peixes se reúnem para a desova»). Na época da piracema, em que os grandes cardumes migratórios penetravam nos rios, vedavam o piraiquê («entrada do peixe»), local de confluência das águas doce e salgada, e edificavam, com varas e esteiras, na altura da maré vazante, um pari (barragem com 3 metros de altura e 40 de comprimento). Cercavam o peixe, que era obrigado a vir à tona pela acção dos venenos, sendo, então, capturado em larga escala. Individualmente, os Tupi pescavam nas margens dos rios de águas claras e à beira-mar, utilizando arco e flechas, algumas das quais com ponta de osso, e a pindaíba («vara de pescar»). Utilizavam matérias-primas vegetais na confecção de cordões, cordas, fios, espremedores de polpa de mandioca (tipiti), peneiras, abanadores de fogo, esteiras, diversos tipos de cestos, gaiolas e armadilhas de pesca. Usavam os frutos da purunga que, depois de secos, serviam para o fabrico de cuias (cabaças) e de maracás (objectos mágico-religiosos). Seleccionaram variedades de algodão sul-americanas para a confecção da rede-de-dormir, difundindo o seu uso em todas as regiões por onde se expandiram. A cerâmica desempenhou um papel essencial na evolução civilizacional dos grupos indígenas, permitindo-lhes a preparação e conservação de alimentos. Dominavam a técnica da manufactura (com cozedura efectuada a céu aberto, sendo os objectos colocados directamente sobre a fogueira). A cerâmica tupi-guarani caracterizava-se pela técnica do alisado simples e pela pintura policroma com linhas vermelhas e pretas sobre fundo branco. Entre os utensílios produzidos, destacavam-se as grandes igaçabas (potes). Escolhiam madeiras leves para a feitura de jangadas e canoas. Algumas destas eram


de grandes dimensões (mais de 30 metros), sendo escavadas em troncos de árvore. Recorriam sobretudo ao ipê para fazer arcos, confeccionando as cordas com fibras vegetais longas de folhas de tucum ou casca de embaúba. Para as flechas, usavam normalmente ubá, sendo as pontas feitas de taquara (uma espécie de bambu), osso ou dentes aguçados (preferencialmente de tubarão), e o tacape (semelhante a uma clava ou maça) com madeira dura de jucá. Com o objectivo de tornar comestível a raiz da mandioca amarga, os Tupi sujeitavam-na a um complexo tratamento destinado a eliminar o ácido cianídrico. A polpa era espremida no tipiti (prensa destinada a extrair a água que continha a substância venenosa), amassada e, depois, assada ou torrada em grandes recipientes circulares de barro. A mandioca doce (aipim) era normalmente comida depois de descascada e assada directamente nas brasas. Os Guarani preferiam o milho, ingerindo-o cozido ou assado, procedendo também à secagem do grão maduro e inteiro. Comiam normalmente peixe fresco, depois de fervido em água. No entanto, podiam também consumi-lo moqueado, ou seja, cozinhado numa grelha confeccionada com varas de madeira verde (moquém). A carne era geralmente grelhada, constituindo excepção a da anta, que era cozida. Misturavam sal com pimenta e tomavam uma pitada dessa massa (juquiraí) sempre que ingeriam uma porção de alimento. Confeccionavam uma bebida – o cauim – a partir do aipim, do milho, da batata-doce, de seiva de palmeiras e de frutas (ananás e caju). Esta tarefa era cometida às moças que, após a cozedura da matéria-prima, a mastigavam, desencadeando, através da saliva, o processo de fermentação. Apresentava um aspecto turvo e espesso como borra, sendo consumida morna. Da dieta alimentar tupi-guarani faziam, ainda, parte frutos silvestres como maracujá, jabuticaba, araçá, cajá e mangaba, além de mel, ovos de pássaros, larvas, gafanhotos, abelhas e formigas. Nas sociedades ameríndias da floresta tropical, em que imperava a nudez, o corpo

era interpretado como uma marca, sendo, por conseguinte, objecto de uma particular atenção. As pinturas protegiam dos raios solares e das picadas dos insectos. Além disso, a ornamentação corporal possuía uma linguagem simbólica, sendo certos padrões específicos do género e de grupos de idade, facto que revelava o estatuto do seu detentor.Acrescentavam, assim, uma segunda «pele» ao indivíduo: a social, que se sobrepunha à biológica. Os corantes mais usados eram o jenipapo (azul-escuro que, com a exposição ao sol, se torna preto) e o urucu (vermelho). Como o corpo humano era o lugar privilegiado para inscrições, os guerreiros eram escarificados no peito, nos braços, nas coxas e na barriga das pernas, marcas visíveis da sua valentia na guerra e na execução ritual de prisioneiros. A arte plumária constituía a mais importante expressão artística das populações da floresta tropical, tendo funções míticas, estéticas e rituais e contribuindo para a personalização do corpo. Os guerreiros prestavam particular atenção aos adornos plumários (diademas, coroas, toucados e coifas), cujos pássaros doadores (papagaios, araras, tucanos, canindés, etc.) e respectivas cores continham importantes cargas simbólicas. Os grandes chefes usavam, por vezes, mantos de penas, sendo conhecidos os de guará (íbis-rubra). As sociedades indígenas da floresta tropical adoptaram normalmente padrões de estabelecimento modestos, construindo núcleos pequenos e dispersos. A taba («aldeia») tinha, em geral, entre 4 e 8 ocas e 30 a 60 famílias nucleares. Nos aglomerados costeiros residiam, em média, 600 a 700 indivíduos, havendo, no entanto, variações regionais e tribais. Algumas dispunham de estruturas defensivas: as caiçaras («paliçadas»). A oca («morada actual»), grande casa comunitária, era edificada em círculo, disposta à volta de um terreiro, a algumas dezenas de metros das vizinhas, abrigando uma família extensa. Aí viviam, em média, entre 85 a 140 pessoas. Os padrões de fixação eram condicionados pelas condições de subsistência.


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Uma vez que a permanência das populações num local era temporária (cerca de três a quatro anos), a precariedade da instalação determinava, naturalmente, o tipo de materiais utilizados na edificação das habitações: madeira, cipós e folhas de árvore para as coberturas. Os Tupi construíam estruturas habitacionais elípticas ou rectangulares, sendo as ligações entre os troncos feitas com trançados de embira. Dispunham de três pequenas aberturas, sendo duas localizadas nas extremidades e uma no centro que dava para o terreiro. O comprimento variava entre 40 metros para as menores e mais de 160 para as maiores, oscilando a largura entre os 10 a 16 metros. Nas sociedades ameríndias, vigorava a divisão sexual do trabalho. Os homens executavam tarefas que implicavam esforço intenso, bem como actividades arriscadas. Às mulheres competiam os trabalhos produtivos, de recolecção, domésticos e de apoio nas expedições guerreiras terrestres ou marítimas. As bases da organização das comunidades ameríndias assentavam na família extensa, constituída por várias famílias nucleares que estavam ligadas entre si por laços de parentesco. Encontravam-se subordinados ao patriarca da oca: o principal. Verificava-se a existência da poligamia. No entanto, somente um reduzido número de indivíduos (o chefe, o feiticeiro e os grandes guerreiros) possuía várias mulheres, constituindo o seu número sinal de prestígio. O casamento avuncular, ou seja, do tio materno com a sobrinha, era a modalidade preferida pelos Tupi, sendo também comum entre primos cruzados. A regra residencial mais difundida era a da patrilocalidade (a esposa ia viver na oca do marido ou do sogro), favorecendo, assim, a forma patrilinear de descendência. Estas sociedades desenvolveram uma estrutura social com um reduzido grau de diferenciação, tendo, todavia, gerado alguns tipos de hierarquias. Verificava-se a existência de acentuadas tendências comunitárias e de fortes laços de solidariedade. Os Tupi-guarani adoptaram como forma de organização dominante o grupo

local (correspondente a uma taba), que se situava numa posição intermédia entre a menor unidade vicinal (a oca) e o agrupamento territorial mais abrangente (o grupo tribal). Uma das características essenciais das sociedades tupi residia na falta de poder dos morubixabas («chefes»), bem como na inexistência de métodos coercivos. Os líderes desempenhavam as suas funções com base na persuasão, não podendo recorrer à ameaça do uso da força. Para o exercício da função de morubixaba, exigiam-se diversos requisitos, entre os quais se contavam a valentia, a ponderação, a generosidade, a posse de dotes oratórios («senhor da fala»), a pertença a uma parentela poderosa e a aceitação favorável junto dos guerreiros da aldeia. As atribuições dos chefes eram muito reduzidas em tempo de paz, ganhando maior relevo em período de guerra. A instituição política básica era o «conselho dos chefes», formado pelo morubixaba, pajé, chefes das ocas e guerreiros prestigiados. Este órgão, frequentemente designado por «roda de fumadores», tomava as decisões mais importantes referentes à taba: mudança de local de residência, organização de expedições guerreiras, definição da rede de alianças e fixação da data para a execução ritual dos prisioneiros. Nas sociedades Tupi-guarani, o complexo guerra-vingança-antropofagia desempenhava papel central, sendo a guerra a sua instituição fundamental. As decisões sobre a realização de expedições guerreiras destinadas a conquistar habitats privilegiados, superar tensões internas ou capturar inimigos eram alvo de cuidada ponderação. Os atacantes percorriam grandes distâncias por terra, rio ou mar até encontrarem uma taba inimiga. Escolhiam, normalmente, a lua cheia para efectuar o último trecho do percurso ao luar, desencadeando a investida ao alvorecer. Recorriam a diversos métodos para forçar os defensores a abandonar as paliçadas. Um deles consistia em atar mechas incendiárias (feitas de algodão embebido


em cera) às flechas que eram disparadas contra as coberturas das ocas. Outra táctica consistia em acender fogueiras onde lançavam pimenta, formando nuvens de gases tóxicos. Nos combates só podiam participar os homens pertencentes ao grupo Ava (a partir dos 25 anos). Primeiro, disparavam nuvens de flechas e, seguidamente, atacavam com grande algazarra, batendo com os pés e tocando buzinas ou instrumentos confeccionados com ossos humanos (braços e tíbias), tanto para excitar o ânimo dos atacantes como para amedrontar os defensores. Na luta corpo a corpo, utilizavam sobretudo o tacape, arma com que procuravam esmagar o crânio do inimigo. A antropofagia era uma prática corrente entre os Ameríndios, designadamente entre os Tupi-guarani. O cativo desempenhava um papel primordial nas relações interaldeias, devendo ser exibido nas povoações vizinhas. Geralmente, as tabas aliadas eram convidadas a participar no banquete canibal, transformando-o numa manifestação colectiva que consolidava as alianças. Na data aprazada, dava-se início à cauinagem, que geralmente durava três dias, acompanhada de cantos e danças. Este acto festivo antecedia o ritual antropofágico. Ao alvorecer do dia escolhido, o prisioneiro era lavado, enfeitado e amarrado pela cintura com a mussurana (corda grossa de algodão), sendo seguidamente conduzido ao centro do terreiro, onde se encontravam reunidos os convivas. Chegado o executor, profusamente enfeitado, recebia cerimonialmente o ibirapema (tacape cerimonial) com o qual iniciava uma dança junto do cativo, imitando as evoluções de uma ave de rapina.Terminada a gesticulação, o algoz e a vítima travavam um curto diálogo, findo o qual o executor esmagava o crânio do inimigo. Abatido o prisioneiro, escaldavam-no para lhe retirar a pele e esquartejavam-no. Algumas partes do corpo (braços e pernas) eram moqueadas, sendo as vísceras aproveitadas para fazer um cozinhado. Existiam regras para a distribuição do corpo da vítima, que era integralmente aproveitado.

A visão cosmológica dos Tupi-guarani não atribuía a formação do Universo a um ser supremo, concebendo, antes, esse processo como resultante de sucessivas acções parciais e incompletas. As actividades criadoras de Monan e Maír teriam sido prosseguidas por heróis-civilizadores – poderosos pajés e ancestrais míticos detentores de poderes transformadores especiais – transmissores de técnicas, ritos e regras sociais que permitiram aos homens ultrapassar o estado de bestialidade. Entre estes, destacava-se Sumé, a quem era atribuída a instituição da agricultura de coivara e da organização social. Outra personagem mitológica importante era Tupã, associado ao raio e ao trovão. Davam particular ênfase aos mitos cósmicos de sucessivas destruições do Mundo, pelo fogo ou pela água, conhecendo-se diversas versões do dilúvio. Acreditavam na possibilidade de uma parcela do ser encontrar, após a morte, o Guajupiá («aldeia das almas»), situado para além das altas montanhas. Um papel fulcral era desempenhado pelos homens que desempenhavam funções mágico-religiosas. Os pajés, munidos do maracá (cabaça decorada que imitava o rosto humano, atravessada por uma vareta, com sementes ou pedras que serviam de chocalho, funcionando como receptáculos das vozes dos espíritos e reproduzindo-as através do seu ruído), tratavam os doentes com ervas medicinais e com esconjuros, nomeadamente através do bafejo com tabaco, para afastar os espíritos. Efectuavam, também, profecias, recorrendo ao transe induzido pela intoxicação com tabaco.


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Vasco Fernandes e a visão do Índio Bom: sinais de antropocentrismo no Calvário da Sé de Viseu Vítor Serrão

Calvário, de Vasco Fernandes, c. 1535-40, óleo sobre madeira, 2423 x 2393 mm. Museu de Grão Vasco, Viseu, Portugal



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Generalizou-se a ideia de que a imagem com que os europeus do século XVI viram os índios americanos foi sempre negativa. Na realidade, e pesem os termos com que Pêro Vaz de Caminha se lhes refere na sua célebre carta ao rei de Portugal, em Abril de 1500 (mas só no século XIX dada a conhecer à comunidade científica), o índio cedo deixaria de ser entreolhado como essa pessoa afável, solidária e, em consequência, cristianizável, com que o cronista da viagem de Pedro Álvares Cabral o descreveu. Assim, o índio seria, por natureza, um primitivo, isto é, um indomável bárbaro, antropófago e poligâmico, vivendo em estado de nudez, ou seja, um ser não integrável e sem alma. As estampas abertas nos livros quinhentistas, ou divulgadas por séries de gravados um pouco por toda a Europa, multiplicaram essa imagem do índio como selvagem preso a ritos tribais e a práticas troglodíticas e quase uma espécie de demónio. O grande painel do Calvário, exposto no Museu Grão Vasco em Viseu, vem contrariar de maneira taxativa esta visão do índio brasileiro e, ao integrar na simbologia do Bom Ladrão uma figuração de índio, mostrar que uma outra imagem, radicalmente oposta àquela, tinha espaços de adesão e ganhara foros de credibilidade nos meandros do Humanismo português. Trata-se por isso, também, de um dos aspectos que mais valoriza essa peça, já de per se uma das pinturas fundamentais para a compreensão, não só do universo artístico do seu autor, Vasco Fernandes (c. 1475-1542), mas um dos mais significativos testemunhos da plena adesão da cultura portuguesa do segundo quartel do século XVI aos valores clássicos italianos. Como é timbre das melhores obras do Renascimento internacional, trata-se de uma pintura eloquente, isto é, de uma peça de culto que visava tocar diversos públicos, assumir vários discursos e intervir num debate intemporal, projectado em outros tempos. O modo flagrante como a personagem do Bom Ladrão representado neste quadro se transmuda em índio brasileiro, ou seja, como uma espécie de elemento positivo que encarna a bondade inata e a possibilidade de missão evangélica à escala dos Novos Mun-

dos, revela os propósitos de afirmação ideológica no seio das humanae litterae que, sob estímulo da Renascença e dos princípios neoplatónicos, viam nos povos primitivos contactados pelo processo das Descobertas portuguesas uma marca de dignidade da Criação e uma forma eficaz de, através do achamento de novas terras, se alargar a família cristã a outras comunidades de povos. Neste quadro pintado cerca de 1535, o artista representou o Gólgota, a cena mais transcendente da Paixão de Cristo, em composição de escala monumental, estruturada pela distribuição vertical das três cruzes. Ao centro, uma admirável figuração de Jesus Cristo sofredor, à hora de expirar, aparece ladeado por um Mau Ladrão, à direita, visto como um rebelde praguejador e, à esquerda, sofrendo de igual modo o suplício da crucifixão, um sereno e benfazejo Bom Ladrão, representado por um índio brasileiro, imagem obviamente alusiva à bondade inata dos povos pré-colombianos, desprovidos da mancha do pecado original. A ocupar o espaço envolvente, duas dezenas de figuras dispostas em vários planos e formando grupos autónomos, desde os soldados romanos, a cavalo, à Virgem Maria, com as Santas Mulheres e o apóstolo São João, chorando em desespero, aos soldados romanos, de joelhos, que disputam a túnica de Jesus, jogando-a aos dados, a figurações de judeus assistentes, um deles bebendo vinho de um pichel. Num plano afastado à direita, o suicídio de Judas Iscariotes, com um diabo voador prestes a tomar-lhe a alma. Num segundo plano, à esquerda, desenha-se uma cidade acastelada com altas torres e cúpulas de arquitectura fantasista. O céu é representado com nuvens carregadas, ameaçando tempestade iminente. A presença do índio como Bom Ladrão mostra que o pintor Vasco Fernandes, e quem lhe encomendou a obra, dispunham de uma sólida visão humanística em relação aos povos antediluvianos, na crença de que se tratava de «gentes desprovidas de pecado original» e, por isso, sinal benfazejo de sentimentos apropriáveis para a causa do cristianismo. O cuidado com que o painel explora níveis múltiplos de leitura é deveras significativo. Dir-se-ia que estamos a ouvir as palavras de Caminha: «Parece-me


gente de tal inocência que se os homens entendessem, e eles a nós, que seriam logo cristãos, porque eles não têm, nem entendem em nenhuma crença, segundo parece (…), que se hão-de fazer cristãos e crerem em nossa santa fé porque (...) esta gente é boa e de boa simplicidade. E imprimir-se-á ligeiramente neles qualquer cunho que lhes quiserem dar. E porque Nosso Senhor, que lhes deu bons corpos e bons rostos como a bons homens». A verdade é que, cerca de 1535, Vasco Fernandes e o encomendante da obra fizeram valer esta visão humanística do índio, espécie de bom selvagem avant la lettre, num reflectido assomo de renovação. Esse princípio já se manifestara, três decénios antes, num dos quadros do retábulo do altar-mor da Sé de Viseu (c. 1502-1505), onde um índio tupinambá emplumado surge na figura do Rei Mago negro, Baltazar, na Adoração dos Magos (Museu Grão Vasco), uma presença que pode ter sugerido ao artista esta provocatória solução carregada de intenções humanísticas. Trata-se de uma das mais cuidadas criações da antiga pintura portuguesa, e não é de estranhar, por isso, que o discurso ideológico deste Calvário fosse estudado ao pormenor. À organização segura do espaço acresce um grande domínio da ciência perspéctica e, sobretudo, uma capacidade de tratar expressões humanas, num pathos inflamado de sentimentos contraditórios que oscilam entre o drama e a indiferença, tocando ora a mágoa do sacrifício, ora a crueza dos homens e a intolerância dos poderes instituídos. O desenho é excelente, a paleta quente e luminosa, o naturalismo dos tecidos e adereços concorre para a força transcontextual que faz deste quadro um unicum, permanente revitalizável para a encantação dos nossos olhares. Mesmo que as suas funções primeiras tenham sido modificadas desde que os novos gostos do século XVIII alteraram a decoração da Capela de Jesus, mudando o quadro para a sacristia da Sé e, muito depois, para o Museu criado no contíguo Paço Episcopal, a pintura de Vasco Fernandes continua a desafiar o tempo com a sedução das suas formas e a convicção da sua doutrina imaginizada. A encomenda desta grandiosa obra deve-se a D. Miguel da Silva, bispo de Viseu designado em 1525 e que dirigirá a dioce-

se até 1540. Este bispo humanista, protector de Vasco Fernandes, é o responsável pelo ímpeto renovador que levou a velha cidade beirã a assumir-se como cenário de eleição para um desenvolvimento arquitectónico e urbanístico e para círculos de práticas de reflexão e debate humanístico, como o que se reunia nos jardins do palácio de Fontelo, sob inspiração do cultíssimo bispo, ele mesmo um amigo de Baldassare Castiglione, que não por acaso lhe dedicou o célebre Il Cortegiano. No âmbito da reforma que promove na Sé, D. Miguel da Silva levou a cabo a construção do novo claustro renacentista, em 1528, empregando um arquitecto por ele trazido de Itália, que pudera escolher quando assumira o cargo de embaixador de Portugal junto da Cúria romana. Francesco da Cremona, o autor do projecto, foi, de acordo com Rafael Moreira, muito inspirado na traça deste claustro da Sé de Viseu pelo famoso cortile do Palácio Ducal de Urbino, de Laurana e Francesco di Giorgio Martini. Obra de contradições e intensidades fulgurosas, o Calvário do Grão Vasco reúne em si o melhor do catecismo directo da tradição medieval, violenta e apocalíptica, que se revela na crueza com que é representado o suicídio de Judas e no pormenor em que a sua alma é tomada pelo demónio, e a força da novidade humanística no modo como o índio brasileiro incorpora, pleno da bondade e fraternidade cristãs, a figura do Bom Ladrão. Públicos distintos entendiam uma e outra mensagem e, por certo, as integravam nos seus discursos, debates e reflexões. Era um tempo em que o Humanismo cristão ainda tinha espaço para usar suportes figurativos de renovação nas práticas litúrgicas, ao contrário do que os ventos da Contra-Reforma iriam, a breve trecho, trazer. É por isso que o Calvário é uma das mais fortes peças da pintura portuguesa de todos os tempos: a expressividade das poses e o patetismo da expressão do sentimento religioso concorrem para captar uma dimensão de arrebatamento cósmico cheia de referências humanizadoras e de traços de tolerância. O pintor quis que a sua obra servisse como modelo para uma reflexão profunda sobre os mistérios da criação à luz da boa prática cristã.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS: -- Maria José GOULÃO, «Do Mito do Homem Selvagem à Descoberta do “Homem Novo”: a representação do negro e do índio na escultura manuelina», Portugal

e Espanha entre a Europa e Além-Mar, Actas do IV Simpósio Luso-Espanhol de História da Arte, Coimbra, 1988. -- Sylvie DESWARTE-ROSA,

Imagens e Ideias em Portugal na Época dos Descobrimentos, Lisboa, Difel, 1992. -- Joaquim Veríssimo SERRÃO (intr.), Carta de

Pero Vaz de Caminha, ed. Mar de Letras e ICEA (Instituto de Cultura Europeia e Atlântica), Ericeira, 2000. -- Manuel BATORÉO, «O índio na arte portuguesa do Renascimento», Actas do Colóquio

Da Visão do Paraíso à Construção do Brasil, II Curso de Verão da Ericeira, Mar de Letras, 2001, pp. 123-133. -- Dalila RODRIGUES,

Grão Vasco. Pintura portuguesa del Renacimiento (c. 1500-1540), Salamanca Ciudad Europea de Cultura, 2002. -- Vitor SERRÃO,

O Renascimento e o Maneirismo, vol. 3 da História da Arte em

Portugal, Ed. Presença, Lisboa, 2002.


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Doriselma fotografia de Grau Sierra Espriu texto de Roger Sogues Marco

Doriselma tem nove anos e passa parte do seu tempo livre a brincar no interior de uma velha casa, da qual apenas restam as paredes, correndo de um lado para o outro com os seus irmãos ou desenhando as coisas que a rodeiam: a sua família, a sua casa ou os campos em redor, mas grande parte do seu tempo é dedicado a ajudar a mãe nos trabalhos domésticos. Telma é a mãe de Doriselma e dos seus três irmãos e uma irmã. Sozinha, tem a seu cargo toda a família. Desde que o marido a deixou há três anos, teve de se desenvencilhar sozinha para poder alimentar e criar os filhos. Na comunidade onde vive, La Grandeza, no interior da Guatemala, as oportunidades de encontrar trabalho para sobreviver eram bastante escassas e, durante algum tempo, vendeu os pêssegos que as pessoas da aldeia lhe deixavam apanhar. Como Telma, muitas mulheres têm dificuldades em encontrar um trabalho que as ajude a sustentar as suas famílias. São poucas as oportunidades que surgem e são ainda menores para pessoas sem formação e com escassos recursos para obtê-la. Muitas destas mulheres, tal como Telma, foram abandonadas à sua sorte pelos maridos e todos os dias têm de fazer um enorme esforço para sustentarem os seus familiares. Os filhos de Telma passaram grandes dificuldades após a saída do pai. A família teve de se mudar para um outro sítio e construir uma pequena casa para albergar os cinco miúdos. Foram os seus filhos e a vontade de lhes dar uma vida melhor que levaram Telma a participar no programa de produção de alimentos da ONG espanhola Intervida, que actua na zona.

Doriselma. San Marcos, Guatemala (2006)



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Douro José Manuel Fajardo

Uma viagem que é também a descida de um rio paralelo de vinho, ao longo de quase mil quilómetros, onde se oferece ao paladar o carácter dos néctares da Ribera del Duero, Rueda,Toro, Tierra de Vinos, Los Arribes, Douro e Porto. Vinhos e gastronomia das terras de dois países unidos pela corrente do Douro, em torno da qual se enlaça também a vida dos seus habitantes. Rio Douro. Fotografia de Paulo Barata



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Há um silêncio de igreja no bosque. A furgoneta branca, amparada pelos ramos de um pinheiro majestoso, confunde-se com a neve que cobre as ladeiras dos Picos de Urbião. Não se pode avançar mais, o caminho é intransitável e à frente do carro só se vêem as pegadas do fotógrafo e outras mais pequenas, à beira do caminho, que parecem de casco de corço. Que procuram dois jornalistas e um cozinheiro em plena serra de Sória, debaixo de neve, nesta manhã cinzenta do primeiro frio invernal? A resposta parece simples: a nascente do rio Douro. É um velho projecto. Há muito tempo que Mitxel Vega, um palentino robusto radicado há mais de trinta anos na Biscaia, proprietário e cozinheiro do restaurante

Mas como todos os desejos, ao tornar-se realidade, este sonho viajante tem as suas surpresas e dificuldades

Egoki, sonha descer o rio Douro, desde os picos onde nasce até à foz, no Porto. Essa viagem é também a descida de um rio paralelo de vinho, ao longo de quase mil quilómetros, onde se oferece ao paladar o carácter dos néctares da Ribera del Duero, Rueda,Toro,Tierra de Vinos, Los Arribes, Douro e Porto. Vinhos e gastronomia das terras de dois países unidos pela corrente do Douro, em torno da qual se enlaça também a vida dos seus habitantes. Mas como todos os desejos, ao tornar-se realidade, este sonho viajante tem as suas surpresas e dificuldades. A primeira está aqui, no meio desta paisagem coberta de neve: é impossível encontrar a nascente do rio. A pequena bacia dos Picos de Urbião alimenta-se de uma infinidade de riachos, arroios e cascatas que acabam por formar um leito, sem que se possa determinar qual deles é o principal.

Como um desafio, o Douro anuncia, assim, que não está disposto a facilitar-nos a vida. Não foi em vão que o seu curso foi, outrora, fronteira, separando as terras cristãs das muçulmanas durante a Reconquista, sendo-o ainda hoje entre Espanha e Portugal. Na serra, o vinho ainda não está presente; é o bosque com os seus carvalhais e pinheirais que alimenta a indústria madeireira de vilas como Doruelo de la Sierra. E um pouco mais abaixo, antes de empreender a descida até às planícies do sul de Sória, Mitxel Vega recolhe na margem do rio uma estaca pintada de vermelho na ponta e atira-a à corrente a partir de uma das pedras que fazem de ponte rústica, na zona de Salduero. Enquanto a vê afastar-se, rio abaixo, murmura: «Recolho-a no Porto.» Desafio aceite. Depois de traçar uma ampla curva, para contornar a serra de Hinodejo, e passando a cidade de Sória, o Douro dirige, então, as suas águas para poente, pela planície que conduz aos vinhedos de El Burgo de Osma. Ali, no restaurante Virrey Palafox, uns feijões de El Burgo e um prato de lombo de cerdalí em escabeche («um cruzamento de porca e javali», como explica o criado de mesa) protegem os ossos do frio das neves dos Picos de Urbião. Um tinto de Penafiel, Ciancas crianza 1989, vem completar o trabalho calefactor e serve de breve apresentação dos vinhos da terra. Poucos quilómetros depois, a «buena ciudad» de San Esteban de Gormaz, como foi apelidada no Cantar del Mío Cid, emerge da névoa, à beira do Douro. Junto à ponte, um canal do século XII, o primeiro de Castela, acalma as suas águas perante o que parece ser um velho moinho, mas o ruído de maquinaria que dele emana revela que continua activo. Jaime García de Cárdenas, um economista descontraído e conversador, moleiro por tradição familiar, conta-nos que o moinho é fábrica de farinha desde 1916 e mostra-nos como o rio alimenta a turbina eléctrica da empresa. Falámos da Primeira Guerra Mundial, «que foi muito boa para a fábrica», das máquinas alemãs que utiliza e, claro, dos vinhos da Ribera del Duero: «Antes não tinham muita fama porque eram demasiado áspe-


ros, mas isso mudou. O único mal é que os preços subiram um pouco.» Não muito longe do moinho, abre as suas portas a Adega San José, a cooperativa da terra que é a primeira com denominação de origem Ribera del Duero que se encontra na província de Sória. Uma adega com vinte anos de idade, «a grande desconhecida», como lamenta o seu gerente, Carlos de la Rica. Nela se oferece um cenário que a partir daqui irá acompanhar-nos em quase toda a viagem: o espectáculo dos grandes e modernos depósitos metálicos onde se fermenta a uva da última colheita, e os barris de carvalho americano onde o vinho forma o seu carácter, pacientemente, à espera de se converter «em vinho de crianza, de reserva ou grande reserva, consoante o tempo que passe guardado no barril e na garrafa antes de ser posto à venda», segundo explica Jerónimo Saez, o presidente da cooperativa. Um processo útil, pelo qual o vinho envelhece graças à lenta oxidação através da porosidade da madeira de carvalho. A produção desta cooperativa são os vinhos comercializados com o nome de Doce Linajes: crianzas e um reserva de 1991. Seguir o curso do rio é mergulhar num vasto reino vinícola que submerge as suas raízes no tempo. Do século XIII ao século XVI, Ribera del Duero abasteceu de vinho todo o reino de Castela, e o seu vestígio preserva-se, ainda, nas entranhas das suas cidades. Assim se passa em Aranda del Duero, sob cujas ruas e edifícios existe um labirinto de adegas antigas, verdadeiras catacumbas do vinho. Uma delas estende-se por baixo do restaurante El Lagar, e Carlos, o empregado de mesa, acede mostrá-la depois de termos ajustado contas com uma espetada de rins de cordeiro, uma salada de pimentos assados com atum e anchovas, uns enchidos ibéricos e duas garrafas de tinto: um Emílio Moro, crianza 1992, e um Tierra de Aranda, crianza 1989, este último tocado pela mão generosa da colheita de um ano que recebeu a classificação de Excelente na Ribera del Duero. A adega que se retorce por baixo do El Lagar é, na realidade, a antiga adega de um

dos vinhos veteranos da região, El Torremilanos, de D. Pablo Peñalba, um dos adegueiros que, com mais insistência, defende a necessária irmandade entre todos os vinhos do Douro, particularmente entre os da Ribera e os do Porto. Corredores estreitíssimos, escadas abismais, antigos depósitos de pedra para a fermentação, tudo nesta adega, agora desactivada, evoca outros tempos em que os operários arrastavam os pesados odres cheios de vinho até àquelas profundezas, em busca da sua conversão alquímica em delícia. E, à superfície, a con-

Corredores estreitíssimos, escadas abismais, antigos depósitos de pedra para a fermentação, tudo nesta adega, agora desactivada, evoca outros tempos em que os operários arrastavam os pesados odres cheios de vinho até àquelas profundezas, em busca da sua conversão alquímica em delícia.

tinuação da história leva-nos, esta noite, ao moderno pub El Bulevar, onde, também, o vinho é tema de conversa, e Mitxel Vega recorda, desta vez à volta de umas taças de crianza de Torremón de 1992, as excelências de outro vinho que fez história na região e que hoje é raro encontrar: o crianza Callejo de 1989, elaborado em Sotillo de la Ribera. No dia seguinte, saímos a caminho de La Horra, passando pelas casas de adobe de Villalba del Duero, tão características da região. Sucedem-se vastos vinhedos em ambos os lados da estrada. São os «domínios» de D.Alejandro Fernández, o produtor


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do tinto Pesquera que, conjuntamente com o clássico Vega Sicilia e o veterano Protos, formam o triunvirato que deu fama à Ribera del Duero. Boa parte da uva Pesquera é oriunda destes vinhedos. Mesmo antes de chegar a La Horra, um cartaz anuncia a propriedade La Ventosilla. Por detrás do seu discreto nome, esconde-se uma das mais prósperas explorações agrárias da região, exemplarmente alimentada pelas águas do Pai Douro, como familiarmente lhes chamam alguns moradores. O seu administrador, Alfonso Velasco, um engenheiro de «montes», alto e musculado, de rosto definido e curtido pelo vento, propõe-nos que troquemos a nossa furgoneta pelo seu todo-o-terreno para visitar a propriedade. Sábia decisão porque a água formou uma pista deslizante que faz avançar o veículo, de escorregão em escorregão, como sobre uma pista de gelo. Nos mais de mil hectares da propriedade há de tudo. Desde os altos choupais, que alguns trabalhadores podam com a ajuda de braços mecânicos, até às colinas onde «se esconde o javali, que depois se mete nos milheirais e não há quem o faça sair deles, por mais cães que lhes aticem», queixa-se Velasco. Nada se desperdiça na Ventosilla: onde se plantou milho, agora há forragem para as três mil ovelhas da propriedade; e, na época de caça, soltam-se perdizes de criação, para organizar batidas. Junto à estrada podem ver-se os estábulos de 450 vacas leiteiras. E, no mesmo rio, lá em baixo, uma central eléctrica aproveita a água retida por uma pequena represa («construiu-a o meu avô, que era delegado régio da Confederação do Douro», explica Velasco), alimenta a propriedade de energia e ainda sobra para vender à Iberdrola. E o vinho, claro. Quatrocentos e cinquenta hectares de vinhedos plantados segundo a moderna técnica de espaldeira, em filas sustentadas por dois cabos, o que permite maior exposição ao sol e facilita a colheita mecânica de uvas Tinta del País, a uva utilizada tradicionalmente na elaboração do Ribera del Duero, e algumas outras uvas para experimentar, como as francesas

Merlot e Cabernet Sauvignon, rainhas dos vinhos de Bordéus. «Este ano, vendi meio milhão de quilos de uva ao Alejandro através do Pesquera), mas fiquei com um milhão porque vamos fazer o nosso próprio vinho», explica Alfonso Velasco, enquanto nos mostra a moderna adega de Real Sitio de la Ventosilla, onde se trabalha na elaboração do vinho, sob a vigilância de Javier, um enólogo riojano que deve assistir ao parto deste primeiro néctar. A outra face desta aventura encontramo-la em La Horra, cuja velha cooperativa comercializa os vinhos Viña Valera. Fundada em 1957, é um expoente do cooperativismo vinícola da região, que coexiste com florescentes adegas privadas, como Viñedos e Bodegas, de Valbuena de Duero, onde a cantora Rocío Jurado e o toureiro Ortega Cano têm interesses, e cujo vinho Matarromera obteve os maiores galardões internacionais, segundo nos conta Pedro Ronda, vice-presidente da cooperativa de La Horra. Mas existe também uma terceira dimensão do vinho, da qual Pedro Ronda é também o expoente: a particular. A boa recordação da cozinha de Mitxel Vega faz com que Ronda abra as portas da sua ”bodeguita” «como a de Felipe González, mas mais modesta», sorri. Nela, Pedro Ronda guarda o vinho que ele mesmo produz em casa, artesanalmente: um vinho jovem com uma leve cintilação carbónica que o torna vivo e alegre na boca e que provamos com alguns enchidos, rodelas de morcela frita e um salmão que ele mesmo defuma. É a irmandade do vinho, a que ultrapassa marcas e prestígios, a mesma que permite que se desfrute de um grande vinho ainda que não ostente o selo de denominação de origem, como acontece com o Mauro, elaborado por ele, em Tudela de Duero, ele que fora enólogo de Vega Sicilia, mas cuja localização se encontra fora do território demarcado para a denominação Ribera del Duero; uma irmandade que se prolongou no almoço que fizemos em Roa de Duero, no estupendo restaurante El Chuleta, cujo filho do proprietário é distribuidor de um clube de vinhos da Ribera.


Em Roa del Duero encontra-se precisamente a sede do Conselho Regulador da Denominação de Origem Ribera del Duero, um edifício moderno que abriga a instituição que mais tem contribuído para a modernização dos vinhos da região. Aqui se provam os vinhos das diferentes adegas, se classificam as colheitas segundo a sua qualidade, se autorizam as variedades de uva que podem ser utilizadas para conservar o carácter dos vinhos da região e se controla a produção. É o coração da Ribera del Duero, um coração que controlará e dará garantia de qualidade à torrente de litros de vinho que os quarenta milhões de quilos de uva colhidos este ano, na região, haverão de produzir. A cidade de Tordesilhas, que se situa já fora da Ribera, em terras de Valladolid, é um bom lugar para pernoitar e começar a perceber a presença portuguesa que presidirá ao último troço do trajecto do Douro. Aqui, em 1494, os reis de Portugal e de Castela dividiram o mundo, depois dos Descobrimentos, mediante um célebre tratado; tal como hoje, os dois países dividem os vinhos do rio que os separa e os une. Castronuño, pouco antes de chegar a Toro, ergue-se sobre a penha de La Muela, na majestosa curva do Douro, tudo choupais e patos. E a seus pés, precisamente sobre um toco de choupo, Mitxel Vega encontra uma colónia de cogumelos cuja colheita se dispõe a saltear na cozinha de um qualquer bar condescendente. O Pai Douro sabe mostrar-se generoso, embora os farelhões da cidade de Toro já anunciem, também, a violenta mudança do seu leito que nos espera. Se, outrora, os vinhos do Douro tiveram fama de ser duros e ásperos, essa fama continua, ainda hoje, a perseguir os vinhos de Toro. Contra ela lutam adegueiros como Manuel Fariña, homem inquieto e aberto às novidades do mundo do vinho, que coloca sobre a mesa o seu melhor argumento para acabar com a lenda de «vinhos para dar esfregas»: o seu jovem vinho «Fariña», um vinho que, por milagre climático raro, é o primeiro vinho de 96 que já se pode degustar.

«Aqui utilizamos as variedades de uva Tinta de Toro, que é uma variedade da Tempranillo e da Garnacha, mas o terreno é muito quente, com muita pedra que conserva o calor», explica Fariña. «Isso faz com que a uva amadureça muito cedo, mas como a colheita se fazia ao mesmo tempo que no resto da Espanha, no final de Setembro, a uva chegava já com um elevado grau de álcool e por isso saíam uns vinhos tão fortes. Nós adiantámos a colheita um mês, de modo que a colhemos agora em plena maturação, mas mais suave. Além disso, ganhamos tempo, o que nos permite obter, em Novembro, o primeiro vinho do ano, um vinho jovem que entre nós se chama «Beaujolais de Toro». Apelido profético porque precisamente o ano passado, com o boicote internacional aos produtos

O Pai Douro sabe mostrar-se generoso, embora os farelhões da cidade de Toro já anunciem, também, a violenta mudança do seu leito que nos espera.

franceses pelos testes nucleares em Muroroa, Fariñas recebeu encomendas da Holanda para fazer chegar quantas garrafas pudesse de «beaujolais de Toro», em substituição do boicotado beaujolais francês. O resultado foi cem mil garrafas vendidas o ano passado e um bom gosto nas bocas holandesas, o que implicou o pedido de 200 mil garrafas para este ano. Apenas sete adegas têm a denominação de origem de Toro, mas na região produzem-se também outros vinhos chamados «Tierra del Vino», onde os adegueiros (inclusive alguns dos que fazem os vinhos de Toro, como Fariñas) se permitem experimentar outras variedades de uvas, como moscatel e albillo, para vinhos brancos doces. Para lá de Zamora e acrescentado pelas sucessivas barragens, o rio Douro colide


RIOS PROFUNDOS

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com a serra do Mogadouro e desvia-se para sul, convertendo-se, durante cem quilómetros, em fronteira natural entre Portugal, situado na sua margem direita, e as terras espanholas que se estendem à sua esquerda. O terreno torna-se abrupto e, pouco a pouco, o rio interna-se num desfiladeiro sem fim que o acompanhará até à foz. Assim avança, encaixado e distante, fundido na paisagem e rodeado de solidões vertiginosas. Nessa fronteira, do lado espanhol e por entre as províncias de Zamora e Salamanca, produzem-se os vinhos de Los Arribes (Fermosella e a chamada Ribera de Salamanca), duros e agressivos. Pernoitámos em Vitigudino, onde um vinho de Valladolid, um Yllera de 1992, acompanha um leitão assado, e Mitxel Vega propõe abandonar a estrada de Portugal para nos aproximarmos do desfiladeiro do rio, em busca dos vinhedos que geram os violentos néctares da região. Não há maneira de ver o rio. Para lá das pastagens, é só barrancos, em cujas encostas e cumes se alinham vinhedos, varridos pelo vento, entre oliveiras e inesperadas laranjeiras, porque o microclima da região possibilita uma insuspeitada variedade de culturas. Nas imediações de Corporario, um cartaz que diz «A la playa» fez-nos seguir uma estrada infernal que termina num alto penhasco onde se vêem os restos do que deve ter sido um posto militar com troneiras. Ao lado, a base de um mastro de bandeira e um vinhedo já abandonado. Duas galinholas escapam de uma moita, com voo atordoado, para desespero de Mitxel, em cujo olhar brilha, por um instante, a cobiça do caçador veterano. E ali em baixo vê-se, por fim, o Douro serpenteante que espelha o sol frio da manhã. Do outro lado do abismo, as terras de Portugal. Quando, por fim, encontramos o desvio de «la playa», um caminho ziguezagueante conduz-nos directamente até à margem do rio, um retiro silencioso e imponente, ocasionalmente sobrevoado por cormorões, onde há uma minúscula praia de areia, amarelada de choupos, e um pequeno cais, promessa dos verões na fronteira.

Mais a sul, na confluência com o rio Águeda, o Douro torna-se navegável e, em território espanhol, erguem-se as instalações desertas do porto de Vega de Terrón, que estão há um ano e meio à espera de serem inauguradas. Na margem portuguesa vêem-se tangerineiras e vinhedos vermelhos, mas não se vê vivalma. Falso. Vemos agora um homem apeado na berma da estrada. É o guarda do porto, Gabriel Hernández Berrocal, um antigo trabalhador da Iberduero que viveu, durante alguns anos, em Basauri e que ficou coxo e famoso porque uma árvore lhe caiu em cima («apareci no programa de televisão “Valor e Coragem”», explica com naturalidade). De momento, é o único beneficiário deste porto, chamado a facilitar o tráfego fluvial de mercadorias no dia em que as autoridades decidirem dar-se conta da sua existência. Mas semelhante privilégio não parece afectá-lo: «No Verão, vêm aqui os de Madrid e dizem-me: que bonito! Bom, mas eu não gosto!» E a paisagem, imponente e silenciosa, não parece ter nada a objectar à indiferença do seu guardião. No outro lado do rio, a povoação de Barca de Alva dá-nos as boas-vindas a Portugal, com um vinho da terra, um Vinha Lamedo rosado de 1992, que não tem nada que invejar, em virulência, os seus irmãos salamanquinos. Aqui começa uma tremenda viagem, uma espécie de montanha-russa interminável onde só ocasionalmente conseguimos avistar o Douro (assim se chama el Duero, em português), comprimido entre as inúmeras montanhas do Norte de Portugal. Os vinhedos galgam alturas inconcebíveis, assomam-se em terraços laboriosamente trabalhados para formar as quintas que haverão de alimentar as adegas dos vinhos do Douro e do Porto. Nesta região acontece um raro fenómeno. Entre Freixo de Espada à Cinta e Mesão Frio estende-se uma região vinícola, que tem o Douro como espinha dorsal, dividida em três partes: Baixo Corgo (a mais ocidental, de clima mais temperado e húmido), Douro superior (a mais oriental, mais quente, menos húmida e com vinhedos de maior altura) e Cima Corgo (a parte central, mais equilibrada em humidade e


temperatura). Nela se produzem ambos os tipos de vinho, porque os vinhedos do vinho do Porto não estão no Porto mas a cem quilómetros para o interior, nesta terra do Douro que tem a cidade de Peso da Régua como capital do vinho. Nela encontramos o enólogo da Casa do Douro (equivalente ao Conselho Regulador da Ribera del Duero), Eduardo Abade, um português de quarenta anos, nascido em Angola, que nos mostra as instalações da Casa enquanto nos fala dos vinhos da terra: «Os vinhos do Douro são vinhos normais, brancos e tintos, enquanto os do Porto são os vinhos con solera, envelhecidos, dulcificados e misturados com aguardente.» A região produz 10% dos vinhos portugueses e, desses 10%, 50% destina-se a «portos», cerca de 30% a vinhos do Douro e 20% ao que se chama vinhos da região, o equivalente aos vinhos sem denominação de origem que se fazem em Zamora ou em Valladolid. No total: 130 milhões de litros de vinho de produção em 1996. Todo um império, o que não é de estranhar se se pensar que esta região vinícola foi a primeira do mundo, delimitada e regulamentada no ano de 1756. Da sua valia, registe-se, durante o jantar no restaurante Varanda da Régua (sobranceiro à cidade), dois excelentes vinhos brancos frutados: um Quinta de Santa Júlia de 1995 e um Quinta da Gaivosa do mesmo ano, mistura de uvas Malvasia e Códega, o primeiro, Vio Sinho e Ravigato, o segundo, que acompanham uma clássica caçarola de arroz de marisco. Por fim, sexta-feira pela manhã chegamos à cidade do Porto, empoleirada labirinticamente nas colinas que tutelam o Douro. Abaixo, na margem do rio, as velhas adegas dos vinhos do Porto alinham-se com solenidade britânica (não foi em vão o comércio destes vinhos com Inglaterra, a origem de tão frutífera indústria). Numa delas, governada no século passado pela chamada Rainha do Douro, a Senhora D. Antónia Ferreira, e que tem uma exótica avestruz como símbolo, recebe-nos Fernando Xavier, chefe de serviços da adega, homem baixo, magro, com um pequeno bigode e elegantemente vestido,

que caminha com uma mão no bolso do casaco, como se se tratasse de um diligente funcionário da Coroa britânica na Índia, circunspecto e amável, anfitrião oportuno e preciso da visita às suas adegas frescas e formosas, onde os vinhos aprendem definitivamente o significado do verbo envelhecer. «Quando Felipe González era presidente, veio visitar-nos e demos-lhe a provar um vinho de 1815, em memória da Constituição de Cádis», comenta, sem que o abismo do tempo pareça incomodá-lo. Da adega, os vinhos do Porto saem como Tawny, a sua versão menos envelhecida, Ruby, com mais anos no barril, e portanto mais amadeirados, ou Vintage: aqueles vinhos de colheitas especialmente boas que são engarrafados aos dois anos e guardam, com o tempo, o seu primeiro e frutado aroma. À saída, à beira-rio, Mitxel Vega parece ter esquecido a estaca que lançou à água em Salduero, certamente vencido pela prodigalidade sábia do Douro, enquanto a recordação do Porto de 1937, que provámos à noite, ainda me fala no paladar das delícias de um tempo em que eu ainda não tinha nascido. É o milagre do vinho.

Rio Douro. Fotografia de Paulo Barata


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Aconcágua, a Rainha das Américas João Garcia



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Visto do ar, o Aconcágua sobressai como um monólito imponente. É a Rainha das Américas, uma montanha de quase 7000 metros, mais alta do que qualquer outra no continente americano. Já foi há muito tempo, mas, pela quantidade de vezes que repeti esta viagem, parece-me que foi apenas ontem que de lá cheguei. É assim que me acontece com os destinos de que gosto muito. Quem corre por gosto não cansa, diz o ditado. Com o Aconcágua acontece-me isso. E, sempre que lá volto, aprofundo mais um pouco, acrescento histórias e marcos à minha memória. Já escalei tanto na Patagónia argentina, como na Cordilheira Branca, no Peru.Volto sempre ao Aconcágua, o ponto mais perto do céu em que se pode estar no Continente Americano. Esta ascensão efectua-se durante o Verão local, Inverno na Europa. Nem sequer faz frio, mas a época natalícia ajuda a criar ambiente e quase nos faz crer que está frio. Enfim, chegamos a uma terra onde as pessoas vivem e se vestem de forma diferente e, assim, nos ajudam a despirmo-nos de preconceitos e a ser abraçados por uma cultura diferente. Bem podem dizer que somos «latinos», mas este nosso modo de estar quase fatalista, que o fado tão bem sabe retratar, faz-me admirar quem simplesmente canta canções alegres, apenas por ser alegre… Visto do ar, o Aconcágua sobressai como um monólito imponente. É a Rainha das Américas, tem mais de 6946 m de altitude, uma montanha de quase 7000 m,

mais alta do que qualquer outra no Continente Americano. A viagem propriamente dita começa em Santiago do Chile, onde após um breve período para descanso e aprovisionamentos nos deslocamos a La Parva, 50 km a norte da capital. É uma estação de esqui e, neste Verão tórrido, o nosso pedido de transporte espanta o motorista de táxi. A 50 km a norte de Santiago, já avistamos neves eternas. Aqui, a um dia de distância desta estância de esqui, escalamos o Cerro Plomo, de mais de 5000 m de altitude. São cinco dias que servem de aclimatação, em que damos tempo ao organismo para se adaptar ao ar rarefeito, devido à baixa de pressão atmosférica, ao frio, ao chão duro e ao desconforto de uma mochila pesada. Ao chegarmos ao seu cume, compreendemos o sentido do nome da montanha: plomo, chumbo, é o que sentimos nas pernas… Regressamos a Santiago, que agora já não nos é estranha e nos acolhe numa passagem de ano um pouco tardia, e apanhamos depois um autocarro para Mendonza, na Argentina. Embora o monte Aconcágua esteja praticamente na fronteira entre estes dois países, o acesso à montanha faz-se pelo lado argentino. É aqui que temos de pagar para entrarmos no seu Parque Nacional. Na viagem podemos admirar vales áridos, céu azul-escuro e, com sorte, talvez o


Subimos com João Garcia ao tecto das Américas e como Neruda avistámos o mundo. voo de um condor-de-colarinho-branco. No final das tortuosas curvas e contracurvas dos caracoles, podemos ver por breves momentos a majestosa face Sul do Aconcágua, desde a estrada que iremos refazer. Se Santiago é quente, então Mendonza está a escaldar em todos os sentidos… Na rua faz muito calor e toda a gente procura as sombras para passear à tarde. Aqui tratamos da logística e da burocracia para seguirmos viagem. Este intervalo na viagem também vale pelo repouso mental pois, ao contrário do que se pensa, escalar montanhas faz-se não só com as pernas, mas também com a força da mente. Se a mente não está bem, as pernas não correspondem… Seguem-se mais umas horas de viagem nos autocarros locais, económicos e pitorescos, e voltamos às grandes paisagens áridas e belas das montanhas. O grosso da bagagem é transportado por mulas e controlado por muleiros que seguram uma faca atrás das costas, presa numa faixa de tecido na cintura. O chicote que usam impõe respeito, e o seu chapéu típico protege do sol tórrido. Ao chegarmos ao Campo-Base, revejo amigos de todos os anos, alpinistas profissionais que, tal como eu, fazem regularmente expedições ao Aconcágua. Revejo a montanha, naturalmente bela, e sinto a

refrescante temperatura da altitude. Os ventos da montanha nem sempre são amigos, mas a perseverança do homem ultrapassa as dificuldades e os elementos. A força de vontade para subir, mas também para descer. Porque o cume é apenas um ponto de retorno, a descida é o mais importante. Os ventos têm de estar connosco, as frágeis tendas onde pernoitamos são a nossa salvação em caso de mau tempo, de intempérie e instabilidade meteorológica, factores próprios das montanhas com os quais temos de estar preparados para lidar. Chegar lá acima é uma sensação incrível! Tenho casa em todas as montanhas deste Planeta e, quanto mais alto, mais belo é o pôr do Sol visto de minha casa. O regresso ao vale, esse, é a felicidade. Podemos respirar fundo, descansar e gozar em pleno. Temos ainda tempo, vamos ver o Pacífico, Valparaíso, Viñas del Mar… A suavidade do mar contrasta com a agressividade da montanha, a viagem está assim completa!


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O Ovo do Pinguim ou Crónica de um Amor Maior Maria Adelina Amorim

Oi filhote! Esse aí não é o Erich? Ilustração de Daniel Barraco



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Meu filhote, Agora que te vais iniciar na grande viagem das neves eternas, ao lugar em que só os nossos casacos pretos polvilham de negro a brancura primacial dos tempos, quero contar-te uma história, a nossa história. Há muito, muito tempo, olhei para um grupo de pinguinas – era assim que carinhosamente tratávamos as mulheres da nossa tribo – e dei de caras, que é como quem diz, de bicos, com um pestanejar de olhos meio envergonhado, com um rosto discretamente inclinado sobre os ombros. Fiquei petrificado naquele corpo luzidio, fusiforme, naquelas penas sedosas, naquelas asas-barbatanas perfeitas. Finalmente, vi-a afastando-se com as amigas pinguinas, sob o poente coado do Pólo. Que porte, que elegância e que bom gosto: um vestido branco com um fraque negro, que lhe dava um ar de ambiguidade sedutora… Hoje todos querem copiá-la, e até vieram cá das terras quentes do Norte para tirar fotografias ao modelo. Dizem que nas capitais da moda é muito chique vestir à pinguim, uma espécie de ton sur ton, tão ao jeito da capital parisiense (sim, que por cá vemos o National Geographic, que sintonizamos directamente dos satélites com que resolveram poluir os nossos gelos, e sabemos muito bem onde ficam essas terras de selvagens, animais estranhos metidos em gaiolas de cimento e a correr de um lado para o outro dentro de máquinas que deitam muito fumo, umas bestas… a que chamam homens, parece). Contava-te eu que fiquei completamente congelado com aquele olhar. Naquele momento, congelei também uma ideia: aquela era a pinguina da minha vida, e andaria milhas atrás dela até a convencer a darmos as asas. E assim foi, anos depois casámos numa madrugada brilhante junto às águas frias onde nos conhecêramos e partimos de lua-de-mel para a Antárctida profunda. Foi assim

que começámos a pensar em ti, a acalentar a ideia de pormos um ovo para nele depositarmos uma cria, que seria o espelho daquele amor austral. Nem sabes como eram lindas as noites consteladas em que caminhávamos, de barbatanas dadas, ouvindo o silêncio das estrelas. Um dia ela, a tua mãe, tornou a olhar para mim como da primeira vez e disse-me «estamos grávidos». Senti um arrepio na coluna – nunca devemos dizer espinha para não nos confundirem com os peixes – e dei-lhe um beijo no bico. Abraçando-nos muito ternamente, fomos sentar-nos nas rochas a observar os leões-marinhos que tinham acabado de ter filhotes. Foi aí que começou a grande aventura, tínhamos de nos preparar para te levar para longe dos predadores e, numa espécie de peregrinação colectiva, iniciámos a longa viagem até ao interior gélido do continente. Eras um belo ovo, e era preciso levar-te cuidadosamente ao colo para não caíres, para te manteres quentinho junto às nossas penas e aos nossos corações. Assim andámos quilómetros adentrando os desertos das lonjuras infinitas. A meio da marcha, a tua mãe, com as outras pinguinas, tiveram de regressar aos mares para se alimentarem, e aí foi o momento crucial desta cruzada: era preciso trocarmos o ovo de um colo para o outro, mantendo-te sempre apoiado nas nossas asas-barbatanas. Finalmente, tinha-te agarradinho ao meu peito para continuarmos a jornada. Eu e os outros pais caminhávamos incessantemente em longas filas até ao sítio onde os nossos pais, avós, trisavós, enfim, tinham poisado os seus próprios ovos. Ao mesmo tempo, tu ias crescendo e ganhando força para quebrares a casca num dia dourado e róseo. Foi assim que, numa madrugada, aquele ovo, que eu e a tua mãe tanto cuidámos, abriu-se para deixar ver um pequeno pinguim preto todo dobradinho. Que susto quando te vi naquele aspecto: onde estavam as penas sedosas da tua mãe, o claro-escuro que nos identifica e dá carácter no meio daquela brancura sempre igual, as vestes elegantes que nos distinguem dos vulgares leões-marinhos, das focas, ou até das orcas que vemos passar ao longe, e das outras primas baleias que nos cumprimentam sempre com um jorro de água? Lentamente, enquanto te ensinávamos os elementares princípios da sobrevivência, foste ganhando cores e tomando o porte nobre e incon-


fundível da nossa espécie: repara como nas passereles da moda nos tentam imitar, pata aqui, pata acolá, tira casaco, põe casaco… e nas cerimónias que os homens fazem nos salões de festas, elas todas de preto comprido, eles vestimentando-se com casacas negras e camisas brancas… uma beleza. Era preciso avisar toda a família espalhada pelo mundo, o ramo hispânico que vive nas Galápagos (da ilha de San Cristóbal a Santa Cruz, da Genovesa à Fernandina, de Santa Fé a Santa Maria), o ramo australiano que se instalou na Nova Zelândia, e até o grupo mais exótico que vive na Namíbia, a sul de Angola. Eu e a tua mãe recorremos a toda a parafernália de técnicas de comunicação marítima, aérea, terrestre, e todos os amigos se disponibilizaram a levar os telegramas, das gaivotas aos albatrozes, dos ursos polares às tartarugas (não sorrias porque elas são verdadeiras campeãs de natação e conhecem os mares como ninguém, senão como teríamos avisado os primos africanos?), e até o tubarão-martelo participou fazendo sinais de morse. Foi assim que todos ficaram convidados para o grande dia do teu registo no mapa austral. Eras então um descendente do grande Reino da Animalia, Filo da Chordata, da Classe das Aves, da Ordem dos Ciconiiformes, da Família dos Spheniscidiae, e eras, como os orgulhosos dos teus pais, um pinguim-imperador, ou seja, um Aptenodytes forsteri. Sim, porque para além do nosso Género, ainda há o pinguim-rei ou, mais propriamente, o Aptenodytes patagonicus e outros, como o pinguim-de-barbicha, o pinguim-saltador-da-rocha, o macaro, o das barbatanas, o real, o azul... e outros com nomes daquelas pessoas que não deviam ter mais nada para fazer e vieram dividir-nos, subdividir-nos, catalogar-nos, seleccionar-nos, como aquele Darwin ou o Humboldt. Imagina um pinguim chamado Sphenicus Magellanicus ou Sphenicus Humboldti, ou até o mendiculus e o demersus, que ficaram com estes nomes por viverem ali para o lado do Equador, e os outros no Continente Africano. Mas quem deu ordem àqueles mamíferos hominídeos para nos desenharem em árvores genealógicas (nem vejo quem foi o génio) cheias de ramos onde penduram os nossos retratos? Antigamente, só havia o avô e a avó pinguins, a mãe e o pai pinguins, os irmãos, filhos, tios e por aí adiante. Agora, a confusão é tão grande que já nem sabemos se perten-

cemos à mesma família ou se somos parentes afastados. O que vale é que sabemos falar uma língua que eles, por mais estelas que descodifiquem, jamais conseguirão aprender. Pensam que sabem tudo, os vaidosos. Na verdade, não precisamos deles para nos ensinarem a nadar, a caminhar, a comer, a ficar grávidos e a pôr ovos. Por causa disso é que fugimos para muito longe daqui quando as pinguinas acham que os ovos que têm nas bolsas estão prontos (até nisso eles nos imitaram com aqueles cestos onde põem os filhos às costas, que compram naquelas lojas de instrumentos estranhíssimos onde deitam os filhos, que abanam, que têm rodinhas, chapéus de chuva, plásticos, cobertores, biberões, fraldas descartáveis, leite postiço, chuchas para calarem as crias… eu sei lá, têm-me contado coisas muito esquisitas daqueles animais humanos). Nós, ao menos, não precisamos de nada para além de amor, de vontade e de peixe no mar para vivermos e criarmos os nossos bebés-pinguins. Até o que nós comemos tiveram de nomear, sim, porque têm a terrível obsessão de pôr nomes às coisas, aos lugares, aos bichos… não deixam nada sossegado com aqueles latinismos, que agora com a mania da era informática transformaram em inglesismos: à nossa comidinha chamam Kril, imagina bem. O que é que eles sabem daquela mistura que só nós conseguimos preparar tão bem, para lhe chamarem aquele nome feio? Vá lá a pinguinada entendê-los. Bom, filhote, agora que já fechei o guarda-jóias da família onde guardamos as nossas memórias, fico à espera do neto que hás-de trazer caminhando ao teu lado, quando regressares da grande viagem. Que os bons ventos protejam o teu ovo para o veres transmudado em pinguim. Mais um imperador para continuar a nossa história.

Dá cá essas asas…


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Erotismo e gula na América, desde o tempo colonial - I Virginia Vidal

Aqui, no Novo Continente, nesta terra minha sem nome, sem América, como lhe chamava Neruda, achava-se a mais esplêndida reserva de aves, peixes e animais desconhecidos, de frutas, hortaliça e especiarias, não só para saciar a fome, mas também como ritual amoroso e oferenda às divindades. Morning Grace, óleo de Martin Maddox, 1991 © Todos os direitos reservados ao autor



SABORES PRINCIPAIS

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Como os cozinheiros devem bater, coar e pisar, para transformarem a substância em deleitoso acidente para que assim satisfaça a vossa gulosa degustação! Dos duros ossos extraem o tutano e não desperdiçam nada que possa ser doce e suave para a garganta. De casca e picantes, de raízes e folhas se compõe o delicioso molho para o glutão, para lhe despertar um fresco apetite. [Chaucer, El cuento del perdonador] As receitas ou os segredos de cozinha dão o seu pequeno contributo para a felicidade humana, como proclama Pablo Neruda: Procuremos no mundo a mesa feliz. Procuremos a mesa onde se aprenda a comer. Onde se aprenda a comer, a beber, a cantar! A mesa feliz. A qualquer momento, a azáfama de Eros com as panelas permite inferir que erotismo e gula são caminhos de sabedoria, e não hesito em afirmar que boa parte do engenho humano se esmerou para encontrar elementos – alimentos – que outorguem juventude e poderes afrodisíacos a quem os ingerir. A procura da rota das especiarias não foi outra coisa senão isso, por exemplo, o cravinho ou giroflé, a pimenta em todas as suas fases, a noz-moscada com a sua delicada casca, para citar apenas algumas que conservariam as carnes nos longos invernos e animariam o corpo. Aqui no Novo Continente, nesta «terra minha sem nome, sem América», como lhe chama Neruda, havia a mais esplêndida reserva de aves, peixes e animais desconhecidos, de frutas, hortaliças e especiarias, não só para saciar a fome, mas também como ritual amoroso e oferenda às divindades. Semelhante sentido religioso estava incorporado no trigo para a farinha das hóstias e na videira para fabricar o vinho de consagração que os sacerdotes recém-chegados usavam na missa. Também traziam o azeite de oliveira, só para manter a luz, que, além de se usar para acender as lamparinas votivas e como santo óleo na admi-

nistração dos sacramentos do baptismo, confirmação e extrema-unção, permitia temperar as saladas e dar-lhes um aroma celestial. Ah!, também traziam os citrinos que os árabes lhes ensinaram a cultivar, de modo que as saladas foram temperadas com limão e se acalmou a sede com sumo de laranja, e plantaram as amendoeiras a cuja semente o poeta cubano Lezama Lima prestou homenagem: Encanecida e escultórica serenidade da amêndoa Que recebe a embriaguez do mel feito escarcha de ambrosia. Os conquistadores – os senhores – da arte culinária tinham uma tradição que remontava ao grego Entidimo. Eles trouxeram, além dos cavalos, reses, porcos e aves de capoeira com a galinha como rainha, porque os ovos se converteram de imediato num alimento delicioso. Com o afã de cuidar das poedeiras, raramente se matava uma ave, de modo que este acontecimento só ocorria em ocasiões memoráveis e a sua canja era reservada para as mulheres depois de darem à luz, os convalescentes, os doentes com gripe, para festas de aniversário e outros acontecimentos especiais. Os naturais pescavam em mares e rios, caçavam na selva aves e mamíferos e obtinham as necessárias proteínas, mas os conquistadores trouxeram algo de novo: os animais domésticos que podiam ser criados pelos homens e estar ao alcance da mão. Assim proliferam as reses, os caprinos, os cordeiros, os porcos e as aves de capoeira, então as galinhas foram criadas e tratadas com muito amor, evitando matá-las, para poderem dispor dos seus ovos. Também os escravos africanos contribuíram grandemente para a rica cozinha mágica americana com uma grande audácia para combinar produtos diversos e a incorporação de frutos que, sem serem necessariamente originários de África, ali tinham proliferado, como diversas espécies de bananas. Algo semelhante aconteceu com os cocos e o café. Este delicioso grão converteu-se na indispensável matéria que se serve à sobremesa. A poetisa mexicana


Rosario Castellanos soube evocar magistralmente esses tempos idos: Depois de comerem ainda ficam À volta da mesa. E ali fumam Os homens o seu charuto; as mulheres Prosseguem um labor paciente, cuja origem Mal se recorda. Un negro café fumega Em chávenas amiúde requeridas ………… para sua plenitude este instante mais não quer que ser e passar. Quanto à cana-de-açúcar indiana, o seu cultivo viria a desenvolver-se apenas aqui. Dizer cana é dizer açúcar escuro, papelón, panela, chancaca. Quer dizer, uma infinidade de doces e geleias que vão desde os figos recheados ao manjar branco, do maçapão às amêndoas, e amendoins carapinhados, da doce marmelada aos chocolates de todas as formas e com todos os recheios possíveis. Isto é, guarapo e sumo doce destilado e envelhecido para convertê-lo em rum. Com razão, Brillat Savarin, o mestre da gastronomia, afirma na sua Fisiología del Gusto: «É precisamente nas colónias do Novo Mundo que o açúcar tem a sua origem.»

DANÇA DO FOGO Não é exagerado afirmar que apetites nutritivos e venéreos andam de mãos dadas. Para despertá-los, procuram-se desde tempos imemoráveis fórmulas mágicas que se vão transmitindo de mães para filhas. No que concerne a cozer os alimentos, uma parte da humanidade descobriu que em terras americanas se conservavam todas as formas inventadas desde a descoberta do fogo. Não há homem que não goste de assar carne, entranhas e enchidos, aves e peixe na grelha (barbaboa, que é uma palavra taína, tal como tomate). Sobre um budare, que primeiro foi uma placa de argila para assar as tortilhas de cassabe e com o tempo se fundiu em ferro, cozem-se as arepas do pequeno-almoço caribenho, amazónico e venezuelano. Nos campos chilenos, assa-se a tortilha de borralho, depois de amassada com farinha

de trigo, salmoura, levedura e manteiga, entre cinzas resultantes do cisco de carvões vegetais queimados. Um pano alvo limpá-la-á do seu véu cinzento antes de ser partida em fatias suculentas. Em Aysen, espeta-se um bom pedaço de rês num assador com forma de espada e põe-se num quincho1. Esta é uma tarefa de homens e cada aysenino cuida com desvelo do seu espeto e regula a distância do seu assado plantado para que não chegue a tocar a chama da lenha. Se é cordeiro plantado, o cachaço vai ora para baixo ora para cima, para que asse de forma igual e não se queime a pele. Dentro de um buraco com pedras a escaldar cozem-se mariscos, carnes e peixe no curanto2 chilote. Al-Garib, o califa de Pirque, segue as indicações da sua esposa Lenka e traz pedras redondas e bem lavadas do rio Clarillo e aquece-as ao rubro num buraco cavado no chão. Depois, vão-se colocando sobre as pedras os pedaços de diversas carnes, as presas de ave, as linguiças, as prietas, até que a sua pele dourada sue. Entretanto, ela colocou sobre a mesa uma infinidade de saladas de todas as cores, aromas e sabores inimagináveis. Nas margens do lago Maracaibo, assam-se sobre uma grelha os peixes recheados, bem envoltos em folhas de bananeira. Um forno de barro, montado tijolo a tijolo, com forma de iglô, por cuja pequena boca entra a lenha que arde até se converter em cinza para depois ser varrida e na obscura e ardente cavidade se ir assando nas minas a galleta minera; nos campos, assam-se a galleta camponesa, empadas, pães amassados, pastéis de milho e, no final, alfajores [doce típico feito de uma pasta de mel e amêndoas], biscoitos e outras delícias. Os melhores feijões3 guisam-se numa panela de barro, e o pastel de milho assa-se em recipiente do mesmo material. Convém lembrar que as caçarolas, as bacias, as panelas e as platas de barro têm um efeito especial por serem amassadas, sobretudo por mão de mulher, com a mesma terra, de modo que fiquem impregnadas de energia, sonhos e aura. Nestas terras, tal como na longínqua China, ainda se assam os frangos no barro

1 «Quincha», palavra quechua que designa quer um entramado de juncos com que se reforça um tecto ou parede de canas, quer uma parede feita de canas ou outro material semelhante que se costuma cobrir de barro. 2 Na Argentina e no Chile, comida à base de legumes, marisco ou carne, cozida sobre pedras muito quentes num buraco que se cobre com folhas. 3 «Poroto», do quechua purutu, designa uma espécie de feijão ou o seu guisado.


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envolvidos em penas, e tudo numa armadura de espessa lama que se ressequirá como couraça ao calor do lume e, quando for quebrada, deixará ver a ave cheirosa, bem cozida e sem penas e pele. Não faltam os pescadores que colocam sobre as brasas o seu peixe envolto em folhas de jornal bem molhadas em água do mar, ficando, depois, pegada ao papel a pele com escamas, enquanto brilha em todo o seu esplendor o excelente pitéu. A incorporação do azeite de oliveira e da banha de porco deu origem à fritura e às correspondentes fritadas. Esta forma de cozimento obriga o peixe a mergulhar e a chiar no líquido a ferver para cobrir-se de crosta crocante. De igual modo, fritam-se empadas, diversas frutas de sertã [pasta de farinha à qual se junta ovos e açúcar ou sal, feita de diferentes formas e frita depois em manteiga ou azeite], couve-flor e outras verduras panadas, diversas tortilhas e sopaipillas [massa que, bem amassada, frita e emelada, forma uma espécie de holueja grossa] amassadas com abóbora dourada e farinha de trigo. Antes da chegada dos espanhóis, existiam na nossa terra óleos excelentes que se destinavam a uso ritual, como o de uma ave chamada guácharo na Venezuela.

OS DESTERRADOS

4 «Mazamorra»: doce de milho, na América do Sul. 5 «Coyacucho», do quechua kocha, alga marinha comestível cujo talo pode atingir mais de três metros de comprimento e dois decímetros de largura. 6 «Huesillo»: pêssego seco ao sol. 7 «Mote», do quechua mutti, milho cozido com sal.

Entre os sucessivos exílios que nos foi dado viver, não esqueçamos o dos jesuítas. Essas ausências, às vezes, consolavam-se por vezes sentindo saudades das maravilhas perdidas, entre as quais sabores e cheiros. Isto consta na obra de frei Juan Ignacio Molina que evoca intensas algas marinhas: luche e cochachuyo, sem esquecer peixes e mariscos como os piures, o sempre americano milho para as humitas [no Chile, guisado feito com milho tenro], chuchoca e ulpo [no Chile, espécie de mazamorra4 feita com farinha tostada e água fria] nem frutas como a murtilla [fruto chileno] para licor, mel de palma e lúcumas. Também o padre Manuel Lacunza, quando se distrai da escrita de La Venida del Mesías en Gloria y Majestad, sente uma intensa nostalgia e imagina-se numa viagem imaginária de retorno: após a chegada

a Valparaíso onde se enfarta de peixes-rei e caranguejos, de ouriços e loucos, galopa até Santiago. Visita a sua avó, Dona Rafaela, e, enquanto conta as suas aventuras em Itália e fascina parentes e conhecidos com feitos reais e imaginários, come frangos, charquicán, caixinhas de doce, pão-de-ló e outras sobremesas que as suas tias freiras preparam nos respectivos conventos. Esse ensopado também está presente nas recordações de frei Molina: essa saborosa combinação de charqui [carne seca] ou tasajo [pedaço de qualquer carne] torrado e picado com batatas, abóbora, verduras da época, orégãos, cominho, ají de color. Não é, pois, de estranhar que, no decurso dos anos setenta e oitenta do século XX, os chilenos desterrados clamassem por esses mesmos condimentos, sem esquecer cochayuyo5, huesillo6, mote7, maçãs autênticas, sem faltar o utensílio de cobre para estrelar os ovos do pequeno-almoço, que dificilmente se en-contra em lojas de ferragens estrangeiras.

SORTILÉGIOS ERÓTICOS À beira-mar ou nas faldas andinas, em vales e quebradas, homens e mulheres procuram, afanosos, os elementos para as nutrições de amor. Todo-poderoso e digno das mil e uma noites é o alajú no qual se combinam, em iguais proporções, amêndoas, nozes, pistáchios, pinhões, mel e pão ralado e torrado, como também os torrões de sésamo ou gergelim e o amendoim ou cacahuate, o caju, merey ou anacárdio que, juntamente com os pistáchios e as amêndoas, contribuirão com a sua secreta potência, incitando com as suas cores e sabores, sem esquecer as sementes de abóbora, nozes e amêndoas, favas e outros legumes torrados para renovar as capacidades amatórias. Todo o caraquenho que se preze toma o pequeno-almoço com um olho-de-boi, o cristalino, diluído em sumo de laranja e suco de beterraba crua; e é surrealista a imagem da caçarola cheia de olhos-de-boi entre parchitas leitosas, rodelas de ananás e outras delícias frutais dos trópicos.


Para os mesmos efeitos, bebem-se tanto o inocente vinho de missa com gema de ovo, como a urina de víboras embebida em conhaque: esta mistela é acompanhada com pedacitos de víbora crua, numa espécie de guisado, receita com a qual alguma cidade da China se celebrizou. O fervor afrodisíaco unido à ânsia de conseguir inextinguível potência não hesitou em extrair a bílis dos ursos malaios, em comer, directamente do crânio, os miolos de macacos vivos, em engolir um coração verdadeiro de cobra num copo de vinho, em beber como sopa o sangue de búfalo. Nem sequer o pão-nosso de cada dia, símbolo da comunhão e da partilha, do próprio alimento, se livra de aplicações eróticas; tanto assim é que, durante a Idade Média, em Inglaterra, havia mulheres que amassavam o seu pão, e o destinado ao seu amante passavam-no pela sua fonte venérea antes de o meterem no forno… Mas são os habitantes do Novo Mundo os possuidores da máxima sabedoria luxuriante, os conhecedores das subtis propriedades de plantas, flores, frutos e sementes e deram esse presente a todo o mundo. Frutas perfumadas e gloriosas como a anona, a parchita e a papaia. O que é que é mais usado para despertar os apetites e exprimir o amor? Os bombons! Sim, de cacau, originário das terras dos caracas que se implantou no México, cuja amêndoa torrada, triturada e misturada com açúcar e especiarias proporciona o estranho chocolate, a mais popular oferenda de amor, seguido pelo incomparável aroma da baunilha da orquídea que se utiliza em sobremesas, gelados e até em perfumes de mulher. Não vale a pena falar das propriedades do saboroso abacate nem do tomate que os sábios de Itália baptizaram de poma de oro e que, devido às suas espantosas propriedades, decidiram utilizar em todos os molhos imagináveis para acompanhar não só pastas, mas também frutos do mar e da terra. A abóbora, calabaza ou auyama, nas suas inúmeras variedades, cresce opulenta em todas as hortas do continente e esbanja cores na sua atractiva e dura casca para encobrir a tenra e abundante polpa de

veludo amarela, famosa porque «engorda as pernas» às meninas e é o alimento mais são para os recém-nascidos que, depois do leite materno, começam por comer bananas e continuam com a sopinha de abóbora, outras verduras bem cozidas em caldo de posta ou peixe. O milho, dourado filho do Sol, é aproveitado tenro, tanto cozido para «o fecundo ofertório das maçarocas», no dizer de César Vallejo, com barbas e tudo, como sob a forma da infinita variedade de tamales, as hallacas, as humitas, e do incomparável pastel de milho à chilena. O grão seco serve para a chuchoca que engrossará o guisado de peru ou para a farinha que fará a massa das arepas ou a variedade incomparável da polenta. A batata8, originária de Chiloé, o território da magia, com as suas quatrocentas variedades começou por estender-se a toda a região andina, onde também se foi desidratando devido ao gelo para se transformar em chuño altiplânico, ainda que também se chame chuño à alva e fina fécula de batata que substitui a do milho. Depois partiu para o ultramar e apoderou-se do território europeu, tornando-se indispensável, quer fosse cozida, assada nas brasas ou no forno, frita, amassada com farinha ou convertida em matéria-prima para inúmeros pratinhos. Para os chilenos, a batata (papa) é o alimento por excelência, a tal ponto que a mãe diz ao seu filho, antes de amamentá-lo, «vou dar-te a papa», enquanto os homens que gostam de dizer piropos fazem corar uma mulher dizendo-lhe: «Qué papa!». Então, o fruto subterrâneo converte-se em sinónimo de feminidade. O ají, com as suas inúmeras variedades, é o símbolo do picante e exaltante. Erótico por excelência, em tempos foi mais caro e apreciado que o sal.Todas as variedades deste luxurioso descarado têm por pátria os países da América, e no México chamam-lhe chile, nome de país. Seja verde, roxo, vermelho deslumbrante, amarelo, azulado, é sempre fonte de vitamina C. Há-os pequenos, mas terrivelmente picantes, como o famoso ají de Cayena ou a variedade peruana de nome impublicável a que as vendedoras do mercado chamam colita de mono; vermelhos com sementes negras,

8 Papa, do quechua, designa batata. Papa, em português, deriva do latim pappa e designa comida (para crianças).


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como o rocoto; largos, estreitos, chatos, sempre saborosos, mais ou menos picantes. Existem chireles, pasillas, cachos de cabra, nomes que nunca mais acabam. Com o tempo, veio a constatar-se que os habitantes das diversas regiões americanas conferiam poderes afrodisíacos tanto às formigas culonas, apanhadas com um palito untado com mel e fritas, como à cobra-cega macerada em rum. É claro que também se recorre a elementos menos drásticos e se atribui grande poder à sopa dourada, à pisca andina, às aboborinhas italianas com cebola, às bananasmacho fritas ou assadas, à salada de agriões e cebolas. São indiscutíveis os méritos do propoleo ou borra de favos de abelhas, ingerido em jejum.

BRUXARIA Em questões de bruxaria, era sábia a Quintrala, uma cruel personagem feminina exaltada pela sua imagem de erotismo superlativo: «A Quintrala transformava todas as suas comezainas no cúmulo do conduto erótico: desde as pantrucas servidas em alguidar de barro preto aos famosos feijões em travessa de prata das monjas dominicanas, passando pelos testículos rebuçados e por umas olorosas costeletas de cordeiro polvilhadas com salsa, menta, tomillo, alecrim e uma infinidade de ervas de cheiro, acompanhadas com batatas douradas e saladas de alface, Feijão verde, favas descascadas, aipos com abacate e nozes e outras frutas e outra guarnição de rodelas de tomate e corações de alcachofra envolvimos em folhas de agrião.9»

9 Virginia Vidal, Oro, Veneno, Puñal, Brosquil Ediciones, Valência, 2002.

Quando a Quintrala, a cruel feudatária colonial que entre os seus mortos conta uns quantos amantes, encostava ao seu peito de pele cor de canela a tortilha de rescoldo e começava a cortá-la em fatias e a oferecê-las a cada um dos seus admiradores, estes quase desmaiavam. Enquanto comia, «todos a olhavam deleitando-se com a visão dessa mão delicada no movimento de três dedos para pegar em cada pedaço de alimento e levá-lo à boca sem pressa. Ela,

de vez em quando, deslumbrava-o com um cintilar dos seus olhos faladores e continuava muito comedida, preocupada em dar atenção a todos os seus hóspedes. Depois de saborearem uns deliciosos peixes-rei, a criada oferecia a cada um, para lavarem os dedos, uma tigela de barro preto cheia de água onde flutuavam rosas». A sacerdotisa crioula de Eros e Thanatos era fanática do afrodisíaco ají, grande consumidora de mistelas confeccionadas pelas freiras, às quais fornecia a sua própria aguardente, e não se coibia à hora das sobremesas, pois oferecia aos seus admiradores anonas que encobriam a sua alva polpa com um inquietante veludo verde, manjar dos deuses cujo nome índio quer dizer teta de mulher. Se de poderes revitalizantes se trata, por estas terras americanas também se enaltecem os poderes dos ovos crus de coruja, tão bons para manter um homem como para conservar a pureza da cútis, da tortilha de ovos de pomba, dos órgãos genitais de raposa, das iguanas e da pata de veado. Para conquistar e manter o ser amado, não se hesita em utilizar o coração da andorinha e o fígado de coelho, o sangue de novilho, diluído em aguardente, os testículos assados e a sopa de rabo de boi negro, os miolos e os testículos, o olho-de-boi cru cujo cristalino se dissolve em suco de frutas, em rum ou em vinho, o leite de ají, as tartarugas de mar e rio guisadas com alho, ají e cebola.

CRUELDADE? E isto não é nada, pois se de paixão se trata, não há limites e não se sabe se por magia simpatética, aplica-se ao ser comestível o tratamento que se quereria dar ao objecto do desejo. Não se poderá afirmar que é mera crueldade, mas nisto das artes culinárias dá-se a transmutação da morte para a vida a fim de fortalecer debilidades, reparar energias, saciar a fome, tal como é indispensável sacrificar a rês, degolar o cordeiro, torcer o pescoço à galinha ou embebedar o peru ou guajolote (considerado por Brillat Savarin «um dos mais bonitos presentes


que o Novo Mundo ofereceu ao Velho Continente»), para que aquele adquira o seu máximo poder, sendo mantido sem comer nem beber durante um dia inteiro e dando-se-lhe, finalmente, nozes e conhaque na véspera do seu sacrifício. O pato da ñusta apaixonada, de acordo com a antiga tradição de Huánuco, deve ser enterrado vivo, com a cabeça de fora, em pleno sol, para que a sua carne fique muito tenra e seja mais fácil depená-lo. Depois é degolado, esquartejado e fritam-se as presas em muita manteiga, temperam-se com um refogado consistente com muito ají rocoto, alhos, pimenta e cebolinhas picadas, deixando-o suar durante meia hora, antes de o servir com batatinhas cozidas. Mas no sul do sul do mundo, onde se ergue a selva sombria em torno dos lagos, na zona de Futrono ou Chihuío ou na ilha grande de Chiloé, preparam-se em misterioso ritual os guisados proibidos, a degustar só por homens. Em primeiro lugar, o ñachi. Escolhe-se o cordeiro, corta-se a jugular. Brota o sangue e vai a coalhar no picado de cebola, coentros e ají picado no alguidar. Mexe-se esse sangue temperado, ainda morno e já coalhado. Para preparar o apol, escolhe-se outro cordeirinho novo, de leite; dá-se-lhe um golpe no gasganete, abrindo a traqueia, e deitam-se pela abertura temperos idênticos, sem esquecer o ají. O animalzinho está vivo e pareciam não cessar esses estertores quase humanos que facilitam o tempero dos seus pulmões, e também do coração. Depois, abre-se a vítima de cima a baixo e arrancam-se-lhe os bofes, o fígado e o coração que se colocam sobre uma tábua de cortar ou sobre uma bancada rústica, saem as facas das suas bainhas e vão-se cortando as entranhas sanguinolentas em fatias e provando-as. Em alguns lugares existe uma ligeira variante: quando a água com sal já está a borbulhar numa caldeira, submergem-se e escaldam-se as entranhas, sem soltá-las, na água a ferver, por uns instantes, sendo cortadas e comidas de imediato. Não se pense que se trata de uma crueldade do Novo Mundo, pois antes de sacrificarem, ao terceiro mês de vida, o famoso pato de Pequim, pregam-lhe as

membranas das patas numa tábua e alimentam-no enfiando-lhe a comida pelo bico, para que o seu fígado se desenvolva e se torne um delicioso petisco e a sua carne fique muito tenra porque a imobilidade impede o seu endurecimento. Só se lhe dá de beber água da Fonte de Jade da Colina Perfumada. Depois de sacrificado e depenado, tiram-se-lhe as vísceras, cuidadosamente, sem o abrir, enche-se da mesma água e tapa-se o buraco com um pau, pincela-se com água açucarada, o que lhe dará o magnífico lacado e vai ao forno onde arde a madeira de uma árvore chinesa aromática que lhe dará um aroma subtil. Quando o chefe de cozinha leva a obra de arte à mesa, primeiro oferece-se ao ser predilecto o melhor pitéu, os miolos do pato; depois, o fígado hipertrofiado serve-se assado e envolto em pimenta triturada (esta receita foi-nos dada no Restaurante El Pato de Pekín, pelo último cozinheiro da Imperatriz Viúva, homem idoso mas que em plena infância se tinha iniciado como ajudante na cozinha imperial). Para já não falar da sopa de tartaruga em que o animal é metido em água fria para ser cozinhado em fogo lento e, quando estica o focinho clamando por ar, frescura e água, vai sendo saciado com colheradas frescas do líquido elemento…


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Portugal, sempre Luís Antônio de Assis Brasil

Quando o avião da TAP aterrou no aeroporto de Ponta Delgada, na primeira de minhas tantas viagens aos Açores, senti-me voltando para minha outra casa, depois de 250 anos de ausência. É este o sentimento do escritor brasileiro Luís Antônio de Assis Brasil que, neste texto, respira algum cheirinho a alecrim. Lisboa. Fotografia de Paulo Barata



ALGUM CHEIRINHO A ALECRIM

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Por que Portugal tanto interessa a nós, brasileiros, em meio à Babel da Europa? Por que não Bósnia ou Andorra? «Porque ali se fala português», é uma resposta. No entanto, essa língua portuguesa, com a qual mantemos identidade, não é rigorosamente a falada nas ruas de Lisboa ou de Évora. Identificamo-nos com uma língua mítica, fixada e enobrecida por Camões, romantizada por Eça e elevada ao mais expressivo patamar poético por Fernando Pessoa. Mesmo quem ignora os primeiros versos de Os Lusíadas sabe que a sedução linguística faz com tenhamos um vínculo extra-nacional e supra-étnico com Portugal. Há algo, porém, menos tangível, mas muito mais intenso, que edifica essa ponte de cumplicidade transoceânica. Refiro-me à História. País de raras instituições duradouras, em que os restaurantes morrem na adolescência e as revistas literárias sofrem da peste do sétimo número, o Brasil experimenta uma inegável nostalgia pelo passado. Necessitamos de mais séculos para além desses escassos 500 anos de História escrita. É certo que temos os índios, que poderiam substancializar alguma estrutura arquetípica respeitável em nosso imaginário, mas a rarefação de seu legado material – ocorrida por culpa dos não-índios, diga-se – faz-nos sonhar com fortalezas, castelos e palácios. Nossas representações simbólicas mais eloquentes reiteram bordões principescos que chegam ao disparate de ungirmos mais de um rei para um único reino. Pelé e Roberto Carlos são os mais notáveis de uma série sem fim.

Essa saudade inata, saudade daquilo que não tivemos, nos faz voltar os olhos para o passado épico português, incorporando-o à nossa própria História coletiva e, por que não, à nossa minúscula história individual: quando o avião da TAP aterrou no aeroporto de Ponta Delgada, na primeira de minhas tantas viagens aos Açores, senti-me voltando para minha outra casa, depois de 250 anos de ausência. E esse é um sentimento comum a todos os brasileiros que visitam Portugal. Estando-se em Lisboa, na Praça da Figueira, o primeiro olhar vai para o Castelo de São Jorge, lá em cima, vigiando as eras. E respiramos, aliviados, porque ele existe e nos vincula a uma tradição que não é de hoje. Afirmei que esse sentimento é superior às etnias; é-o porque pertence a uma instância maior, relativa à cultura. Se o gaúcho que descende de alemães sonha em viajar ao Hunsrück, sua escala obrigatória e sentimental será Lisboa. Foi Regis Conte, um gaúcho ítalo-brasileiro, quem, com a sua Flávia, me apresentou, e à Valesca, os melhores vinhos do Alentejo, num memorável almoço no Solar dos Presuntos, às Portas de Santo Antão. Milton Nascimento, sem abdicar de suas generosas raízes afro-brasileiras, vai sempre a Lisboa e tem ali um imenso público. Assim, ao lembrarmos Portugal, estamos saudando não apenas a cultura sólida, não apenas a terra de nossos avós genéticos ou afetivos, mas estaremos comemorando também a nós mesmos, por possuirmos uma imaginação tão rica e criadora em relação a nosso passado – e nem por isso menos verdadeira.

Se o gaúcho que descende de alemães sonha em viajar ao Hunsrück, sua escala obrigatória e sentimental será Lisboa.

Lisboa. Fotografia de Paulo Barata



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Cuiabá José Luís Peixoto

Aqui não é o escritor que quer desaparecer, mas antes os outros que o dão como desaparecido numa pequena cidade perdida à beira do Pantanal. Ou como uma viagem de José Luís Peixoto não o levou a lado nenhum.


Eram os últimos dias de setembro. Ainda estava calor de verão em Lisboa, quando subi as escadas do avião que me iria levar a Cuiabá. No Rio de Janeiro, mudança de aeroporto, táxi, malas e, à noite, num avião pequeno, cheguei a Cuiabá. Fui levado ao hotel. Tudo perfeito? Tudo perfeito. Chegava para duas semanas de Brasil, das quais passaria uma em Cuiabá e a outra seria repartida entre Brasília e Rio de Janeiro. Da janela do meu quarto, olhava a avenida nocturna, de carros permanentes, e tentava recordar-me do pouco que tinha conseguido aprender sobre Cuiabá na internet, não muito. Apesar de toda a incerteza sobre aquele que poderia ser o meu destino na semana que começava, tinha um bom pressentimento, uma vez que vinha para participar num evento de literatura latino-americana, e o melhor lugar para encontrar literatura latino-americana é, até prova em contrário, na América Latina. Acreditava que deveria existir alguma razão para Cuiabá ter o mesmo valor de Brasília somada ao Rio de Janeiro. Aquilo que eu ainda não podia saber era que os organizadores do evento, apesar de me terem comprado bilhete de avião e reservado quarto no hotel, não contavam com a minha presença, não me tinham colocado como participante de nenhum debate ou palestra e comportavam-se como se nunca me tivessem visto, lido ou imaginado. Admiro-me por estar a falar de Cuiabá há já várias linhas e ainda não ter referido que Cuiabá é, hiperbolicamente, o lugar mais quente do mundo. Nas suas ruas de cimento, o calor escorre através da pele em gotas grossas de óleo. A humidade vê-se no ar. A distância é menos nítida, os contornos da paisagem são esbatidos e a respiração é mais difícil. O ar é espesso, como se alimentasse. A gastar duas ou três T-shirts por dia, fiquei em Cuiabá, Mato Grosso, durante sete dias demasiado longos. Aquilo que me incomodava não era o calor ou a cidade, à qual dei poucas oportunidades. Aquilo que me incomodava era não ter conseguido continuar o trabalho que aqueles dias tinham vindo interromper, um romance. Incomodava-me também o ter de viajar quase clandestino, olhado de lado, conversando com ninguém, nos autocarros que transportavam pessoas do hotel para a feira do livro, única distracção. Era também assim na ocasião das refeições. Para chegar à hora e ao lugar correcto, tinha de andar sempre a ouvir conversas porque, ao contrário do que acontecia com os outros escri-

tores, ninguém me informava de nada. Assisti a dois debates dos escritores presentes. Todos eles eram publicados exclusivamente na internet e anunciam, para os vinte desinteressados que se juntavam ali, que todos os grandes escritores actuais, os mais ousados, os mais vanguardistas, apenas publicavam na internet. Esses eram os escritores que estavam sempre – nos pequenos-almoços, nos autocarros entre o hotel e a feira do livro, nos jantares. Além desses, houve dois que chegaram num dia e que partiram no outro. Tinham palestras em nome individual. Eram especiais. Um deles foi o escritor Milton Hatoum que tive a alegria de reencontrar e que, comigo, também não conseguiu compreender o que estava eu a fazer ali. A ele devo um passeio pela Chapada do Guimarães, depois de ter sido necessário convencer o distribuidor dos seus livros no Mato Grosso a levar-me com eles. Tirando isso, durante uma semana, assisti a programas sobre crimes na televisão do quarto de hotel, reparei nos chuveiros que esguichavam água do tecto da Feira do Livro de maneira a refrescar o ambiente e, finalmente, tive tempo para realinhar a minha posição no mundo. Até hoje, ainda não sei ao certo quem foi que me convidou e para quê.


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Pancho regressa ao mar (Coloane, o mais anfíbio escritor chileno) Volodia Teitelboim

Nasceu na fronteira da terra e do mar, na ilha de Quemchi, lugar musical e húmido no sul do mundo. Por isso, era um escritor anfíbio. Na sua geografia austral tão bem mapeada nos seus livros, entre o silêncio e a natureza, entre a vida e a morte, entre a amplitude e a finitude, entre a tempestade e a calma, nessa fronteira do mundo e da alma, Francisco Coloane nasceu, morreu e regressa em cada maré. Francisco Coloane. Fotografia de Eric Facon – Le bar Floréal



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Da sua ilha natal de Quemchi, até Cabo de Hornos e à Antárctida, contemplava o coirón, o pasto das estepes magalhânicas, mas também fixava os olhos nos astros.

Seu pai, capitão de baleeiro, afirmou no momento da sua morte: «Voltemos ao mar.». Quando chegou a hora do filho, este utilizou a mesma expressão paterna: «Voltemos ao mar.» Numa segunda-feira, 5 de Agosto de 2002, despediu-se secretamente de sua mulher Eliana. Transmitiu-lhe também a sua última vontade: não digas a ninguém que morri, espera dois dias. Então, cremem-me discretamente. Em seguida, tal como meu pai, regressarei ao mar. Sempre regressou ao mar o mais anfíbio dos escritores chilenos, com um pé na terra e outro na água. Renova-se o ciclo da natureza que esse autodidacta amava e que converteu, muitas vezes, em alegorias espantosas. Da sua ilha natal de Quemchi, até Cabo de Hornos e à Antárctida contemplava o coirón1, o pasto das estepes magalhânicas, mas também fixava os olhos nos astros. É um dos homens a quem mais ouvi falar das estrelas. No meio das borrascas da Terra do Fogo, sempre observou e amou a paisagem interminável e selvagem. Sabia que, para que este fosse um tema literário e se revestisse de uma grandeza trágica, era necessário que o ser humano a percorresse. Redescobre a aliança entre o homem e a natureza, mas também navega por dentro do caminhante dos últimos confins. Realiza a viagem interior, aventura-se nos nevadas e nos golfos misteriosos, às vezes inarráveis, na psicologia dos tristes, dos ternos, dos cruéis e dos solitários. Francisco Coloane incorporou nas letras universais as terras do fim-do-mundo. E fê-lo com uma das prosas mais precisas e cristalinas da literatura contemporânea. Completou o mapa íntimo dessas latitudes austrais, como Jack London o fez com os extremos setentrionais. Ali entraçou também o nó dramático: não a febre do ouro, mas a quimera do ouro, como um Chaplin trágico, não cómico, que concebe a desesperada busca da riqueza como uma missão titânica quase sempre infortunada. É, com Baldomero Lillo, o maior contista chileno do século XX. Coloane não é um observador ou recriador fotográfico, mas um homem que em cada palavra introduz uma entranha, certo estremecimento que se transmite aos leitores de muitas línguas. É eloquente e sintomático que, de repente, em França, quando fez oitenta anos, tenha sido descoberto como «o milagre Coloane». E que o saúdem e o façam seu em terras remotas. No futuro, quem ler as suas páginas sentirá, também, que está a descobrir algum ângulo desconhecido na


história do coração humano. O que escreveu continua a ser válido para todos os tempos, e as suas obras são traduzíveis para todos os idiomas porque ele falou numa linguagem única e insuperável: a da verdade, da sinceridade e também da esperança e da desolação do homem que procura a felicidade sem a encontrar.

OS PIANOS DO OCEANO Neruda chamou-lhe «o filho da baleia branca», em alusão ao livro de Melville, que Coloane leu apaixonadamente. Mas a verdade é que ele falava pouco de literatura. Quando citava livros, tratava-se de páginas trespassadas pelo sentido, pela tristeza, pela aventura arriscada, às vezes sombria, que chocava com o triunfo impossível. Procurava os amigos para partilhar, falar da vida. Naquelas conversas surpreendíamo-lo indignado perante as injustiças do mundo. Era um homem puro e correcto, ávido de amor. A sua vontade final de morrer em silêncio e de ocultar a notícia da sua morte durante quarenta e oito horas pareceu a muitos estranha. Creio que nunca antes houve um caso assim na literatura chilena. Seu pai, o inolvidável capitão de baleeiro, era desconhecido do grande público, um anónimo cuja morte quiçá fora registada em poucas linhas num diário de Magalhães. Ele quis morrer da mesma forma, em silêncio. Não necessitava de discursos no seu túmulo a recordar quão extraordinário escritor ele era. Sempre se sentiu incomodado com os elogios. Era homem de mar e de estepe que sempre quis estar em contacto com a água e dormir finalmente nas suas profundezas, como mais uma gota ou um grão de sal. Coincidência das coincidências, a primeira coisa que viu quando nasceu foi o oceano. Quando chegasse a sua hora, desejava regressar às suas origens insondáveis. Em França, vi-o num desses tormentosos festivais dedicados aos escritores navegantes. Contava, perante o deslumbramento do auditório, a história desse barco cheio de pianos que ia da Europa para o Chile e naufragou no Estreito de Magalhães. Com o tempo, o mar tornou-se músico porque os pianos começaram a falar e a cantar. Era uma melodia trespassada pelo enigma, executada no teclado, accionando as cordas interiores sacudidas pelo movimento oceânico. Ouviam-se sonatas, patéticas, como lamentos de afogados; allegros, tem-

pestuosos ou insólitos harpejos, ressonâncias inauditas que cativavam os viajantes que cruzavam essas paragens de vida ou morte. Ao que parece, o relato de Coloane é verídico. Não me restam dúvidas de que, para ele, não era apenas real, considerava-o também uma expressão da beleza cósmica. Recordo Coloane como um ser comovido. Não esqueço o seu pranto incontido quando a sua esposa Eliana se encontrava na China e ele não podia viajar para a ver. Fisicamente, tinha traços de gigante harmonioso. Alguém o comparou a um touro, mas, na realidade, usava a sua força física para enfrentar o injusto, o prepotente, o que atropelava a dignidade das pessoas. Desde muito cedo que se definiu politicamente, entrando, primeiro, para o Partido Socialista e, depois, para o Partido Comunista. Nunca quis ser dirigente nem ocupar cargos. Considerava-se uma pessoa das bases. Queria viver, viver em plenitude, escrever, seduzido pela beleza e animado pela bondade. E há que usar a palavra bondade porque o define bem. Para Pancho, não há lugar para um adeus, mas sim para um até sempre. Nobre Irmão. Incomparável. Um dos homens mais puros que passaram entre a terra e os vendavais, para instalar-se agora na sua morada ancestral, a do pai: o mar de todas as tormentas e dos mais rasgados horizontes. 1 No Peru e no Chile, designa uma planta gramínea, de folhas duras, muito utilizada para tectos de cabanas. (N. da T.)

Um dos homens mais puros que passaram entre a terra e os vendavais.


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Com o coração na boca (La Bombonera) Maria Mansilla

Há um lugar neste planeta onde, quando se diz boca, não se fala de anatomia, nem de fome, nem de beijos. No paralelo 56 e abaixo do Trópico de Capricórnio, a palavra começa com maiúscula. Pronunciá-la é nomear um bairro de Buenos Aires e, simultaneamente, um clube de futebol argentino. La Bombonera. Fotografia de João Ventura



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[…] Boca revela a outra face: boémia, operária, anarquista, popular, parecida à Pequena Itália que os exilados da Europa oitocentista geraram. Há um lugar neste planeta onde, quando se diz «boca», não se fala de anatomia, nem de fome, nem de beijos. No paralelo 56 e abaixo do Trópico de Capricórnio, a palavra começa com maiúscula. Pronunciá-la é nomear um bairro de Buenos Aires e, simultaneamente, um clube de futebol argentino. Mas não se trata de um bairro qualquer, nem de uma equipa qualquer. A história que os une tem mais de 100 anos e é necessário contá-la porque já não a reconhecemos nas suas ruas. Da sua rambla é difícil imaginar que este porto de barcos oxi-

dados fosse outrora um porto internacional; e que este rio imóvel, o Riachuelo, tivesse alimentado a sua gente. Mas quando alguém se submerge nos seus «becos», a Boca revela a outra face: boémia, operária, anarquista, popular, parecida à Pequena Itália que os exilados da Europa oitocentista criaram. As casas de chapa e madeira são o seu património. Mas não o único. Hoje, a popa é o rio, como fonte de trabalho e horizonte, a sua proa é o gigante de cimento que a Boca abraça: o estádio. Boca Juniors é a sua paixão e, ao mesmo tempo, a sua anestesia: acelera o pulso dos 43.413 habitantes, cada vez que joga em casa. O clube, fundado em 1905 por iniciativa de cinco italianos, pode contar com Maradona entre os seus adeptos e ter a celebridade do Manchester United, mas existe um segredo que o torna único: os seus seguidores conservam um valor de outros tempos, a incondicionalidade. «Estamos acostumados a sofrer», é o seu orgulhoso argumento. Como poderiam ter outro carácter, se foram esses estrangeiros determinados que impuseram o estilo?! Na Argentina, em cada 10 adeptos de futebol, 4 são do Boca. Por isso os boquenses agem como se estivessem num mundo à parte. Como se vivessem em Roma na época do Império. «Ninguém pode morrer sem ter visto um superclássico entre o Boca e o River (o seu eterno rival). Claro que esse último e necessário acto da existência não deve concretizar-se em qualquer cenário, mas sim, infalivelmente, na Bombonera», sentenciou o diário inglês The Observer. Ficar no «peão» deste estádio, em forma de caixa de chocolates, é uma experiência inesquecível: os asso-

bios dos fanáticos parecem uma invasão de gafanhotos. Como eles explicam melhor: «o estádio não palpita, vibra». Todos querem estar ali. Até a Coca-Cola teve de trocar a camisola vermelha e branca, coincidente com as cores do River, por uma preta e branca, para entrar. O clube que foi campeão do mundo tem uma infra-estrutura à altura das suas circunstâncias. Como «Shock room» e equipa de socorristas própria. Habitualmente, os guardiães da saúde curam entorses de tornozelo e quedas. Excepcionalmente… sim: aconteceu. Uma vez, deram assistência a um homem a quem tanta emoção tinha atacado o coração. «Todos têm medo de vir à Bombonera», disse o jogador Martín Palermo, em jeito de metáfora. É que a Boca é constituída por bancadas dispostas frente a frente. À volta de Caminito, os 100 metros mais turísticos de Buenos Aires, cortiços restaurados for export assemelham-se aos autênticos, que resistem como podem à ameaça de desmoronamento. A velha ponte de ferro une a Capital Federal, o distrito mais rico, com a província de Buenos Aires, uma das mais pobres. O clube brilha com murais de artistas famosos enquanto, em frente, pode ver-se outro mural estampado com fuligem. Por isso, nos dias de semana, a realidade do bairro, declarado, há anos, em emergência habitacional, suspende-se e emula dentro da Bombonera: nas aulas de alfabetização para adultos, de apoio escolar para meninos e meninas, de inglês, de guitarra, de fotografia, de xadrez. Mundos paralelos convivem no Boca e gritam, atraem-se, repelem-se. Mas nem sempre. Sempre, excepto aos domingos.


Mundos paralelos convivem no Boca e gritam, atraem-se, repelem-se. Mas nem sempre. Sempre, excepto aos domingos.


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La Boca. Fotografia de João Ventura

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A MARESIA DO MUNDO

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Mar absoluto António Ramos Rosa

Que força admirável nos move e nos comove de puro instinto e de redonda força tão suave na sua descida de desejo de que nascente veio e sem história é o mar absoluto oh gravitação de delícia oh afluência marinha de vogais deliciosas de lascivos sorrisos e de melodias de uma só oferenda oh suave maravilha de que divino vigor oh mar sem máscaras de tantas bolhas suaves oh mar sequioso como um rei ébrio oh mar tão lento e tão lentamente imperador

Fotografia de João Mariano



RESIDÊNCIAS NA TERRA

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Mário Cesariny Duarte Belo

O objectivo era fotografar o universo criado por Mário Cesariny, e por si habitado, em Lisboa. Num lugar confinado, que pouco excedia um quarto pequeno, cabiam o espaço e o tempo infinitos. Por todo o lado existiam objectos que se abriam a uma pluridimensionalidade, que nos transportavam. Eram como janelas para espaços maiores e mais vastos. Retrato de uma vida e face de um homem. Fotografias de Duarte Belo de um trabalho encomendado por João Pinharanda para a Fundação EDP



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Pertença e contradição Lídia Jorge

Terão os escritores um lugar de pertença? Poderão eles, simultaneamente, pertencer ao mundo, mas também a uma terra, a um lugar? Lídia Jorge transporta a herança de um lugar que olha o Sul a partir de Sagres. Mas transporta-se também na literatura onde se funde o segredo do mundo que se derrama nas páginas da sua escrita.Talvez, por isso, não haja aí qualquer contradição, antes uma dupla pertença.


Antes que nos cubra a pedra por lavrar antes que o lavrador perca a partilha Um monumento exacto há que erigir entre a Batalha e a Bastilha. Luiza Neto Jorge

1. Discorrer sobre a noção de pertença, como sobre a noção de cisma, traição ou singularidade, significa invocar um estado de lucidez e exercitar uma capacidade de raciocínio demonstrativo que, em geral, estão ausentes no processo que transforma o sujeito num escritor de ficção. No que me diz respeito, a simples invocação do tema transporta-me directamente até aos lugares ambíguos da Literatura, e a ideia de partilha da pessoa entre si e si mesma, como ser criador e como criatura, expressão de pertença para a qual os gregos encontraram definitivamente a palavra ethos, põe-me diante dos olhos, em vez de raciocínios, a última página da Ilíada na qual vejo o enterro de Heitor, o corpo cremado de Heitor, os seus restos mortais reunidos dentro duma urna de ouro, amortalhado sob o olhar dos Aqueus, como anúncio do enterro inevitável de Tróia. É assim, indo beber demasiado longe, que me chega a noção de corpo como metáfora da terra donde se vem e para onde se vai, porém, terra, porção de poeira nomeada com letra maiúscula, a que cada um chama de sua pátria. Como noutras situações se chama família, comunidade, mito ou língua. Contudo, a noção de pertença nem sempre é servida por imagem tão unívoca nem tão heróica como a representação do domador de cavalos, em prol da sua pátria, por mais brilhantes e rumorosas que sejam essas últimas viagens. Pelo contrário, este é um território sem caminhos direitos nem simplicidades fáceis. Começa pelo facto de que pertencer pressupõe antes de mais um génesis, o que significa, à

partida, que fazemos parte de alguma coisa que estava feita antes de nós e nos proporcionou o ser antes da existência. Significa sermos do mundo dos outros, termos nascido da vontade ou do desejo dos outros e não podermos ser independentes deles. A pertença ou, pelo menos, os grandes mitos da pertença começam aí e, por isso, para falar deles é inevitável percorrermos o território involuntário da infância. Aliás, para quem suspeita que a existência se desenvolve segundo um panorama de «regiões» sucessivas que se vão dando-à-luz umas às outras, a ideia de se descortinar nas vivências iniciais o indício de todas as metáforas da vida proporciona, no âmbito de questões como as da pertença, um munus inestimável de efeitos e causas legíveis – o nosso corpo como pertença de vários regaços, entre eles o da família. A segurança da paisagem como alimento para a concepção da terra, onde está a pátria. O discurso materno como alimento da fala onde está a língua. A permanência dos saberes iniciais transitáveis de geração em geração, como construção dos mitos. Ou a magia da vida sincrética, indistinção entre nome e coisa, relato e facto, como mãe inaugural da literatura. Tudo isso se pode encontrar a residir na infância, como lugar fundador onde as raízes mais fundas estão. Diz o senso comum que a pertença se fundamenta na configuração dos primeiros abraços, nas primeiras viagens através da terra, nas primeiras ligações ao mundo e à multidão, esse feixe de actos que nos atam aos outros e às coisas para sempre. Por isso pertencer, independentemente do lugar que aí se ocupa, significa ser do outro, de outra coisa, ser do mundo. E a


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escrita vive disso, dessa sopa mágica indistinta que alimenta a Arte como interpretação do mundo. Mas o movimento da escrita, o impulso que revela o escritor não apenas como transmissor de heranças, antes como criador de novas paisagens da alma, bem como a energia que o pressupõe, é na metáfora da adolescência, essa outra região mental onde se desenha em todo o indivíduo a traição à sua tribo, que se deve procurar. Tenho para mim que é na repulsa pelo conhecido, repulsa contra a família, contra a terra natal, os mitos locais, a língua materna, os livros dos seus avós e da sua nação, que se faz o adolescente que deseja ser outro, ser diferente, fundar o seu próprio horizonte e o seu próprio tempo, ser pai de um novo mundo, ser patriarca duma nova tribo. À semelhança do escritor, e vice-versa, o adolescente quer conhecer os limites do universo para se auto-avaliar como aquele que deseja transpor o portal do desconhecido. Aliás, à imagem do adolescente, todo o escritor deseja inaugurar um olhar inovador sobre a realidade e a fantasia, e em geral, confessada ou inconfessadamente, é corrente vislumbrar o futuro da sua própria obra não como descendente mas como fundador. Por isso, em relação à noção de pertença, a Literatura aparece como um território armadilhado pela contradição de nela se negar o que não se pode alienar nem se consegue perder.

2. É à luz desse duplo movimento de sedução pelos territórios da pertença e simultânea repulsa pelos mesmos que melhor entendo escritores cuja emoção literária me faz com frequência revisitar os seus livros. É assim, por exemplo, que entendo Curzio Malaparte, seu amor e aborrecimento pelo seu país, seu envolvimento e ódio pela Europa da sua época, a que chamou com desespero derradeiro de «Mãe Apodrecida». Ou Faulkner, do outro lado do Atlântico, ao mesmo tempo tão adverso e tão no âmago do seu Sul conservador norte-americano, contra o seu meio contemporâneo ainda meio esclavagista, e em simultâneo rente à autopunição colectiva de que era parte e com

a qual se confundia. Ou o contemporâneo Milan Kundera, inseparável do mundo checo de que se fez crítico, fugitivo e ao mesmo tempo, na força da sua dissensão, exímio porta-voz da afasia de um povo dominado de que na altura se auto-excluía. É assim que entendo Virginia Woolf, em cuja personalidade as correntes culturais que agitavam o Ocidente no princípio do século XX encontraram ressonâncias extraordinárias. Mas a impetuosidade criadora mais genial dessa figura singular parece ter-se formado contra outro tipo de pertenças – as próximas, as domésticas, as familiares, as nacionais, as do mundo íntimo contra o qual se forjou a elite de Bloomsbury. Antes de mais, uma fuga e um corte com a convenção inglesa. Aliás, em Portugal, o exemplo mais eloquente desse cisma continua a corporizar-se na figura de Eça de Queirós, escritor realista do século XIX que concretizou toda uma obra de carácter irónico excepcional, em torno da contradição entre a pertença negada e a espectacular fuga fingida em relação ao seu país. Distantes ou próximos, em todos vislumbro o mesmo movimento de dissidência, o mesmo desejo do caminhante incorrigível de ganhar o largo, ainda que carregando às costas, sem saber, a soleira da porta donde saiu para não mais voltar. Em relação à questão da pertença, é no meio desse tipo de contradição que me vejo. Contradição que é feita de múltiplos elementos, tecida de infidelidades várias e dissidências complexas em torno do que é a questão central entre ser e não ser, ou ser e não se conhecer a natureza do que se é. Como explicar a pertença, ou mesmo descrevê-la, se pertencer é uma questão central, e no entanto cada um começa por não saber definir-se enquanto pertencido? As próprias áreas da pertença se cruzam e mesclam indefinindo-se mutuamente. Muitas vezes tenho a ideia de que, mais do que à sociedade, pertenço às ideias. Mais do que à família, pertenço aos que amo. Mais do que à Língua, pertenço à Literatura. E, mais do que a mim mesma, pertenço à dúvida. O que significa que eleger campos de demonstração simplificados implica torná-los visíveis, mas ao mesmo tempo traí-los e, na complexidade da sua raiz, perturbá-los. Mas não resta outro caminho senão o das simples evidências.


3.

4.

Assim, a minha primeira ideia, antes de mais, é que acima de tudo pertenço ao mundo, ao mundo contemporâneo que me é dado viver, sendo aí, no seu campo de metamorfose contínua, que encontro o território adequado para perguntar e responder, suster e transformar, acções que mais faço coincidir com a vida. Ela própria me diz que pertencer significa, como primeiro dado, fazer parte do devir imparável que é o presente, que cada dia amanhece mais adiante e a cada momento funda uma nova era, como disse Musil, e cuja delimitação em ter mos geográficos não tem significado, ou pelo menos parece não ter. O meu campo de pertença, existência e observação coincide com um novo «admirável mundo novo», dele fazendo parte e dele aproveitando os benefícios de comunicação e conhecimento nunca antes imaginados, mas também contra ele reagindo no seu excesso de desumanidades várias. O meu sentido de pertença e sentimento de ser palpável, antes de tudo, define-se em função dos obstáculos à utopia para que aponta o progresso do tempo, como são os objectos inúteis, os objectos de fogo, os detritos, os efluentes ou a imparável pavimentação da terra, sabendo que lhes pertenço, mas que os combato como a castelos inimigos inexpugnáveis e ocupo grande parte dos meus dias em contenda com isso. Julgo mesmo que, em parte, escrevo sobre a ansiedade por uma espécie de harmonia imaginada e integro esses elementos como partes de um território de incursão e contenda, perante o mundo que se constrói a uma velocidade incontrolável e com uma opacidade ameaçadora. Uma espécie de pertença contenciosa, gerida sob a iminência do futuro, em torno duma globalidade genérica que contém homens lá dentro. Homens que não sei se vão ser livres. Então surge-me a ideia de que o território primeiro a que pertenço é o dos homens, na abstracção do conceito maiúsculo de Humanidade e na generalidade do Tempo. Mas isso não é verdade, ou pelo menos é apenas uma parte da verdade, no que diz respeito à profunda pertença.

Quando ocorre ler o que escrevo, percebo até que ponto, de mistura com os elementos duma utopia dirigida ao futuro, de carácter pretensamente universal, transporto comigo o lastro dum passado histórico determinado e a raiz duma nação concreta. A própria avaliação que faço do presente e do futuro não está isenta dessa informação à qual, de forma involuntária, pertenço. A escrita, pelos actos involuntários que envolve, pelos gestos apelativos que não acautela, revela faces ocultas e indistintas de que nos julgamos destituídos. Na sequência da primeira imagem ocorrida, eu diria que, através dela, o ethos, ou os rostos dos Heitores que existem amortalhados, desfigurados, ou mesmo invertidos, dentro de cada um, falam por si sem auxílio de qualquer voluntariosa pertença. Ao lado de gestos displicentes ou até de desprezo propositado contra a nação, sem querermos, Tróias, na iminência de desaparecerem sob várias camadas de areia, reluzem dentro da nossa cabeça, na sua importância de cidadelas mentais. A escrita revela isso, como se não pudesse deixar de ser um espelho de faces que não conhecemos ou que, existindo, não gostamos de desvendar. Só assim entendo que, de mistura com o confronto que mantenho com o presente enquanto sua parte, me encontre envolvida com os mitos profundos que governam o imaginário dos portugueses e justaponha o enigma do tempo que passa ao enigma que empurra a configuração particular do meu país. Percebo, por exemplo, que transporto desde a infância a notícia duma espécie de proeza acontecida no dealbar do século XVI, de que os portugueses foram autores principais indiscutíveis. Concretamente, transporto um sentimento próximo da estupefacção, pelo facto de um pequeno país, na altura com pouco mais de um milhão de habitantes, ter sido capaz de entregar à Europa dois continentes até então desconhecidos e ter aberto por mar caminhos alternativos para se atingir os outros dois. Em suma, ter entregue a Terra redonda ao Mundo tal como ficou para sempre e com tudo o que se lhe seguiu. Embora rente aos mitos de grandeza também estejam as perplexidades e os mitos que lhe são opostos. Dificilmente consi-


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go ultrapassar imagens controversas desse tempo e sempre imagino, quando as nomeio, figuras como as de António Faria assaltando e pilhando barbaramente, segundo as páginas da Peregrinação, ou como as do seu vice-rei, Afonso de Albuquerque, conhecido pelos orientais como o «leão dos roubos do mar». Vejo, com a ajuda de Pessoa, «dedos decepados sobre amuradas» de barcos portugueses, imagens de crueldade infinita desencadeadas à sombra da bandeira de Cristo, abençoadas pela mitologia da época como uma luta limpa em favor da Fé e da fraternidade no céu, matéria formidável para a interminável continuação da «História Universal da Infâmia». Lados tenebrosos sobre os quais se estava a construir então uma futura modernidade saída em simultâneo da coragem e do abominável. De qualquer modo, mesmo quando só para visitar os seus lados escuros e os desdizer, vou lá, vou aos mitos do passado do meu país, como se eles concorressem de longe para a compreensão deste presente inapreensível onde me movo e contra o qual disputo, porque lhe pertenço.

5. Então fico a pensar que o enigma dum tempo e duma nação se assemelha também ao enigma pessoal como partes infinitamente assimétricas mas da mesma espécie, e julgo que afinal, mais do que à questão do território e da História, pertenço ao enigma da natureza, sobretudo a comummente designada por natureza humana. De facto, interessa-me a pessoa, mais do que tudo, pertenço ao dilema da pessoa, ao território da sua intimidade, ocupo-me da sua composição, suspeitando que a divisão entre corpo e espírito é uma complexa equação sem resolução possível. E talvez seja esse o meu território de incursão e confronto, logo de existência e de pertença, que mais privilegio. A pessoa como contra-destino e destino. Nesse domínio, há muito que me encosto aos olhos alucinados de Emily Dickinson, proferindo com a ajuda dos seus lábios vivos palavras de sedição – «Poeira quieta, tu que foste damas e cavalheiros» (Cette paisible poussière fut messieurs et dames). Digo em voz alta. Eu mesma fico quieta

e muda, à espera que a poeira se mova e se revele. Não revela. As próprias palavras na surpresa do seu encontro são a revelação. Não há outra. Então socorro-me dos escatológicos, aqueles que, desesperados pela ausência de um nome justo para o habitante do corpo, invectivam o corpo, o anatomizam e o descrevem como órfão de uma paternidade inominável, e o vêem ligado à terra e ao estrume como a ficha se liga à tomada. O biodegradável corpo exposto, na expectativa de nomeação, à espera de um princípio que o salve de ser nada. Ou penso, com a ajuda do austríaco Ernest Jandl, as suas próprias palavras – «la machine à merde est pour l’essentiel en toi/ miracle de la création, merveille chancelante/ tu n’es ni son ingénieur ni son inventeur/ mais son propriétaire, gardien et profiteur». Pronuncio assim mesmo essas exactas palavras de abjecção, porque elas traduzem o sentimento dos que se sentem sem-terra de tudo ser só terra, se sentem sem-corpo, de tudo ser só corpo, a ligação cortada entre o céu e a matéria. Cortada, como um estado decepado, um trauma. Eu própria acho que nunca escrevi nenhuma página que não tivesse essa inquietação implícita, mesmo quando não expressa. Mais do que a um lugar ou a uma viagem, pertenço à região desse ferimento e à inquietação que o sustenta.

6. Só que, de novo, atrás do homem está a História, mesmo quando reduzido ao papel fantasioso de personagem comum. Na verdade, mesmo quando julgo o contrário, descubro que jamais escrevi apenas sobre a fotografia da mãe antiga colocada sobre a aba da mesa moderna. Sem o desejar, o mundo donde a mãe e a mesa procedem arrastam rios de tempo significativo e lugares habitados por gente histórica, fazendo confluir atrás de si todos os outros elementos de pertença. Em ficção, a espera de um laço salvador que una as metades do corpo, com a outra parte que o nomeie, toma a forma de personagens comuns que devem viver só por si e, em simultâneo, entroncam no destino de personagens herdadas de há séculos, por estranho que pareça. Talvez porque dos mitos – aos quais de novo voltamos – sobejem partes móveis que caminham activas ao encontro do


presente, desde que o presente ainda os continue a entender como traumas e coincidam consigo. É o caso do sebastianismo, entre nós, por exemplo. Trata-se da história dum jovem rei lunático, sem filhos, que desapareceu em luta contra cinco reis mouros, nos areias do Norte de África, no final do século XVI, e donde nunca mais voltou nem vivo nem morto, dando origem a uma expectativa de regresso salvador que foi passando de século em século. Figura real enlouquecida, misto de Quixote e Godot, foi permanecendo até hoje, no meu país, confundindo-se com a noção corrente de que o bem e o bom estão do lado de fora, que tudo o que há a fazer é deixar a porta aberta para que aquele que vem possa entrar. O mito é terrível pelo imobilismo que arrasta. Diria mesmo, aparentemente, desajustado à realidade actual. No entanto, como muitos outros, através de algumas personagens, percebo que eu própria o transporto, mesmo que deseje fugir do país que o contém e o renegue por deliberação tomada. Pois por que razão o não transportaria eu como os outros, como cada um? O universo duma população é feito por acaso de números abstractos? E não é quem escreve uma pessoa comum? Então por que razão, quando me pergunto sobre o destino do corpo e a natureza do seu habitante invisível, hei-de estar a salvo desse terrível fantasma que habita os cantos do meu país, alma sem corpo, fantasma no corpo de gerações e gerações sucessivas de gente que o perdeu e nunca o encontrou? É vergonha dizê-lo? – Quando menos me dou conta, percebo que, esgotado o vocabulário da dúvida, eu mesma pertenço aos fantasmas. Mas há mais. Por exemplo, durante séculos, o corpo geográfico do império funcionou como uma realidade descomunal. Desde o século XVI que os portugueses se gabavam, com a ajuda dos versos de Camões, de jamais se pôr o Sol nas terras de Portugal, aquém e além-mar, sendo África, depois da independência do Brasil, a jóia mais preciosa da coroa, destino transcendental da pátria. Mas no final do século XIX, estabelecida a disputa entre as potências europeias pelos domínios africanos, Portugal foi vencido pelos ingleses na contenda da partilha de África. Ainda hoje o hino nacional português, nascido na sequência do célebre mapa cor-de-rosa,

mantém os vestígios desse terrível momento de perturbação. Acaso não se reconhece no refrão do hino nacional, «Heróis do Mar», a letra primitiva «Contra os bretões, marchar, marchar...»? Na altura, uma das formas encontradas para reagir à perda? Não admira que o ridículo e a perda sejam comportamentos que passam para os domínios próprios da Literatura, mesmo que ela seja, por natureza, muito mais transfiguração do que retrato. E setenta anos depois, em relação a esses mesmos domínios em África, não ficaria envolvido o país numa Guerra Colonial fora de horas, tão dolorosa que ameaçava fazer apodrecer todo o tecido social, e que viria a terminar, fora de horas também, por uma perda tão grande que ainda hoje não se consegue gerir com decência, nem do lado de cá nem do lado de lá? Pois talvez seja difícil a qualquer escritor da minha geração falar do corpo e do fluido que o anima, sem que a referência ao esfacelamento inglório de contingentes inteiros ocupe um lugar de destaque. É mesmo capaz de ser difícil, para uma pessoa que fez a guerra de África ou a acompanhou, e teve o seu primeiro embate com a morte desse modo e nessas paragens, de não perguntar pelo sentido do corpo, vendo diante de si gente esmigalhada, entregando o corpo à terra no meio do mato, por uma causa de nada. E quem diz o sentido do corpo diz o sentido do dever e do desejo, e do amor, talvez o da morte em primeiro lugar. A prova de que uma parcela de nós mergulha no terreno colectivo de que faz parte, sobretudo se parte das narrativas que o constroem ainda não estão fechadas.

7. No caso do tempo presente, porém, todas as narrativas se encontram abertas, dispostas à transfiguração, sobretudo quando o presente que testemunhamos e vivemos se afigura enquanto problema. Há momentos e países que pela sua situação de aceleração histórica, ou por confluência de factos, se encontram mais disponíveis à transfiguração do que outros. No caso português, a própria natureza das mudanças ocorridas durante os últimos vinte cinco anos torna inevitável, ou pelo menos propicia


OUTRAS INQUIRIÇÕES

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fortemente, a criação do outro relato, o ficcional, aquele que Carlos Fuentes designa por «criação de uma segunda história que cega e diminui a dos historiadores de arquivo», baseada apenas na memória e nos projectos pessoais. A propósito da Literatura portuguesa recente, é corrente referir-se essa coincidência. Mas aí também, como em tudo o mais, sempre se pertence às conjunturas históricas por círculos concêntricos, de intensidade diferente e de vária natureza. Nesse domínio, mais do que ao meu país de há vinte cinco anos atrás, pertenço à determinação e ao acontecimento que lhe mudou o rumo. Pertenço à matéria palpável da alegria que aconteceu na sequência duma revolução que pôs termo à ditadura de meio século que se havia abatido sobre a sociedade portuguesa desde os longínquos anos vinte, até aos anos setenta, ditadura sustentada por elites sem qualquer noção de partilha e por um povo iletrado e supersticioso destituído, na sua generalidade, de qualquer noção de revolta. Pertenço ao dia em que essa cadeia de equilíbrio recíproco se quebrou, em que fui testemunha de como é possível inverter a marcha do que parece inevitável, pela força da coragem pessoal de um grupo. Pertenço a esse momento como a um ponto de encontro entre a justiça e a inversão do destino, em forma de gente, milhares de fotografias a preto e branco, com flores vermelhas. E porque essa certeza foi adquirida quando a juventude ainda se assemelhava à adolescência, ela incorporou-se no sangue, ou no genoma, ou seja onde for, e transformou-se numa espécie de segurança que me sustenta o ser. Ou melhor, esse momento habita comigo como um ente querido, tem corpo e ocupa espaço e reivindica gestos, como uma pessoa de família. Pertenço a esse momento como se pertence a uma geração, e penso mesmo que a minha geração, se existe enquanto consciência, está concentrada em torno desse acontecimento. Assim como pertenço à sociedade que daí saiu, a braços com a redefinição dos seus vizinhos, seus aliados, seus novos valores e duros percursos, suas metas demasiado altas para serem atingidas demasiado rápido. Uma sociedade na generalidade constituída por gente muito pobre que rapidamente deseja ser muito rica. Mais do que ser democrática ou estimar os valores da partilha, do saber e do discorrer livre. Porque

uma parte dela, muito mais do que era suposto imaginar, continua a desejar prolongar estruturas mentais que faziam o mundo antigo. Nesse domínio, pertenço-lhe por repulsa e por mágoa. Pertenço-lhe por inevitabilidade de lhe pertencer. Por isso, mais do que à sociedade dentro da qual sou número e tenho um nome civil, pertenço ao mundo dos meios que a reproduzem por palavras, a lêem em termos críticos ou mais propriamente a alteram e a transfiguram. Pertenço-lhe com a mesma contradição com que pertenço ao tempo contemporâneo.

8. Pertenças várias e inúmeras que funcionam como laços mas também como destinos e condenações, ou como matérias-primas, no caso de se encontrar o veículo que as transporta para o lugar do não-destino. Por exemplo, a Literatura, que em si mesma é um espaço de corte e liberdade. E que dizer sobre isso? Que pertenço à Literatura, campo das palavras libertas do real, e dentro dela à ficção, o terreno da transfiguração dos factos em actos simulados. Na verdade, a sua natureza e função consistem em escolher, inverter, desfigurar o que está dentro da matéria das pertenças, de modo a produzir-se uma nova realidade verdadeira, que não se opõe à realidade falsa, e nesse salto de qualidade e espécie consiste a criação, isto é, o acrescento de alguma coisa ao mundo que antes lá não estava. Naturalmente que se pertence à Literatura e à ficção sem a noção dessa importância. Começa-se por se pertencer porque sim, porque acontece, porque se tem a ideia, como leitor, de que se pode sonhar. Depois é que se entende que se pertence a uma matéria que se desprende da prisão do real, para dizer que ele não é suficiente, impondo-lhe uma nova lógica, ou tornando-o visível nas suas partes vivas, lá onde havia um limbo amalgamado. E na participação dessa acção de liberdade consiste nascer o criador que é o leitor e é o escritor, diferentes, mas irmãos. Nascer e crescer no espaço de liberdade que permite abrir uma nova possibilidade entre as outras e, desse modo, à reprodução de qualquer dilúvio


terrível que esteja em nossa mente, sempre se pode juntar uma barca. Pelo menos, se outra não for, que seja a própria barca das palavras, a que melhor une um a outro. Ou, por outras palavras, a Literatura, e dentro dela a ficção, permite que a corrente falada em todas as direcções como uma matéria optativa permanente transforme o outro num igual a mim mesmo e se crie um corpo de afinidades consentidas, responsabilidades cruzadas e culpas divididas, já que procura atingir, através de cada personagem, simulacro de gente, o coração profundo do homem, esse local onde as diferenças se esbatem em torno daquilo que faz cada um dos implicados pertencer a um todo. Determinada noção profunda de comunidade só se aprende na Literatura. Nesse sentido, para alguns leitores da minha geração, o romance Por Quem os Sinos Dobram acabou por ser muito mais importante pela epígrafe que permitiu o título do que pela longa narrativa em si mesma. Hemingway apenas copiou, como portal da primeira página desse livro admirável, a invectiva de John Donne – «Nenhum homem é uma Ilha isolada; cada homem é uma partícula do Continente, uma parte da Terra; se um Torrão é arrastado para o Mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um Promontório, como se fosse a Casa dos teus Amigos ou a Tua Própria; a Morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do Género Humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por Ti». Pertenço à Literatura e dentro dela à ficção, por esse serviço que presta à totalidade, em torno dos desejos que nos são comuns, traduzidos em imaginação pela palavra liberta. Em Literatura, não há imobilização nem morte de Heitor. O monumento de pedra que não se ergueu entre a Batalha e a Bastilha está sempre a erguer-se. Um e outro são válidos sem a fronteira das palavras das línguas, agarradas à circunstância geográfica. Aliás, na contradição entre pertencermos e libertarmo-nos daquilo que pertence à Língua, que sempre escreve o modo do nosso pensamento antes de nós próprios podermos escrever, e connosco se confunde como parte do nosso corpo, a língua materna é uma liberdade e ao mesmo tempo uma condição insuficiente. Neste campo, seria mesmo uma falta não dizer que pertenço à Língua portuguesa. É com

ela que estabeleço a minha luta e o meu confronto e os meus actos mais livres que são os de dizer. A exaltação das suas virtudes e possibilidades não pode ser regateada. Existem monumentos infindáveis de elogio à minha língua e concordo com todos eles. Mas por vezes dou por mim à procura de nuances que não apresenta, modos que impõe, liberdades que me tira ao lados das liberdades que dá. Talvez, como em todos os outros idiomas, faltem nela palavras para traduzir sentimentos complexos onde os vocabulários são simples. Faltam chaves. Faltam, por exemplo, termos para traduzir a voz dos seres que se movem e nos imitam nos actos do sono e do amor, mas não falam nenhuma linguagem que se entenda. Faltam as palavras para traduzir o que diríamos se fôssemos seres inanimados que não nos dizem nada e nos quais julgamos existir uma natureza significativa. Uma vez que somos pouco e o mundo da expressão é vasto, por que razão as línguas não são tão vastas, nem tão dúcteis, nem tão universais quanto sonhamos para que a Literatura seja um campo sem barreiras? De facto, a vocação da Literatura é fundir-se com o próprio segredo do mundo que permanentemente questiona, como se antes de nós tivesse havido um acto interrompido e as palavras acima das fronteiras das línguas ainda pudessem ligar o mundo ao seu sentido. Estar aí, saber que não posso sair desse dilema nem o posso resolver, é a minha pertença.


A MUDANÇA DA TERRA

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O retratista de corações Luísa Monteiro

Praia da Rocha, anos 50. Arquivo Museu Municipal de Portimão


Pareciam sempre velhos, sempre branca a barba rala, ramela ao canto do olho cansado de tanto azul, sentados nas areias. Finas. Sul. Permanentes nos seus rolos de espuma, as ondas cantavam nas madrugadas molhadas a saudade da ternura das mulheres – e elas secando, secando na enxerga do desejo: como medusas lançadas ao sol. Tal gaivota alada, surgia então o acenar de uma grossa e calejada mão de remo e era a riso de feno que cheirava o mar; bafo molhado de pão. Chegavam sem amarras, embriagados de mar, oscilando, lembrando que não devia tardar a manhã para sonhar. (Amar). Depois, o arrieiro enchia as duas canastras de empreita, feitas de paciência e paixão num serão de sono e calafrios femininos. Enchiam-se de sardinhas, carapaus, safios, cheias ficavam como seios redondos prontos a amamentar, prontos a parir, era hora de partir. Como se de uma loucura se tratasse, o velho arrieiro enlaçava com um baraço as duas taças de vida, quais laços de cetim em roda de cinturas virgens, entrançava, cobiçava a forma fresca daquele festim (que embaraço pensar em coisa alguma que não fosse fincar os pés descalços na areia fina). Cada canastra na margem da vara, varada a testa de suor, toca a levantar, elevar aos magros ombros e carregar, toca a andar, do mar à lota, nunca afrouxar até arrear, gritar, propagandear, o preço baixar até que alguém o braço levante, «chui!», era a forma de assinalar negócio tão marinheiro, incerto, matreiro... (Quanto menos malandro, mais o pão é traiçoeiro). Fazia-se então manhã ante os olhos, fria ante os dedos dos pés. A praia enchia-se dos primeiros banhistas às riscas, risonhos, redondos, rosados, rolantes. E logo lá em cima no passeio, imponente, mágico (nada vale a pena se não for mágico), surgia o retratista, com o cavalo de madeira ao ombro (tentador) e uma senhora pernalta de saia preta na mão (assustadora). Todos sabiam o quanto ele mentia. Dizia-se dono do tempo. Entre a taberna e o barbeiro, o cigarro e o pano preto, o

retratista prometia um passarinho em troca de 25 tostões. E a praia ficava deserta de crianças. Todas queriam chegar ao cavalo do tamanho de trazer pelo primeiro sono. E quando as mandava ficarem quietas, de laços brancos a penderem-lhe da testa sombria, parecia que o cavalo de madeira de cor esbatida pelo sol ganhava vida. (E se o cavalo agora voasse, se galopasse pelas ruas? Não haveria retrato com tons de espuma, madrugada e luas). O retratista mandava no tempo, até o mandava parar – para poder espreitar pelo grande e negro olho mágico os corações nervosos das crianças. Conta-se a história que houve um arrieiro velho que aguardou toda a manhã pelo passarinho, imaginando-o a esvoaçar a partir dos olhos azuis dos meninos que montavam o cavalinho de madeira pintado de branco, com uma sela amarela, ou então da saia preta em que o retratista mergulhava a cabeça, ou talvez da sua boca vermelha. Mas, à medida que as caixas metálicas de retratos instantâneos foram crescendo nas esquinas acolhedoras de maresia, o cavalinho foi apodrecendo na praia; há algas ainda a fazerem das farpas jangadas de saudade, porque já não há retratos com as cores da alma e laços brancos enfunados sobre a testa. Nem canastras, nem canastras... Os retratos de agora já não têm a aragem vinda do bater de asas do passarinho, aquele que renascia sempre que uma criança se sentava no dorso do cavalinho de sela amarela, com brisa de mar nos rolos de cabelo. Era assim há meio século. Agora, o retratista encontra-se escondido atrás da lua, com o manto da noite inteira sobre a cabeça; está a fotografar as ondas azuis, as que se levantam mais alto por causa da bater d’asas da alma do passarinho... e cada retrato, ainda pelo preço de 25 tostões. Sabe a modernidade que o velho arrieiro trocou o coração de mar por um retrato. Sem cavalo de madeira, nem sela amarela. E, talvez por timidez ou incerteza, ocultou o olhar com óculos de sol importados.


A COMPANHIA DOS LIVROS

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Gastão Cruz

A moeda do tempo

ASSÍRIO

& ALVIM

O poeta derrama o corpo e as emoções na praia do poema, onde se espraiam as coisas contemporâneas e se escuta como num búzio o som do mundo que ecoa nos versos que escreve e na recordação dos versos de outros poetas. A infância, a memória, os amigos, a perda, a eternidade da morte. A experiência do tempo como experiência do mundo e da linguagem sujeita a um tratamento reflexivo que reconstrói o passado no presente. O mar, os barcos, as aves, as árvores como fulgurações de instantes do passado irrompendo no presente, coisas contemporâneas de uma vida/ que excede a minha vida e se confrontam com as ameaças de um mundo que um dia irá apagar [os versos] e a incerta esperança que o próprio mundo original seja a casa dos escritos [e] dos poetas que emudecem. Um livro de ondulações verbais onde se renovam as sonoridades do correr da água/ anterior à água das palavras.

Joaquim Mestre O

perfumista

OFICINA DO LIVRO

Romance atravessado por uma espécie de sopro de realismo mágico alentejano, cuja acção decorre, no primeiro quartel do século XX, num território particularmente pobre das margens do Guadiana, conta-nos a história de Manuel Gasparim, um perfumista apaixonado que cria aromas, faz misturas, inventa subtis olores que levam as mulheres à perdição, chegando mesmo, nas últimas páginas, a soltar-se um clima de loucura inebriante quando o intenso cheiro a benjoim percorre a vila inteira perante a perplexidade de todos. É um Alentejo profundo, atravessado pelas várias dimensões da vida, aquele que se derrama na planície e no silêncio deste livro, que retoma a melhor tradição dos escritores alentejanos, de que Manuel da Fonseca é o expoente máximo.

Teolinda Gersão A

mulher que prendeu a chuva

SUDOESTE

Uma nova editora, a Sudoeste [Sextante]. Um editor com a paixão dos livros, João Rodrigues. Um livro de contos de Teolinda Gersão. Pequenas histórias que são como mundos interiores, mundos de figuras erráticas, deslizantes, de mulheres cuja interioridade enigmática a autora persegue através de geografias distintas – Nova Iorque, Berlim, Florença, Lisboa – atravessadas pela morte e pela solidão. Um resto de memória atravessando a cortina do tempo para, numa fulguração do passado no presente, a realidade nos chegar como uma revelação, uma epifania profana que se abre à experiência quotidiana transfigurada. Gente em ruínas. Cidades a ruírem. Lisboa, como uma premonição.

Lídia Jorge Combateremos

a sombra

DOM QUIXOTE

Do outro lado da sombra é um país inteiro que se esconde. Um país que se afunda dentro de um autocarro que cai a um rio. Gente enredada numa teia pantanosa de mesquinhez, de mentira, de toda a espécie de tráficos silenciados. Uma omertà à portuguesa. Uma teia que não mostra os fios, apenas os nós. Um livro político? Nem tanto. Lídia Jorge prefere-o como uma ficção com um assomo político, em que Portugal se deita no divã. Psicanálise de um país à procura de uma pele nova. Um livro escrito num impulso de melancolia, mas também de raiva contra o nosso processo de revisão cíclica de marcar passo. Assombros: Osvaldo Campos, o meu Dom Quixote de estimação, as três mulheres, Maria London, a paciente magnífica, Rossiana, Ana Fausto, vidas de papel que se assemelham à vida de pessoas, um consultório de um psicanalista, um onirismo revelador, um país fantasmal, uma ficção com um assomo político. Um livro para combater a sombra.

Enrique Vila-Matas

Doutor Pasavento

TEOREMA

Doutor Pasavento, de Enrique Vila-Matas, é um meta-romance-ensaio onde se respira a mesma ironia shandiana dos livros anteriores do autor, agora utilizando um estilo mais sóbrio, menos impertinente, mas sempre com uma escrita culta, lúdica, provocatória quanto baste, que propõe uma desconstrução da figura do autor, concluindo, assim, a sua trilogia metaliterária (O mal de Montano, Bartlebly & Companhia e Doutor Pasavento). Ao mesmo tempo, trata-se de uma viagem às regiões inferiores de Robert Walser, que escrevia a lápis para estar mais perto do desaparecimento, do eclipse; de Emmanuel Bove, que parecia estar sempre à espera que o esquecessem; de Thomas Pynchon, que se esconde em Nova Iorque; de Kafka, que queria era continuar a existir sem ser incomodado; de Salinger, o escritor que vive em paz, oculto; de W. G. Sebald, para quem o desaparecimento sempre existiu; de Joseph Roth, que narra a viagem errática de um desaparecido. Uma poética da extinção.


Nuno Júdice As

coisas mais simples

DOM QUIXOTE

Na casa do poeta cresce o deslumbramento diante de coisas tão simples como os figos ou a mulher da fotografia – o quotidiano irrompendo furtivamente no poema para logo ser desfocado, transfigurado, através da alegoria, do devaneio. O tronco da figueira/ (é agora um) corpo de mulher nua; (…) e o figo que o poeta tem na mão (fá-lo) sentir os seus seios macios; há também a intertextualidade que o poeta convoca desde a sua biblioteca numa busca da essencialidade poética – D. H. Lawrence, Shelley, os poetas gregos –. Há um trabalho sobre a história; há navegações errantes, partidas e chegadas, regressos, há um conceito de paisagem e uma imagem da cidade por entre as ruas cheias de gente; na casa da Mexilhoeira Grande, Nuno Júdice escreve um livro à luz do apocalipse,/ as primeiras linhas do ocaso: descrições, narrações, personagens, memórias, odes, uma carta. O livro chama-se As Coisas Mais Simples e foi escrito com os cinco sentidos mais um, aquele que só os verdadeiros poetas têm.

Urbano Tavares Rodrigues

Ao contrário das ondas

DOM QUIXOTE

A ele se deve a recuperação de Manuel Teixeira-Gomes. A ele se deve, também, uma obra ficcional de enorme fôlego com mais de 40 títulos publicados desde 1952, indispensável para compreender o universo social do Portugal contemporâneo. Em Ao Contrário das Ondas tudo se passa numa Lisboa, entre a Lapa e as Avenidas Novas, num quadro mental que convoca referências culturais de uma burguesia de esquerda aí retratada com a agilidade e o desembaraço da escrita que se conhece em Urbano Tavares Rodrigues. Um olhar lúcido sobre as representações urbanas do país, com um misto de espanto e desencantamento face ao paradigma político actual. Uma crónica realista do tempo que passa.





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Ponto 2. Dos critérios de selecção dos textos e imagens 2.1. Os textos de natureza científica apresentados ao Conselho Editorial para publicação deverão obedecer aos seguintes critérios: 2.1.1. Rigor científico, aparato crítico. 2.1.2. Clareza do discurso e correcção linguística. 2.1.3. Dimensão adequada a cada rubrica ou secção. 2.2. Os textos de natureza literária apresentados ao Conselho Editorial para publicação deverão obedecer aos seguintes critérios: 2.2.1. Estética da linguagem. 2.2.2. Clareza do discurso e correcção linguística. 2.2.3. Coerência com a rubrica ou secção em que se integram. 2.2.4. Dimensão adequada a cada rubrica ou secção. 2.3. Os textos de natureza cultural apresentados ao Conselho Editorial para publicação deverão obedecer aos seguintes critérios: 2.3.1. Actualidade do tema. 2.3.2. Clareza do discurso e correcção linguística. 2.3.3. Coerência com a rubrica ou secção em que se integram. 2.3.4. Dimensão adequada a cada rubrica ou secção. 2.4. As imagens apresentadas ao Conselho Editorial para publicação deverão obedecer aos seguintes critérios: 2.4.1. A iconografia de arquivo deve mencionar adequadamente a fonte, de acordo com a norma. 2.4.2. As fotografias, os desenhos ou as gravuras originais devem adequar-se esteticamente à concepção artística global da Revista, podendo ser reduzidas, ampliadas ou fragmentadas de forma a integrar-se nos textos que pretendem ilustrar. 2.4.3. Todas as imagens deverão integrar-se com coerência nos conteúdos da Revista. 2.5. Das antologias ou excertos de obras já publicadas: 2.5.1. Todos os textos ou imagens já publicados, na totalidade ou em parte, só poderão ser reproduzidos com autorização escrita dos autores, editores ou arquivos, conforme o caso. 2.6. Dos direitos de autor: 2.6.1. Todos os textos ou imagens são da responsabilidade dos autores, em respeito absoluto pela apreciação vinculativa do Conselho Editorial. 2.6.2. Todos os textos ou imagens terão a menção da autoria. 2.6.3. Os textos traduzidos serão sempre sujeitos a concordância dos autores. 2.6.4. Todos os textos ou imagens publicados são propriedade da Revista Atlântica por cedência de direitos dos respectivos autores. 2.7. Da apreciação do Conselho Editorial: 2.7.1. Eventuais propostas de alteração, correcção ou reformulação dos textos formuladas pelo Conselho Editorial terão de ser aceites pelos autores, sob pena de não publicação.


Revista atlântica de cultura ibero-americana

PUBLICAÇÃO SEMESTRAL EDIÇÃO Instituto de Cultura Ibero-Atlântica (Associação Cultural, Pessoa Colectiva de Utilidade Pública, DR n.º 8, II Série, 11 de Janeiro de 2006) DIRECTOR João Ventura REDACÇÃO João Ventura Maria da Graça A. Mateus Ventura ASSISTENTE EDITORIAL Patrícia Canha CONSELHO EDITORIAL António Borges Coelho (Universidade de Lisboa - Portugal) Armando Martínez Garnica (Universidade Industrial de Santander - Colômbia) Caio Boschi (PUC Minas Gerais - Brasil) Gerardo Caetano (Universidade de la República, Montevideu - Uruguai) João de Melo (Portugal) Julio Pantoja (Argentina) Luis Sepúlveda (Chile) Maria da Graça A. Mateus Ventura (Portugal) Osvaldo Henrique Urbano (Universidade San Martín de Porres, Lima - Peru) PROJECTO EDITORIAL João Ventura

DESIGN Atelier Henrique Cayatte com Susana Cruz e Cristina Viotti FOTOGRAFIA Daniel Barraco Duarte Belo Eric Facon Grau Serra Espriu João Garcia João Mariano João Ventura Julio Pantoja Paulo Barata CAPA E CONTRACAPA João Mariano COLABORARAM NESTA EDIÇÃO António Ramos Rosa Boaventura de Sousa Santos Caio Boschi Carmen Yáñez Hidalgo Daniel Barraco Duarte Belo Grau Sierra Espriu João Garcia João Mariano João Ventura Jorge Couto José Luís Peixoto José Manuel Fajardo Julio Pantoja Lídia Jorge Luísa Monteiro Luiz António de Assis Brasil Maria Adelina Amorim Maria da Graça A. Mateus Ventura

Maria Mansilla Paulo Barata Roger Sogues Marco Sergio Vuskovic Rojo Urbano Tavares Rodrigues Vítor Serrão Virginia Vidal Volodia Teitelboim TRADUÇÃO Maria da Graça A. Mateus Ventura Patrícia Canha REVISÃO & COPY DESK António José Massano CRÉDITOS FOTOGRÁFICOS Arquivo Histórico Ultramarino Arquivo do Museu Municipal de Portimão PROPRIEDADE Instituto de Cultura Ibero-Atlântica Presidente Maria da Graça A. Mateus Ventura Vice-Presidente Valdemar Coutinho Vogais Margarida Mimoso Cunha José Gonçalves Canelas REDACÇÃO E ADMINISTRAÇÃO Largo Dr. Bastos, n.º 13 8500-654 Portimão E-mail: iciaptm@mail.telepac.pt T. (351) 282 470 822 F. (351) 282 470 749 PROMOÇÃO E PUBLICIDADE info@revista-atlantica.com pcanha.atlantica@gmail.com

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Revista atlântica de cultura ibero-americana | Número 05 Outono Inverno 2006 2007

Revista atlântica de cultura ibero-americana N.º 05 Outono Inverno 2006 2007 15C_

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