Revista Atlântica de Cultura Ibero-Americana 02

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Número 02 Primavera Verão 2005

Revista atlântica de cultura ibero-americana

LUGARES DE PARTIDA AÇORES JOÃO DE MELO

CIDADES INVISÍVEIS MONTEVIDEU CIDADE ABERTA

A MARESIA DO MUNDO PROVÍNCIA NUNO JÚDICE

CRUZEIRO DO SUL JUAN RULFO MEMPO GIARDINELLI

A INVENÇÃO DA AMÉRICA A TURBULÊNCIA DA CONQUISTA MARIA DA GRAÇA A. MATEUS VENTURA CORRENTES ATLÂNTICAS M U R A L I S M O MEXICANO FERNANDO AMARO

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Número 02 Primavera Verão 2005

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Revista atlântica de cultura ibero-americana

FIOS AZUIS João Ventura TODOS OS NOMES LUGARES DE PARTIDA

Açores João de Melo 10

HERÓIS DO MAR

Percebeiros da Costa Vicentina João Mariano 16

TRAVESSIAS

Gonçalo de Reparaz, um geógrafo errante português Maria do Carmo de Reparaz Zamora e Gonzalo André de Reparaz Chambord 22

CIDADES INVISÍVEIS

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MONTEVIDEU, CIDADE ABERTA A espera sem ansiedade Alicia Migdal Adeus ao velho bairro Teresa Porzecanski A fundação de Montevideu Mario Delgado Aparain Montevideu é uma cidade feita à escala humana num continente de exuberâncias [Entrevista com Gerardo Caetano] Mario Delgado Aparain

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OUTRAS INQUIRIÇÕES

Tão largo e tão íntimo Luiz Antônio de Assis Brasil 50

ILHAS

Contados e pescados na ilha de Santa Catarina Maria do Carmo Campos 54

ALTAS SOLIDÕES

Popocatépetl Antonio de Solís 58

RIOS PROFUNDOS

Guadiana, o grande rio do Sul Cláudio Torres 64

A BIBLIOTECA DE BABEL

Biblioteca do Real Paço e Convento de Mafra Maria Margarida Montenegro 68 70 76 78 80

A INVENÇÃO DA AMÉRICA

A turbulência da conquista Maria da Graça A. Mateus Ventura Crueldades e matanças perpetradas pelos conquistadores espanhóis no México Bartolomeu de Las Casas Como impusemos muito boas e santas doutrinas aos índios Bernal Díaz del Castillo BESTIÁRIO

O velho é o jaboti prudente que não se apressa Maria Adelina Amorim 84

A SEDE DO SUL

Cachaça, a rainha do Sul João Azevedo Fernandes 88

SABORES PRINCIPAIS

O cebiche, um prato popular na bacia do Pacífico Gabriela Benavides de Rivero 92

SINAIS DE FUMO

Habanos para um infante defunto João Ventura 96

ESTÁDIO DE SÍTIO

Churubamba Daniel Silva Yoshisato 98

ALGUM CHEIRINHO A ALECRIM

Andanças e amores em terras lusitanas Virgínia Maria Trindade Valadares 102

O QUE FAÇO EU AQUI

Portugringo, white bird Onésimo Teotónio Almeida 108

A MARESIA DO MUNDO

Província Poema inédito de Nuno Júdice 110

CRUZEIRO DO SUL

Retrato de Juanito Rulfo Mempo Giardinelli 118

FICÇÕES

Luvina Juan Rulfo 124 126 134 138

CORRENTES ATLÂNTICAS

Muralismo mexicano – labirinto da universalidade e espelho de utopias Fernando Amaro Pedro Páramo, o desejado Anabela Moutinho O regresso de Jack Kerouac Roberto Ampuero



Fios azuis João Ventura jventura_atlantica@yahoo.com

Algures, nesta edição de Atlântica, há um poema, belíssimo, de Nuno Júdice, onde o poeta persegue a linha imaginária dos rios que levam a um mar que não tem portos nem barcos. Também as águas em que navegamos em cada edição de Atlântica são como fios, azuis, que estendemos entre as margens oceânicas para nos reencontrarmos, uns e outros, no outro lado de nós. Por isso, embora a revista seja também um exercício de curiosidade em relação ao outro lado do mundo, como se dizia no manifesto inaugural, o que se procura, sobretudo, são aproximações, cruzamentos de linhas de sentido que dão densidade ao mar atlântico onde se espelha a nossa alma comum. E são muitos, já, os fios azuis que nos levam nesta corrente atlântica, desenhados desde geografias diversas por mãos cúmplices de um projecto editorial que se vai fazendo a partir da periferia para o mundo. Há, portanto, um lugar de partida para cada fio azul que se estende em Atlântica. Sejam os lugares primordiais de todas as partidas. Primeiro, Sagres, lugar inaugural desta revista, fio azul lançado a este mar por Lídia Jorge, onde ainda e sempre existirá o «aceno que leva para longe o nómada das águas». Agora, os Açores, de onde João de Melo «puxa os fios do mar [...] como um cavalo a galope sobre a espuma de um perfeito sonho de largada [...] desejo de viajar ao encontro do mundo». Sejam os lugares de partida de «Todos os nomes» que vão fazendo a Atlântica, aqui enunciados ao acaso: Lima, Faro, Lisboa, Montevideu, Mendoza, Buenos Aires, Barranquilla, Aljezur, Portimão, Achadinha, Virginópolis, Santiago do Chile, Boliqueime, São Paulo, Ovalle, Coimbra, David, Valparaíso, Cuzco, Uruguaiana, Chillán, Tondela, Marselha, João Pessoa, Porto Alegre, Florida, Resistencia, Pico da Pedra, Luanda, Comercinho e todos os outros lugares nómadas que ainda vão responder ao aceno deste mar de papel. Fios azuis que se cruzam em Atlântica, outras tantas visões, sinais, traços, distinções, semelhanças onde se espelha a alma ibero-americana. Outras periferias afinal, ou não fosse o mundo uma periferia de si mesmo neste tempo de globalização em que, por isso mesmo, talvez faça agora mais sentido «suscitar o desejo de pertencer à terra como uma árvore que se inclina sobre as ondas», como escrevia António Ramos Rosa na primeira Atlântica. E por isso, também, o Algarve, morada solar de Atlântica entre dois mares, lugar de pertença de poetas, escritores, investigadores, fotógrafos que, daqui, generosamente, lançam ao mundo os seus fios azuis, «inventando descobertas nas colunas de um coreto», olhando a partir das suas «escarpas nuas» o mar imenso que se estende para sul, desvendando Américas feitas

de encantos e desencantos. Às vezes, com «a turbulência da conquista». Como se Atlântica fosse «um búzio em que ressoa a maresia do mundo». As cidades invisíveis das Américas em cujos labirintos nos perdemos. Montevideu cidade-porto, através do qual chegaram, desde meados do século XIX, as vagas sucessivas de imigrantes que fizeram dela uma cidade polifónica, onde se combinavam idiomas, sonhos e projectos, cores e estilos de vida diversos. Mas também uma Montevideu onettiana, atravessada por fantasmas de um passado recente que continua a marcar profundamente o seu destino, ignorando que, num Outubro próximo, a festa regressaria às suas ruas e praças. E ainda Havana, a cidade nocturna fundada por Cabrera Infante. E uma aventura entre Porto Rico e São Domingos. Outras geografias, ainda. A majestosa amplidão da pampa instituindo-se em território pleno de metáforas, de existência lírica e irreal. Ainda ao Sul, Santa Catarina, ilha de histórias de desterro, bruxas e lobisomens. E, subindo o continente, um jogo de futebol em Churubamba. Um monte que fumega em Popocatépetl. Um rolo de papel exposto em Iowa City. E, do lado de cá, um eléctrico atravessando uma rua na Madragoa. Ou a evocação dos barinéis, caíques e canoas levando Guadiana acima brocados e especiarias de Tunes, Siracusa ou Alexandria, outras vezes, carne fresca, couros e pelicas, frutos secos e lingotes de prata e chumbo. Outros mares, portanto. E atravessando toda a Atlântica, sob o «arco inteiro dos astros», a evocação de Juan Rulfo e dos seus livros fundacionais – A Planície em Chamas e Pedro Páramo – pretexto para outras inquirições sobre um México em cujos labirintos, às vezes, também encontramos Portugal. Ou não fosse Atlântica um lançar e puxar de fios azuis entre as duas margens do mar.


TODOS OS NOMES

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ALICIA MIGDAL [Montevideu, Uruguai] é escritora, jornalista e crítica cultural. Tem integrado vários projectos culturais promovidos pela Intendência Municipal de Montevideu. Entre os seus livros, figuram Mascarones, La Casa de Enfrente, Historia de Cuerpos e Historia Quieta. ANABELA MOUTINHO [Faro, Portugal] é professora de Filosofia do ensino secundário e professora convidada na Escola Superior de Educação [Universidade do Algarve] e presidente do Cine Clube de Faro. CLÁUDIO TORRES [Tondela, Portugal] é doutorado “honoris causa” pela Universidade de Évora (2001). É director do Campo Arqueológico de Mértola e, desde1998, presidente da Comissão Nacional Portuguesa dos Monumentos e Sítios (ICOMOS). É coordenador nacional da Fundação EUROMED, desde 2004. Em 1991 recebeu o Prémio Pessoa. Entre outros trabalhos publicados, destaca-se, em 1998, O Legado Islâmico em Portugal (em colaboração), Círculo de Leitores. DANIEL MORDZINSKI [Buenos Aires, Argentina] é fotógrafo correspondente dos jornais Clarín (Argentina) e El País (Espanha). Diplomado pela École Supérieure d´Études Cinématographiques e licenciado em Letras pela Universidade de Telavive, encontra nas fotografias de escritores o seu principal tema, com vários livros publicados. Das suas viagens por todo o mundo com diversos escritores, nasceram, entre outros, os projectos Patagónia Express, com Luis Sepúlveda, A Estrada do Mate Amargo, com Mempo Giardinelli, e O Refúgio do Fogo, com Antonio Sarabia. FERNANDO AMARO [Faro, Portugal] é doutorado em História da Arte pela Universidade de Lund, Suécia, com a tese Mexican Mural Movement – Myths and mythmakers. Docente nos cursos de Ciências da Comunicação e Design de Comunicação na Escola Superior de Educação – Universidade do Algarve. GABRIELA BENAVIDES DE RIVERO [Lima, Peru] é licenciada em História pela Pontifícia Universidad Católica do Peru, mestre em Gestão Cultural, Património e Turismo pela Universidad de San Martín de Porres, e mestre em Arte Peruana e Latino-Americana pela Universidad Nacional Mayor de San Marcos. É professora na Universidad Católica, na Universidad del Pacífico e na de San Martín de Porres. GERARDO CAETANO [Montevideu, Uruguai] é um dos mais destacados historiadores e politólogos uruguaios. Director do Instituto de Ciencia Política da Universidad de la República. Autor de numerosos livros e publicações nas suas áreas de especialidade, muitos dos quais premiados. GONZALO ANDRÉ DE REPARAZ CHAMBORD [Aix-en-Provence, França] é professor emérito da Universidade de Provença, em França. Ocupou a cátedra de Geografia Rural no Instituto de Geografia de Aix-Marselha de 1981 a 1995. É especialista em mundo rural do Mediterrâneo Ocidental. É presidente de Méditerranée, revista geográfìca dos países mediterrânicos. HENRIQUE CAYATTE [Lisboa, Portugal] é presidente do Centro Português de Design e professor convidado da Universidade de Aveiro. Foi fundador e autor do design global, editor gráfico e ilustrador do jornal Público. Consultor para os projectos especiais de design da EXPO'98 e do respectivo plano de pormenor do recinto. Co-autor do sistema de sinalética e comunicação da EXPO’98. Co-autor e responsável pelo design da revista Egoísta. Comissário e autor do design de diversas exposições em Portugal e no estrangeiro. Entre os vários galardões, recebeu em 2003 o Prémio Nacional de Design e o Prémio Dibner Award. JOÃO AZEVEDO FERNANDES [João Pessoa, Brasil] é mestre em Antropologia e doutor em História, com uma tese sobre os índios e as bebidas alcoólicas no Brasil colonial. É autor do livro De Cunhã a Mameluca: a mulher Tupinambá e o nascimento do Brasil (2004) e de vários artigos sobre a história indígena do Brasil. JOÃO DE MELO [Achadinha, S. Miguel, Açores, Portugal] é licenciado em Românicas pela Universidade de Lisboa. Escritor, tem-se notabilizado sobretudo como ficcionista, embora a sua obra se inscreva em diferentes domínios, como o ensaio, a crítica literária, a poesia e a crónica. Publicou numerosos títulos e obteve vários prémios literários, entre os quais o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores e o Prémio Cristóbal Colón das cidades capitais ibero-americanas [Lima, Peru] com o livro Gente Feliz com Lágrimas [1989]. Actualmente é adido cultural da embaixada de Portugal em Madrid. JOÃO MARIANO [Aljezur, Portugal] é fotógrafo. Editou e coordenou a fotografia do Grupo Forum, dirigiu o departamento de fotografia do portal Terràvista e actualmente dirige a agência 1000olhos – Imagem e Comunicação. Publicou diversos álbuns, livros e catálogos, e expõe regularmente desde 1993. Colabora eventualmente com a revista Egoísta e com o semanário Dna. JOÃO VENTURA [Portimão, Portugal] é mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação pelo ISCTE e pós-graduado em Ciências Documentais [área de Bibliotecas] pela Universidade de Lisboa. Foi leitor de Língua e Cultura Portuguesas na Universidade de Paris III e docente convidado na Escola Superior de Educação da Universidade do Algarve. Entre 1998 e 2003 desempenhou as funções de delegado regional do Ministério da Cultura no Algarve. Actualmente desenvolve actividade na área da gestão cultural. LUIZ ANTÔNIO DE ASSIS BRASIL [Porto Alegre, Brasil] é escritor com uma vasta obra publicada tanto no Brasil como no estrangeiro. Em 1988, recebeu, com o romance Cães da Província,


o Prémio Literário Nacional do Instituto do Livro e, ainda nesse ano, o Prémio Literário Erico Veríssimo pelo conjunto da sua obra. Em 1995, recebeu o Prémio Açoriano de Literatura com Pedra da Memória e Senhores do Século. Acaba de lançar em Portugal A Margem Imóvel do Rio, Prémio Jaboti 2004. MARIA ADELINA AMORIM [Coimbra, Portugal] é mestre em História do Brasil e assistente convidada na Universidade Lusófona em Lisboa. É autora de vários estudos sobre a missionação no Brasil e sobre a literatura de viagens. MARIA DO CARMO CAMPOS [Porto Alegre, Brasil] é doutorada em Letras pela Universidade de São Paulo e professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Investigadora do CNPq, ensaísta e poeta, é autora dos livros Matinas & Bagatelas: poemas, O Olhar do Caminho: Santiago de Compostela, poemas e fotos (parceria com Mauro Paranhos), A Matéria Prismad, Brasil de longe e de perto & outros ensaios, entre outros títulos publicados. MARIA DO CARMO DE REPARAZ ZAMORA [Lima, Peru] é licenciada em Gestão Cultural pela Universidad de San Martín de Porres (Lima). Com estudos universitários em História e Turismo e larga experiência na gestão do património cultural, trabalha na promoção turística do Peru nos mercados ibero-americanos. MARIA DA GRAÇA A. MATEUS VENTURA [Portimão, Portugal] é doutora em Letras pela Universidade de Lisboa. Fundadora do ICIA, foi vice-presidente da Direcção de 1995 a 2002, sendo presidente desde 2002. Membro do Nodo Coordenador da Cátedra de História da Ibero-América [OEI] e coordenadora executiva da CEIA, é professora convidada na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Algarve no âmbito da Cátedra de Estudos Ibero-Americanos. É especialista em história da Ibero-América, com numerosos textos publicados nesta área. MARIA MARGARIDA MONTENEGRO [Lisboa, Portugal] é directora do Palácio Nacional de Mafra. Licenciada em História pela Universidade Clássica de Lisboa. pós-graduada em Conservação de Museus. Na sua área publicou, entre outros títulos, Palácio Nacional de Mafra. MARIO DELGADO APARAIN [Florida, Uruguai] é escritor, jornalista e professor. Autor de numerosos romances, alguns já traduzidos em Portugal, como A Balada de Johnny Sosa e Os Territórios do Amor. Foi director de cultura da Cidade de Montevideu. MEMPO GIARDINELLI [Resistencia, Argentina] é um dos mais conhecidos escritores argentinos da actualidade. É autor de numerosos contos, ensaios e romances traduzidos em mais de vinte línguas e que lhe granjearam numerosos prémios literários, entre os quais o mais importante galardão latino-americano – o Rómulo Gallegos –, em 1993, pelo seu livro Santo Ofício de la Memória. Colaborador habitual de diários e revistas argentinos e latino-americanos, é professor visitante em diversas universidades dos Estados Unidos. NUNO JÚDICE [Mexilhoeira Grande, Portugal] é um dos mais importantes escritores portugueses da actualidade, sobretudo na área da poesia. Recebeu os mais importantes prémios de poesia portugueses: Pen Clube (em 1985), D. Dinis da Fundação Casa de Mateus (1990) e da Associação Portuguesa de Escritores (1994), este último com o livro Meditação sobre Ruínas que foi finalista do Prémio Europeu de Literatura, Aristeion. Nuno Júdice recebeu ainda o Prémio de Poesia Pablo Neruda. É professor da Universidade Nova de Lisboa, onde se doutorou com uma tese sobre Literatura Medieval. Desempenhou, em Paris, os cargos de conselheiro cultural da embaixada portuguesa e delegado do Instituto Camões. ONÉSIMO TEOTÓNIO ALMEIDA [Pico da Pedra, S. Miguel, Açores, Portugal] é doutorado em Filosofia pela Brown University (EUA) e professor catedrático no Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros da mesma Universidade. Escritor com uma vasta obra publicada (conto, ensaio, crónica, teatro). Foi colaborador regular no DN e escreve com frequência para o Jornal de Letras. A sua obra mais recente, publicada em 2004, é Onze Prosemas (e um final merencório). PAULO BARATA [Luanda, Angola] é fotógrafo free lancer, trabalha como fotógrafo de cena para teatro, cinema e televisão, e colabora regularmente com o DNA, Grande Reportagem e Sábado. Expõe desde 1999. ROBERTO AMPUERO [Valparaíso, Chile] é um dos romancistas chilenos mais lidos. O seu recente romance Los Amantes de Estocolmo, o maior êxito editorial de 2003 no Chile, foi eleito livro do ano pela prestigiada Revista de Libros do Chile. Os seus romances foram traduzidos em alemão, francês, italiano e português. Em Portugal foi editado, este ano, o livro Encontro no Azul Profundo [Temas e Debates] que relata parte da saga do seu popular investigador chileno-cubano Cayetano Brulé. TERESA PORZECANSKI [Montevideu, Uruguai] é escritora, crítica cultural e professora de antropologia da Facultad de Ciencias Sociales de Montevideu. Publicou numerosos ensaios, poesia, contos e romances. Entre a suas obras mais recentes, destacam-se: Perfumes de Cartago, La Piel del Alma e Una Novela Erótica. VIRGÍNIA MARIA TRINDADE VALADARES [Comercinho, Brasil] é doutorada em Letras pela Universidade de Lisboa e coordenadora do Curso de Especialização de História Moderna e Contemporânea da Pontífica Universidade Católica de Minas Gerais. Publicou, entre outros títulos, Elites Mineiras Setecentistas: conjugação de dois mundos.


LUGARES DE PARTIDA

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Aรงores Joรฃo de Melo



LUGARES DE PARTIDA

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Nesse tempo, ainda não se sabia nada do mundo. A vida era apenas uma ideia baça, tangida à superfície áspera das coisas, e eu via-a através de uma cortina diáfana, cor de cinza como devia ser o fundo de todos os oceanos, orientando-me à flor da realidade mais pelo ouvido e pelo tacto do que pelo sempre abreviado sentido do olhar na infância. Apesar de estar ali tão perto – entranhado pelo ouvido e quase ao alcance da mão – ainda não tinha ido conhecer o mar. Nem a nossa vila do Nordeste, sede do concelho, nem a cidade de Ponta Delgada (a pouco mais de dez léguas de caminho batido a cascalho de bagacina e a ossadas pedregosas), nem as freguesias ao lado da minha que se perfilavam ao cimo da falésia, à sombra das torres das suas igrejas (cujas fachadas se postavam de frente para a gloriosa cidade de Jerusalém), e tão-pouco os verdes, enevoados montes da ilha a que então chamavam «mato do povo» – de cima dos quais se via mar e mar de um lado e do outro da terra. Eram rasos os ventos marítimos que vinham da América, e húmidos os campos de milho, beterraba e tabaco. Solenes e sinistras, grandes aves de arribação, de hábitos nocturnos (os «cagarros» que nidificavam nas rochas), atravessavam a escuridão do céu dos Açores chorando por cima das casas, enquanto nós, crianças cismadas, tentávamos dormir com os seus grasnidos de cólera no ouvido. Diziam-nos as avós que com as vozes plangentes dos pássaros se misturava o pranto dos bebés mortos antes de serem baptizados, indo a caminho do Limbo, a estação infinita das almas. Não devendo penar injustamente no Purgatório nem no fogo definitivo do Inferno, também não podiam aspirar ao bosque deleitoso do Paraíso: não eram cristãos perfeitos nem pecadores confessos, pois não lhes fora administrado o sacramento que os pudera ter redimido do pecado original e levado à doce e serena presença de Deus. Quanto aos aviões, passavam alto de mais, lá muito acima desse mundo de animais terráqueos com os pés grudados ao chão, viajando mais perto de Deus que dos filhos dos homens. Os seus corpos de peixes metálicos, entrando e saindo de entre as nuvens carregadas de chuva, extinguiam-se no limite extremo do olhar, como um ponto final na última página de um livro. Por sua vez, os navios não iam além de miniaturas recortadas na cartolina branca do mar que a luz do Sol fixamente iluminava sobre a linha do horizonte, imó-

veis, sem rumo à vista – e perdidos, acreditava eu, nos imponderáveis e líquidos caminhos das suas viagens à volta do mundo. De sorte que, como esquecê-lo?, o grande dia da minha infância aconteceu quando pude enfim descer ao fundo da falésia e ir conhecer o mar de perto. Primeiro, fiquei ali de pé, extasiado perante aquela imensa planície de água que se erguia e enrolava ao largo, que depois movia o carro das suas sete ondas e vinha por fim desabar a meus pés, por entre o calhau rolado da costa vulcânica. Sentei-me na sua frente, chamei-o baixinho, uma, duas, três vezes, mar, mar, mar, e logo ele, tal como um cão ingénuo e faminto, me veio comer às mãos. Além de plano, cheirava a destino de chegada e de partida, e lavava os meus olhos extasiados com o sal de palavras que me eram desconhecidas: adeus, saudade, despedida, regresso, Lisboa, Brasil,Venezuela, Canadá, América, América, América... Bastava puxar os fios do mar (ele possuía-os à superfície da água, boiando ao sabor das correntes e das ondas) e desejar um navio, uma cidade, um país ideal, simples lugar de achamento num dos antigos continentes que nos haviam largado a meio do Atlântico, entre a Europa e a América. Puxando os fios do mar, podia acontecer que surgisse a tal ilha emersa no meio de uma utopia, um deus montado no seu carro de nuvens douradas pela luz sangrenta do crepúsculo, um cavalo a galope sobre a espuma de um perfeito sonho de largada, ou outra qualquer personificação do desejo de viajar ao encontro do mundo. Também não se sabia, nesse tempo, o que era um vulcão – de onde vinha, de que funestos poderes se armava para nos fustigar. As desgraças maiores de então chegavam à frente dos devastadores ciclones, ou vinham com as chuvas de noventa e nove dias consecutivos, com os sismos que abriam fendas nas paredes das casas e no chão dos caminhos, ou no rol de umas esquisitas doenças estrangeiras, cujos nomes não cabiam na língua que falávamos. Esses males, porém, existiam para que os esconjurasse o poder divino dos grandes remédios. Às vezes, íamos de procissão, Rua Direita acima e abaixo, com a Salve-Rainha nos suspiros e nas vozes da alma, rezando, pedindo misericórdia e perdão à Padroeira, experimentando a sinceridade do arrependimento – e logo cessavam sismos e temporais, e amainavam as vagas e os ventos americanos, tudo isso por obra e graça da Senhora do Rosário. Por conseguinte, voltava a ser permitido pecar por pensamentos, obras e omissões, ir ao


confessor na semana da Páscoa, fazer o acto de contrição com ar compungido e contar com a absolvição a troco de uma penitência leve, quase irrisória. E isso era a felicidade. Um dia, chegou a notícia do vulcão dos Capelinhos, na ilha do Faial. Abismados, perguntámo-nos que estranha coisa seria essa de saírem jactos de fogo e lava cor de púrpura das profundezas do mar e do ventre da terra, cuja calda deslizava montanha abaixo, submergindo casas e ruas, matando os campos, as pessoas, os animais, sem que a nada e ninguém valesse o Senhor Deus Todo-Poderoso das catequistas, das avós religiosas e frias, dos sermões irados na missa de domingo, da verdade absoluta da Fé em todas as evidências da nossa idade. Não houve quem soubesse responder-nos. Tornou-se-nos claro que há lugares e tempos e pessoas junto de quem não vale a pena formular perguntas. Numa ilha dos Açores, um vulcão pode abrir uma porta de saída da terra para o mar e abrir uma outra de regresso à origem do mundo e da vida. Foi o que naquele tempo nos aconteceu. Como tínhamos nós, exilados, esquecidos entre dois continentes, a Europa e a América, ido nascer aos Açores? Por que motivo falávamos uma língua que datava do tempo das naus de África, da Índia, do Brasil e da América que amiúde aportavam à aguada das ilhas, a socorrer-se contra a investida do corso, da pirataria argelina, das furiosas tormentas, dos naufrágios de Sepúlveda, das histórias trágico-marítimas coligidas pelo frade Bernardo Gomes de Brito ou escritas por um insigne e estupendo mentiroso, o Fernão Mendes Pinto da minha alma? De novo, pouco ou nada adiantava fazer perguntas. Os bichos da terra não podem esperar respostas sensatas à impostura dos seus próprios verbos interrogativos. Recorrem à imaginação explicativa do ser, põem de parte a chamada lógica natural, crêem apenas no bom propósito do que mais e melhor lhes convém. Há uma teoria para tudo neste mundo. Por exemplo, acerca da largada dos primeiros tios solteiros para o Brasil e a Venezuela, à procura dessas terras do fogo, das minas, da riqueza fácil e impetuosa. Ou acerca dos outros tios que iniciaram a demanda dos distantes países do frio, onde então a neve se chamava «sinó», os comboios «treines» e a cerveja «bia». Chegavam a lugares e nomes como Québec, Toronto, Kitimat, Boston, New Bedford ou Fall River, doentes e exaustos de tanta guerra, tanto enjoo do cheiro a

resina e a óleo quente dos barcos, tanta tormenta de mar levantado pelos ventos – e depois mandavam cartas com dólares dobrados no meio de papelinhos cor de tabaco, para não serem detectados à luz pelos olhos dos carteiros. Eram cartas com lágrimas e erros de ortografia que nos davam a saber que o mundo, ao contrário do que nos tinham ensinado na escola, não era nada redondo, nem oval, nem curvo sequer, mas sim horizontal, contínuo, parado, sem princípio nem fim. À medida que sobre elas se caminhava, as águas abriam-se à passagem dos viajantes, como outrora ocorrera ao profeta Moisés no Mar Vermelho; o céu movia-se por cima das suas cabeças e o horizonte deslocava-se para diante, indo sempre à frente dos passos perdidos desses aventureiros do mar. Ninguém inventara até então qualquer forma de regresso a casa. Sair da ilha significava ir a direito, passar a cancela do quintal, fechar o caminho atrás das costas e depois singrar como as garrafas lançadas na corrente com uma mensagem de amor ou um pedido de socorro, até aparecer de novo terra à vista. Que não pareça excessivamente absurda a minha hipótese – mas esse não foi um movimento de partida dos Açores para o mundo de fora, e sim um reencontro com a morada universal de todos os viajantes que não recordam um lugar de origem nem sabem também onde começa o seu ponto de chegada à outra margem do Atlântico. Como explicá-lo, aliás? Íamos de regresso aos continentes de onde havíamos sido expulsos antes de termos nascido; de regresso a tudo e nada, nas voltas do mar e do tempo, subindo de um século para o seguinte, em ascensão para o alto e para dentro de nós. Regressávamos a Coimbra e a Lisboa, onde tínhamos deixado os livros de estudo, a conspiração política e o amor das mulheres; à Europa das velhas catedrais góticas, para nelas conhecer a vontade de Deus a nosso respeito; às Áfricas, como herdeiros dos que morreram às mãos da terra; à América única e numerosa como a amada do poeta, aos sonhos de pai e mãe, à ideia de que devia haver em nós uma ânsia de humanidade igual ao sangue da grande família universal. Mas, repito, como explicar os Açores enquanto lugar de partida para o seio do mundo, se afinal, ainda agora e sempre, nos limitamos a ir longe buscá-lo e nada mais queremos do que tomar o mundo nas mãos, sustentá-lo, tomar-lhe o peso, o mecanismo, a razão – e envolvê-lo no nosso sonho de regresso a casa?


HERĂ“IS DO MAR

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Percebeiros da Costa Vicentina JoĂŁo Mariano

Ilha dos Ingleses, Carrapateira



HERÓIS DO MAR

Pedra da Atalaia, Aljezur

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HERÓIS DO MAR

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Rocha do Monte ClĂŠrigo, Aljezur


TRAVESSIAS

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GONÇALO DE REPARAZ

um geógrafo errante português Maria do Carmo de Reparaz Zamora Gonzalo André de Reparaz Chambord

Este português «de fora», sempre afastado de Portugal pela vida familiar, pela história implacável de um século XX «cheio de ruído e de furor», pelas guerras, pelas ditaduras e, também, simplesmente pelas casualidades e infortúnios da existência, foi sempre um «amigo invariável», como ele próprio escreveu, dos portugueses e do seu país. Nasceu em Paris, em 1901, viveu no Porto, em Barcelona, em Bordéus, no Brasil, vindo a terminar os seus dias em Lima. Os seus dois filhos (Gonzalo André, residente em Marselha, e Maria do Carmo, residente em Lima) guiam-nos nas travessias deste viageiro português.



TRAVESSIAS

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UMA VIDA DE MUDANÇAS E ANDANÇAS ENTRE PAÍSES MEDITERRÂNEOS E A AMÉRICA LATINA

O DESTINO PORTUGUÊS DOS REPARAZ Tudo começa com o avô de Gonçalo de Reparaz, António, maestro e compositor espanhol que, vindo de Espanha – via Paris –, dirigiu a orquestra do Teatro de São João do Porto entre os anos 1850-1870. Ali apresentou a sua primeira ópera, «Gonzalo de Córdoba». A tradição familiar diz que do êxito desta obra resultaram os nomes de seu filho, de seu neto e dos seus descendentes masculinos: Gonçalo de pai a filho. De facto, o seu filho, Gonçalo de Reparaz

O avô espanhol foi maestro e compositor no Teatro de São João do Porto entre os anos 1850-1870 Rodríguez, o pai de G. de Reparaz Ruiz, nasceu no Porto onde fez os seus estudos superiores e fundou, com outros estudantes portugueses, a revista intitulada O Académico. Já jornalista e redactor de artigos de geografia, colaborou na fundação da Sociedade de Geografia Comercial do Porto. Mais tarde, a vida agitada e as aventuras intelectuais e políticas de Gonçalo de Reparaz pai fizeram nascer Gonçalo de Reparaz Roiz em Paris, em 1901. O menino passou a sua infân-


cia no ambiente parisiense; seu pai, conselheiro do embaixador de Espanha, León y Castillo, preparava os tratados internacionais com Marrocos e uma reforma do ensino superior espanhol. Em 1908, de Paris, a família passou a Marrocos, na parte espanhola, onde os altos cargos do pai não duraram muito: desacordos graves sobre a gestão política e social do território surgiram entre o governo do rei de Espanha e o seu encarregado, demasiado humanitário com os marroquinos! Enquanto os pais

A JUVENTUDE NO BRASIL Gonçalo de Reparaz vive então, entre os 12 e os 20 anos, um dos períodos mais felizes da sua vida. No Rio de Janeiro, e sobretudo em São Paulo, o jovem mancebo impregna-se de uma cultura puramente lusitana, descobre o novo mundo português e os novos horizontes do pensamento e da actividade humana no «sebo» (alfarrabista) dos irmãos Gazeau, onde compra os seus primeiros livros. Tudo era novo para ele, depressa se interessou pelo que, então, era a epopeia da borracha, fala

OS ENCONTROS E OS COMPROMISSOS NOS TEMPOS DO FRACASSO DAS DEMOCRACIAS IBÉRICAS Aos 20 anos, Reparaz regressa com os pais a Espanha, a situação política mais favorável permite-o. Entre 1921 e 1939, a vida levou-o a Portugal onde conheceu a que seria a sua primeira esposa, num congresso internacional de estudantes e jovens professores de Geografia, em Coimbra, nos anos 1929 e 1930. Esse ciclo de congressos

O pai

Compra

Colaborador

foi

os seus

da Seara Nova,

co-fundador da

primeiros

foi grande

Sociedade

livros

amigo dos

de Geografia

no «sebo»

irmãos Cortesão

Comercial

dos irmãos

e de

do Porto

Gazeau

António Sérgio

continuam em Marrocos, Gonçalo é enviado para o Porto, para estudar no Colégio Barbosa e Gama. Apenas com 11 anos, vive, com os seus companheiros do colégio, a notícia do naufrágio do «Titanic», desfruta dos passeios dominicais no «areinho», campo situado na margem esquerda do Douro, e estabelece os seus primeiros contactos com o animatógrafo... De um momento para o outro, os Reparaz tiveram de mudar-se para Paris e, depois, para o Brasil, em 1913.

do cheiro característico das bolas de borracha queimada e da vida económica e da conquista da Amazónia, da luta de Oswaldo Cruz para vencer a febre amarela... Essas foram verdadeiramente as suas primeiras experiências de geógrafo. Depois, a Primeira Guerra Mundial, a mudança para a Argentina e a espera para regressar à Europa...

permitiu encontros admiravelmente integrados na vida cultural de Coimbra, que desempenhava o seu tradicional papel de centro universitário e intelectual de alto nível, num ambiente aberto às ideias novas e à liberdade de pensamento. Nesse ambiente encontraria historiadores e geógrafos portugueses e franceses que, no futuro, seriam amigos sinceros. Nessa época conheceu e consolidou uma amizade inalterável com os irmãos Cortesão, Jaime – que veio a ser padrinho de seu filho


TRAVESSIAS

– e Armando, com António Sérgio..., convertendo-se num grande colaborador da Seara Nova e dos «Seareiros», como prova a correspondência que trocaram entre si. Esta época é também, para Reparaz, a da afirmação de convicções sociais e de compromissos democráticos, num Portugal do general Carmona onde se estabeleceu, pouco a pouco, a ditadura de Salazar e onde os intelectuais não podiam expressar-se, especialmente os jovens abertos e idealistas que recusavam as certezas angustiantes do partido único da União Nacional e do Estado corporativo. Este compromisso saiu-lhe caro e, em 1931, cartas trocadas com Jaime Cortesão aludem de maneira velada a acontecimentos e actuações político-intelectuais nas quais está implicado. Muito mais tarde, numa carta a Armando Cortesão, datada de 1974, recorda «a anulação pelo sinistro Salazar (culpável de quanto depois tem vindo a acontecer) da minha nomeação para professor contratado na Faculdade de Letras de Coimbra, início da minha carreira universitária em Portugal». A GUERRA E O PÓS-GUERRA De facto, tanto a história de Portugal como a de Espanha fizeram de Gonçalo de Reparaz um refugiado, um exilado em países amigos, primeiro no Brasil, e sobretudo em França, durante a Guerra e, depois, até 1950; por fim no Peru, onde morreu em 1984. Nos anos 1939-45, como escreve ao seu amigo Armando Cortesão, citando os versos escritos por «dois rapazes estudantes do colégio de São Carlos

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do Porto» (que eram Gonçalo de Reparaz, pai, e Leite de Vasconcelos!): O mundo está já velho E a cristandade tísica Vai tudo desabar É uma lei histórica! E acrescenta: «Tudo parecia com efeito desabar»... No final da Guerra Civil de Espanha, em 1939, Reparaz teve de fugir para França, salvando também, por milagre, os seus pais doentes. Chegaram todos a Prades, na Catalunha francesa, onde se encontraram com intelectuais e artistas catalães refugiados, como o famoso violoncelista Pau Casals. Mas, como escreve, «os meus pais não quiseram ficar; teimaram em embarcar para o México (onde se havia instalado o governo republicano no exílio, acolhido pelo Presidente Cárdenas)... onde vieram a falecer dois ou três meses depois de lá chegarem». Instalado, em finais de 1939, em Bordéus onde pôde ministrar cursos na Universidade, graças ao seu título de Doutor da Universidade de Toulouse e ao apoio de universitários amigos conhecidos em Portugal, muitos anos antes, passou a guerra sob a permanente ameaça da ocupação nazi. DE NOVO A AMÉRICA LATINA A paz, em 1945, permitiu-lhe reencontrar os exilados portugueses e espanhóis, tendo a sua nomeação como funcionário internacional da UNESCO, em 1948, em Paris, sido feita com o apoio dos portugueses do exílio, dos quais o fiel amigo Armando Cortesão. A saída de um tremendo período passado nas dificuldades da guerra dá-lhe vontade de respirar um ar mais

próximo das suas lembranças latino-americanas. Apesar de ter um cargo de importância na sede parisiense da UNESCO, prefere, em 1951, integrar projectos mais relacionados com acções muito concretas nos países da América Latina. Nomeado chefe da Missão da UNESCO no Peru, Gonçalo retoma a investigação, as acções de formação científica e pedagógica, especialmente em geografia, climato-hidrologia, história, geopolítica e geoeconomia. Em Lima, casa em 1957 com uma senhora peruana neta de português, María Esther Zamora de Brito, e tem, em 1959, a sua filha Maria do Carmo. Um dos maiores prazeres da sua vida foi, já cansado e doente, organizar geográfica e culturalmente as viagens da filha a terras lusitanas, onde ela aprenderia a língua e a cultura portuguesas e brasileiras. A OBRA PORTUGUESA DE GONÇALO DE REPARAZ Em toda a sua obra, Portugal teve uma importância fundamental. Jovem historiador de Geografia, publicou em Barcelona, em 1927 e 1928, um dos seus primeiros livros sobre o tema, essencial nos seus trabalhos, da história dos Descobrimentos geográficos e dos descobridores, – navegadores da Idade Média –, nos quais os portugueses desempenham, evidentemente, um papel fundamental. Por outro lado, foi um investigador precursor no campo da história da Cartografia. Em 1930, publicou em Coimbra um trabalho original sobre o Mestre Jácome de Malhorca, cartógrafo do infante de Portugal, precisando toda a importância dos cartógrafos portugueses na cartografia dos Descobrimentos. A cartogra-


fia terrestre dos séculos XV e XVI, menos conhecida e estudada, apaixona-o de tal modo que publica dois estudos: La plus ancienne carte topographique connue du Portugal, XVème siècle (Coimbra, 1949) e Les précurseurs de la cartographie terrestre (Paris, 1951). Nos anos setenta, depois de anos de trabalho nos arquivos nacionais peruanos e espanhóis, publica um estudo, feito com muita emoção, sobre um tema quase esquecido, apesar da elevada importância económica e social no vice-reino do Peru: a presença dinâmica e numerosa dos portugueses na Época Colonial, desde Aleixo Garcia, que teria sido, provavelmente, o primeiro europeu a contactar com o império Inca, entre 1515 e 1525, «precedendo os próprios espanhóis», até à «destruição

(sistemática) da colónia portuguesa do vice-reinado peruano», em 1635, por ser demasiado rica e activa! O peso económico e social dos portugueses foi imenso. EM JEITO DE CONCLUSÃO... Não se pode terminar esta evocação da vida e da obra de Gonçalo de Reparaz sem mencionar a visão, de certo modo profética, que ele tinha, já em 1947, do futuro de Portugal integrado numa Europa unida ao lado de Espanha. Conclui, no seu artigo «Fédéralisme hispanique et ibérique...» (Berna, in L’ Action Fédéraliste Européenne): «Pode-se apreciar, pelo estudo que precede, toda a distância que nos separa de uma hipotética federação ibérica. Para isso seria necessário

que os espanhóis fizessem, durante muitas gerações, prova de uma sensatez política exemplar antes de os portugueses decidirem federar-se com eles.» Mas acrescenta: «Não sejamos demasiado pessimistas. Resta uma grande esperança: a federação europeia. Virá o dia em que esta se tornará realidade: Espanha integrá-la-á, e Portugal também. Os dois países peninsulares, que tudo deveria unir, encontrar-se-iam, assim, incluídos numa entidade mais importante, e o que pareceria impossível na véspera poderia tornar-se possível no dia seguinte.» E conclui: «Esperemos, pois, com toda a alma, para o bem de todos, que a federação europeia se torne realidade o mais depressa possível.» Tradução de MGMV


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Montevideu cidade aberta De costas para a América, Montevideu, cidade-porto, olha o Rio da Prata, quase mar, através do qual chegaram, desde meados do século XIX, as vagas sucessivas de imigrantes que fizeram dela uma cidade polifónica, onde se combinavam idiomas, sonhos e projectos, cores e estilos de vida diversos. Depois atravessou ditaduras.Viu desfazerem-se sonhos. E em Outubro passado assistiu de novo à «refundação da alegria», como disse Eduardo Galeano na noite da vitória da Frente Amplio nas eleições de Outubro. Hoje, Montevideu vive ainda a ressaca da explosão de alegria que invadiu as principais avenidas, praças e bairros após a vitória histórica da esquerda. Sobre essa Montevideu secreta, invisível que procura agora reencontrar o seu destino de cidade hospitaleira e aberta, afastando definitivamente a nostalgia e o medo, aqui ficam alguns olhares de dentro, de alguns dos seus mais importantes escritores e intelectuais.


BaĂ­a de Montevideu. Archivo Fotografico de Montevideo


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A ESPERA SEM ANSIEDADE Alicia Migdal

NUM REGISTO MISTO DE MELANCOLIA E DE AZEDA IRONIA, ALICIA MIGDAL ESCREVE UMA CARTA SOBRE UMA MONTEVIDEU ONETTIANA, ATRAVESSADA POR FANTASMAS DE UM PASSADO RECENTE QUE CONTINUA A MARCAR PROFUNDAMENTE O DESTINO MONTEVIDEANO. E O QUE NOS REVELA ATRAVÉS DE UM ÁLBUM FOTOGRÁFICO IMAGINÁRO É UMA MONTEVIDEU INVISÍVEL, ADORMECIDA NA LONGA NOITE DA NOSTALGIA, SEM SABER, AINDA, QUE NUM OUTUBRO PRÓXIMO A FESTA REGRESSARIA ÀS SUAS RUAS E PRAÇAS.

Molhe de Montevideu. Archivo Fotografico de Montevideo


Quase todos os dias, passo em frente da última casa de Onetti para chegar à minha. Não é um jogo de palavras, embora por pouco tempo, Onetti viveu em Bonpland 598, antes de partir para Espanha. Agora estão a reconstruir a casa, e ele, sem dúvida, já não a reconheceria – e não creio que se importasse –, apesar de conservar a estrutura da fachada e os janelões de vidros losangonais do seu quarto. A casa vai adquirindo um ar saudável, embora seja uma pena que lhe tenham arrancado a trepadeira; olho-a do passeio em frente enquanto os pedreiros, por seu turno, me devolvem o olhar e volto a ver as traseiras onde Dolly apanhava sol, e o alpendre onde num Verão lhes tirámos fotos, com Onetti em pijama e com a barriga ao sol, ostensivamente disposto a oferecer-nos uma imagem da sua decadência física. Envio-te a pri-

meira foto, uma foto de «não». Poderia mandar-te fotos onde já não acontece nada, se é que nas fotos acontece alguma coisa, trocar o meu solilóquio com a tua paciência de interlocutor – cobaia de fotos fixas, fragmentos intensos que dizem o que há ou o que já desapareceu. Mas ficaria nostálgica, uma actividade que reconhecerás como demasiado uruguaia, um pouco lamechas – éramos tão europeus, tão à medida de Borges, éramos tão promissores, tão alfabetizados, tão discretos! –, isso que detestamos, mas em que ciclicamente caímos, como num poço de deliciosa luxúria reminiscente. Sejamos sinceros, embora te envie fotos do passado ou do presente – isto mudou, isto ainda continua –, o assunto torna-se elegíaco. Entre perdas e ganhos, as mudanças desta cidade levaram-nos a um grande desencontro colectivo.

Estação do bairro de Peñarol. Archivo Fotografico de Montevideo Cidade Velha, anos 50. Archivo Fotografico de Montevideo


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A foto da casa de Onetti, onde já não o vemos estendido na cama, escrevendo à mão num caderno escolar, integra o conjunto de casas antigas, reabilitadas nesta lenta Montevideu que talvez, dentro de um quarto de século, crie uma nova zona da classe média semi-ilustrada. Na Cidade Velha, agora convivem os tugúrios com as casas coloniais reabilitadas, o que poderia evocar um Marais montevideano se houvesse dinheiro e trabalho (até parece um slogan sindical!). O certo é que, com ou sem reabilitações, com ou sem projectos de shoppings (por que razão não se pode fazer um shopping no terreno dos Mendizábal sem demolir a velha quinta? será contrário a um bunker arquitectónico de consumo integrar um casarão antigo no mundo fechado de um shopping), – diziate que não importa como ou onde, todos os dias passam pelos nossos bairros os remexedores de lixo com as suas carroças e os seus cavalos, institucionalizando uma nova actividade nesta Montevideu cada vez mais desencantada, onde, sob formas e estilos da antiga classe média – somos o que somos –, alastra a pobreza. Cada classe social tem o seu passado e a sua mitologia, mas digote que agora todas têm um mesmo «convidado mal-encarado» que passa na rua ou entra com violência nas casas. Talvez Montevideu seja, na nossa memória, uma metáfora da cidade ideal esboçada por Leonardo da Vinci, «construída junto ao mar ou nas margens de um rio para que seja saudável e formosa, edificada em dois planos ou níveis interligados por meio de escadarias. Quem quiser poderá percorrer todo o nível superior sem ter de descer, e vice-versa; o tráfego de carruagens e bestas de carga far-se-á no

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nível inferior, onde também abrirão as suas portas as lojas e os negócios».Talvez o mito de uma sociedade montevideana homogénea, orgulhosa dos seus ténues contrastes, se pareça com esse esboço de polis de Leonardo, onde os «nobres» e os «pobretanas» conviviam aceitando o seu «destino óbvio». Enquanto preparava um chá e ouvia a cassette de Leonard Cohen que Darnauchans me gra-

NA CIDADE VELHA, AGORA CONVIVEM OS TUGÚRIOS COM AS CASAS COLONIAIS REABILITADAS, O QUE PODERIA EVOCAR UM MARAIS MONTEVIDEANO SE HOUVESSE DINHEIRO E TRABALHO

vou, pensava no acaso dos encontros e dos nomes: encontrar-me com Leonardo e a sua cidade ideal, pensando ao mesmo tempo neste velho tema de Montevideu, objecto de comunicação para una revista em Portugal. E será a cidade comunicável? Esta intangível identidade sempre definida em relação a um «outro» mais poderoso, Argentina, Brasil, porto ou a praça-forte conveniente para ser a tenaz do Império Britânico. Uma sociedade tão aluvial, tão sincretizadora, tão laica e, portan-

to, tão abrangente não estaria, precisamente devido a essa origem, destinada, também, devido à imigração de pré e entre Guerras e da Guerra Civil Espanhola – dizia-te –, a não ver-se a si mesma perdida na homogeneização e numa definição enraizada em valores do passado: índios exterminados, país «sueco» antes mesmo que a Suécia, sociedade civil civilista. Não nos teremos perdido num espelho onde os traços distintivos são tão ténues? (Vês o que te dizia, procurando respostas só formulo perguntas). Para saber como falamos nós os montevideanos, como soam no ar as nossas palavras, necessitamos primeiro de imitar as maneiras de um porteño. E é através de comparações desse tipo que estabelecemos as diferenças: de Perón sai Batlle, mesmo que Perón só tenha entrado na história em 1945, enquanto Batlle já lá estava em 1903. Na verdade, o ambiente humano de Montevideu é cada vez mais onettiano.Vamo-nos, a pouco e pouco, aproximando de Santa María (cidade fundada em Buenos Aires, que ironia!). Lidos umas décadas depois, sempre me pareceram surpreendentes os prognósticos catastrofistas que a geração de 45 fazia a partir da Marcha nos momentos de maior intercâmbio cultural do país. Demoraram uns trinta anos a cumprir-se, quando muitos daqueles homens já tinham desaparecido. O Estaleiro, como parábola da deterioração da sociedade uruguaia, ajusta-se mais a esta Montevideu que àquela (a parte pelo todo, Montevideu pelo Uruguai). Mas tudo é dinâmico e contraditório ainda que, nesta margem oriental do rio, umas coisas morram, outras mudem, outras não se reproduzam, outras ocupem o lu-


gar das anteriores sem que se conservem os seus vestígios. A cidade refunda-se constantemente desde Zabala a Batlle e desde Batlle à ditadura militar, e desde aí até ao momento a que chamamos, neutralmente, «o regresso da democracia», o fim da simetria entre a opressão e o instinto de coesão em torno de algum símbolo: uma canção, uma sala de cinema ou de teatro, algum poeta amado; sempre o mesmo olhar subjectivo de reconhecimento, nem político nem ideológico. Esses anos lacunares que fecharam a curva de setenta anos de alta e baixa da democracia mantiveram-nos numa sinistra espera com pequenos instantes de felicidade e de solidariedade e deixaram-nos, depois, já sem a escolta militar, a sós connosco próprios, sem militares e sem mitos. Envio-te uma foto do medo. A menina de cabeça baixa no pas-

seio em frente da esquadra da polícia, no ano de 1978. Envio-te outra foto complementar, de Março de 1985, com os presos políticos saindo, amnistiados, da prisão de Libertad; estes são dois deles, os seus rostos de idade indefinida, sorrindo, com a barba por fazer, vestidos com roupas e sapatos velhos, carregando mochilas, findando, entre o cárcere e a clandestinidade, o país paralelo de celas e quartéis. Eis Montevideu, mas não está em nenhuma das fotos a imagem de um menino, com os braços levantados diante das baionetas nazis. Quem me diria, quando estava no liceu Buazá, nos anos 60, e me comovia com a foto do menino de braços levantados diante dos nazis, que também eu iria ver e enviar estas fotos feitas em Montevideu e conservadas dentro de livros como recortes de um diário? O medo provocado por uma ditadura

era um sentimento de outra gente, dos argentinos por exemplo, para falar de um país vizinho, ou dos paraguaios, ou dos negros de Atlanta ou de Joanesburgo. A nova cidade que fundou o medo. Este seria um motivo possível para descobrir Montevideu, não te parece? O medo e as suas consequências posteriores, esta reticência, este regresso a casa, este fim dos diálogos secretos. Por exemplo, se recordo escolarmente Bruno Mauricio de Zabala, fundador da cidade e dos caramelos de café com leite, devo continuar, depois, com Artigas com os motes tradicionais criados no século XIX, com The Purple Land que Hudson narrou e chegar a Batlle derrotando Aparicio e, depois, dar um salto e aterrar no golpe militar de 73, e outro mais, e chegar a 84 e ao regresso da democracia. Mas posso também referir-me às fundações político-sociais de


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Montevideu e dedicar-me a evocá-las através das diversas fundações mítico-culturais: o circo crioulo, a poesia modernista, o começo da narrativa urbana – e estou outra vez em Onetti –, o regresso de Torres García de Barcelona ou a partida de Barradas para Espanha. Posso incluir também as ilhas mais ou menos estranhas, ver apenas as peculiaridades de algumas figuras muito especiais: Quiroga, Florencio, Felisberto, Figari, outra vez Onetti, Babini. E continuar por aí! Mas o que te quero dizer para ver se o poderei escrever, depois, no artigo é que o medo não pertence a nenhuma dessas situações fundacionais, nem sequer no século XIX, onde a morte, como nos mostra Barrán, era una festa da coragem «bárbara», tanto como da vida quotidiana. Poderia escolher o medo como o traço distintivo da cidade a partir dos anos 70, um choque metamorfoseado agora em recuo e desencontro. Também poderia escolher, já to disse noutro momento que já se me apartou da escrita, imagens do «nada», e enviar-tas num cartão branco, como um flash demasiado forte que cegou os rostos. Nessas fotos de «nada» verias que já não há imagens de uma época, não há fixação retiniana nem simbólica de nenhum novo jogador glorioso do nosso futebol, capaz de conservar-se na memória colectiva para além do seu desaparecimento ou do seu afastamento, nem há já uma qualquer personagem que nos toque mais profundamente pelo seu lado mítico, algum político que esteja mais para além da política; o que há, sim, são «foliões» reconhecidos por todos. Poderia haver, talvez, uma foto diluída, com voz em off de Candeau, a multidão do 27 de Novembro de 1983 que se reu-

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niu pela primeira vez em dez anos no Obelisco. Deveria acompanhá-la, nesse caso, com outra foto, a de um avião da Avianca cheio de escritores que se despenhou em Barajas e onde morreu Ángel Rama, no próprio dia da convocatória para um Uruguai sem exclusões nem excluídos. Aquilo que agora existe – para todos, para muitos?– é a imaterialidade de uma voz. Entre exílio, regresso e morte inesperada, a voz

DEVIDO A UMA ASSOCIAÇÃO IMPREVISTA, PENSO EM ISIDORE DUCASSE (A RAMBLA SUL EM FRENTE DA CASA DE LAUTRÉAMONT É UMA DAS PAISAGENS INTACTAS DA NOSSA SENSIBILIDADE)

grave e estrangulada de Zitarrosa autonomizou-se já da sua imagem física. Escutá-la, baixinho, num autocarro ou num bar, é quase como escutar Gardel. Nas fotos de «nada» poderia mostrar-te um cinema vazio ou fechado e, manipulando o cartão branco, poderia mostrar-te os contornos dos corpos dos nossos ausentes, os desaparecidos durante a ditadura, como a cara emble-

mática de um bebé, Marian Zaffaroni, hoje adolescente algures, com o pai, produto da nova instituição do Cone Sul – a adopção perversa. Também poderia registar, nessas fotos, a silhueta do intelectual uruguaio. Nesta cidade, já sabem, por isso não estás aqui, o intelectual é um desocupado. Não importa que ensine na Universidade ou escreva na imprensa ou em publicações especializadas ou edite livros, é um desocupado ou um excluído da reflexão colectiva que opera sobre a realidade: um desocupado da gravitação social. Nestes tempos, nestes últimos anos de democracia medíocre, a vida social e política funciona na memória como os baldios que não nos permitem já reconhecer que construção havia antes em cada um de nós. Alguns arquitectos dizem que qualquer cidade deve permitir-se uma quota de destruição para poder mudar e crescer, mas estes baldios da reflexão vão-se ampliando com uma gigantesca capacidade de perfuração e isolamento: falamos entre nós, em privado, mas o lugar para o discurso público tem-se tornado cada vez mais escasso. Agora a cidade contempla-se a si mesma nas paredes. Eis outras fotos. Os graffiti mostram o recuo dos slogans políticos (está bem, está mal, e para quem ou para quê está bem ou está mal neste mundo em que o desencanto faz fila?), exibem a caligrafia do imediato, da vivência juvenil do imediato. «Odeio este país», diz um nas imediações da minha casa. Ou também «Não se queixe, emigre», ou também «Há outro país algures». E assinado por Gardel: «Morro com os aviões.» Quero dizer-te que aquilo que está nas imediações da minha casa me confunde e me aflige, porque é uma verdade para uma


grande maioria de adolescentes e um reequacionamento da nossa história, pública e privada. Devido a uma associação imprevista, penso em Isidore Ducasse (a Rambla Sul em frente da casa de Lautréamont é uma das paisagens intactas da nossa sensibilidade), penso no adolescente montevideano filho do dandy francês rude e rebelde que frequentava as lutas de galos e os jogos de taba, e que escreveu os Cantos e morreu completamente só em Paris. «Les gémissementes graves du Montévidéen», a arte a troco da vida. Penso, de repente, em Isidores Ducasse, talvez porque vivemos numa cidade sem excitações, sem gestus, sem pathos, porque não queremos ir procurá-los (a má consciência) lá onde estão, o pathos da cañera de Bella Unión que veio a pé a Montevideu desde a outra ponta do país, como nos alvores dos tupamaros, e para quem nada mudou, tudo continua a degradar-se; ou o pathos do marginal, um homem jovem e de aspecto

vigoroso que caminha pela 18 de Julho, tisnado e andrajoso, falando sozinho entre gente apressada; ou o grupo de pessoas que estão a viver perto da minha casa, vejo-as todos os dias da janela do autocarro, instaladas atrás da fonte com a estátua da mulher nua no Parque Rodó, junto ao Trianon, com a roupa pendurada entre os arbustos e esse belíssimo parque francês como espectáculo, sol e intempérie. Escrevi sobre a «rambla de Lautréamont», mas também posso falar-te sobre uma foto que não te envio porque já a vi numa exposição, a rambla segundo Alvaro Zino, um automóvel estacionado ao sol, a preto e branco, onde apesar da calcinação se tem uma impressão de calor congelado, de bloco de fogo. (Os jovens fotógrafos uruguaios que começam a abandonar país, como Marcelo). Ou os cantores que partem mas não podem deixar de regressar: aqui está Fernando Cabrera antes de cortar o cabelo, sentado no banco de uma praça e olhando a

câmara sem timidez. Há algo notável no desaparecimento da timidez criativa destas pessoas reservadas e intensas, no inevitável desnudamento de vozes e corações, «o cantor dos bairros, do bairro», digo-o por gracejo a Cabrera e também ao cantor das «intermitências do coração», uma ponte entre os ouvintes adolescentes e nós próprios, os adultos, não tão sombria como Darnauchans, «mais para cima», dizem os putos apesar da tensão dos seus temas e da sua música. Mais para cima! Onde vão dançar os intelectuais ur uguaios?, perguntava Paul Leduc quando se estreou «Fida» em Montevideu. Uma pergunta que faz sempre que chega a países que não conhece e que nos deixa, pelo menos a alguns, balbuciantes ou com respostas puramente analíticas. «Bom, isto não é o México nem o Caribe com uma tradição tão forte do popular interiorizada», ou «podemos levar-te ao Sudamérica,


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onde só se dança, mas seria como que uma intromissão de turismo culto», etc., etc. Mas é verdade, onde vamos dançar e descarregar essa liberdade? Escutamos, olhamos, contemplamos, conversamos, mas só os jovens retomaram os costumes dos seus avós que nós, os pais, deixámos de lado, tão mergulhados estavámos nas preocupações político-sociais. Uma mescla do passado e do presente: na foto, uma adolescente de mini-saia caminha por uma rua de Lezica, e verás que em segundo plano está estacionado um automóvel da década de 50. Pode-se voltar a Lezica e Colón e reencontrar o ambiente tranquilo da intemporalidade, as mesmas casinhas e as mesmas mansões fechadas, um cenário de um filme sobre uma Montevideu interiorizada por várias gerações até níveis de vampirização. Uma Montevideu soalheira e de folhas secas – volta-se sempre a Lezica no Outono – com toda a paleta dos ocres e dourados, onde até os automóveis continuam a ser os mesmos da infância, sem qualquer ironia. Eis agora uma foto do nosso último 1.º de Maio. Passei-o em casa a trabalhar, e à noite, no noticiário, vi algumas imagens da manifestação, com os cañeros de Espinillar de que já te falei. Fico a pensar em rupturas e continuidades, repetições de um mesmo discurso, lugares-comuns e verdades, na massa humana física e emocionalmente coesa. Fico a pensar também que enquanto os processos políticos mundiais nos obrigam a reequacionamentos e relativizações, há algo muito profundo na esquerda uruguaia que resiste à mudança, a olhar-se, uma mescla de lentidão atónita e de soberba. E qual ou quantas esquerdas? As coisas tornaram-se

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publicamente mais complexas, divisões, acusações, «apropriações», espectaculares contradições – a esquerda começou a governar em Montevideu em 19901, quando já recuava e se reformulava no resto do mundo. Não há debate capaz de comprometer as pessoas, parece que só houve barricadas. Como falar com subtileza atrás de uma barri-

ta de perdas e ter escrito com melancolia, um risco constante depois dos quarenta anos. Prevendo que estas fotos e esta carta sejam lidas por algum leitor menos informado, digo-lhe, minha senhora, que em nota de rodapé poderá encontrar os nomes completos das pessoas mencionadas, que duvido muito signifiquem tanto para si como para nós. Tradução de JV

Juan Carlos Onetti, escritor; Dolly Mhur, sua mulher; Edi-

UMA MONTEVIDEU SOALHEIRA E DE FOLHAS SECAS CAÍDAS COM TODA A PALETA DOS OCRES E DOURADOS, E ONDE ATÉ OS AUTOMÓVEIS CONTINUAM A SER OS MESMOS DA INFÂNCIA, SEM QUALQUER IRONIA

torial Arca; Enrique Santos Discépolo, compositor de tangos; Leonardo Cohen, escritor e cantautor canadiano; Eduardo Darnauchans, cantautor; Eugenio Garin, ensaísta italiano; Juan Domingo Perón, Presidente argentino em 1947 e 1973; José Batlle y Ordóñez, Presidente uruguaio em 1903 e 1911; Santa María, cidade inventada por Onetti no seu romance La vida breve; Marcha, semanário fundado em 1939 por Carlos Quijano; O Estaleiro, romance de Onetti; Bruno Mauricio de Zabala, militar espanhol que fundou Montevideu em 1726; José Artigas, prócer da Independência; W.E. Hudson, escritor e naturalista argentino de origem inglesa; Aparicio Saravia, caudillo blanco derrotado em 1904; Joaquín Torres García, pintor uruguaio-catalão; Rafael Barradas, pintor uruguaio-espanhol; Horacio Quiroga, escritor; Florencio Sánchez, dramaturgo; Felisberto Hernández, escritor; Pedro Figari, advogado, político e pintor; Eduardo Fabini, músico; José Pedro Barrán, historiador; Alberto Candeau, actor de teatro; Isidore Du-

cada? Mercosul, privatizações, não há coincidência plena nem tão-pouco grande debate entre o discurso dos políticos das esquerdas e o discurso operário, também o lock-out e as greves banalizaram o seu impacto, creio que todos estamos cansados, impotentes e descrentes do simples acto de falar. Sentimos muito a falta de Carlitos Real de Azúa, embora haja politólogos de excelência nesta cidade. É que aquele rasgo, aquela perspectiva global e ao mesmo tempo tangente parece irrepetível. Pois bem, estou cansada. Receio ter feito uma lista incomple-

casse conde de Lautréamont, escritor franco-uruguaio nascido em Montevideu em 1846; Alvaro Zino, fotógrafo; Marcelo Isarrualde, fotógrafo; Fernando Cabrera, cantautor; Paul Leduc, realizador de cinema mexicano; Sudamérica, clube desportivo e salão de dança; Espinilla, empresa estatal produtora de açúcar e bebidas alcoólicas; Carlos Real de Azúa, ensaísta e politólogo; Mercosul, projecto de um mercado comum do Cone Sul.

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Nota do editor: Em Outubro passado, pela primeira vez na história do Uruguai, uma frente de esquerda (Frente Amplio) viria a ganhar as eleições, derrotando por uma ampla maioria o monopólio dos partidos tradicionais que desde sempre governaram o país. No dia seguinte às eleições, Eduardo Galeano escreveria no jornal Brecha: «Nós, os uruguaios, melancólicos e pouco expansivos, que à primeira vista nos parecemos com argentinos com valium, andamos dançando no ar.»



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ADEUS AO VELHO BAIRRO Teresa Porzecanski

Avenida 18 de Julho. Archivo Fotografico de Montevideo

Não é invulgar encontrar em qualquer café montevideano do centro ou da Cidade Velha, por volta do meio-dia de um dia de trabalho, um grupo de amigos que conversam, comentando o último jogo de futebol da selecção uruguaia ou as vicissitudes sempre controversas da política nacional. Abandonaram, por instantes, o seu trabalho e reúnem-se para descontrair e exercer o antigo hábito da amizade, a conversa intimista e as angústias subentendidas. Ao mesmo tempo, noutro lugar da cidade, num bairro periférico, quando as crianças ainda não regressaram da escola, três vizinhas puseram de lado os baldes e as vassouras e foram sentar-se ao sol para comentar a evolução da telenovela que costumam ver a certa hora da tarde. Este influxo de sociabilidade e comunicação espontânea


ainda não foi extinto, na Montevideu de princípios do milénio, pela modalidade rápida e transitória da interacção urbana contemporânea. Se, como escreveu A. Mons (1994:129), «o território das nossas cidades [...] está constituído tanto por delimitações visíveis, espaciais, como por instituições [...] ou por relações sociais, hábitos, crenças que tecem a adesão localizada, específica», pode aceitar-se que o modelo de «bairrilização» de Montevideu, que atingiu o seu protótipo na década de 50, configurou, durante as décadas seguintes, um elemento importante na construção das identidades pessoais e familiares. Especialmente nas zonas em que essa identidade se consolidou, ligada ao surgimento de agrupamentos vinculados à educação ou ao lazer (clubes de futebol, conjuntos carnavalescos, clubes sociais, escolas e liceus), o bairro interveio decisivamente nos processos de enculturalização da sociedade uruguaia urbana, intermediando entre o indivíduo, a família e a massa distante e impessoal, no contexto da vizinhança, onde se consolidavam e cresciam os laços de pertença não biológica. Dentro destas redes, a concorrência com a escola, a paróquia, o clube desportivo ou o liceu operou como construtora das sociabilidades primárias, sendo notoriamente responsável por amizades, noivados e casamentos. Por outro lado, no modelo urbano dos anos 50, a permanência e a antiguidade no bairro também configuravam factores de poder e prestígio. O controle social dos vizinhos sobre outros vizinhos e um marcado individualismo constituíram outro factor «centrípeto» dos bairros. As fronteiras e a topografía fo-

Bairro popular. Archivo Fotografico de Montevideo

ram também importantes na demarcação de identidades territoriais distintivas, as que podem sintetizar-se sob a fórmula genérica das categorias «os de cá»/«os de lá». Trata-se de imaginários simbólicos vinculados a uma topografia de fronteiras móveis – diferentes das determinadas pelos projectistas – gestoras de precon-

Café de la Corte. Fotografia de JV

ceitos e identidades grupais, já que o processo de uma identidade comunitária específica não se constrói senão em contraste ou em oposição com outras comunidades/bairros. No caso dos grupos habitacionais estigmatizados de Montevideu, é muito clara a diferenciação que os vizinhos fazem entre


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«os de cá» e «os de lá». Os próprios habitantes dos sectores carenciados constroem uma identidade «de bairro» – embora muito desvalorizada –, na qual se intromete constantemente esse olhar subestimador dos outros, na elaboração das identidades e identificações territoriais. Alguns estudos falam de «fragmentação social» em Montevideu e de um «modelo que caracteriza a maioria dos jovens de classe baixa e média-baixa, residentes nos Bairros do Norte, Oeste e Este da cidade, por elementos tais como: insucesso escolar, taxas elevadas de abandono do sistema educativo, acesso prematuro a empregos de muito baixa qualidade, maternidade precoce, alguma percentagem dos que não trabalham nem estudam e redes sociais homogéneas que podem determinar um caminho de inserção excludente na sociedade» (Veiga, 2001:20). Na sequência deste processo, a paisagem humana e ambiental da Montevideu contemporânea tende a diferenciar-se mais que antes em relação ao acesso dos seus habitantes aos recursos económicos e culturais do país. MUDANÇAS NOS ESTILOS DE VIDA O clima e, especificamente, o que poderia denominar-se de «subculturas de Inverno e de Verão» determinam nos bairros de Montevideu, conforme o caso, diferentes modalidades de interacção social. Pode afirmar-se que os bairros costeiros «se reabilitam» no Verão, quanto à utilização que fazem os seus habitantes das áreas comuns e também pelo deslocamento regular de habitantes de outros bairros para a costa. Em geral, abrir o saguão ou deixar as portas da casa abertas, sair à rua,

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sair à varanda eram as condutas tradicionais dos vizinhos no modelo dos anos 50, o que reflectia «uma cidade familiar», fiável, sem perigos, cujos bairros ofereciam um cenário propício à sociabilidade mais primária gerada pela proximidade. Nos tempos em que os mass media não eram invasivos da privacidade e o telefone não se estendera ainda a toda a cidade, as redes sociais estavam associadas directamente à territorialidade. A partir da década de 60, a extensão das comunicações, a invasão massiva da rádio, a televisão, o fax, o

Este influxo

de sociabilidade e comunicação espontânea ainda não foi extinto na Montevideu de princípios do milénio telefone e o computador conectado com o mundo começam a apagar o limite separador do público e do privado. O espaço doméstico tende a transformar-se gradualmente no que Echeverría denomina uma espécie de «cosmopolitismo doméstico» (Echeverría, 1995): a casa aberta para «fora», mas não é o «fora» da proximidade contextual do bairro, das redes vicinais, das relações cara a cara, da personalização. O «fora» torna-se um mundo distante, virtual, a meio caminho entre a realidade e a mitificação: o mundo da imagem televisiva ou cinematográfica. Nasce o sujeito

encerrado em sua casa, cego ao de «fora próximo», conectado com os acontecimentos longínquos como um espectador. Sob o ponto de vista das relações pessoais, gera-se um processo pelo qual o sujeito estabelece uma frequente e intensa comunicação, independentemente do lugar onde reside: ela inclui o pagamento de facturas por telefone, por computador ou em agências descentralizadas próximas, a realização de acções de gestão quase sem sair de casa e a comunicação em tempo real e imediato com o mundo, a informação e a actualidade. Este processo de transformação comunicativa produz, por outro lado, o que A. Mons chama «desterritorialização», ou seja, mudanças radicais na relação – real e imaginária – do sujeito com o espaço que habita. «É provável que o limite territorial (do bairro, da comunidade) beneficie com a presença dos meios em cada lar [...] quando os lugares já não fazem sonhar, [...] então a televisão faz as vezes de «vínculo social», é uma estrutura desestruturante» (1994: 131-132). VIOLÊNCIA URBANA E TRANSFORMAÇÕES RADICAIS Vários outros factores têm contribuído para a transformação do protótipo de bairro dos anos 50. O incremento da violência urbana despersonalizada – roubar «um qualquer», matar «um qualquer» –, um tipo de violência que se considera substancialmente diferente da de há três décadas, o incremento do «individualismo», como um valor em si mesmo, gerado pela ruptura das dependências de linhagem ou parentesco e estimulado pela crescente oferta de experiências e alternativas nas


sociedades contemporâneas, massivas e afluentes; e a crescente insegurança que espreita – real e imaginariamente – o cidadão na relação com os outros contribuem para um «crescente acantonamento» num cenário que se quer protegido – por vigias, gradeamentos, vigilantes, vedações e sistemas de alarme –, isolado e definitivamente privado. Mas há outras variáveis a considerar: o incremento contínuo da mobilidade espacial (cada vez menos gente continua a viver no bairro em que nasceu ou no qual viveram os pais), a expansão da própria cidade e as paisagens que oferece ao habitante, os novos imaginários respeitantes a «como é desejável viver» difundidos pela publicidade, o incentivo dos discursos (psicológicos, políticos, publicitários) para viver directa ou vicariamente novas ex-

periências (no seio de uma «cultura da auto-realização» (Taylor, 1996) que coloca ênfase no individualismo e na satisfação pessoal), a liberdade – aparente – para escolher novos estilos de vida, o incremento sustentado do divórcio – que estabelece uma necessidade de mudança de casa –, a maior flutuação, em geral, quanto a planos e modelos de vida.Todos configuram elementos decididamente intervenientes numa tendência para o declínio da função identitária do bairro e para procura de uma identidade moldada por outros objectos simbólicos: o género, a filiação religiosa ou política, a idade, a ocupação e a aparência corporal. As tendências de futuro, tal como se manifestam no processo urbano global, conspiram, portanto, contra o tipo de «enculturalização bairrista» tradicio-

nal. Para salvar as formas de vida residencial/comunitárias, a tendência é deslocar os bairros «residenciais» para as margens da cidade, onde a densidade populacional decresce e podem construir-se bairros protegidos da violência por vedações e gradeamentos, e onde um ambiente mais ligado à «natureza», tal como é imaginada ou desejada pelo habitante urbano, resgata a funcionalidade clássica do modelo de relações territorializadas fundadas na vizinhança. Tradução de MGMV

PARA SABER MAIS A. Mons, La Metáfora Social. Imagen, territorio, comunicación, Buenos Aires, Nueva Visión, 1994. D. Veiga e L. Rivoir, Desigualdades Sociales y Segregación en Montevideo, Montevideo, Universidad de la República, 2001. Javier Echeverría, Cosmopolitas Domésticos. Barcelona, Anagrama, 1995. Charles Taylor, La Ética de la Autenticidad, Paidós, Madrid, 1996.


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A FUNDAÇÃO DE MONTEVIDEU Mario Delgado Aparain

Até hoje não está clara a origem do nome da cidade de Montevideu. E mais, poucos centros urbanos da América com desejo de ser cidade tiveram tantos pré-nomes até chegar ao definitivo: Pináculo de la Tentación, Monte de la Detención, Nuestra Señora de la Candelaria, Monte de San Pedro, Santo Vidio, Monte Seredo, Monte Vidi, Monte Veo, Montem Video, Monte Vide Eu, Monte Ovidio, Monte VI D.EO... Tais foram, entre a viagem de Américo Vespúscio (1501) e a fundação por Mauricio de Zabala (1726), as diferentes denominações que recebeu esta elevação visível para os navegadores que entraram, então, pelo Rio da Prata. O fundador de Montevideu era basco, nascido em Durango, cidade do senhorio de Biscaia. Filho do governador D. Nicolás Ibáñez de Zabala, cavaleiro da Ordem de Calatrava, e de D. Catalina Gortázar, foi baptizado em 6 de Outubro de 1682. Militar desde muito jovem, participou em múltiplas campanhas militares, entre as quais a dos cruéis episódios da Guerra de Sucessão. Ali perdeu o braço direito, durante o cerco de Lérida, e desde então teve de usar um braço de prata que amiúde levava, a modo de digna condecoração, pendurado ao pescoço.


Em 1716, o rei de Espanha designou Bruno Mauricio de Zabala governador de Buenos Aires e capitão-general do Rio da Prata. Antes de sair da Península, Zabala preparou um relatório sobre a situação militar da região, que apresentou à Junta de Guerra das Índias a 3 de Março desse ano, o qual levou o rei a melhorar as defesas de Buenos Aires, a reforçar a sua guarnição e a constituir uma esquadrilha de guarda-costas. A 12 de Outubro, o monarca encarregou-o da vigilância dos arredores de Montevideu e de Maldonado. Também devia impedir qualquer contacto dos portugueses com os povoadores de Buenos Aires e a saída dos habitantes de Colónia do Sacramento situada quase em frente, no outro lado do rio, para além dos limites traçados por um tiro de canhão. Zabala desembarcou em Buenos Aires a 11 de Junho de 1717, no âmbito do confronto entre o já debilitado império colonial espanhol e uma Grã-Bretanha, potência marítima crescentemente industrializada, convertida em duro perigo para a manutenção das suas colónias americanas, aliada e em grande medida inspiradora das políticas anti-hispânicas do reino de Portugal. (Um detalhe significativo, durante as negociações de Utreque, foi a recusa do delegado britânico em assinar o tratado se a Colónia do Sacramento – fundada pelos portugueses violando o tratado de Tordesilhas, mas nesse momento em poder de Espanha – não fosse devolvida a Portugal). Cada vez mais preocupado com as políticas de expansão lusitanas, a 13 de Novembro desse mesmo ano, Felipe V

emite uma Real Ordem na qual o encarrega de povoar e fortificar «os postos de Montevideu e Maldonado» para que nem portugueses nem outra nação qualquer se apoderem nem fortifiquem nessas paragens...», ordem reiterada em 1718, após a ruptura com Inglaterra, e em Janeiro de 1720. Mas a questão não era nada simples. O governador havia deparado com sérias dificuldades para cumprir as ordens do monarca, tanto por falta dos fundos necessários como pela recusa das famílias bonairenses perante a possibilidade de se mudarem para a margem oriental, por todos considerada altamente perigosa, problemas agravados pela arriscada pressão que representavam as actividades dos piratas, por um lado, e das forças portuguesas, por outro. Em Julho de 1722, o Cabido de Buenos Aires manifestou o seu desejo de povoar a Zona Oriental «convocando os seus vizinhos e outras pessoas propositadamente para o caso». Zabala aceitou o seu plano e pediu que se fizessem «as diligências que fossem convenientes a fim de que se consiga a dita povoação...». O órgão comunal iniciou uma série de discussões sobre o tema, tendo-se apresentado, entre outras ideias, a de destinar as reservas procedentes do terço que lhe correspondia pela venda do couro, ou a de levantar a nova cidade «com suores das veias de ouro e prata» que pudessem existir na «outra zona». Dois dias após o último debate da Sala Capitular, os portugueses chegavam à área montevideana. O governador do Rio de Janeiro, Aires de Saldanha de Alburquerque, havia encarrega-

do Manuel de Freitas da Fonseca desta missão, que comandou uma expedição que chegou a 22 de Novembro de 1723. Em Janeiro de 1724, Zabala embarcou rumo a Montevideu. À sua chegada, já Alonso de la Vega tinha ocupado a península abandonada pelos lusitanos. Zabala determinou de imediato que se erguesse uma bateria «na ponta que faz a Este a enseada para defendê-la », ou seja, no mesmo lugar em que os portugueses haviam iniciado a sua própria construção, na actual intersecção das actuais ruas Cerrito e Ituzaingó. Zabala também ordenou a construção de um forte, que Domingo Petrarca começou a erigir a 22 de Abril, precisamente onde actualmente se encontra a praça que tem o nome do fundador. Petrarca também estabeleceu na «Ribeira do Porto» o primeiro esboço do que viria a ser a base primitiva da cidade. De regresso a Buenos Aires, Zabala informou o rei do ocorrido, o qual o felicitou, prorrogou o seu mandato «até que esteja executada a fortificação e povoação de Montevideu e todas as demais coisas que levem os portugueses a ajustarem-se aos termos que devem», e promoveu-o a tenente-general dos Reais Exércitos. Na mesma data estabeleceu os privilégios dos futuros povoadores e informou sobre a sua disposição de enviar 50 famílias, da Galiza e das ilhas Canárias. Também requeria a Buenos Aires que, pela sua parte, enviasse «as mais famílias que pudesse» para povoar os «ditos sítios». Tinha começado, finalmente, o longo processo fundacional de Montevideu. Tradução de MGMV


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MONTEVIDEU É UMA CIDADE FEITA À ESCALA HUMANA NUM CONTINENTE DE EXUBERÂNCIAS Entrevista com

Gerardo Caetano

Mario Delgado Aparain Eis como o conhecido historiador uruguaio Gerardo Caetano vê Montevideu. Uma cidade a contramão do resto das capitais do subcontinente americano. Uma cidade que convida ao diálogo, à ideia de proximidade e à polifonia. Numa entrevista ao escritor Mario Delgado Aparain, leva-nos a olhar a cidade desde o Cerro e a descobrir algumas chaves para recriar uma cidade hospitaleira, mais humana e afectuosa.

Baía de Montevideu. Fotografia de JV


Nos últimos anos e sob diversas perspectivas, tem-se insistido em polemizar, em aprofundar o tema da identidade dos uruguaios e, em particular, a identidade de uma cidade como Montevideu, tão singular no contexto latino-americano. Em sua opinião, vale a pena, é oportuna essa insistência em nos definirmos como uruguaios ou como montevideanos? Em primeiro lugar, vejo a identidade montevideana muito reportada a uma dimensão pequena, muito à altura do homem comum. Não tem, em si mesma, coisas grandiosas. O seu cerro, por exemplo, é quase um «cerrito». Não tem morros, tem o seu rio (ao qual chamamos mar) que nunca nos seduzirá pela sua bravura, pela sua exuberância. A cidade é de formato pequeno, feita à escala humana num continente de exuberâncias; é feita de intersecções e de equilíbrios refinados que, Não é épica nem decerto, não se vislumgrandiloquente, antes bram de imediato, pois há convida ao diálogo que procurá-los e indagá-los, é uma cidade «difííntimo cil» que não entrega com facilidade a sua «alma», não nos toca profundamente nem provoca aversão imediata irreversível, como ocorre com outras cidades do continente, onde o forasteiro ou se enamora perdidamente ou foge. Montevideu é uma cidade de têmpera, de textura liberal. Montevideu convence-nos como um todo; a sua melhor oferta é constituída por complexos equilíbrios, de arestas moderadas, com uma abertura onde ainda hoje se pode perceber uma fina combinação entre raízes tradicionais e motivos estrangeiros e cosmopolitas (sobretudo europeus). A sua capacidade de persuasão (parece que estamos a falar de uma pessoa) não é épica nem grandiloquente, antes convida ao diálogo íntimo. Ainda se pode desfrutar Montevideu caminhando. Para nos enamorarmos dela é preciso descobrirmos os pequenos lugares, combinações feitas de pequenos gostos. É uma cidade que dificilmente se pode entender ou explicar sem referências a momentos, porque a sua identidade está muito referida à sua memória. Por isso, a ruptura com certos rasgos da sua memória a feriu tanto...

O ENCANTO DA CIDADE POLIFÓNICA Um exemplo desse vínculo com a memória é a sua própria origem... Precisamente. Montevideu é uma cidade que começou por albergar, nas suas próprias origens, mercadores e soldados. Praça-forte e porto. E essa dimensão, em especial a portuária, a cidade-porto com tudo o que isso significa, tem sido uma marca para

Montevideu tem mantido desde sempre um velho idílio com os viageiros. Muitas das melhores descrições de Montevideu foram feitas por viageiros


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nós. O porto olha sempre o mar, não olha «para dentro». Os montevideanos, quando vão para o interior do país, continuam a dizer que vão «para fora». É um lugar aberto onde chega gente com um olhar diferente, um lugar preocupado com os viageiros. Por isso, Montevideu tem mantido desde sempre um velho idílio com os viageiros. Muitas das melhores descrições de Montevideu foram feitas por viageiros. Montevideu tem sido uma cidade cosmopolita, uma cidade de emigrantes – como revela a sua própria nomenclatura. Também tem a diversidade das cidades aluviais. Quando analisamos a documentação da segunda metade do século XIX, que corresponde à grande etapa imigratória, sempre nos surge uma cidade polifónica que, de algum moPorto, cosmópole e polifonia do, culminou em 1900. Era uma cidade que tiviageiros e imigrantes, «cidade nha a melodia de muitos idiomas. E, para mim, é que me parece a melhor cidade, teria gostade proximidades», eis alguns essa do muito de viver nela. E, muitas vezes, recriar dos melhores traços aquela Montevideu polifónica que combinava da história de Montevideu não apenas idiomas, mas também sonhos e projectos, cores e estilos muito diversos, provoca-me uma evocação muito agradável. Mas também foi uma cidade de classe média ou pequeno-burguesa que, salvo algumas franjas, resistiu durante muito tempo à divisão territorial classista; ou melhor, resistiu à territorialização do poder social. Quando os historiadores Barrán e Nahum falam da Montevideu de 1900, falam de uma «mescla de Manchester e Nápoles». Inclusive quando estudam o censo de 1908, procurando um quadro de estratificação, descobrem que nas vinte e umas secções judiciais de Montevideu havia de tudo. Aquela ideia de proximidade já se instalara na cidade: havia de tudo em cada bairro. Porto, cosmópole e polifonia de viageiros e imigrantes, «cidade de proximidades», eis alguns dos melhores traços da história de Montevideu.

O MIRANTE ESPECTACULAR DE DOM PEPE Disse-se que Montevideu foi também a «cidade dos modelos». Ainda é válida essa noção? Melhor, Montevideu foi a cidade «batllista», a capital do «país-modelo». Real de Azúa dizia que Batlle pensava em Montevideu como o «grande escaparate» da oferta uruguaia para o mundo. E, nesse sentido, concebeu algumas coisas muito interessantes. Por exemplo, Batlle era acusado de padecer de ramblomania, a obsessão de construir uma rambla costeira que bordejasse a cidade. Idealizou-a mediante uma concepção muito modelar: não respeitou a natureza. Mais ainda, tratou de dominar a natureza. A rambla Sul não seguiu os meandros nem as praias que existiam junto a ela. Ao contrário, tratava-se de construir um mirante, um miradouro, de definir e até disciplinar uma paisagem. E, na verdade, assim foi. Essa rambla é, antes de mais, o produto de uma concepção cultural. Hoje talvez fosse feita de forma diferente.


Avenida 18 de Julho, finais do século XIX. Archivo Fotografico de Montevideo

Porque a ideia hoje vigente (não a que vigorava há 70 ou 80 anos), a da articulação entre cidade e território ou cidade e geografia, levaria, por exemplo, à ideia de respeitar mais as praias. E, entre a Ramírez e a baía, havia muitas praias. O projecto da rambla Sul expressa exemplarmente essa noção modelar do «primeiro batllismo», assim como a capacidade empreendedora dos montevideanos da época. Teve de se eliminar o «Baixio», ganhou-se terra ao mar e à areia, tudo para fazer esse «mirante com vista para o mar» que ainda hoje continua a convidar-nos para o passeio e para a contemplação. Mas aquela Montevideu do «primeiro batllismo» também tem que ver com o projecto de «cidade-jardim», que se articulava com a proposta de «país turístico» e «de serviços», orientado fundamentalmente para os argentinos. Aquelas ideias (que são hoje, frequentemente, apresentadas como novidades brilhantes) já então apaixonavam os uruguaios – e os montevideanos em especial – na busca de um «país balnear» que se lançara na conquista das costas estivais com os molhes de Montevideu, Atlántida, Piriápolis e Punta del Este. Nesse contexto ocorreram coisas realmente admiráveis e interessantes. Por exemplo, a proposta do «bairro-jardim», encravado entre a Faculdade de Arquitectura e as extensões do Parque Rodó, que ainda hoje continua a ser uma joiazinha da cidade, com vida e consistência próprias. Muito poucos sabem que entre os pioneiros desse «bairro-jardim» esteve o mesmíssimo Batlle y Ordoñez que talvez a tivesse pensado, muito em sintonia com aquela época de utopias, como «microcosmos» para projectar depois outros pontos da cidade. Também por


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aquela altura, nos manuais escolares de Geografia (recordo especialmente o de Luis Cincinato Bollo) se falava de Pocitos como a nossa «cidade de Inverno» ou a «nossa Nice», ou se mencionava que a praia Ramírez superava a de Biarritz em beleza, ou se dizia que o nosso passeio marítimo só se poderia comparar com a estrada que unia Montecarlo a Nice. Eram, sem dúvida, olhares muito «eurocêntricos».

OS MONTEVIDEANOS NÃO ANDAM BEM COM A SUA CIDADE Desde as primeiras décadas do século XX até hoje, as relações entre montevideanos e Montevideu têm variado muito. Parece haver uma perigosa diminuição de afecto pela cidade...

Rambla Sul – Praia. Archivo Fotografico de Montevideo

Penso que desde há bastante tempo o montevideano, talvez com motivos legítimos, não está de boas relações com a sua cidade. Montevideu continua a ser um mundo por descobrir para a maioria dos montevideanos que ignoram as melhores ofertas desse menu complexo que é a cidade. Desconhecem ou já se esqueceram de muitas ruas e ruelas. Sem dúvida que esse distanciamento corresponde a factores muito diversos. Tem a ver com os novos modelos culturais e com as transformações vertiginosas deste «tempo de mudança», com a revolução mediática e com o seu influxo decisivo na construção de «outro» modo de ver. Tem também a ver com uma severa fragmentação social e económica que tem deixado sem resposta muitas franjas da população de Montevideu. Se se vive num bairro marginal, sem saneamento e com problemas graves de segurança, se para se chegar ao trabalho é preciso viajar pendurado em autocarros que chegam tarde e a más horas... é muito difícil ou mesmo impossível que se possa estar reconciliado com a cidade. Importa, por isso, repensar as novas políticas sociais da cidade, em função de uma melhor justiça básica sem a qual não será possível a integração na cidade a partir das suas referências culturais. Nós, montevideanos, temos uma perspectiva muito provinciana, muito virada para dentro, em relação a muitos problemas do quotidiano da cidade. Ainda não conseguimos perceber o significado profundo de fenómenos como a transformação do centro, a vertiginosa modificação do mapa dos bairros e o seu impacto na prestação de serviços públicos (vejam-se, por exemplo, as mudanças a vários níveis que ocorreram durante os últimos 15 anos num bairro como o da Aguada) ou a tugurização, em poucos anos, de bairros que antes eram de passagem, de encruzilhada. Só com uma renovada abertura mental e a partir da recuperação genuína daquela velha mescla característica da Montevideu de proximidade, poderemos promover a reconciliação efectiva com os seus habitantes.

Poderá daí inferir-se que essa reconciliação passará pela entrada de Montevideu na chamada «aldeia global»? Importa descobrir e legitimar outros percursos, novas travessias de descoberta da cidade, e não apenas aqueles que são mapeados na perspectiva da cultura «culta» ou de elite, mas


Porto de Montevideu, com o Cerro ao fundo, finais do século XIX. Archivo Fotografico de Montevideo

também aqueles que são construídos na experiência quotidiana da cidade, como produtos da cultura popular, da tradição ou da modernidade, ou simplesmente da mistura de tudo isso. Por exemplo, quando se fala dos velhos bares que nos habituámos a frequentar, penso no bar «Tabaré» de que gosto muito. Mas também é necessário descobrir e legitimar o novo, o emergente, que é sempre parte de um património cultural. Nesse sentido, se Montevideu quiser andar para a frente metendo-se na «aldeia global», terá de partir daí, legitimando a construção, a partir da diversidade, de novos percursos alternativos aos que conhecemos e tanto amamos. Renovar o olhar sobre Montevideu a partir dessa abertura para a «aldeia global» significa, por exemplo, repensar sem preconceitos as relações entre o local e o global, isso permite rever noções e conceitos relativos a problemas cruciais para a cidade. O crescimento bem pode ser um deles. Hoje, em todo o mundo, as cidades não querem crescer, procuram uma escala mais governável. Montevideu tem uma dimensão Eu sempre gostei de que na Amér ica Latina Montevideu a partir bem pode ser considerada ideal. A cidade pode entrar em diálogo directo com a «aldeia global» de que faz parte sem necessidade de se converter numa megápole. Regressando à história, o melhor destino montevideano bem poderá encontrar-se na recombinação das velhas dimensões de microcosmos e de cosmópole com os novos desafios e motivos que o século XXI nos impõe.

contemplar do Cerro


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O Cerro

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Eu sempre gostei de contemplar Montevideu a partir do Cerro. Não serei original nisso; contudo, com esse olhar interrogo-me até que ponto alguém que atravessa diariamente uma Montevideu muito circunscrita, não generaliza daí impressões e sensibilidades ao conjunto da cidade, perdendo a noção de visão ampla. O Cerro permite essa visão ampla e permite-a à distância. Mas também há que tê-la de mais perto. Recuperar, por exemplo, essa «outra» Montevideu que está «por detrás do Cerro» e que quase sempre evitamos visitar. Ou essa «outra» Montevideu mais desconhecida ainda que é a Montevideu rural, uma espécie de «deserto» dentro do departamento. permite essa visão ampla Um território carregado de surpresas, de ofertas, e permite-a à distância que faz parte da diversidade desse menu cultural que subutilizamos. Temos de aceitar também algumas oportunidades que este tempo novo nos oferece: podemos chegar facilmente a lugares aonde antes não chegávamos; há mais automóveis, autocarros, estradas. Também há zonas perigosas, proibidas, onde a vida não é fácil. Viver hoje no Cerro Norte ou em Casabó não é nada fácil. Por isso, importa redefinir também as políticas sociais.

PROCURAR A GENIALIDADE DA MISTURA Isso é aplicável a qualquer território cultural. Quando se procura aquilo a que se chama a «nossa música», por exemplo, há que procurá-la no passado?

Praça de la Constitución. Fotografia de JV

Creio que temos de abandonar essa ideia de «mudar à nossa maneira», «à montevideana» ou «à uruguaia». Creio que procurar o «nosso» como contraponto ao resto, opor «o próprio» ao «alheio» é um caminho errado. Temos de procurar, ao invés, a genialidade da mistura. A música montevideana, nas suas melhores versões, tem estado vinculada a essa mistura. Pensemos, por exemplo, em Fernando Cabrera, em Leo Masliah, em Mauricio Ubal, nessa voz feita de tantas vozes de Laura Cabrera, em Jaime Roos. Gosto particularmente de Jaime Roos. E qual é o seu segredo? Por que consegue ele penetrar no mais fundo da alma montevideana? Porque é precisamente «um génio da mistura». Ali entra rock, candombe, jazz, murga, bolero ou milonga. E entra com r igor, não mediante o simples «remendo» de adicionar ou fundir. Pode-se fazer um bolero universal, mas montevideano. Contaram-me que, um dia, Jaime Roos cantou na cidade de Colónia a canção sobre Durazno y Convención. A mais montevideana possível. Alguém poderia ter dito: «Que audácia! Cantar precisamente isto no interior, onde existe um temor anticentrista, antimontevideano? Contudo, cantou-a. E muito bem. Tanto que, segundo me contaram, o ambiente atingiu um fervor tal que a canção terminou com o público de pé gritando «Uruguai, Uruguai, Uruguai!». Perguntamo-nos como uma canção tão montevideana pode gerar, em Colonia, um fervor nacionalista. Creio que é por isso: porque um génio da mistura comove, por-


que ali há um produto microcósmico e cosmopolita, um relato enraizado num lugar, numa rua, numa esquina, mas que carrega enredos que são universais. A música é um produto cultural maravilhoso que expressa, talvez melhor que qualquer outro, uma sociedade. E, no nosso caso, uma Montevideu da mistura do negro, do popular e do «culto», do tradicional, do moderno e do pós-moderno, com essa outra Montevideu das intersecções. Há exemplos admiráveis dessa mistura: quem não se recorda do que foram «Totem» ou os Fattor uso, com a construção da «candombe Ali entra rock, candombe, beat», nos anos sessenta e setenta? Ou a poesia de murga, bolero ou milonga Mateo, de Dino ou de Rada? Como pensar Montevideu sem a sua voz? Um produto tipicamente montevideano e que, ao mesmo tempo, por ser de qualidade, pode atravessar fronteiras. Mas, sobretudo, porque projecta um microcosmos, que – repito – me parece ser o destino de Montevideu. Um dia perguntaram a Jaime Roos qual era a identidade dos uruguaios, e ele respondeu de uma maneira muito singular e muito sábia: «é uma salada com um gosto especial». Pois bem, talvez a verdadeira Montevideu seja também essa: «uma salada com um gosto especial». Tradução de JV

jazz,


OUTRAS INQUIRIÇÕES

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Tão largo e tão íntimo Luiz Antônio de Assis Brasil

Cara verde do Tempo. Face verde do Tempo. Tempo com risco escuro dos caminhos, girando ao som do eixo das carretas. Juntas de boi. Carreteiro. Charque e mate. Cara verde do Tempo, empolada de casas. Riso verde do Tempo, cuspindo água das enchentes. Barqueiros que surgem do ventre das águas. Balsas aborrecidas... de tanto comprimento. Correnteza, Rio grosso. Coxilhas arredondadas, seios nutrindo a gauchada, frêmito, carícia do passado. Pedra. Boleadeira e abraço. Tiros de laço. Tentos de couro cru. Pedra cheia de fendas, entupida de macega. Pedra de olhos minerais. Terra fechada a corações estranhos. Terra encaroçada de glória. Cofre bruto da esperança crioula. Gosto amargo de sangue. Cheiro bom de mistério.

«Paisagem» de Sílvio Duncan, poeta gaúcho


A questão que me pergunto é: em que medida ainda é válido falar na díade pampa-cidade; em que medida nós, do Sul da América do Sul, somos verdadeiramente cidades cercadas de pampa, uma vez que os media e os meios eletrônicos de comunicação vêm diluindo as especificidades e instituindo padrões globalizados de pensamento. Nessa perpectiva – digamos, pós-moderna –, o pampa logo passará a ser apenas um espaço geográfico e econômico, sem constituir-se em ambiente cultural distinto e autônomo da cidade. Para podermos refletir sobre essa inquietante conclusão, vale invocar uma frase de Alejo Carpentier. Dizia ele que na América Latina convivem todos os séculos. Devido à sua formação histórica, há cidades que vivem na era atual e há regiões, da mesma América, que ainda não ultrapassaram o período neolítico. Essa singularidade explicaria, ainda segundo Carpentier, alguns traços de nossa literatura, especialmente o prestígio do romance dito histórico: afinal, falar do passado da América Latina também é falar de seu presente, e vice-versa. É claro que estamos ante uma condição muito especial, especialíssima, na nossa Latino-América, na qual é evidente que nem todos os bens da civilização estão disponíveis para todos, e que é uma inverdade falar em acesso geral a todas as conquistas tecnológicas e científicas. Se lembrarmos, por exemplo, do enorme contingente de analfabetos, da degradada saúde e da constrangedora pobreza e da falta de educação básica que experimenta a maioria dos habitantes do Continente, só podemos concluir que o modo de ser rural tenderá a manter-se inalterado por um período incalculável, mas certamente longo. Palavras como estas não teriam sentido algum na Bélgica, na Dinamarca ou na Alemanha, onde as barreiras entre a cidade e o campo há muito foram eliminadas, e onde o habitante do interior pode viver por inteiro o século atual. Nesses países, como sabemos, as formas genuínas de vida campestre apagaram-se, e resistem apenas como objeto de rentável curiosidade turística e de investigação antropológica.

Na América do Sul, porém, as diferenças lamentavelmente existem, e são inegáveis, e não podemos ignorá-las. Aqui há sim, o pampa, e há, sim, a cidade. O pampa nos cerca, a nós da cidade, com essa presença cheia do mistério de que fala Sílvio Duncan, a começar pela ambivalência de seu gênero: se para os hispanofalantes é uma doce entidade feminina (la pampa), impõe-se com forte presença masculina para nós, brasileiros do Sul (o pampa). Esse caráter epiceno, como símbolo ainda não estudado, aumenta seus segredos. Diluidor de fronteiras, território da liberdade, lugar de encontros amistosos e do MERCOSUL hoje, de guerras ferozes no passado, mas sempre imóvel e soberano, a ver sucederem-se as gerações e as fases da Lua. Ali, no pampa, ocorrem as mutações meteorológicas mais felizes – o natural do Rio Grande saúda com esperança o vento Minuano que vem das planícies do Sul, pois leva embora as tempestades e traz de volta o céu cristalino. Em sua majestosa amplidão de pradarias, o pampa chama-nos à ancestralidade, à terra, instituindo-se em território pleno de metáforas, de existência lírica e irreal. Mas não só o poeta: mesmo o peão de estância vê com os olhos da alma o pasto que alimenta o gado; conhecemos bem sua silenciosa imagem, ao entardecer, tomando mate em frente ao galpão, com as vistas perdidas nas lonjuras. Em que pensará? Nesse espectro de início de mundo, e como um estalo de civilização, surge a cidade. Derivada quase sempre da atividade rural – afinal era preciso vender, comprar, administrar, e isso ocorre nos núcleos urbanos –, a cidade acaba por desenvolver vida própria, com seus afazeres, suas antipatias e tragédias, suas complexas teias de relações interpessoais e com sua cultura específica; aqui nesse extremo Sul, e até por sua origem, a cidade age também como de caixa de ressonância do pampa; mas sui generis, pois não apenas reflete o pampa, ampliando-o, mas também o estiliza. Então temos o seguinte quadro: a cidade, como instituição universal, deve navegar por seus próprios códigos, mas enquanto elemento de uma realidade maior e fortíssima circundante – no caso, o pampa –, acaba por


OUTRAS INQUIRIÇÕES

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render tributo a essa condição. Menores, mados a essa tarefa e, esquecendo o amor, algumas cidades são tocadas mais proximavieram a elaborar um texto mais adequado mente pela presença do meio rural e, de aos padrões mundiais, em especial no que certo modo, diferem deste mais pela quantoca à literatura intimista, como Ernesto tidade do que pela natureza; as maiores, a Sábato, Julio Cortázar, Ricardo Piglia e par dessas evocações campestres, elaboram Mempo Giardinelli. cânones culturais – muitas vezes os imporEm Jorge Luis Borges, as ressonâncias ta, diga-se de passagem –, formando-se, do pampa aparecem transformadas em obassim, uma dicotomia muitas vezes esquijeto estético quase metafísico. E aqui peço zofrênica, isto é: se dependemos do pampa licença para lembrar o conhecidíssimo e porque ele ainda nos dá um sentido exisparadigmático «El Sur». tencial e um estar-no-mundo, vivemos a Esse conto é bem representativo do necessidade de freqüentar modelos estétiquanto um homem civilizado até à medula cos supra-regionais, como homens comdo ossos – um bibliotecário –, um homem prometidos com a realidade de hoje. da cidade cercada pelo pampa, mantém Isso acaba por gerar um certo mal-esdentro de si uma dilacerante ambigüidade. tar; daí que todo intelectual cultiva, em reSua ascendência é desagregadora – por um lação ao pampa, um afeto de amor e de ramo descende de um culto pastor evangéódio. O que é certo é que não se fica indilico, europeu; por outro costado provém de ferente ao pampa. A um índio morto em antiguidade do pamcombate. Desde o forpa, sua soberania inatuito acidente que o Em que medida nós, tacável e irremovível, levou a um hospital, com seu ar de dono comedo Sul da América do Sul, oça protagonista da verdade, se nos a inquietar-se sofascina, também nos bre suas duplicidades. somos verdadeiramente Por recomendação mésufoca. O resultado, no plano emocional, dica, deve voltar para cidades cercadas nunca é satisfatório, o Sul, para sua estânmas ganha a literatucia perdida nos conde pampa? ra, pois esta sempre fins da pátria. Cirdecorre, em última cunstâncias aleatórias análise, de uma dialéo colocam frente ao tica. E é na literatura que essa dialética tordestino fatal, num bolicho de campanha na-se mais aguda. Mais do que nas outras onde se defronta com o ícone de seu ascenexpressões: se pensarmos nas artes plástidente índio, parado a um canto do balcão cas, vemos que estas são essencialmente como se fosse uma coisa, e que o instiga a urbanas e, ao que parece, passam ao largo ir além, como um apelo telúrico. A prevista da questão. Mas na literatura, e aqui falamorte do final, quando a personagem assumos num período que começa no século me uma peleia da qual sairá derrotado, reXIX, vemos que alguns autores esqueceram presenta a impossibilidade de fazer a união o ódio e entregaram-se ao amor, praticando entre esses dois pólos em que se fragmenta uma escrita ligada à terra mas metamorfosua identidade. Não sabendo como resolver seando-a em objeto culto, o que apaziguao conflito, escolhe a mais dramática das sova as consciências, e aí lembramo--nos de luções: a morte, e morte heróica, como seu José Hernández e seu Martín Fierro, Bartoloantepassado. Com isso resgata sua condição mé Hidalgo com os diálogos de Chano y irresolvida de gaúcho e conquista seu lugar Contreras, Domingo Sarmiento e seu Facundo, no mundo. De acordo com o subtexto (ou, ou ainda Estanislao de Campo e seu Fausto, para usar a terminologia de Ricardo Piglia, e mais recentemente Horacio Quiroga, Ria história cifrada) é a antítese cidade-pamcardo Güiraldes, Carlos Reyles e José Enripa que o destrói, mais do que as suas caracque Rodo. Já outros não se sentiram chaterísticas psicológicas.


No lado brasileiro, mais especificaestancieiro que não consegue adaptar-se mente no Rio Grande do Sul, vê-se que o aos novos tempos da industrialização, enpampa deu origem a duas vertentes bem fim, aos novos tempos impostos pela ciclaras. dade. Crítica mais contundente ainda Em primeiro lugar, deu origem a uma transparece no romance Incidente em Antares, paixão cega, a-crítica e irrestrita, fez surgir de Erico Veríssimo, em que os mortos inuma poética de forte apelo popular e essepultos voltam para julgar toda a comucassa literatura, e que se mantém desde o nidade em que viveram. Na bela narrativa século XIX até hoje, perenizada e acalentade O Centauro no Jardim, de Moacyr Scliar, a da pelos Centros de Tradições Gaúchas, bastante crítica é sob a forma de parábola, jogando ligados ao passado e tendentes ao imobicom um dos mitos mais caros à tradição lismo cultural. Tal produção evoca os hábirio-grandense, qual seja, a do centauro tos campeiros, a indumentária, os valores dos pampas, ou monarca das coxilhas, essociais e familiares, o folclore, a paisagem, se ser mitológico criado pelo romantismo etc., com evidente conteúdo nostálgico, literário. Em Cyro Martins, a Trilogia do dentro do princípio do «antes era muito Gaúcho a pé vem chamar a atenção do cammelhor» – e aí estão as quadrinhas desponês que, desapossado de seus bens, pretensiosas, em geral de rimas pobres, vem viver na periferia da cidade, onde se nas quais o campo é a marginaliza, ele e referência onipresensua família. te e paraíso perdido Nesses exemplos, de igualdades. Examinão há lugar para as Aqui nesse extremo sul, idealizações; nem nando-se com mais vagar esses textos, vepor isso deixam de e até por sua origem, rifica-se que a cidade tr ilhar caminhos é vista com desconcompetentes, vitalia cidade age fiança e medo, lugar zando a palavra bárde perfídia, de labara com os aportes também como de caixa drões refinados e puda linguagem culta. tas descrentes. Essa Elaborado com arte ética e essa estética – de ressonância do pampa refinada, mesmo que digamos assim – acautilize por vezes da bam por ratificar todialetologia rural, das as ideologias connão se intimida com servadoras. os mistérios do pampa e impõe-se como Em segundo lugar, o pampa propiciou objeto apreciável em todos os quadrantes. o surgimento de uma valiosa e autêntica Assim, temos obras e autores, de amliteratura, por exemplo, nas vozes do poebos os lados das fronteiras, onde o pampa ma campestre Antônio Chimango, de Amaro é evocado sim, mas em suas peculiaridaJuvenal, dos contos de João Simões Lopes des universais; estas, longe de conflitarem Neto, Sérgio Faraco e Aldyr Schlee, nos rocom a cidade, estabelecem com ela vários mances de Aureliano de Figueiredo Pinto, pontos em comum, que nada mais são de Cyro Martins, de Erico Veríssimo, Rodaqueles decorrentes da natureza humaberto Bittencourt Martins e da poesia de na, que sempre é única. Vargas Neto ou do epigrafado Sílvio DunNão se trata propriamente de uma can, entre outros. Já não se trata de nostalsíntese entre cidade e pampa, nem a imgia, mas da aceitação de um estilo de vida possível decisão entre o amor e o ódio, diferente, que ainda não desapareceu de mas a busca de uma convivência transitiva todo, e no qual há espaço para a crítica das e enriquecedora, enquanto as diferenças evidentes desigualdades sociais. Nas Memóexistirem. rias do Coronel Falcão, do referido Aureliano Afinal, também para isso existe a litede Figueiredo Pinto, vê-se a decadência do ratura.


ILHAS

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Contados e pescados na ilha de Santa Catarina Maria do Carmo Campos

... canoas a remo de pá que vão e voltam da pesca, cheias de peixe fresco que salta dentro, prateado e luzente, ainda vivo, com olhos vidrados de madrepérola, as guelras rubras e as barbatanas membranosas palpitando, no último anseio vão de se moverem na água. Cruz e Sousa

Foi desde sempre o mar. E multidões passadas me empurravam como o barco esquecido. Cecília Meireles


Quem parte rumo a Florianópolis de Porto Alegre, capital do extremo sul do Brasil, tem pela frente 476 km por uma estrada repleta de bananeiras e milharais, podendo apreciar o verde recortado por lagoas que contrastam, a leste, com altitudes espessas da Serra do Mar. A travessia do Rio Mampituba já anuncia outras configurações marítimas: voando sobre Santa Catarina, costeamos montanhas, rios, riachos, pontes, areia, case-

O mar é maior três vezes que a Terra, explica seu

José Agostinho, pescador da barra da lagoa, que toca cavaquinho na igreja, trova, tira versos, sabe picadinho e fandango, além de infinitas lendas bres e até cidades, como Laguna, alicerçada entre águas e mistérios, mãe terra da fabulosa Anita Garibaldi. Mais ao norte, outra ponte conduz à ilha, radiosa, que aos poucos se deixa entrever. Magnífica, ela suga o olhar dos viajantes, turistas, surfistas e até rotineiros, que fazem da chegada algo trivial, quase impermeáveis ao avistar da paisagem paradisíaca. Antes Desterro, desde 1894 o município é Florianópolis, formado de 12 distritos, num conjunto de duas porções, uma continental de 12,1 km2, outra insular com 424,4 km2. Recortado

Santo António de Lisboa. Fotografia de MCC

Casa Açoriana e Igreja de Santo António. Fotografia de MCC


ILHAS

Conta do tempo em que a ilha não tinha contato com terra nenhuma, narrativas de desterro, bruxas, lobisomens

Nenêm conhece os tipos de camarão (branco, rosa, pintado, perereca), fala do jereré e da pesca noturna na lagoa da Conceição

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por enseadas, dunas, praias, lagoas, rios, promontórios, manguezais e pequenas ilhas esparsas, o conjunto forma um contraponto verdeazulado que fulgura entre o mar e a cidade, cujo centro abriga construções oitocentistas, uma cidade universitária e centenas de empreendimentos imobiliários. «O mar é maior três vezes que a Terra», explica seu José Agostinho, pescador da barra da lagoa, que toca cavaquinho na igreja, trova, tira versos, sabe picadinho e fandango, além de infinitas lendas. «Sem tanta ladineza como tinha antes», aos 84 anos canta boi-de-mamão, sabe de bruxas, barcos, peixes, um homem viajado: pelos navios Itatinga, Itabirá, Itassussé foi ao Rio Grande do Sul, Paraguai, Chile, depois ao Rio de Janeiro, de avião, como convidado. «A vida é um jeitinho, morrer é um descuido», confessa com sabedoria esse contador de histórias, guardador de uma enormidade de provérbios, capaz de inscrever nos seus dizeres a poluição, o dinheiro, a mulher, a evolução dos meios de comunicação. Analfabeto, conta do tempo em que a ilha não tinha contato com terra nenhuma, narrativas de desterro, bruxas, lobisomens, vestuário, plantas, pesca e redes, feitas de embira, caroá, ticum, barbante, perna-de-moça, gerbo e finalmente nylon. Histórias do tempo em que as moças usavam sete saias, quando sua mãe teve 24 filhos e quando um cantador podia roubar a noiva na hora do casamento, devolvendo-a ao seu verdadeiro amor, que a arrebatava da festa a cavalo. Cheia de sedução, Florianópolis é um paraíso turístico fertilizado pelos canais da ilha da magia, onde o cheiro de peixe se funde com lendas como a da

praia do Itaguaçu e muitas outras recolhidas por Franklin Cascaes, grande defensor da tradição popular. Nas palavras de Agostinho, ser bruxa é um condão, qualquer mulher pode ser bruxa se alimentar o mal no pensamento: «hoje a mulher avançou demais, boiou n’água e depois botou a cabeça de fora», pondera, trazendo tempos em que negócios eram pagos com bananas, distantes de hoje, quando o mundo mudou e «temos de ser como um aviador, ver os quatro cantos da terra». E o peixe? pode acabar por causa dos óleos dos navios, dos aviões, da poluição que envenena a natureza. «Ai que terra tão brejeira/mãos de fadas a rendar/ Tem Maria padroeira/ Ensinando a gente a amar.» Seguindo velhas rendeiras, junto à Lagoa da Conceição a Tenda da Vá tem blusas, batas, saias, chapéus, bolsas, adereços, toalhas, caminhos de mesa, croché, agulha de rede, filé e bilro. Além dos 140 tipos de rendas, o velho pescador lembra os folguedos, «farra do boi, boi-de-mamão e ratoeira, uma brincadeira para iniciar namoros: Atirei o limão verde/ Por cima da Sacristia/ Deu no cravo deu na rosa/Deu no moço que eu queria», sem esquecer outros modos de pegar uma moça, como torrar um beija-flor na sexta-feira santa, ou o Pão-por-Deus, quadras de amor em papel recortado em forma de coração. Já Seu Nenêm, pescador, fiscal da pesca, hoje coordenador do Terno de Reis, também mora com a família na Barra da Lagoa e conta dos santos que eram levados às casas na noite de 6 de Janeiro, costume de um tempo bem anterior à televisão, quando não havia sequer capelas. Tive a sorte de colher outros improvi-


sos, tesouros da oralidade transmitidos a gerações, alguns gravados hoje em CDs: «Santos Reis desceu à terra/ Foi a pé caminhar/Para chegar em Belém/ Mas antes do galo cantar.» Outras quadras celebram a pesca e a navegação: «Lá fora naquele mar/Vai um barco embandeirado/ Debaixo da vela grande/ Vai o meu amor assentado.» Íntimo de baleeiras e de barcos apelidados Quando eu sou feliz ou Santo é o Senhor, Nenêm conhece os tipos de camarão (branco, rosa, pintado, perereca), fala do jereré e da pesca noturna na lagoa da Conceição, alertando sobre o desaparecimento das espécies: «Querem matar toda a criação, não respeitam as balizas nem a desova e usam tarrafas de mini-saia», que colhem um excesso de peixes. As crianças de amanhã podem querer um siri, um camarão, repete, indignado.

A religiosidade, a pesca, a renda, o sotaque, a fala acelerada, a culinária e outros costumes fazem reverberar em Florianópolis muitos ecos da herança dos Açores, implantada entre 1748-1756 com a chegada de 6000 açorianos e alguns madeirenses, que se estabeleceram nos primeiros povoamentos de Santo Antônio de Lisboa, Lagoa da Conceição e Ribeirão da Ilha, com as respectivas igrejas, Nossa Senhora das Necessidades, da Conceição e da Lapa. Entre as tradições luso-brasileiras, ainda o casario, os engenhos de mandioca e cana-de-açúcar, fortalezas, igrejas e o artesanato, concentrado no imaginário e nos motivos da ilha, exposto na Casa Açoriana, artes e tramóias ilhoas, sediada com todas as graças junto à Igreja das Necessidades em Santo Antônio de Lisboa.


ALTAS SOLIDÕES

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Popocatépetl O monte que fumega Antonio de Solís. Madrid. 1684


Vulcão Popocatépetl. Fotografia de Juan Rulfo, publicada com a autorização da senhora Clara Aparicio de Rulfo


ALTAS SOLIDÕES

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Ocorreu nessa altura um acidente que foi novidade para os espanhóis e lançou a confusão entre os índios. Descobriu-se, do alto do sítio onde então estava a cidade de Tlaxcala, o vulcão de Popocatépetl, no cume de uma serra que, distante de oito léguas, sobressai consideravelmente sobre os outros montes. Começou naquela altura a turvar o dia com grandes e espantosas vagas de fumo, tão rápido e violento que subia a direito, longo espaço no ar, sem ceder aos ímpetos do vento, até que, perdendo a força no alto, se deixava espalhar e dilatar por todas as partes e formava uma nuvem mais ou menos escura, segundo a porção de cinza que levava consigo. Saíam, de quando em quando, misturadas com o fumo, algumas labaredas ou globos de fogo que pareciam que se dividiam em centelhas, e seriam as pedras em brasa que o vulcão arremessava ou alguns pedaços de matéria combustível que duravam segundo o seu alimento. Não se espantavam os índios de ver o fumo por ser frequente e quase vulgar este vulcão, mas o fogo, que se manifestava poucas vezes, entristecia-os e atemorizava--os como presságio de males vindouros porque tinham aprendido que as centelhas, quando se derramavam no ar e não voltavam a cair no vulcão, eram as almas dos tiranos que vinham castigar a terra e que os seus deuses, quando estavam indignados, valiam-se deles

como instrumentos adequados à calamidade dos povos. Sobre este delírio da sua imaginação estavam discorrendo com Fernando Cortés, Magiscatzin e alguns daqueles magnates que normalmente o acompanhavam; e ele, reparando naquele rude conhecimento que mostravam da imortalidade, prémio e castigo das almas, tentava dar-lhes a entender os erros em que traziam desfigurada a verdade, quando entrou Diego de Ordaz a pedir--lhe licença para reconhecer de mais perto o vulcão, oferecendo-se para subir ao alto da serra e observar todo o segredo daquela novidade. Espantaram-se os índios de ouvir semelhante proposição e, procurando informá-lo do perigo e desviá-lo do intento, diziam: «que os mais valentes da sua terra só se atreviam a visitar algumas vezes umas ermidas dos seus deuses que estavam a meio da encosta, mas que daí em diante não se acharia pegada de humano pé, nem eram sofríveis os tremores e bramidos com que a montanha se defendia.» Diego de Ordaz incendiou-se mais no seu desejo, com a mesma dificuldade que o encareciam; e Fernando Cortés, ainda que o tivesse por temeridade, deu-lhe licença para tentá-lo, para que vissem aqueles índios que não estavam negados os seus impossíveis à coragem dos espanhóis, zeloso a todas as horas da sua reputação e da de sua gente.


Acompanharam Diego de Ordaz, nesta facção, dois soldados da sua companhia e alguns índios principais que se ofereceram para chegar com ele até às ermidas, lastimando-se muito de que iam ser testemunhas da sua morte. O monte é muito delicioso no princípio, aformoseando-o, por todos os lados, um arvoredo frondoso que, subindo largo trecho na encosta, suaviza o caminho com a sua amenidade, e ao que parece com enganoso divertimento levam ao perigo pelo deleite. Vai-se depois esterilizando a terra, parte com a neve, que dura todo o ano nas paragens que o sol desampara ou o fogo perdoa, e parte com a cinza, que branqueia também, ao longe, com a oposição do fumo. Ficaram os índios nos aposentos das ermidas, e Diego de Ordaz partiu com os seus dois soldados, trepando animadamente pelos penhascos e pondo muitas vezes os pés onde estiveram as mãos, mas, quando chegaram a pouca distância do cume, sentiram que se movia a terra com violentos e repetidos vaivéns, e ouviram os bramidos violentos do vulcão que, num instante, disparou com maior estrondo grande quantidade de fogo envolto em fumo e cinza, e ainda que subisse direito sem aquecer o ar, dilatou-se na transversal, depois, lá em cima, e caiu sobre os três uma chuva de cinza tão espessa e tão inflamada que necessitaram de se esconder no côncavo de uma pe-

nha onde faltou o ânimo aos espanhóis e quiseram regressar, mas Diego de Ordaz, vendo que acabava o terramoto, que se mitigava o estrondo e o fumo saía menos denso, animou-os a avançar e chegou corajosamente à boca do vulcão em cujo fundo observou uma grande massa de fogo que parecia ferver como matéria líquida e resplandecente e reparou no tamanho da boca que ocupava quase todo o cume e teria um quarto de légua de circunferência. Regressaram com esta notícia e receberam felicitações pela sua façanha, com grande assombro dos índios que resultou numa maior estima pelos espanhóis. Esta bizarria de Diego de Ordaz não passou, então, de uma curiosidade temerária, mas o tempo fê-la consequente e tudo servia nesta obra, pois, achando-se, mais tarde, o exército com falta de pólvora para a segunda entrada que se fez por força das armas no México, se lembrou Cortés dos fervores de fogo líquido que se viram neste vulcão e achou nele toda a quantidade de que houve necessidade de finíssimo enxofre para fabricar esta munição; com o que se tornou recomendável e necessário o arrojo de Diego de Ordaz e a notícia foi de tanto proveito na conquista que o imperador o premiou com algumas mercês e enobreceu a mesma facção dandolhe por armas o vulcão. Tradução de MGMV

Excerto de Antonio de Solís, Historia de la conquista de México, población y progresos de la América Septentrional, conocida por el nombre de Nueva España, Lib. III, Cap. IV, Madrid, 1684.


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Guadiana, o grande rio do Sul Cláudio Torres

Porto de Mértola com o "gasolina" que fazia a carreira para Vila Real de Santo António. Finais do século XIX. Arquivo do Campo Arqueológico de Mértola


Cais de Mértola onde estão fundeados os buques de transporte de adubos para os campos de pão dos barros de Beja. Anos 40 do século XX. Arquivo do Campo Arqueológico de Mértola


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As águas fecundas do Guadiana tornaram-se desde muito cedo um pólo de atracção para as primeiras comunidades de caçadores-recolectores. No seu percurso, esta enorme bolsa alimentar era não só incontornável, como matriz de muitas e variadas civilizações. Durante as longas e inclementes estiagens, quando nas redondezas parecia ter definhado toda a forma de vida, as suas águas ainda correntes e os seus pegos profundos seriam muitas vezes uma última alternativa de sobrevivência. A montante do Pulo do Lobo, nos chamados Terraços do Guadiana, foi assinalada a presença do homem paleolítico, e nas terras chãs que bordejam o último troço fluvial é notória uma densa e continuada presença humana, desde os primeiros agricultores neolíticos até ao sistema agro-pecuário de exploração comercial das vilas romanas.

O troço final do Guadiana foi, de certa forma, o coração da Cultura do Sudoeste que produziu uma das mais enigmáticas civilizações ibéricas. Cobrindo uma área considerável da Serra Algarvia, foram encontradas várias dezenas de estelas funerárias em que o epitáfio, numa língua ainda por decifrar, está gravado em caracteres fenícios e gregos. Estes monumentos epigrafados, pelo menos os mais antigos, parecem datar do século VII a.C., e os mais recentes, aparentemente, aproximam-se dos alvores da romanização. Os prospectores ou comerciantes de ouro, que estas pedras tumulares pretendem não deixar esquecer, seriam indígenas pelo falar, porém já em contacto com as grandes civilizações do Oriente mediterrânico, de quem receberam o alfabeto e a escrita. O que é certo é que os clássicos greco-latinos começam a referenciar o longínquo e miti-

A favor das marés, ou bolinando agilmente contra os ventos traiçoeiros, os antepassados dos barinéis, caíques e canoas – que até aos nossos dias animaram o grande rio – traziam brocados e especiarias de Tunes, Siracusa ou Alexandria, levando carne fresca, couros e pelicas, frutos secos e lingotes de prata e chumbo A navegação e a construção naval começaram a surgir durante os primeiros contactos com as rotas do Mediterrâneo. Há cerca de três milénios, acompanhando as marés que diariamente invertiam o sentido das correntes, começaram a subir o rio os primeiros forasteiros em demanda da prata e do ouro que, nessa altura, abundavam nas serranias circundantes. A prata era explorada um pouco mais a norte, nos filões da serra da Adiça. O ouro era recolhido à superfície, nos chamados chapéus de ferro, afloramentos metalíferos da faixa piritosa que se estende da serra Morena até às cercanias de Grândola. Por outro lado, o estanho tão necessário ao fabrico do bronze mediterrânico também aqui chegava ao longo de uma das derivações da Via da Prata que ligava o Noroeste da Península aos portos de Sevilha e Mértola.

zado Ocidente como um local onde o ouro corre sobre a terra aquecida pelo Sol no seu ocaso. Começara o primeiro grande ciclo mineiro do Guadiana. Durante mais de mil anos, desde o século VII a.C., com os primeiros orientais (fenícios?) a chegar a Mértola, até ao século IV d.C. – quando se encerram as grandes explorações mineiras de Vipasca (Aljustrel) e de S. Domingos –, gaditanos, cartagineses e romanos, sucessivamente, digladiam-se pelo controlo dos portos e das rotas comerciais. Barcas de todos os calados desciam o Guadiana com os porões carregados de lingotes de chumbo e cobre e, bem escondidos, alguns outros de ouro e prata. Durante este longo período, o porto fluvial de Mértola, marcando o fim do troço navegável do Guadiana, era o centro onde convergiam os caminhos terrestres e fluviais da mineração. Todas as embarcações da


Porto do Pomarão com alguns mineraleiros fundeados antes de seguirem viagem para Inglaterra. Anos 3O do século XX. Arquivo do Campo Arqueológico de Mértola


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época, à vela e a remo, esperando embora a praia-mar para o atravessamento de dois perigosos baixios, abicavam no areal junto à Porta da Ribeira onde eram calafetadas a seco antes da viagem de regresso. A partir do século II d.C., em pleno apogeu do Império Romano, com a exploração de outros filões mais rentáveis e certamente devido a uma quebra na produção local, começam a entrar em decadência as grandes minas do Sudoeste ibérico. Entretanto, desenvolvera-se um novo e florescente mercado agrícola dirigido ao abastecimento das metrópoles do Mediterrâneo. Beja era já a capital de um vasto Conventus. As suas terras férteis produziam bom vinho, azeite e trigo que pesados carros e récuas de muares depositavam durante quase todo o ano no porto de Mértola. Enquanto as saídas para o Atlântico em Sines ou Alcácer eram dificultadas por um mar sazonalmente muito agressivo, o Guadiana, pelo contrário, permitia uma navegação quase permanente. Depois das convulsões sociais que, em finais do século III d.C., agitam todo o Império Romano, imprimindo uma nova dinâmica de ocupação e exploração da terra no sentido de uma pré-feudalização, multiplicam-se as grandes e luxuosas villae, com especial incidência nas terras fundas do Alentejo, em detrimento dos centros urbanos. O porto de Mértola, porém, já cidade municipium desde os tempos de Augusto, não perde a sua importância económica, mantendo em grande actividade as suas relações comerciais com o Sul. Ao longo do rio, em todos os locais propícios à plantação de um pomar ou de uma vinha, levantam-se nessa altura grandes e pequenas villae agrícolas com as suas barragens para irrigação e os seus embarcadouros. É o caso da Bombeira e Barranco da Vinha, junto a Mértola, do Montinho das Laranjeiras e do Álamo, nas imediações de Alcoutim. A partir do século V d.C., desmembrado o Império e dificultadas as ligações terrestres e marítimas, apenas algumas cidadesEstado mantêm uma certa vida urbana. É o caso de Mértola, onde a descoberta de um conjunto de lápides funerárias escritas em grego não só comprova a existência na cidade de uma próspera comunidade de mercadores orientais, activa durante os sé-

culos VI e VII, como nos sugere que a navegação pelo Guadiana e o comércio marítimo nunca foram interrompidos. Se, durante estes séculos mais obscuros da história do Ocidente, continuaram a subir o Guadiana os rápidos dromons bizantinos com as suas velas latinas e duas fiadas de remadores, com mais razão se nota o incremento mercantil quando, a partir do século IX, as rotas internacionais e a segurança dos mares são asseguradas pelas esquadras do novo poder da Córdova emiral e califal. De certa forma continuando a tradição mediterrânica da cidade-Estado, a islamização do Sul da Península Ibérica, e especialmente a do Gharb al-Ândalus, vai consolidar as autonomias regionais, alimentando a prosperidade de uma sociedade de mercadores ligados ao Mediterrâneo e ao Próximo Oriente. Durante os quase cinco séculos de integração na civilização islâmica, a vida mercantil e a navegação sobre o Guadiana atingiram certamente o seu máximo expoente. Mértola, centro político e económico de um principado que várias vezes foi independente e, sobretudo, cidade-porto de um vasto território que incluía as cidades de Beja, Serpa, Moura, Aroche e Aljustrel, era o termo de um corredor que tinha no outro extremo a cidade de Tavira e que servia os pequenos portos secundários de Cacela, Ayamonte, Sanlúcar e Alcoutim. A favor das marés, ou bolinando agilmente contra os ventos traiçoeiros, os antepassados dos barinéis, caíques e canoas – que até aos nossos dias animaram o grande rio – traziam brocados e especiarias de Tunes, Siracusa ou Alexandria, levando carne fresca, couros e pelicas, frutos secos e lingotes de prata e chumbo. No segundo quartel do século XIII, com a integração de Mértola e Tavira nos territórios da Ordem de Santiago, o Guadiana, desviado dos circuitos do Mediterrâneo, passa a zona de fronteira e entra em decadência. Mértola é durante uma centúria a sede desta Ordem Militar, e o castelo de Castro Marim serve de cabeça à Ordem de Avis. A conquista de Ceuta e, logo a seguir, a de Alcácer Seguer abrem para o Guadiana um novo e fugaz período de intenso tráfego fluvial. As praças de África, sem qualquer re-


taguarda territorial, dependiam da feitoria de Sevilha, é certo, mas sobretudo do pão alentejano que embarcava em Mértola. A partir de meados de Quinhentos, com a crescente utilização de pesados galeões no transporte de cereais, os vaus e baixios das proximidades de Mértola obrigam a um transbordo para navios de menor calado no fundeadouro da Mesquita, em frente do actual Pomarão. É neste porto, quinze quilómetros a jusante de Mértola, que, em meados de Oitocentos, se esgota o último ciclo da história naval do Guadiana. A partir dessa altura e durante cerca de cem anos, o Guadiana é integrado na grande malha internacional que vai alimentar a revolução industrial europeia. Escoando manganés e chumbo – sempre com alguns lingotes de ouro e prata à mistura – mas principalmente pirites cupríferas, centenas de milhares de toneladas de minério embarcaram no Pomarão com destino directo aos portos ingleses. As velhas minas de S. Domingos transformam-se nas maiores do país, com uma população operária que atinge alguns milhares. As estradas romanas e medievais que encaminhavam os metais para o porto de Mértola concentram-se agora num sinuoso caminho-de-ferro que desemboca no porto mineiro do Pomarão onde as vagonetas descarregavam directamente para os porões de grandes cargueiros atlânticos. Desde os primeiros sinais da Segunda Guerra, os roncos solenes dos vapores e mineraleiros abrem caminho entre as longas filas de canoas que subiam o Guadiana carregadas de adubos e fosfatos. Fora lançada sobre as terras esqueléticas do Baixo Alentejo a campanha do trigo. Depois de uma primeira colheita promissora nas encostas desbravadas, só muito adubo permitia que a semente duplicasse. Foi o grande desastre ecológico das terras do Sul e também o estertor da última grande navegação sobre o Guadiana. Com o encerramento e abandono das minas de S. Domingos em 1965, que levou à falência a carreira fluvial que fazia o percurso até Vila Real de Santo António, e com o desvio rodoviário do transporte de adubos e trigo, foi encerrado um ciclo de milhares de anos de civilização em que o grande rio foi razão e matriz. Restam alguns pescadores

que teimosamente ainda retiram o seu sustento de umas águas cada vez mais poluídas. As artes da pesca – seja ao arpão, armadilhas de caniço ou redes de tresmalho – foram aqui criando raízes ao longo dos séculos, formando um complexo e equilibrado sistema de exploração piscícola que apenas nas últimas dezenas de anos começou a entrar em colapso. As variadas formas de poluição orgânica provenientes de uma agricultura intensiva, os metais pesados escorridos das explorações mineiras e a sobrepesca de juvenis são, com certeza, as causas principais. É de destacar, nesse sentido, a apanha ilegal do mexão ou angula que nos últimos anos, devido ao seu preço especulativo, introduziu e generalizou a utilização de redes com malha fina que tudo apanham e destroem. Curiosamente, em épocas bem distantes e quando aparentemente era ainda impensável o perigo da extinção de espécies, eis que, numa postura da Ordem de Santiago datada de meados do século XIV, era ordenado aos pescadores de Mértola que todo o peixe apanhado no Guadiana com um peso inferior a três quilogramas fosse obrigatoriamente lançado à água, sob pena de multa. Esta será uma das primeiras medidas coercivas de protecção da fauna piscícola do nosso país, e a espécie visada é o solho (esturjão) que nessa altura e até à primeira metade do século XX era uma das principais riquezas alimentares do rio e, portanto, espécime protegido enquanto juvenil. Há cerca de 40 anos foi pescado o último solho do Guadiana e actualmente estão em vias de desaparecimento acelerado os outros migradores como o sável, a saboga e a lampreia. Na memória regional, praticamente em todo o Alentejo, com clara dominante na região de Beja, tem sobrevivido teimosamente uma tradição culinária que de uma forma indirecta rende homenagem ao solho, ex-rei do grande rio do Sul. Trata-se da saborosa e insólita sopa de cação que, à falta da carne branca do esturjão, que dera fama à sopa de solho, passou a incorporar com arte e saber o pequeno esqualo de febras macias e textura óssea semelhante.


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Biblioteca do Real Paรงo e Convento de Mafra Maria Margarida Montenegro



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O Convento de Mafra é um dos símbolos da monarquia absoluta em Portugal e reflexo do esplendor do Rei Magnânimo. Construído para a Ordem de S. Francisco, o Real Edifício engloba também um Paço que acolhia a Família Real nas suas frequentes deslocações a Mafra e sua Tapada. D. João V, generoso mecenas e amante das ciências e das artes, reuniu aqui uma das melhores colecções de obras impressas do seu tempo, instalada em duas casas da livraria situadas na fachada norte, tendo cada uma o seu bibliotecário e funcionando assim como duas bibliotecas independentes. Para enriquecimento dessa colecção tinha o Rei emissários nos principais centros livreiros da Europa, como os Países Baixos, França e Itália, encarregues de instruírem e adquirirem o que de melhor e mais moderno fosse publicado. Ao tempo de D. José e por determinação do Marquês de Pombal, foram os frades franciscanos substituídos pelos cónegos regrantes de S.to Agostinho, que aqui permaneceram cerca de 21 anos. Foi durante este período que se pensou reunir aquelas duas livrarias numa só sala situada no Piso Nobre, ao centro da fachada nascente. Para esta sala encomendaram os cónegos ao arquitecto Manuel Caetano de Sousa o projecto das estantes, ao estilo rocaille, executadas em madeira do Brasil, encimadas por medalhões onde deveriam ser pintados «os bustos dos homens mais ilustres nos ramos do saber de que tratam os livros de cada estante»1. Com uma planta em cruz, destaca-se sobre o Cruzeiro uma abóbada de estuque cujo fecho é rematado por uma máscara representando o Sol. Ainda neste período, foi o chão de tijoleira substituído por «xadrez de pedra azul, branca e vermelha, e no meio aonde ainda é mais rico e precioso se acha também pedra preta e amarela, cuja riquíssima alcatifa é uma prova bem autêntica do grande ânimo do Sr. Rei D. José I para fazer mais brilhante a Casa»2. Síntese do saber do Século das Luzes, a Casa da Livraria abrange obras de assuntos tão diversos como História Religiosa, Direito

Canónico, Direito Civil, História de Portugal e da Europa, Medicina, Botânica, Zoologia, Geografia e Viagens, etc. A organização das obras, tal como a conhecemos hoje, foi fruto do laborioso trabalho de Frei João de Santa Anna, frade franciscano que aqui foi bibliotecário a partir de 1810 e que elaborou um imenso catálogo manuscrito de oito volumes, que ainda hoje constitui uma das bases da investigação nesta Biblioteca. Este catálogo revela ainda enorme actualidade pelas suas regras catalográficas que ultrapassam em muito os conhecimentos correntes naquele âmbito. Raul Proença, nas suas Regras de Catalogação dum bibliotecário português do séc. XIX, diz, referindo-se a este: «... o princípio do sobrenome como palavras de ordem, de preferência aos nomes próprios, do primeiro sobrenome, de preferência a todos os outros, com excepção daqueles por que um autor foi mais conhecido: a adopção de elementos de identificação para distinguir autores homónimos...», que são normas a defender ainda hoje. A arrumação de todo o acervo literário obedeceu a critérios cosmológicos, tendo o referido bibliotecário escolhido o hemisfério Norte para os temas sagrados e o hemisfério Sul para os profanos. Aliás, veja-se o interesse e o cuidado postos pelos monges no enriquecimento da colecção e conservação das obras, tal como ficara estabelecido nos Estatutos da Província de Santa Maria da Arrábida de 1697, em que se dizia: «Para que em todos os Conventos possa haver quantidade de livro, em que os Religiosos se apliquem, & estudem, o que lhes é necessário, mandamos, que cada hum dos Prelados locaes em o tempo de seu governo procurem pôr livros novos no seu Convento; ou de pessoas devotas, ou das esmolas indifferentes. E o que no inventário do Convento, que o dito Capítulo, ou Congregação mandar, não leve a ditta addição de livros, não poderá ser eleyto Prelado nos três annos seguintes.»3 A confirmar ainda estes princípios, havia uma determinação da Ordem que proibia, sob pena de excomunhão, que qualquer frade desse, alienasse ou comutasse livros das bibliotecas conventuais, para além de não se


poderem emprestar obras sem o recibo da faz ainda parte um importante núcleo de sua entrega. partituras de autores portugueses e estranEsta determinação foi reforçada por geiros, como Marcos Portugal, J. de Sousa, uma bula do Papa Bento XIV, dirigida à LiJoão José Baldi, entre outros. vraria de Mafra, «proibindo a todas as pesAlgumas delas foram expressamente essoas, de qualquer estado ou condição, que, critas para os seis órgãos da Basílica, apenas em nenhum tempo de modo nenhum, retiaqui podendo ser executadas. rassem, desviassem ou emprestassem da liNas diferentes temáticas deste acervo, vraria, ou a outrem permitissem retirar, despodemos ainda destacar um significativo viar ou emprestar, sem licença do rei de Pornúcleo dedicado a Geografia e Viagens, que tugal, quaisquer impressos ou manuscritos atesta a importância que as Descobertas e nela depositados»4. as Viagens a elas associadas tiveram naquela Também em relação à conservação dos época. livros, espanta-nos a actualidade do pensaA descoberta dos Novos Mundos, que mento da Ordem de S. Francisco, ao referir traz consigo revelações, novidades e surprenos seus Estatutos ser obrigação do «nesas em todas as áreas científicas, desde a cessario para a sua conservageografia, à botânica, à medição: dos que estiverem de- É curioso notar ainda cina, à física, à matemática, sencadernados avisará o Preetc., encontra-se assim reflecque nesta biblioteca, lado, para que os mande tida não só nas estantes temáverdadeira biblioteca concertar»5. ticas ligadas directamente a esenciclopédica, todas tas ciências, como no núcleo Para além destes cuidaas áreas do de literatura de viagens nos dos, merece ainda referência uma oficina de livreiro, referida conhecimento reflectem territórios onde Portugal marcou a sua presença. por Frei Cláudio da Conceição de uma forma ou Neste âmbito, destacaríano seu Gabinete Histórico Tomo de outra uma marca mos, por exemplo, o Theatrum VIII, cuja actividade foi basde Portugal nas cinco Orbis Terrarum de Ortel, de cerca tante intensa. Sendo desde sempre ob- partidas do mundo, já de 1570, que é considerado o jecto de tanta atenção, é natu- que os Descobrimentos primeiro «Atlas moderno» foram a causa e porque abandona as antigas ral que esta Biblioteca possa, cartas ptolemaicas, fazendo ainda hoje, dispor de um o efeito do avanço uma compilação de cartas de precioso acervo, compreende todas as ciências autores da época, ou La Galerie dido entre os séculos XV e Agréable du Monde, obra profusamente ilustrada XIX, de onde se destacam, pela sua raridacom gravuras de todo o mundo representande, a colecção de incunábulos (obras imdo as cidades e as vilas mais importantes, copressas até ao séc. XV), como as Orationes de mo também as gentes e os costumes, A HistóCícero, datadas de 1472 e de que apenas a ria da América Portuguesa de Sebastião da Rocha Biblioteca Nacional de Paris possui outro Pitta, uma das primeiras tentativas de uma exemplar, a 1.ª edição de Antiquitates Romanohistória sistemática do Brasil, abrangendo rum de Dionísio de Halicarnasso, as Opera não só a vertente política, como a história Omnia de Homero, também uma edição natural, os costumes dos indígenas, etc., ou prínceps da célebre Crónica de Nuremberga de ainda a História Natural de Buffon que reflecte Hartaman Schedel, impressa naquela cidade esse Novo Mundo recém-descoberto. no ano de 1493 por Anthoni Koberger, um É curioso notar ainda que nesta Bibliodos maiores editores do tempo. teca, verdadeira biblioteca enciclopédica, toEmbora em número limitado, tem tamdas as áreas do conhecimento reflectem de bém considerável interesse histórico a colecuma forma ou de outra uma marca de Porção de manuscritos, de que se destacam os tugal nas cinco partidas do mundo, já que os Livros de Horas iluminados do século XV e vários códices também iluminados. Descobrimentos foram a causa e o efeito do Dos manuscritos desta Casa da Livraria avanço de todas as ciências.

1 A. Ferrand de Almeida, A Biblioteca do Palácio Nacional de Mafra, Lisboa, s.d. 2 Frei João de Santa Anna, Introdução ao Catálogo da Real Livraria de Mafra, por Ano de 1819. 3 A. Ferrand de Almeida, A Biblioteca do Palácio Nacional de Mafra, p. 17. 4 Guilherme de Assunção, Uma Bula do Papa Bento XIV para a Biblioteca de Mafra, Mafra, 1944. 5 A. Ferrand de Almeida, A Biblioteca do Palácio Nacional de Mafra, p. 18.


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Chegada de Fernando Cortés a Vera Cruz, mural na parede oriental do Palácio Nacional da Cidade do México, Diego Rivera, 1951



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A turbulência da conquista Maria da Graça A. Mateus Ventura

A angústia de Montezuma perante um presságio, Historia de las Indias, Diego Durán, 1579


«De todos os cais, partem os perseguidores de alucinações, com destino à América. Amparados por um deus navegador e conquistador, atravessam, acotovelando-se nos navios, o mar imenso. Junto a pastores e labregos que a Europa não matara de guerra, peste ou fome, viajam capitães, mercadores, pícaros, místicos e aventureiros. Todos procuram o milagre. No outro lado do mar, mar mágico que lava sangues e transfigura destinos, oferece-se, aberta, a grande promessa de todos os tempos.» Assim, deste modo sublime e cruel, nos introduz na turbulência da conquista da América o escritor uruguaio Eduardo Galeano. Da busca do paraíso à ambição desmedida pelas riquezas terrenas, em nome de uma missão civilizadora abençoada por um Deus maior, europeus de todas as condições e crenças atravessaram, vezes sem fim, o grande oceano, levando e trazendo ilusões, ouro, prata, negros, hereges, doenças, forjando nas terras do Novo Mundo uma memória de fogo de configuração continental. Os oito presságios mexicanos anunciavam a era da gente estranha, de carne branca, bigode e longas barbas amarelas, de seres de duas cabeças, vestidos de ferro, vindos em pequenas torres flutuando no mar. Era o anunciado regresso de Quetzalcóatl a inaugurar uma nova era. Ou Viracocha, para os incas, desaparecido no mar. Os índios divinizaram os espanhóis, enquanto estes desmistificavam os deuses americanos. Encantamento contra desencantamento, comercialização e estetização antes que os índios se convencessem de que estavam perante seres humanos. Cortés recebe o tesouro de Quetzalcóatl enviado por Montezuma, mas, insatisfeito, prende os índios mensageiros com cadeias de ferro e manda disparar o canhão. O estrondo foi enorme. Os índios perderam o juízo e caíram redondos no chão. Os diálogos em espanhol, náhuatl e maia, protagonizados por Cortés, Jerónimo de Aguilar e Malinche, traduzem o desencontro e anunciam o conflito futuro. A buzina sagrada seria silenciada pelo canhão e pelo tropel dos cavalos. A cultura indígena da América foi interrompida pela surpresa. Mesclar o mundo e dar àquelas terras estranhas a forma

da nossa, era o prodígio anunciado por Hernán Pérez de Oliva. A advertência do bispo de Michoacán, Vasco de Quiroga, sobre o efeito de uma «boa e cristã conversação», em vez dos «temores de guerra», em «gente de qualidade tão mansa e humilde, tímida e obediente», traduz não só a divergência que se vai instalando entre os soldados e os missionários, sobre o processo de integração dos índios na cristandade, como sublinha a acção da Igreja no que respeita à imposição da cultura europeia, em particular a língua e a religião como instrumentos de liquidação das tradições locais. A diversidade étnica e cultural da América pré-hispânica e pré-cabralina era

Cortés seguido pelos tlaxcaltecas, Historia de las Indias, Diego Durán, 1579

notória. Foi também diversa, aparentemente, a acção conquistadora, do Caribe a Tenochtitlán, de Cajamarca à Terra de Santa Cruz. Chavín e olmeques haviam gizado culturas dinâmicas e complexas, respectivamente, no espaço andino e na Meso-América, que atingiram o seu auge civilizacional (tendo em conta a interrupção abrupta provocada pela conquista europeia), com o império Tahuantinsuyu e com os povos maias e astecas. As crónicas de conquista são prolixas na descrição das cidades, da organização política e da complexidade social e cultural destes povos, suscitando, amiúde, sincera admiração por parte dos autores. Na costa atlântica, tupinambás, tupiniquins e guaranis, comunidades semi-sedentárias, de horticultores-recolectores, embora detentores de um sistema social e religioso, tiveram menor


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capacidade de resistência aos invasores, o que levaria ao enraizamento da falsa ideia de uma brandura lusitana no processo de apropriação do território. As narrativas portuguesas da Província de Santa Cruz (Brasil, quando o pau-de-fogo se tornou riqueza importante), são detalhadas sobretudo na descrição da fauna e da flora e dos costumes mais reprováveis dos índios, aos olhos dos europeus de Quinhentos – os rituais antropofágicos e a poligamia. A CONQUISTA ESPIRITUAL A legitimação da conquista cabe aos missionários e à Igreja secular. E é exactamente no campo da fé e da relação da Igreja com a idolatria que a polémica sobre a hu-

Padres castigam cruelmente os meninos índios na doutrina Felipe Guaman Poma de Ayala Nueva Crónica y Buen Gobierno, Lima, 1615

manidade do índio e sobre a legitimidade da guerra tem lugar. A Europa debatia-se, internamente, com a heresia e a condenação do islamismo, do judaísmo, do protestantismo e de costumes perversos como a sodomia, a bigamia e a feitiçaria. A ortodoxia e o proselitismo estenderiam ao Novo Mundo o zelo na extirpação das crenças e dos rituais tradicionais das populações ameríndias. A chegada dos primeiros franciscanos ao México, em 1525, inaugura a campanha evangelizadora que começou com a destruição sistemática e irreversível de ídolos e santuários,

processo que desmantelaria as defesas dos naturais, já traumatizados com a guerra e as epidemias. Franciscanos, mercedários, agostinhos, dominicanos e, mais tarde, jesuítas assumiram-se como o exército da fé na guerra das imagens – instrumento privilegiado da conquista espiritual da América. Evangelizados os índios, a guerra virou-se contra os que, da Europa, fugiram da tensão contra-reformista e atravessaram o Atlântico em busca de uma paz que os reconciliasse com as suas consciências. Em vão, os braços do Santo Ofício não pouparam o Novo Mundo, integrando-o no sistema repressivo do Velho Continente. ESTA GUERRA SE GANÓ A LA JINETA A visão do cavalo montado por um ginete causou tal temor e admiração nos índios que, ao primeiro impacto, desmaiavam ou fugiam. Os relinchos, o estrépido do galope, em simbiose com o cavaleiro de ferro, foram mais eficazes que os exércitos de milhares de índios surpreendidos por tão terrível novidade. De nada valeu a Atahualpa a aparente serenidade perante os volteios insolentes de Hernando de Soto, em Cajamarca. Teria pensado capturar aquele bando de barbudos desalinhados para sacrificar ao deus Sol e aproveitar o talento de três deles: o ferrador, o barbeiro e um excelente volteador. Mas o estrondo causado pelo tropel dos cavalos e pelas cargas da artilharia e o assassinato do inca acabaram com qualquer veleidade. A crença na imortalidade dos corcéis foi espontânea em povos com um sistema mítico assente em mitos fundacionais, representados por seres zoomórficos, do jaguar à serpente emplumada, e na divinização das forças da natureza. Os conquistadores, em menor número, mas ardilosos quer no aproveitamento militar das dissenções internas no império inca e no império asteca, quer da mitologia, depressa impuseram o seu domínio. Cortés mandava enterrar, pela calada da noite, os cavalos mortos, Hernando de Soto foi amortalhado em segredo e, às escondidas, lançado nas águas profundas do Mississípi para alimentar a crença na sua imortalidade. Se a violência da conquista foi registada pelas crónicas indígenas e pelos relatos dos


missionários, a resistência dos mexicanos e a sua impossibilidade em vencer uma guerra desigual foram reconhecidas por alguns cronistas espanhóis, não só por aqueles que, como soldados, participaram na conquista, como por outros que, anos passados sobre esta turbulência, reflectem sobre ela, como António de Solís, na sua Historia de la conquista de México (Madrid, 1684): «Foi notável, e em algumas circunstâncias digna de admiração, a diligência com que os mexicanos defenderam a sua cidade... necessitavam de inventar novidades contra um género de invasão cuja gente, cujas armas e cujas disposições eram fora do uso naquela terra...». Os primeiros cavalos chegaram à América em 1493, levados por Cristóvão Colombo.

ESTA GUERRA SE GANÓ A LA JINETA

Soldado espanhol Felipe Guaman Poma de Ayala Nueva Crónica y Buen Gobierno, Lima, 1615

Seguiram-se as éguas e os burros nas expedições seguintes. As mulas chegaram mais tarde, quando o comércio sucedeu à guerra. Nasceram nas Antilhas os primeiros cavalos crioulos. Determinantes do sucesso da conquista, foram povoando o continente americano. Em 1519, a hoste de Fernando Cortés contava com 19 cavalos; já Francisco Pizarro, em 1530, penetrou no império inca acompanhado de 90. Mais a sul, Martínez de Irala, vinte anos depois, entrou no Paraguai com 600. Depressa se multiplicaram e se tornaram valor de referência, tal era a


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procura. As hostes conquistadoras causaram um impacto decisivo nas populações índias, desconhecedoras de quadrúpedes domesticados (na América Central) ou habituadas aos carneiros da terra (as lamas e as vicunhas nos Andes): cavalos, porcos e lebréus, cada espécie com a sua eficácia própria na submissão dos naturais. Despensa ambulante dos espanhóis, da Florida aos confins chilenos, as varas de porcos acompanharam os soldados numa procissão nunca vista. Os lebréus, de orelhas ondulantes, longas línguas pendentes, olhos que chispam, treinados na perseguição aos fugitivos, amedrontavam os índios que apenas conheciam uns pequenos cães mudos que lhes serviam de alimento. A MORTE DOS ÍNDIOS Num quarto de século, os espanhóis haviam descoberto e conquistado as Antilhas e a América Central, criando um mundo tenso, destruidor e instável. Aos encontros idílicos das primeiras viagens, sucedem a escravização e o despovoamento. Segundo Las Casas, a ilha Espanhola perdeu mais de três milhões de naturais, entre 1494 e 1508. Segundo Jacques Lafaye, dos 25 milhões de mexicanos, antes da conquista, só restavam 2,65 milhões em 1568; no Peru, dos 9 milhões restavam, em 1570, 1,3 milhões. As causas da mortandade são várias: a repressão das revoltas índias, a captura de escravos, a deportação, os maus tratos, a subalimentação, o desequilíbrio ecológico provocado pela reprodução descontrolada de novas espécies, como os porcos e os cavalos. E as doenças. As populações ameríndias não tinham um sistema imunitário que as protegesse no contacto com europeus e africanos, portadores de novos vírus e micróbios. A varíola, o sarampo e a malária espalham-se descontroladamente. Genocídio sem premeditação, associado à guerra e à escravização. Toríbio de Benavente, ou Motolínia (Historia de los Indios de la Nueva España, 1565), faz um balanço trágico da presença espanhola no México, enunciando as dez pragas com que Deus castigou aquela terra: a varíola e o sarampo que dizimaram, em muitas províncias, mais de metade da população índia; a mortandade elevadíssima provocada pela conquista; a fome decorrente da ocupação e

da destruição das colheitas; a apropriação da terra dos índios pelos fazendeiros espanhóis; os tributos e serviços a que os índios foram sujeitos; as minas de ouro onde, pelo trabalho excessivo, morreram muitos índios; a edificação da cidade do México que, pela massiva mão-de-obra e pela dureza do trabalho, provocou elevada mortalidade; os escravos feitos em série que entravam no México como grandes manadas de ovelhas, ferrados na cara com ferro privado ou d’el-rei, «tanto que toda a cara traziam escrita, porque de quantos era comprado e vendido levava letreiros»; o serviço de apoio às minas a que os índios eram obrigados, tendo de se deslocar a grande distância para levar mantimentos aos mineiros, acabando por morrer pelo caminho; as divisões e bandos entre os espanhóis que originaram muitas mortes entre eles e puseram em risco o domínio da terra. A MORTE DOS CONQUISTADORES Se o despovoamento da América foi uma tragédia sublinhada pelos contemporâneos, a sangria na população ibérica, nos tempos da conquista, é também um fenómeno relevante. Lope de Vega, num epitáfio ao poeta Medina Medinilla, escrevia: «No mar da América se perdeu a flor e a nata de nossa época.» Sobre Portugal, dizia Garcia de Resende: «Ao cheiro da canela, o Reino se despovoa.» Se muitos espanhóis sucumbiram nas guerras europeias, outros mais encontraram a morte no quotidiano da conquista da América: tormentas no mar, fome e doença em terra. Fernández de Oviedo, retratando o quotidiano dos conquistadores, evoca inúmeras vezes a situação de fome de que estes eram vítimas: em Santo Domingo, os primeiros cristãos passaram tanta necessidade que comeram todos os animais de quatro patas que havia na ilha – cães da terra, coelhos, os lebréus, iguanas, e nem perdoaram aos lagartos, lagartixas ou cobras, das quais havia «muitas e de muitas maneiras de pinturas». Frei Antonio de Remesal (Historia General de las Indias Occidentales y Particular de la Gobernación de Chiapa y Guatemala) salienta a morte desastrosa dos conquistadores e governadores das Índias, fim pouco consentâneo com a heroicidade veiculada pela literatura cavalheiresca. Os primeiros espanhóis deixados


nas Antilhas foram mortos pelos índios que Cristóvão Colombo apresentara como gente doméstica e mansa. O próprio almirante, meio despojado, tolhido de gota, melancólico e pesaroso da má paga de tão avantajados serviços, morreu mais pobre do que esperava. Francisco de Bobadilla morreu no mar, vítima de um naufrágio. Alonso de Ojeda, primeiro governador da Nova Andaluzia, depois de muitos sofrimentos, morreu miseravelmente na Espanhola e tão pobre que os franciscanos o enterraram, por esmola, nos umbrais do portal da sua igreja. Diego de Nicuesa, primeiro governador de Castilla del Oro, morreu na viagem de Terra Firme para a Espanhola. Vasco Núñez de Balboa, o primeiro europeu a contemplar o Pacífico, foi degolado pelo sogro – o temível Pedrarias Dávila. Juan de Grijalva, descobridor do Yucatán e Tabasco, morreu às mãos dos índios numa emboscada nocturna. Diego de Almagro foi degolado e afogado pelos pizarristas. Francisco Pizarro, conquistador do Peru, foi morto por Diego de Almagro filho, e este degolado pelo licenciado Vaca de Castro. Blasco Núñez de Vela, que havia prendido Vaca de Castro, foi morto por Gonzalo Pizarro, e este justiçado por Pedro de la Gasca. Juan Pizarro morreu em Cuzco às mãos dos índios. D. Pedro de Mendonza, governador do Rio da Prata, morreu de sífilis quando regressava a Castela, enquanto Fernando de Souto foi lançado ao Mississípi depois de morrer de calores e dores de costado. Enfim, assassinados pelos companheiros, mortos às mãos dos índios ou de doença, alguns com sepultura líquida. A doença era companheira previsível das hostes. O boticário, o cirurgião e o próprio barbeiro eram figuras obrigatórias nas expedições, além dos curandeiros e ensalmadores. De pouco serviam quando a fome, o cansaço, os esfriamentos ou os calores preenchiam o quotidiano dos milhares de soldados que se aventuravam em terras inóspitas. Muitos acabavam por morrer de «dor de costado», amarelos e com as barrigas inchadas, de modorra, do «mal das índias» (sífilis), ou invadidos por níguas e bubas. A conquista da América foi uma catástrofe, diz Carlos Fuentes. Aventura colectiva que mobilizou, com paixão, gente de toda a

condição, capitais e tecnologia, fechou o círculo de globalização económica, demográfica e cultural inaugurado pelos portugueses nos litorais africanos e no Oriente. As moedas fortes europeias passam a circular à escala mundial, as pratas peruana e mexicana dão a volta ao mundo, a bordo dos navios ibéricos; o algodão, o milho, a batata, o tabaco, o café, o chocolate renovam as dietas europeias, enquanto a América se repovoa dolorosamente de gente de todas as nações, pronta para mestiçagens e sincretismos que lhe conferem uma nova identidade. A vitória militar da Europa sobre a América foi uma catástrofe que, segundo María Zambrano, se atenua se dela nascer algo que a redima. Aquela parte desconhe-

Batalha entre espanhóis e índios aymaras e quíchuas Felipe Guaman Poma de Ayala Nueva Crónica y Buen Gobierno, Lima, 1615

PARA SABER MAIS: Crónicas Indígenas, Visión de los Vencidos, ed. de Miguel de León-Portilla,

cida do mundo, que durante milénios nos contemplou silenciosamente, de repente emerge no nosso imaginário, apresenta-se de corpo inteiro, abala as nossas certezas e desafia as nossas consciências. No movimento das ideias, desencadeado pela conquista da América, inscrevem-se Montezuma e Cortés, Atahualpa e Pizarro, mapuches, quechúas, tupis, guaranis, maias, astecas, congos, jalofos, mandingas, angolas, Tonantzin e Nossa Senhora de Guadalupe, Mama Occlo e Nossa Senhora de Copacabana, idólatras e idoloclastas. Somos nós, ibero-americanos, portugueses e espanhóis, os redentores da catástrofe.

Madrid, Historia 16. Eduardo Galeano, Memoria del Fuego 2, Las Caras y las Máscaras, Siglo Veintiuno, Madrid, 2002. Jacques Lafaye, Los Conquistadores: Figuras y Escrituras, México, FCE, 1999. Serge Grunzinki, La Guerra de las Imágenes: de Cristóbal Colón a «Blade Runner» (1492-2019), México, FCE, 1994.


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Crueldades e matanças perpetradas pelos conquistadores espanhóis no México Bartolomeu de Las Casas

O dominicano Bartolomeu de Las Casas, frade encomendeiro na Espanhola (1509-1515) e em Cuba, missionário na Nicarágua e na Guatemala (1535-1539) e bispo de Chiapas (1544-1546), envolveu-se apaixonadamente na polémica sobre o índio, defendendo a sua natureza humana e denunciando as atrocidades cometidas pelos conquistadores espanhóis no quadro de uma guerra injusta. A sua brevísima Relación de la Destruición de las Indias, escrita no ano em que foram publicadas as Leyes Nuevas, converteu-se numa arma política de defesa dos índios e de crítica aos espanhóis, tendo conhecido 43 edições no estrangeiro, em seis línguas, entre 1578 e 1656, e apenas 2 em Espanha (1552, 1656). No século XIX, Las Casas foi recuperado pelos independentistas hispano-americanos que o adoptaram como «defensor da liberdade».


No ano de 1517 descobriu-se a Nova Espanha e, no descobrimento, fizeram-se grandes escândalos nos índios e algumas mortes pelos que a descobriram. No ano de 1518 os que se dizem cristãos lá foram a roubar e a matar, ainda que digam que vão a povoar. E desde este ano de 18 até hoje, estamos no ano de 1542, transbordou e chegou ao cúmulo toda a iniquidade, toda a injustiça, toda a violência e tirania que os cristãos têm feito nas Índias, porque perderam todo o temor a Deus e ao rei, esquecendo-se de si mesmos. Porque são tantos e tais os estragos e as crueldades, matanças e destruições, despovoamento, roubos, violências e tiranias, e em tantos e tais reinos da grande Terra Firme, que todas as coisas que temos dito são nada em comparação com as que se fizeram; mas, ainda que as disséssemos todas, são infinitas as que deixamos por dizer, não são comparáveis nem em número nem em gravidade às que desde o dito ano de 1518 se fizeram e se perpetraram até este dia e ano de 1542, e hoje, neste dia do mês de Setembro, fazem-se e cometem-se as mais graves e abomináveis. Porque é verdade a regra que acima pusemos, que sempre, desde o princípio, têm vindo a crescer em maiores desaforos e obras infernais. Assim, desde a entrada da Nova Espanha, que foi a 18 de Abril de 1518, até ao ano de 30, que foram doze anos completos, duraram as matanças e estragos que as sangrentas e cruéis mãos e espadas dos espanhóis fizeram continuamente em quase 450 léguas em torno da Cidade de México e arredores, onde caberão quatro e cinco grandes reinos tão grandes e bastante mais felizes que Espanha. Estas terras eram todas mais povoadas e cheias de gentes que Toledo e Sevilha e Valladolid e Saragoça, juntamente com Barcelona, porque não há nem houve nunca tanta população nestas cidades, quando estiveram mais povoadas, que Deus pôs e que havia em todas as ditas léguas, que para percorrê-las em redor se tem de andar mais de mil e oitocentas léguas. Os espanhóis nos ditos doze anos e nas ditas quatrocentas e cinquenta léguas, à faca e à lançada, e queimando-os vivos,

mulheres e crianças e jovens e velhos, mataram mais de quatro milhões de almas, enquanto durou o que eles chamam conquistas, sendo invasões violentas de cruéis tiranos, condenadas não só pela lei de Deus, mas também pelas leis humanas, como o são e muito piores que as que faz o turco para destruir a Igreja cristã. E isto sem os que mataram e matam cada dia na dita tirânica servidão, vexações e opressões quotidianas. Particularmente não bastará a língua, notícia ou indústria humana para referir os feitos espantosos que, em distintas partes e em simultâneo, foram cometidos por alguns inimigos públicos e capitais da linhagem humana cometeram dentro daquele circuito, e ainda alguns feitos segundo as circunstâncias e qualidades que os agravam, em verdade que só com muita diligência e tempo e escrita se poderá explicar perfeitamente. Valência, 1542 Tradução de MGMV

Excerto da obra Brevísima Relación

Um arreeiro transporta os filhos mestiços dos padres doutrinantes Felipe Guaman Poma de Ayala Nueva Crónica y Buen Gobierno, Lima, 1615

de la Destruición de las Indias, Sevilha, 1552


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Como impusemos muito boas e santas doutrinas aos índios da Nova Espanha e lhes ensinámos a ter e a guardar justiça e os ofícios que se usam em Castela Bernal Díaz del Castillo

Bernal Díaz del Castillo participou, como soldado, na conquista do México por Fernando Cortés (1519-1521). Redigiu a sua Historia Verdadera de la Conquista de la Nueva España em 1555, quando era regedor da cidade de Santiago de Guatemala, como resposta à história panegírica do capitão Cortés, de López de Gómara, e em defesa dos conquistadores anónimos que ele representa. Alheio às discussões metafísicas sobre a natureza do índio e a justeza da guerra que envolveram juristas e teólogos do seu tempo, escreveu uma história comprometida com a sua vivência de conquistador. À visão do índio como sujeito, partilhada pelos evangelizadores franciscanos como Toríbio de Benavente, Bernardino de Sahagún, Jerónimo de Mendieta, pelos dominicanos Diego Durán e Las Casas ou pelo jesuíta José de Acosta, Díaz del Castillo contrapõe o índio como objecto, numa história autobiográfica em cuja narrativa o índio é protagonista apenas para realçar o sucesso da missão evangelizadora e civilizadora dos espanhóis no México.


Depois de abandonadas as idolatrias e todos os maus vícios... se baptizaram, desde que os conquistámos, todas quantas pessoas havia, assim homens como mulheres e crianças que nasceram depois, dado que, dantes, as suas almas iam perdidas para os infernos. E agora, como há muitos e bons religiosos do senhor S. Francisco e de S. Domingos, e de outras ordens, que andam pregando pelos povos..., o santo Evangelho está muito bem plantado nos seus corações. E além disto têm as suas igrejas muito ricamente ornamentadas com altares e tudo o que pertence ao santo culto divino... Não há falta de cantores de capela com vozes muito bem concertadas, assim tenores como tiples e contraltos; em alguns povoados há órgãos e em todos os restantes têm flautas e charamelas e sacabuxas e dulçaínas. Trompetas altas e graves (sordas) não há tantas na minha terra, que é Castela Velha, como nesta província de Guatemala. Todos os demais índios naturais destas terras aprenderam muito bem todos os ofícios que há em Castela... e os ourives de ouro e prata, assim de martelo como de molde, são exímios oficiais, assim como lapidários e pintores; e os entalhadores fazem primorosas obras com os seus trados de ferro... Muitos filhos de principais sabem ler e escrever e compor livros de cantochão; e há oficiais de tecer seda, cetim e tafetá, e de fazer panos de lã... e outros são chapeleiros e saboeiros; só dois ofícios não puderam entrar neles, ainda que o tivessem tentado, que

é fazer vidro ou ser boticários; mas eu tenho-os por tão engenhosos que o aprenderão muito bem, porque alguns deles são cirurgiões e ervanários e sabem fazer jogo de mãos e marionetas e fazem violas muito boas. Lavradores, por sua natureza o são antes que viéssemos a Nova Espanha, e agora criam gado de todas as espécies e domam bois e aram as terras e semeiam trigo, e o beneficiam e colhem, e vendem-no, e fazem pão e biscoito, e têm plantado as suas terras e herdades com todas as árvores e frutas que temos trazido de Espanha... E fazem justiça com tanto primor e autoridade como entre nós, e se orgulham e querem saber muito das leis do reino por onde sentenciem. Além disto, todos os caciques têm cavalos e são ricos, trazem jaezes com boas selas, e passeiam-se pelas cidades, vilas e lugares onde vão folgar ou donde são naturais, e levam os seus índios por pagens que os acompanham, e ainda em alguns povoados jogam canas e correm touros e jogam ao anel, especialmente se é dia de Corpo de Deus ou de São João ou de Santiago, ou de Nossa Senhora de Agosto ou do patrono da igreja do seu povo; e há muitos que aguardam os touros, ainda que sejam bravos; e muitos deles são ginetes, em especial num povo que se diz Chiapa dos Índios, e a maioria dos caciques tem cavalos e alguns rebanhos de éguas e mulas que os ajudam a trazer lenha e milho e cal... e muitos deles são arrieiros segundo a maneira que em Castela se usa.

Padre cristianíssimo celebrando missa Felipe Guaman Poma de Ayala Nueva Crónica y Buen Gobierno, Lima, 1615

Mestres de coro e de escola castigando os índios Felipe Guaman Poma de Ayala Nueva Crónica y Buen Gobierno, Lima, 1615

Tradução de MGMV

Trad. de Historia Verdadera de la Conquista de la Nueva España, Cap. CCIX, 1555


BESTIÁRIO

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O velho é o jaboti prudente que não se apressa Maria Adelina Amorim

Colecta indígena de ovos de tartaruga e posterior fabrico de manteiga. Alexandre Rodrigues Ferreira, Viagem Filosófica pelas Capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá (1783-1792), Vol. II, BN., E.A. 251A


É. Vivi assim vagarosamente a minha existência pelos matos da Bahia e por toda a extensão daquelas terras a que chamaram Américas. Perdia o meu tempo junto dos taperabaseiros, já que o seu fruto, o cajá ou genipapo, é o meu sustento favorito. O meu e o daquelas antas que insistem em enxotar-me do meu pé de árvore. É difícil resistir àquelas frutas «fragrantes», vermelhas ou amarelas, «de perfume tentador e acidez irritante». A mim retiraram-me da mansidão do meu tempo para me insultarem: cágado-da-terra, réptil da ordem dos quelónios, família dos testudinídeos. Começaram por observar-me, virar-me do avesso, medir-me, comparar-me com outros que eu não conheço nem sei onde vivem: «há uns que são muito maiores que os de Espanha, mais altos e de mais carne, e têm as conchas lavradas em compartimentos oitavados de muito notável feitio; os lavores dos compartimentos são pretos, e o meio de cada um é branco e almecegado» (Gabriel Soares de

Sousa, Notícias do Brasil, 1587). Imaginem!... Eu compartimentado, oitavado e carnudo. Ainda por cima descreveram-me com verrugas nas mãos, pés e pescoço, como se fossem chícharos. E dos meus ovos, senhores! Como ficaram gulosos. Para me escovarem o pêlo, isto é, a casca – que eu não sou desses –, diziam que pertencia a uma casta de cágados..., como que a dar-me categoria social, para logo dizerem que os índios nos chamavam jabutirimim e que somos muito saborosos e medicinais. Foi aí que a nossa história mudou para sempre. Olharam para nós como se fôssemos uma jabuticaba ou um maracujá e começaram a matar-nos para comer a nossa «carne». Servimos de mantimento aos índios cururisos, oraotisos, imajanazes e aos outros todos da Amazónia, e não só. Chegaram depois uns da tribo dos Portugueses que, para se desculparem da gula em dias de abstinência, diziam que éramos peixes. Foi tão grande a polémica que envolveu juristas e teólogos, e o meu nome chegou a Roma, onde, dizem, mora

A viração das tartarugas. Alexandre Rodrigues Ferreira, Viagem Filosófica pelas Capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá (1783-1792), Vol. II, BN., E.A. 251A


BESTIÁRIO

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um ser maior que o Grande Jaboti, meu avô primordial. «Mandando eu que se abstivessem dos jabotis nos dias de peixe por não haver rezão que mostrasse não serem carne, e vir isto resoluto pelo superior disseram no púlpito publicamente que eles eram peixe e por tal se comiam diante do Papa» (Carta de Frei Cristóvão de Lisboa, 1626). Ao menos Frei Cristóvão defendia-me daqueles carnívoros de que eu não digo o

Servimos de mantimento aos índios cururisos, oraotisos, imajanazes e aos outros todos da Amazónia, e não só nome por pudor e reserva, que são as características de quem leva a vida fechado em si próprio como eu. Por isso transporto sempre a minha casa às costas para não ter que pernoitar em lar alheio. Até ganhei estatuto na discussão das coisas lícitas e ilícitas. Eu ao lado dos negros – que naquele caso eram os índios, nossos velhos companheiros de chão – e das décimas, a que chamam dízimos. Não é de somenos. Se não, vejam:

«Falando eu conforme a verdade e doutores, disse que algumas coisas não eram lícitas, como foram os jabotis, cativeiro de negros, compra deles, e nos dízimos.» A verdade é que, com polémica ou não, fomos sendo comidos aos milhares, sendo o nosso fígado o maior dos petiscos, o mesmo acontecendo com os nossos ovos, que bem podíamos esconder debaixo da terra. Até o Padre António Vieira, de que tanto se fala, testemunhou sobre esta «espécie» de tartarugas, que sempre vive em terra, que em as Índias de Castela se chamam icotéas, e aqui jabotis, que é sustento muito geral em todas estas partes, e foram os que nesta jornada nos mataram muitas vezes a fome» (Carta, 1654). Até o Euclides da Cunha nos seus Sertões disse que, assados, éramos excelente vitualha. Servi, ainda, de enfeite para adornar os corpos dos ameríndios nas suas festividades: «de resto, aqueles vestuários extravagantes de índios, aqueles adornos de uma mitologia francamente selvagem, jacarés, cobras, jabotis vivos, bem vivos...» (Lima Barreto, Policárpio Quaresma, 1915). A estas desgraças todas que me aconteceram – e às minhas primas tartarugas –, só faltava acrescentarem que não era bonito. E disseram: «[...] tinha uma filha solteira com quarenta anos de idade, feia como um jaboti, e da qual nunca se separava pelo medo da sedução de algum namorado (J.M. Macedo, Memórias do Sobrinho do Meu Tio, 1868). Nem vale a pena comentar... Os grandes da literatura brasileira escreveram sobre mim, desde o Guimarães Rosa ao José de Alencar. Ao menos isso. De todos os que li, gostei mais do Mário de Andrade na sua Macunaíma (1928): «Era uma honra grande para mim receber no meu mosqueiro um descendente de jaboti, raça primeira de todas... No princípio era só o Jaboti Grande que existia na vida.» No fim, temo que a minha raça se extinga como tantas outras. E eu que só queria a minha baga de taperebá.


ANIVERSÁRIO

GRANDES VOZES DA AMÉRICA LATINA

Memória das Minhas Putas Tristes

Gabriel García Márquez [ Prémio Nobel de Literatura

A escrita incomparável de Gabriel García Márquez num romance que é ao mesmo tempo uma reflexão sobre a velhice e a celebração das alegrias da paixão. O romance mais esperado do ano.

O Aroma da Goiaba

O Horto da Minha Amada

Resistir

Gabriel García Márquez e Plinio Apuleyo Mendoza

Alfredo Bryce Echenique

[ Prémio

Uma obra na qual o compromisso com a emoção e o compromisso com a razão dão as mãos para oferecer a mais sugestiva aproximação a um ser que de tão complexo pode permitir-se o luxo de ser claro.

A escrita terna e irreverente, e o enorme sentido de humor de Alfredo Bryce Echenique fazem deste romance de iniciação amorosa um clássico da literatura contemporânea.

[ Prémio

Ernesto Sabato Jerusalém/Prémio Cervantes

Planeta 2002

A LER É QUE A GENTE SE ENTENDE

Ernesto Sabato lança uma mensagem de esperança ao oceano de individualismo e pobreza existencial em que navegamos nestes tempos. E a sua palavra é um apelo à capacidade de resistir.


A SEDE DO SUL

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Cachaça, a rainha do Sul João Azevedo Fernandes

Bar Alambique-Cachaçaria e Armazém, Belo Horizonte (Minas Gerais) in Gravatá, Carlos (ed.). 1990. Almanaque da Cachaça Belo Horizonte, Formato


Abrideira, amarelinha, amorosa, azulzinha, bichinha, branquinha, brasileirinha, caninha, danadinha, dindinha, lindinha, meladinha, pinguinha, purinha, santinha, sinhazinha, teimosinha... “Branquinha pura, branquinha Nunca fez mal a ninguém Se negro morre por ela, Branco morre também. Da Caninha do Cipó Sempre assim ouvi dizer – Quanto mais a gente bebe, Mais vontade de beber...” Abre-bondade, água-benta, água-de-briga, água-que-passarinho-não-bebe, apaga-tristeza, aquela-que-matou-o-guarda, assovio-de-cobra, boa-pra-tudo, capote-de-pobre, cem-virtudes, desmancha-samba, esquenta-aqui-dentro, lágrima-de-virgem, levanta-velho, santo-onofre-de-bodega, semente-de-arenga, três-tombos, urina-de-santo, xarope-dos-bebos... “Vou na venda Bebo dois vinténs de cana Meto a faca em Zé Viana Vou p’ra cadeia morá” Ácido, água-bruta, a-que-incha, arrebenta-peito, braba, cândida, desmanchadeira, estricnina, extrato-hepático, garapa-doida, malvada, não-sei-quê, nó-cego, pau-de-urubu, perigosa, terebintina, tíner, veneno, venenosa... “Peguei a tomá cachaça pensando que bem me fazia, era coisa qu’eu não queria meter-me nessa desgraça”


A SEDE DO SUL

Terá a cachaça alguma maldição? Companheira de todas as horas, tratada com um carinho que só pode ser expresso por uma profusão de diminutivos, a bebida nacional do Brasil é também vista como uma inefável fonte de desgraças. Cachaça é moça branca, filha de um home triguero, quem puxa mucho por ela, fica pobre e sem dinhero, diz a loa popular. Chamada por alguns estrangeiros de «rum», para horror de quem conhece as dife-

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na casa das fornalhas, que o jesuíta Antonil, escrevendo em 1711, chamou de «cárcere de fogo e fumo perpétuo», e onde trabalhavam os escravos «boubentos» ou «com corrimentos», que procuravam a cura para seus males através do indescritível suadouro, e os escravos criminosos, punidos e postos a trabalhar naquele inferno. A escuma dali resultante era dada aos animais e aos escravos, negros e índios, que a fermenta-

Índios numa fazenda, in Rugendas, João M. 1976 (1.ª edição, 1835). Viagem Pitoresca através do Brasil. São Paulo/Brasília, Martins/INL

renças entre as duas bebidas, a cachaça tem uma longa história, que se mistura com a própria origem do Brasil. Tão longa que, em seus primórdios, nem se chamava cachaça, mas jeribita, palavra de origem duvidosa, africana talvez. Cachaça era a escuma formada pelas impurezas que subiam dos tachos em que se fervia o sumo da cana. Esta operação era realizada

vam e a bebiam com o nome de garapa ou vinho de mel. Não se sabe ao certo quando esta garapa passou a ser destilada. Beber álcool destilado era uma novidade para os próprios europeus: durante a Idade Média a acqua vitae, extraída do vinho, era usada apenas como um remédio. É durante os séculos XVI e XVII que toda uma pletora de novas bebidas –

brandies, bagaceiras, whiskies, grappas... – surgirá entre os europeus. Será na América, porém, que os destilados conhecerão seu paraíso, entre enormes quantidades de matéria-prima, como a cana-de-açúcar e o milho, e uma fartura de braços cativos para produzi-las e bebê-las. No Brasil, é bem provável que a cachaça já fosse produzida em fins do século XVI. Durante o século seguinte, o Império português assistiu a uma verdadeira guerra contra a cachaça, que roubava mercados às bebidas do Reino, e que, por proibida, não pagava imposto. Apesar do peso da Coroa e das autoridades locais, a moça-branca espalhou-se alegremente, nos braços do contrabando, tanto no Brasil quanto na África, obrigando a Coroa a aceitar e taxar a nova bebida. Os sobas que vendiam escravos aos europeus adoraram a cac haça brasileira, forte e barata, e exigiam que esta, juntamente com o tabaco, participasse do tráfico de gente para o Brasil. Os navios que vinham lotados de homens e mulheres acorrentados voltavam carregados de barris da garapa-doida. Aos africanos escravizados, comprados com cachaça em sua terra, cabia chegar ao Brasil e fabricar mais cachaça, em meio ao calor das fornalhas e às chibatadas dos feitores. Para compensar, bebiam, e bebiam muito. A cachaça acabou por se tornar uma bebida associada aos negros: marimbondo dono do mato, carrapato dono da jóia, todo mundo bebe cachaça, negro de Angola só leva fama, diz o folclore brasileiro. Os índios também se tornaram amantes da água-de-briga. Enquanto sua bebida fermentada tradicional, o cauim, feito de


mandioca, milho ou frutas, era tenazmente combatido pelos jesuítas, os nativos iam sendo apresentados à lindinha. O padre António Vieira, escrevendo em 1654, mostrou como a cachaça era usada pelos colonizadores para atrair os índios «brabos»: «[...] nós os festejamos e brindamos; e, posto que estranharam a aguardente, que é o vinho de cana, que cá se usa, eles nos prometeram com muita graça que se iriam acostumando, e nós o cremos». Realmente, eles se acostumaram ao cauimtatá, o «cauim-de-fogo», como a cac haça era c hamada por eles, e diziam: «goi i catu de catonhe cauim tata» ou «oh! Quanto é bom, muito bom o vinho de fogo». Durante toda a história do Brasil, a cachaça foi usada para conquistar corações e mentes dos indígenas brasileiros, muitas vezes com conseqüências desastrosas. Podemos, agora, quem sabe, responder à nossa pergunta inicial. Tratada como uma bebida «de pobre», indigna de ser bebida por «gente bem», a cachaça tornou-se um porto seguro para todos aqueles que sustentaram, com seu trabalho e sangue, a construção do Brasil. Talvez por esta origem radicalmente popular, a cachaça tenha demorado tanto a ser considerada a delícia que é, seja na forma pura, seja como espírito do drinque nacional do Brasil, a caipirinha. Aos poucos, a amorosa vai se tornando uma bebida madura, algumas dentre elas sendo tão gostosas quanto uma bagaceira. Já não se bebe apenas nos botequins, mas também em sofisticadas cachaçarias. Vai se tornando realidade a voz do cancioneiro popular, quando dizia:

“De primeiro só bebia negro, caboco e mulato, hoje até os home alto veve bebo todo dia, na rua tombá e pendê contano os passo errado até o seu delegado já tenho visto bebê” Bebamos, pois, não o veneno ou a malvada, mas a dindinha, a purinha, a teimosinha...


SABORES PRINCIPAIS

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O cebiche, um prato popular na bacia do Pacífico Gabriela Benavides de Rivero

O cebiche constitui um património gastronómico para os povos americanos da bacia do Pacífico, certamente, mas para o Peru este prato converteu-se, desde há mais de trinta anos, no símbolo da cozinha crioula.


O cebiche peruano desenvolveu uma variedade muito interessante de pratos; não obstante, stricto sensu, este preparado obedece às seguintes condições: peixe fresco macerado em limão e ají (chile, pimenta americana) consumido no prato e com garfo, acompanhado com maçaroca de milho verde e camote (boniato, batata, batata-doce). A técnica de cebichar consiste em macerar carnes em ácido. Não há dúvida de que muitos povos recorreram a esta técnica de conservação, ainda que com outros termos. Sabemos que foi utilizada pelos povos da bacia do Pacífico, desde o México até ao Chile e às ilhas do grande oceano como as Filipinas e o Havai, para não falar dos preparados crus do Extremo Oriente. Cada povo desenvolve um paladar específico e constrói, a partir dele e dos produtos da região ou dos que é capaz de obter, um sistema culinário particular. No caso do cebiche, e tendo como base esta técnica de conservação, diversos grupos humanos desenvolveram formas particulares para este preparado. Encontramos um cebiche equatoriano onde o peixe é acompanhado com tomate, pimento, sumo de laranja, açúcar e pipocas, e leva um pouco de óleo e especiarias. Existe a variedade de cebiche de lagostins e frango, com os produtos previamente fervidos. No Chile prefere-se um peixe macerado de um dia para o outro em vinagre e vinho branco, ao qual se junta a cebola, os alhos e as ervas picadas. Na Costa Rica, o cebiche de peixe consome-se com abacate, molho tabasco, molho de tomate e bolachas de soda. No México encontramos, entre outras, uma variedade de cebiche com tomate (jitomate), abacate, azeitonas, alcaparras e molho de tomate que acompanham o peixe previamente macerado em limão durante vinte e quatro horas em frio. Também se lhe junta azeite, vinho branco e coentros picados. Se nos afastarmos um pouco, encontramos um cebiche havaiano de filetes de peixe e lagostins. Macera-se em limão, molho tabasco e cebola; quando a polpa já está «cozida», espreme-se e substitui-se o sumo de limão por leite de coco. Também

há um cebiche à japonesa com salmão cortado em postas muito finas que se colocam na travessa e se regam com sumo de limão ao qual se junta caril. Após quinze minutos, cobre-se com um molho preparado com caldo de peixe, tomates, pimentos, cebolas, nozes, alhos, hortelã e natas. O cebiche tailandês tem como protagonistas rabos de lagostins, previamente fervidos. Depois de se lhe juntar o sumo de limão, servem-se com gengibre, manjericão e coentros picados. O cebiche peruano é um prato que procede do Norte do Peru. Desenvolveu-se originariamente no seio dos povos moche e vicús. Acerca dos produtos que integraram esta preparação, há E o cebiche realmente não inúmeros testemunhos de índole ar- é mais que isso, um queológica e documental. Há quem de- processo de conservação fenda que a difusão do cebiche pela bacia da carne num ácido do Pacífico é obra dos navegadores mo- qualquer sem esquecer che, que teriam levado este costume até à o terceiro protagonista Polinésia. Devemos deter-nos principal- não menos representativo mente no que significa o preparado em si. na culinária nacional, Dissemos que existe un termo para desig- o ají nar esta técnica, «cebichar», que significa macerar em ácido. E o cebiche realmente não é mais que isso, um processo de conservação da carne num ácido qualquer, sem esquecer o terceiro protagonista, não menos representativo na culinária nacional, o ají. Carne macerada em ácido após uma generosa aplicação de uchucuta ou ají salgado, que era companhia indispensável dos povos indígenas no seu labor quotidiano. Pois bem, parece que era nas calhetas nortenhas de Huanchaco e Pimentel que o pescador em plena faina se alimentava dos peixes recém-pescados, que cobria com ají salgado para os conservar e depois lhes aplicar o ácido que os cozeria. Estamos a falar do ácido do tumbo e do maracujá.


SABORES PRINCIPAIS

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Falar de macerar carnes em algum tipo de ácido é entrar no tema de tecnologia da conservação dos alimentos que não é património da cultura mochica ou da vicús, obviamente. Na Ásia, por exemplo, existiu desde tempos remotos a prática de macerar carnes em limão. Daí o feliz encontro gastronómico da cozinha do Norte do Peru, que temos vindo a comentar, com as práticas mouras de preparação de carnes com limão. Mas o valor acrescentado deste prato peruano é o terceiro elemento constitutivo: o ají, porque sem ele não é cebiche, como também não o seria um peixe sem ácido. E sem peixe não há realmente cebiche, embora ao longo dos tempos se tenha utilizado a técnica de «cebichar» para cozinhar outros frutos do mar, uma série de carnes e, inclusive, vegetais. Muito bem, são variações, aplicações, soluções, experimentações a partir Daí que o Callao de uma técnica, mas não é cebiche tal como se tivesse convertido se entende em sentido restrito: peixe na meca do cebiche com ají e ácido. Com a chegada limenho até ao século XX dos espanhóis, a maceração do peixe começou a apresentar alterações que finalmente se foram impondo por força do costume e das exigências do nosso paladar: referimo-nos ao uso da laranja amarga e do limão de Ceuta. Entretanto, os pescadores e indígenas do Norte continuaram a conservar por muito tempo a ancestral forma de preparação a partir do ají e do tumbo ou do maracujá, e inclusive, de acordo com alguns estudiosos, com chicha de jora, cujo ácido fazia as vezes de meio de cocção. Estes frutos trazidos pelos espanhóis foram rapidamente introduzidos nos vales nortenhos; no entanto, o limão foi posto de parte, passado pouco tempo, porque se pensava que provocava danos irreparáveis nos intestinos por ser muito corrosivo. O certo é que o prato tomou carta de cidadania com a laranja amarga e foi assumido o uso do ají num processo de mestiçagem gastronómica.

Em finais do século XVIII, nenhum consumidor de cebiche se preocupava, no Norte, com a origem do prato ou se se preparava com tumbo ou com laranja amarga e ají, simplesmente desfrutava-o. No século XIX, há uma mudança importante na preparação deste prato, não só pelo sabor que se pode obter com um novo produto, mas também pelo tempo de cocção, o que em termos de tecnologia culinária é fundamental. Referimo-nos à destituição da laranja amarga para dar as boas-vindas ao limão de Ceuta ou limão subtil, como actualmente é conhecido. Se é certo que o paladar da população peruana se tinha educado no consumo da laranja amarga devido ao seu aroma, no que toca ao processo de «cebichar» este era lento, pois o peixe cru demora de três a seis horas para conseguir a maceração requerida para que a carne pudesse ser consumida; em alguns casos, como em Arequipa, assinala-se que a cocção era tão lenta que se devia esperar um ou dois dias até o peixe estar no ponto. O século XIX traz, como se sabe, um ritmo de vida mais ágil, e isto traduzir-se-á nos preparados culinários, daí que o limão subtil em relação ao qual havia tanto preconceito comece a ser conhecido, usado e, finalmente, adoptado como um dos protagonistas desta obra de arte gastronómica que é o cebiche peruano. O século XIX também é cenário da chegada do prato à capital no meio dos afãs bélicos. O incremento da navegação entre os portos de Callao e Paita, bem como o impulso que Castela deu à marinha mercante permitiram um contacto permanente de pessoas e com elas receituários e usos culinários entre o Norte e Lima. Daí que o Callao se tivesse convertido na meca do cebiche limenho até ao século XX e que muitos tivessem acreditado que a origem do prato estava no porto da capital. Em Lima, o cebiche causou um impacto total. O povo assumiu-o muito rapidamente e elevou-o à categoria de prato crioulo. Nas costas limenhas e nas costas nortenhas há peixe muito bom, o ají é um produto de consumo aceitável num amplo sector da população, e o limão culti-


vado nos vales nortenhos é de fácil acesso para os limenhos. Em conclusão, temos um prato que é agradável para o paladar e responde a uma técnica simples mas precisa, porque há o risco de recozer o peixe em limão se for deixado muito tempo, ou exagerar o uso de ají, perdendo-se assim o sabor da carne; é também um prato económico, dado que se pode usar quer um peixe de qualidade superior (corvina, linguado ou mero), quer também um peixe mais barato mas de sabor agradável como a cojinova. Mais ainda, há receitas à base de bonito ou de cação que são bastante aceitáveis. Foi essa versatilidade que fez do novo prato um dos preferidos das camadas populares. Só em finais do século XIX e ao longo do século XX é que este prato começou a escalar posições até ser consumido pelas camadas superiores, as mesmas que tinham uma cultura gastronómica mais ligada à cozinha europeia, fundamentalmente à

francesa e à italiana. É então que o cebiche entra realmente nos restaurantes e desse modo vem juntar-se à cultura gastronómica dos limenhos em geral, pois já não será visto como uma curiosidade mas antes como um prato destacado nas ementas e nos buffets. Começa a substituir os pratos mais implantados e reconhecidos devido à sua elaboração e sentido de identidade com o autóctone, como a carapulcra e a papa a la huancaína ou o ají de galinha. O que na verdade é de salientar como característica da cozinha nacional é o picante, embora Manuel Atanasio Fuentes o considere mais veneno do que alimento: «para os apreciadores, é mais saboroso o guisado que mais o mortifica à hora de comer». A partir de meados do século XX, o cebiche peruano começa a conquistar um lugar na gastronomia nacional e internacional. Actualmente é o prato predilecto e mais representativo do Peru. Tradução de AJM

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SINAIS DE FUMO

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Habanos para um infante defunto JoĂŁo Ventura


Cabrera Infante. Fotografia de Daniel Mordzinski


SINAIS DE FUMO

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Há em Havana uma rua, a 23, que trei-a, ainda, em algum imaginário e em desce para o mar. Talvez por isso, o troço alguma iconografia que moldaram a mifinal, que desemboca no Malecón, se chame nha juventude. Paradoxalmente, Cabrera La Rampa. Desci essa rua, que mergulha Infante já não veria, se ali estivesse, a mesno mar, muito antes de alguma vez ter ido ma Havana que eu via, porque aqueles elea Havana e de ter sentido o aroma achocomentos dispersos que agora eu ia recupelatado dos charutos cubanos. Subi-a e desrando pertenciam a uma certa mitografia ci-a vezes sem conta em Três Tristes Tigres. E, de uma felicidade talvez mais sentida pedepois, em Havana para um Infante Defunto, eslos estrangeiros do que pelos cubanos, à pécie de crónica pessoal de uma Havana qual juntaria, depois, algumas imagens de pobre e carregada de sons, de intersecuma decadência de charme. ções. E a partir daí, de La Rampa, perdiTrês Tristes Tigres, que Cabrera Infante co-me na Havana dos anos cinquenta, no lameçou a escrever ainda em Cuba, antes de birinto sonoro de rumbas e son, do rum se exilar, é uma homenagem a uma HavaBacardi e dos charuna sem tempo à qual tos habanos. Uma Haele não mais voltou, vana nocturna, insupor culpa de um lar, «com os seus carancor quase irracioDesci essa rua, fés ao ar livre, cheios nal que marcou, até de novidade, e as ao final da sua vida, que mergulha no mar, suas inusitadas ora sua relação com o questras de mulheres Estado cubano. Asmuito antes que amenizavam os sim se compreendecafés do Paseo del rá a amarga ironia de alguma vez ter ido Prado». que atravessa os seus Quando, alguns livros. E, para ele, esa Havana anos mais tarde, visitar fora de Cuba era tei a cidade, Havana um castigo. Era coe de ter sentido já não era, imagino, a mo uma «ár vore Lost City do filme que transplantada», coAndy Garcia promete mo disse na sua paso aroma estrear este ano, basagem por Lisboa o seado no romance escritor cubano Leoachocolatado Três Tristes Tigres, de Canardo Padura. Trágibrera Infante. Ao desca dissidência que o dos charutos cubanos cer La Rampa, e detornou ausente de pois caminhar a pé uma cidade que foi ao longo do Malecón sempre o centro fesaté ao Centro, num tivo dos livros. E, começo de uma noite quente de Verão trotalvez, nem ele nem Havana merecessem pical, amenizada por uma brisa refrescante esse afastamento, pois cópias de Três Tristes vinda da vizinha corrente do Golfo, foi Tigres sempre circularam em Cuba, forainda a cidade nocturna fundada por mando gerações de escritores, como adCabrera Infante que atravessei. mitiu Padura, não obstante a opinião inAli estava, pelo menos eu via-a assim, justa e pouco amável que Cabrera Infante a mesma Havana nocturna, reflectida na tinha dos escritores que vivem na ilha. patine luminosa dos edifícios recuperados A ausência preenche-a Cabrera Infante do Centro Histórico. Via-a, ainda, no conregressando sempre aos mesmos temas tacto caloroso das pessoas, na sensualidade com uma nostalgia feroz: a Havana dos imediata dos corpos, no perfume adocicado anos 40 e 50, a noite, as mulheres, a múdos charutos, na música omnipresente nos sica, o cinema e os charutos. O primeiro bares e cafés de Habana Vieja. Reenconsinal de fumo de Cabrera Infante encon-


trei-o em Três Tristes Tigres: «O charuto [...] contada por um fumador nato que, ainda aceso é outra fénix: quando parece apagado criança, decidiu que, se um dia tivesse dimorto, a vida do fogo surge entre as suas nheiro, fumaria um puro todos os dias, decinzas.» pois do almoço e do jantar. Em Havana, quando fumei o meu priMas Puro Humo é ainda uma história da meiro charuto, no bar do Hotel Ambos relação entre o cinema e o fumo. Porque Mundos, onde viveu durante algum tempo para Cabrera Infante, sabemo-lo desde HaHemingway, juntando assim mais um elevana para um Infante Defunto, os filmes são feimento à tal mitografia da felicidade, ainda tos de sonhos. Como os puros. Por isso, este não tinha lido o que Cabrera Infante dissera Puro Humo move-se de Cuba em direcção ao sobre o prazer de fumar charutos: «Llamo cinema, reacendendo na memória do leifelicidad a sentarme solo en el lobby de un tor-espectador um certo voyeurismo: um civiejo hotel después de una cena tardía, garro lânguido nos lábios de Marlene Diecuando se han apagado las luces de la entrich, uma beata rude entre o índice e o trada y solamente se polegar de Bogart, o distingue, desde mi universo opaco de cómoda butaca, al maldade nos clássiportero en su vigilia. negros como A O primeiro sinal de fumo cos Es entonces cuando Dama de Shanghai ou A fumo mi puro en Sede do Mal. Também de Cabrera Infante paz, tranquilo en la outras páginas que oscuridad: lo que fue exalam o mais puro encontrei-o em antaño una hoguera fumo literário, com primitiva en el bosreferências a Daniel Três Tristes Tigres: que, transformado Defoe, Poe, Conrad, ahora en las ascuas Stevenson, Dickens, civilizadas que reluMallarmé, Lewis Car«o charuto [...] cen en la noche coroll, Conan Doyle, mo el faro del alma.» Raymond Chandler, aceso é outra fénix: Em Puro Humo, Hemingway, Jack Lonque Cabrera Infante quando parece apagado, don, Lorca, Lezama escreveu originalLima, entre outros – mente em inglês e e J. M. Barrie –, talmorto, a vida do fogo que só seria traduzivez o mais belo títudo para espanhol surge entre as suas cinzas» lo de todos os livros quinze anos mais que fumam: My Lady tarde, conta-se uma Nicotine. história que começa Pura literatura, com o descobrimenportanto, que se esto da América, em fuma e perfuma co1492, quando um membro da tripulação mo um puro, mesmo que algumas páginas de Colombo, Rodrigo de Xerez, viu índios sejam atravessadas por uma nostalgia («hombres-chimenea») fumando e descoamarga e obsessiva, e sem redenção, nubriu a folha de tabaco. Uma história do tama espécie de ajuste de contas do escribaco, portanto. Mas também um guia para tor com o seu passado. fumadores onde se explica a evolução do Mas como sinal de fumo, que é o processo de fabrico, se avaliam as mais de que interessa aqui, o que fica é a sua paitrinta marcas disponíveis com as suas 700 xão pelos habanos: «primero se lo prende, vitolas e até se ensina como se deve cortar, luego arde rojo, violeta, violento, viruacender e apagar um puro. E também a Culento, luego crea ascuas y cría cenizas: ba da Vuelta Abajo, dos campos e plantauna pasión consumida». Há dias, apagouções de tabaco. Uma paixão pelos puros se-lhe o último habano.


ESTÁDIO DE SÍTIO

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Equipa de futebol feminino de Churubamba. Daniel Silva Yoshisato. Peru, Agence France Press. 1.º Prémio Desporto | Histórias World Press Photo 2005


ALGUM CHEIRINHO A ALECRIM

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Andanças e amores em terras lusitanas Virgínia Maria Trindade Valadares

Madragoa. Fotografia de Paulo Barata



ALGUM CHEIRINHO A ALECRIM

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Pensar e escrever no cantinho da revista Atlântica, «Algum Cheirinho a Alecrim», sobre Portugal e a minha passagem por este país é escrever sobre afetos, perdas e ganhos, enfim, é falar de amor a um país e a um povo de quem, antes, pouco ouvira falar. No entanto, é claro, Portugal era tema recorrente nos manuais nos quais eu estudava desde a minha infância, no curso primário em Comercinho, cidadezinha onde nasci, localizada no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, Brasil. Sabia bem que o Brasil fora «descoberto» pelo navegador português Pedro Álvares Cabral e que a primeira missa no Brasil foi celebrada na Bahia, no Ilhéu da Coroa Vermelha, por Frei Henrique Soares de Coimbra. Mais tarde, já fazendo licenciatura em História, descobri que no sobrenome do Frei não existia Coimbra e que tal denominação era em função de ele ter nascido na cidade de Coimbra. Nesse momento, enquanto estudante de História, se iniciaram para mim outras tantas descobertas sobre Portugal. Estudei «Brasil Colônia» e, nesta disciplina, a História de Portugal. Isto foi nos idos anos da década de 70 do século passado, época em que eu era totalmente adepta da teoria da dominação e do materialismo histórico, defendido por Marx. Acreditava no marxismo, ao contrário do governo brasileiro que se opunha tanto à doutrina quanto ao socialismo que sonhávamos. Vivíamos numa ditadura militar e nós, estudantes, resistíamos ferozmente a ela. Nesta mesma década de 70, estudávamos a ação dos portugueses no mundo, desde o século XVI, como sendo de dominação e aniquilamento dos povos subjugados na Ásia, na América e, até àquela data, na África. Reconhecíamos que o processo de colonização exercido por Portugal e pelos portugueses fora uma guerra que destruiu os nossos índios, que nos massacrou sob o ponto de vista econômico, cultural e político. O colonizador havia-nos roubado o ouro e todas as nossas riquezas. Daí ser este país o responsável por toda a miséria e atraso de nós brasileiros. Enfim, era o responsável pelas nossas desgraças. Não gostava nem do país nem do seu povo, vendo-os como maus e perversos. O governo de Salazar e o atraso em que vivia Portugal em relação ao resto da Europa era tudo o que mereciam. Era, como no dizer do Geraldo Vandré, a aroeira (madeira que produz um cipó longo e que bate forte) «voltando no lombo de quem mandou dá». Ademais, não se admitia que, em plena década de 70, Portugal ainda possuísse países na África vivendo sob o seu grilhão e sob a sua colonização.

Em 1974 graduei-me. Deixei de ser estudante de História e passei a ensinar História em escolas de ensino médio e fundamental. É evidente que reproduzia todo aquele refrão aprendido. Nesse instante estourou em Portugal a Revolução dos Cravos, e Chico Buarque, nosso ídolo musical, cantava «Fado Tropical». Só falávamos em todas as rodas da tal Revolução. Nunca se falou no Brasil tanto sobre Portugal. Eu torcia pela independência da África e dos africanos, adorava Fidel Castro e Agostinho Neto. Torcia, enfim, pelo português revolucionário. Começo aí a redescobrir um outro tipo de português e um outro Portugal. A Revolução dos Cravos sai vitoriosa! Marcello Caetano e boa parte dos ricos colonizadores e conservadores portugueses vêm para o Brasil e são bem recebidos pelo governo da ditadura brasileira. Daqui são expulsos os nossos intelectuais opositores ao regime, encontrando guarida pelo povo e pelo novo governo de Portugal. Apesar de todos os novos acontecimentos, no fundo eu continuava com mágoa da exploração que Portugal tinha feito no Brasil. Continuava detestando ouvir falar em «Pátria-mãe». Continuava contrária ao processo colonizatório. No inicio da década de 90, viajei por boa parte da Europa e excluí conhecer Portugal. No dia 7 de Setembro (dia em que se comemora a independência do Brasil) de 1994, caí em Lisboa meio de pára-quedas. Resolvi, não sei bem porquê, fazer doutorado em Portugal. A minha proposta tinha sido aceite pela Universidade de Lisboa. Pedi licença nas Universidades onde trabalhava em Belo Horizonte e, sem nenhuma bolsa de estudo, arrumei as malas, deixando para trás meu marido, minha filha de 14 anos e meu filho de 17, tentando vestibular para ingressar na Faculdade de Medicina.Viajei todo o tempo chorando a cântaros. Ao chegar a Lisboa, hospedei-me na Casa de Santa Zita, situada na Rua de Santo António à Estrela. Até o nome da rua me era estranho, assim como o eram o nome da santa e o portão enorme com uma placa onde estava escrito «Proibido fumar». Toquei a campainha e veio um senhor de idade me atender. Naquele momento, tive a sensação de que já estivera por ali. Parecia o internato das freiras Clarissas Franciscanas no qual estudei interna, enquanto adolescente, no interior de Minas. De pronto, me avisaram que o pequeno-almoço se iniciava às oito menos um quarto, o almoço às doze horas e o jantar às sete mais um quarto. Fiquei desesperada, pois não entendia nem a língua que eu achava ser a mesma que a minha e fiquei sem saber o horário de funcionamento das refeições, muito menos o que era pequeno-almoço.


No dia seguinte, andei várias vezes da Rua de Santo António à Estrela até à Baixa Pombalina para dar tempo ao meu corpo e à minha cabeça entender o que realmente era a minha função naquela cidade e naquele país. Visitei a Universidade e resolvi recuar, ao invés de fazer o doutoramento, fiz o exame de seleção para cursar o mestrado. Se iniciaram as aulas. Éramos 10 alunos. Já era tempo do frio e no primeiro dia de aula cheguei atrasada, espavorida com o olho a lagrimejar. Entrei na sala sem pedir licença e o Senhor Professor de pronto me perguntou se eu era brasileira. Difícil entender o que aquela gente falava. Era um tal de pá, pá, peões, elefante que era arma de fogo, xícara que era chávena, café que era bica, copo de café com leite que era galão, chope que era fino, e foi um Deus nos acuda até que eu me desarmasse do colonizador, jogasse fora o arco e a flecha, saísse do internato de Santa Zita e fosse morar sozinha, pela primeira vez ao longo dos meus 45 anos. Percebi neste instante da minha vida que era necessário romper preconceitos para enxergar e compreender a complexidade de um povo e de uma cultura. Já morando na Travessa das Inglesinhas, Madragoa, bairro típico, lindo e barulhento pelas brigas entre vizinhos, percebi a luminosidade de Lisboa, a beleza do seu céu, o encanto da sua arquitetura seiscentista e a cordialidade silenciosa do seu povo. Chegou o Natal! O que fazer numa festa de família sem família? Fui a uma empresa de turismo e viajei para o Algarve, passando a noite de Natal em Monte Gordo, entre pessoas mais idosas e, também, sozinhas como eu, mas que nos tornámos uma família naquela noite de Pai Noel. No dia 25 fui convidada para participar de um almoço em Santarém, junto com alguns dos meus senhores professores. Eu custei a acreditar ser possível tamanha sensibilidade em terra estrangeira. Se iniciou aí, a partir do nascimento de Cristo em 94, o meu nascimento em terras portuguesas. Houve a superação do maniqueísmo e ficou claro que o ser humano é múltiplo, cindido e, ao mesmo tempo, único numa relação onde existe dominado e dominador, bom e mau. Freqüentei os arquivos, criei amigos, fui à Serra da Estrela, no Carnaval, e a Portimão em Maio. Conheci pessoas maravilhosas, cordiais, amigas e a casa de portugueses com certeza. Formei um círculo de amigos diversificados que ia desde o senhor da tasca, onde me alimentava, à senhora dona da lojinha onde tirava fotocópias. Me senti amada e respeitada. Criei ânimo novo. Defendi a minha dissertação de mestrado. Ganhei flores e elogios. Vi que era capaz

de alguma coisa e, renovando minha auto-estima, inscrevi o meu projeto de doutoramento naquela mesma Faculdade, com os mesmos professores e colegas amigos. Retornei ao Brasil, trabalhei mais e senti falta da alegria triste dos navegadores portugueses da atualidade. Em 2000 voltava eu para as terras lusitanas. Desta feita já sem choro e ranger de dentes. Sabia que lá encontraria amigos, sensibilidade e os documentos me esperando na Torre do Tombo, tornada «família Tombo», e nos vários outros arquivos portugueses. Trabalhei e conheci Coimbra e a sua Universidade portentosa. Senti no corpo daquela cidade estudante todo o frio do mundo, mas nunca mais senti em nenhuma terra portuguesa o frio da alma. Em 2001 ganhei uma bolsa de estudo da FCT (Fundação para Ciência e a Tecnologia) de Lisboa, bolsa esta que não havia conseguido no Brasil, e em 2002 defendia minha tese de doutoramento. Júri sério, todos togados, tradição acadêmica que não existe em terras brasilis. Veio a mim a noção de família portuguesa e desta feita misturada de um entre-lugar a de «Pátria-mãe»: ganhei mais flores e recebi abraços dos amigos e dos amigos dos meus amigos. Senti-me em casa, com toda a intimidade que só é possível sentir em sua própria casa. Naquele momento pensei: onde estavam os colonizadores, que matavam pessoas e culturas, que eu havia cultuado por grande parte da minha vida? Aprendi, li e vi outra História. A História construída pelos documentos, pelo amor, respeito e solidariedade. E esta me ensinou também que os colonizadores estavam ali, mas tinham múltiplas faces, isto é, somos todos nós homens capazes de atrocidades, mas também de humanidade e cumplicidades. Somos todos nós povo-nação, guerreiros e pregadores da paz, tristes e alegres, usurpadores e honestos, enfim, somos frutos da época e da sociedade a que pertencemos. Passei a entender a língua portuguesa e a ter certeza que a lingüística precisa ser mudada. A língua que se fala no Brasil não é exatamente a língua do colonizador, mas, como eles mesmos dizem, fala-se aqui o brasileiro. Até o próprio português nos tirou a síndrome do colonizador ao redenominar a língua falada no Brasil. Em 2004 voltei a Portugal de forma meteórica para lançamento do meu primeiro livro fora do Brasil. Emocionei-me e chorei em público, desta vez não por medo, mas por saudade e gratidão. Portugal é hoje uma paisagem na parede da minha alma: olho, sinto, amo e gosto. Gosto do gostar, gosto das pessoas, das imagens, do céu e de ti, «Portugal».


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Portugringo, white bird Onésimo Teotónio Almeida


Um pouco como Colombo, dei com a Hispaniola por mero acaso, mesmo sabendo eu que não ia aterrar na Índia. Era Janeiro branco na Nova Inglaterra, neve alta e, embora a cabin fever só apertasse lá para Fevereiro, urgiu-me por dentro ir de abalada derreter o espírito enquanto recauchutava a pele. O boletim meteorológico anunciava mais um nevão e that was it! Agarrei do telefone e, minutos antes de a agência de viagens fechar, implorei dois bilhetes para o sol na manhã do dia seguinte, antes da chegada de mais neve. Os computadores eram ainda lentos nessa altura, mas as escolhas também não abundavam numa urgência assim e, por isso, em menos de um quarto de hora a Charlene telefonava com a solução: Caraíbas, Santo Domingo. Saída de Boston às sete da matina. Nem houve tempo para dormir, quanto mais para ninharias como essa de tomar conhecimento de que um não-cidadão americano com passaporte português (eram eras de pré-dupla cidadania) necessitava de visto. Só o soube já em terra dominicana, depois de sentir o bafo azul-quente caribe a afagar-me o rosto. O funcionário ignorava a localização de Portugal e nunca antes encarara com um portuga. Foi ao livro, folheou o passaporte e inquiriu: O visto? O visto? Na agência não me tinham dito que era preciso. Eu a puxar camaradagem latina, e ele, implacável, como se interesseiramente a roubar-me a mulher: Ela pode entrar, o senhor não! Tem de voltar a Boston no mesmo avião, sacar um visto no consulado da República Dominicana e, com sorte, regressar amanhã. Pagando nova viagem, evidentemente, a confirmar aquele princípio básico do viajar: feitos, o orçamento e a lista das peças a incluir na bagagem, reduz-se a lista a metade e dobra-se o dinheiro. Desnecessário narrar pormenores porque nada resultou. A conversa permitiu-me, todavia, acalmar o ânimo e encontrar a solução mais próxima, rápida e barata. Aguenta aí! Autorizar-me-iam a ir a Miami em vez de Boston? Consulta aqui e acolá. Espera ilimitada e, por fim, resposta positiva. Voos mais frequentes até. A demora folgada fez-me serenar por inteiro o raciocínio e vislumbrar um expediente ainda mais económico: já agora, o Porto Rico? É território americano e bem mais perto... Novas consultas, dúvidas, hesitações, seguidas de afirmativa titubeante. Quis certificar-me uma, duas vezes. Sim. Por sorte


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um avião saía dali a duas horas e o voo era de cinquenta minutos apenas. Despedi-me da Marianne. Que não se preocupasse. Fosse para o hotel, descansasse, provasse a praia, que eu haveria de aparecer ainda que a nado, de visto na mão, à Camões na foz do Cambodja. Afinal o avião descolou com atraso latino-americano. Avaria técnica foi a desculpa do costume, para razões que podem ir de uma ressaca do piloto a ter-se o fornecedor dos sumos distraído na soneca. Cheguei a San Juan perto das cinco de uma tarde carregada de cinzento. Dirigi-me em linha recta à cabine telefónica mais próxima e mergulhei nas páginas amarelas. Mas nem elas nem as brancas nem ninguém havia por ali que soubesse do paradeiro ou sequer existência do consulado dominicano. Nova elipse de pormenores que só atrapalhariam o leitor como me atrapalharam a mim. Agarrei de um táxi e larguei rumo à cidade, que me era já algo familiar, embora nunca alguma vez na vida me tivesse sido necessário achar o endereço do consulado da República Dominicana. O taxista não o sabia e perguntou-me onde queria que me deixasse. Quem sabe? No Viejo San Juan. Ou, se calhar, não. Era um à sorte e por isso fiquei lá. Na rua, sem nada nas mãos e apenas a carteira como posse. As malas levara-as a Marianne para o hotel e nem me ocorrera precaverme porque, optimista de nascença, tinha a certeza de regressar naquela mesma tarde. Daí que a minha segunda surpresa tenha sido uma pancada de água que se abateu sobre mim sem préaviso. Ou talvez as nuvens o estivessem dando, mas eu voltara as antenas para outros comprimentos de onda. Lancei-me em cata de hotel. E, enquanto a roupa secava, fui fazendo pesquisa. Desta vez, frutífera. Farpela molhada e tudo, tornei a sair a ver se chegava a tempo de apanhar o consulado aberto. Não respondiam ao telefone, mas tinha de lá entrar quanto antes, porque era nada mais nada menos do que... sexta-feira. Pormenor insignificante de que apenas me apercebera no avião, a meia viagem. Adensava--se a perspectiva de ficar retido em San Juan até segunda-feira, assim de molha no pêlo e nem uma escova de dentes, nem um livrinho para adormecer. A chuva amainara e julguei até que se esquecera de cair, mas isso foi apenas para descansar enquanto esperava a minha saída do hotel.

Eu, todavia, não podia deter-me. Por isso me aventurei San Juan fora, primeiro de táxi, depois a pé. Ao fim de errantes deambulações, escorregaram-se-me os olhos num letreiro: Consulado de la República Dominicana. Cerradíssimo, porém. Nem uma luzinha a iluminar o que quer que fosse. De porta em porta aberta na vizinhança, atravessada sempre sob chuvada tropical a encharcar-me os ossos, soube da queixada de um velhote, descansando sobre uma bengala, que o señor cônsul se chamava Luiz A. López. Armado dessa pista, voltei ao hotel e à lista telefónica enquanto a roupa secava e eu me enrolava na toalha após um duche quente. Os Luiz A. López eram muitíssimos. As minhas hipóteses, porém, eram poucas. Ao acaso poderia acertar, mas a sorte naquele dia não estava comigo. O melhor seria um procedimento sistemático. Dispus-me a levá-lo a cabo com a paciência beneditina de quem necessita e não tem outro remédio. Oito chamadas seguidas sempre introduzidas por É da casa do senhor cônsul da República Dominicana? Aliás, a pergunta foi feita inúmeras vezes, porque os porto-riquenhos que atendiam o telefone não decifravam o meu portunhol. Os mais delicados pediam simpaticamente para repetir. Outros, mais rafeiros, mandavam-me ir bugiar para sítios que o meu magro espanhol de calão felizmente não me permitia localizar. Mas, finalmente, Eureka! Eureka! Ouvi um ¡Sí, para servirlo. Era ele ali ao vivo, e eu a querer colá-lo à linha telefónica para que me escutasse a súplica. O senhor, que imaginei com sotaque, de bigode e uns bons sessenta anos, não exibia grande dose de paciência perante o meu arremedo de espanhol. Despachava-me repetindo com um ¡El lunes, el lunes!, a cada frase minha, até atingir o tom de quem já esgotara a pachorra:Ya le he dicho a usted que aparezca el lunes en el consulado. E eu voltando sempre à carga a fazer-lhe ver as razões da minha insistência. Não sei exactamente em que parte da conversa o ouvi resmungar: ... los americanos... Ripostei: ¡Señor cónsul, yo no soy americano! Cual es, entonces, su nacionalidad? Por-tu-gue-sa! ¿Portugués? ¿Es usted portugués? Entonces venga mañana a las nueve al consulado. Sem querer acreditar, acho que me escapuliu um urrah!, com o señor cónsul ainda em linha. Desliguei, eufórico, para contactar a Marianne em Santo Domingo. Precavera-me com o número de telefone do hotel onde certamente ela estaria à espera de notícias. A telefonista, porém,


respondeu que ali não constava ninguém com aquele nome. Impossível! Era ela, no seu disco partido, a teimar, e logo eu a teimar ainda mais. Acabei exigindo o gerente. Jurei que a Marianne tinha de ser hóspede lá, tudo reservado e pago antecipadamente, a partir dos Estados Unidos, de Providence, ou melhor, de Boston que é, depois do corredor Miami-New York-Washington, o que na América Latina se entende por Costa Leste. O gerente admitiu por fim que dera entrada uma señorita assim chamada. Mas do quarto dela ninguém atendia. Sem um livro, sequer cuecas ou um par de meias secas para mudar, saí para a cidade, já duvidando da promessa de no outro dia ter o cônsul a abrir expressamente o consulado para este português. Segundo a lei de Murphy, as desgraças acontecem em ciclos de três e, terminado um ciclo delas, não advém um outro de acontecimentos bons, apenas recomeça um novo de desgraças. A sorte ameaçava-me com um fim-de-semana de prisão em Porto Rico. Serão curto. Uma molha de horas no pêlo não é o mais aconselhável traje para noite de fim-de-semana. Voltei ao hotel e adormeci a consultar os horários de voos para Santo Domingo no dia seguinte. Na manhã dele, sábado, meia hora antes das nove já eu estava de plantão à entrada do consulado. Não dei por ninguém chegar mas, algum tempo depois, uma porta abria-se e a figura que eu tinha visualizado ao telefone fazia-me sinal. Pediu-me o passaporte e quis saber o que se passara, quem eu era, como dera com os ossos nos domínios do Tio Sam, o motivo por que escolhera a República Dominicana e, ainda, se a minha cara-metade, já em Santo Domingo, também era portuguesa. O senhor tinha um ar grave de estadista, bigodaça retorcida e severa, moreno e oculado, uma espécie de figura de quadro do século XIX de repente em três dimensões, com movimento, som e tudo. Voz de barítono pesada e pausada, exalava autoridade e nela se comprazia. Qualquer gaffe minha seria fatal. Na cabeça zuniam-me hipóteses e interrogações. Deverei ou não mostrar-me disposto a pagar o que for preciso? E se o insulto? Por que demora tanto todo este processo? Nestas circunstâncias, o mais seguro é o silêncio. Nisto, o senhor cônsul ajusta solenemente os óculos, cruza as mãos sobre a secretária, molha os lábios um no outro e dirige-se-me solenemente:

Pois ficasse sabendo que era com imenso prazer que prestava aquele serviço a um cidadão português, a alguém nado e educado sob o regime de um grande estadista, aliás, um dos dois estadistas que no mundo mais admirava e que eram a sua companhia naquele gabinete. Ergue-se então da cadeira como para discursar com mais largueza e aponta para a parede onde estão dois quadros. Uma das figuras, um tal Escobar, eu não reconheci. A outra era nada mais nada menos do que... Salazar. E o senhor embrenhou-se numa tirada elogiosa como não me lembro de jamais ter ouvido ao presidente da Junta de Freguesia, ao regedor ou ao professor, nem tão-pouco ao senhor padre, do meu Pico da Pedra natal. Não tive coragem de esboçar qualquer reticência, mentalmente me penitenciando pela cobardia, enquanto o homem continuava embalado no panegírico. De repente, agarra de um carimbo e, como se num tribunal a bater com o martelo para impor a ordem, deu com ele um enérgico murro no passaporte, enquanto, peremptório, declarava ser por não existirem mais homens como Escobar e Salazar que o mundo está hoje aquilo que todos conhecemos e lamentamos. Ergueu-se da cadeira, entregou-me o passaporte, deu-me um abraço e, ao meu tenteado Muitíssimo obrigado, mas desejava saber quanto dev... o homem quase me tapou a boca a reprimir-me o resto da frase. ¡Por Dios! Tinha sido um prazer inaudito poder ser de alguma utilidade a um súbdito do que foi um dos grandes líderes do século. ¡Y buen viaje y felices vacaciones en mi patria! Que tendrá mucho honor en recibirlo! Voei para o aeroporto. Agarrei o primeiro avião para a República do Senhor Cônsul. Estava terminado um ciclo de coisas más. Esperava-me o azul-turquesa da fresquíssima água de uma praia caribe. Na recepção do hotel, a Marianne argumentava com a funcionária. Interrompi o diálogo pouco amistoso e, de permeio, com a euforia do reencontro e da narrativa da minha odisseia, fui percebendo que a Marianne estava farta de vir da praia à recepção saber se tinha chegado algum telefonema para ela. Nada! – garantiam-lhe. Soube então que, pouco depois de dar entrada no quarto, ela descobrira uma pingueira sobre a cama e reclamara mudança. Passaram-na para um anexo ainda nem sequer inaugurado, mas ninguém se lembrou de registar a transferência.


O QUE FAÇO EU AQUI

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Preocupadíssima com o meu silêncio, pois sabia que eu tinha o número de telefone do hotel, receava que me tivesse acontecido alguma coisa e já se tornara impertinente na recepção. Todavia, ali a funcionária era já outra e não sabia das minhas frustes insistências na véspera. All is well when it ends well, corri para o quarto a vestir os calções de banho, agarrei de uma toalha e fui estirar-me ao sol numa cadeira vazia junto à piscina. Peace at last! O tratado de paz entre mim e a sorte veio assinado com uma brutal descarga de água, uma chuvada tropical de catálogo, a desabar-me no corpo. Percebi então o significado de chover no molhado.

k

A chuva estragara a véspera, mas a manhã despertou de cara lavada, prometendo o anunciado nos panfletos turísticos. A foto da praia exibida no catálogo devia, é certo, ser de outro hotel, mais estrelado do que o nosso, mas houvesse sol que o resto era de somenos. Consultei mapas e guias. Não estávamos muito longe do centro da cidade, e um bom passeio, a atravessar a marginal murada pelo malecón, permitir-nos-ia desaguar num bairro com restaurantes frequentados pelos locais, fora do circuito turístico. Planeámos portanto uma saída do ambiente de pacote que se respirava no hotel-aviário, recheado de gente que viera como nós no snowbird, ou pássaro da neve. Assim é conhecido nas Caraíbas o avião vindo do gelo, carregado de peles-brancas (os white birds – do Canadá e do Norte dos States), aliás o mesmo que nos leva de regresso à brancura fria uma semana depois, já com novo re-

vestimento, todo a descascar de torradinho. Afinal não passávamos de mais dois dessa raça. Razão acrescida para aproveitarmos uma aventura fora daquele casulo enlatado. A ver como era. Lá fomos descobrir a miséria, os pedintes, a sujidade, a lixeira pública. Lembrei-me de uma peça que vi no Rio de Janeiro: entre duas senhoras-bem, da Zona Sul, queixava-se uma de que, farta da miséria do Rio, de favelados e miserentos, implorara ao marido que a levasse dali para fora a desopilar por uns dias. New York, por exemplo. Ela queria cultura, arte, algo que a fizesse esquecer o imundo Rio. Foram, mas só conseguiram um hotel quase junto à Décima Avenida num sítio hediondo, e dois bilhetes comprados no mercado negro, para um musical, Les Misérables! Depois vinham-me flashes do Mr. Robinson, no Funchal, a pedir-me que lhe indicasse um restaurante da terra, sem turistas, frequentado por locais, the real people. Fui informar-me e passei-lhe a dica. Mr. Robinson voltou pouco depois, descorçoado e de estômago indisposto: Moscas, muitas moscas e uma casa de banho fétida. Quer dizer, o Mr. Robinson queria the real people mas o dos livros etnográficos, em versão para turista. Assim andávamos nós em demanda dos dominicanos autênticos. Esperávamos, suponho, pobres remendados mas limpos, sequiosos de oportunidades para melhorarem honradamente o seu estatuto social, atenciosos e, de preferência, reconhecidos aos visitantes pelo contributo importante que traziam a uma economia subdesenvolvida. Saiu-nos, ao invés, uma boa hora de caminhada povo real dentro. Numa ruela escusa, um aroma convidou-nos a entrar no que parecia um restaurante. Localíssimo. Cheiros, caras, serviço. Extraído dos filmes. Algazarra. Entre a decifração da ementa, manuscrita e com as suas regras ortográficas muito próprias, conseguimos perceber que o grande tema de conversação entre as mesas, de um canto ao outro do exíguo quarto, era a manifestação contra os Estados Unidos agendada para aquela tarde. O Presidente Reagan decidira reagir contra algumas insurreições latino-americanas, enviando potentes vasos de guerra para o Golfo do México e vários portos principais das Caraíbas, em exibição de força. São Domingos era especialmente contemplado. Metemos conversa com os comensais e tudo acabou em almoço de uma grande família. Inteiraram-nos so-


bre a arrogância imperialista de Reagan e sossegaram-nos (depois de acalmarem eles próprios), expressando até alívio quando nos souberam europeus, embora me chegasse aos ouvidos a teima de um pequeno grupo insistindo que éramos brasileiros. De repente, a Marianne levou as mãos aos olhos e exclamou: Gás lacrimogénio! Eu olhei para a porta sem perceber, mas já não vi nada porque as lágrimas toldavam-me a vista. Saltavam em jorro. Afinal era a sala toda que agora chorava no meio de uma balbúrdia confusa. A dona do restaurante acorreu, apressada, a pegar na mão da Marianne e a puxá-la para dentro fazendo sinal para eu as seguir. Levou-nos para uma cave-arrecadação-armário-de-lixo-câmara-frigorífica onde agora seria o nariz a chorar se tivesse lágrimas. Preocupadíssima, tentou acalmar-se acalmando-nos. Não vai ser nada. Ficam aqui fechados e só irão para o hotel depois de terminar a manifestação. Faltava um quarto para as três e o protesto estava marcado para as quatro daquela tarde. Não haveria maneira de irmos para o hotel? Um táxi? O restaurante, porém, não tinha telefone. Entretanto, de cima desceu um musculoso cinturão preto a garantir que não havia problema. O pateta de um rapazolas trouxera na algibeira uma bomba de gás lacrimogénio que lhe haviam dado para levar para a manifestação e, por descuido, ela rebentara-lhe prematuramente. Mas já tinha apanhado um par de tabefes, o maricón. A rua estava calma e convenci a Marianne de que podíamos seguir a passo lesto para o hotel. Era pagar e andar. Decerto bem mais seguro antes de começar o ânimo da populaça a aquecer e a irracionalizar-se. Contra os conselhos da nossa prestimosíssima anfitriã, largámos. Com relativa calma mas de acelerador nos pés, galgámos a primeira meia hora sem vislumbrar qualquer sinal destoante da azáfama encontrada na ida. Já nos acercávamos do malecón e, aparentemente, íamos conseguir atravessar a marginal uns bons vinte minutos antes da arruaça. Com efeito, em quase cinco minutos atingíamos as palmeiras do extremo oriental do malecón. No entanto, achámos prudente abrandar a marcha. A avenida regurgitava de gente e era impossível prosseguir naquele passo, até porque provocaria irritações e levantaria suspeitas. Nem uma cara de estrangeiro ali. Real local people, diria o Mr. Robinson.

À medida que nos aproximávamos do centro adensava-se ainda mais a massa de gente. Desviámo-nos para o lado oposto ao mar por ter mais abertas. Subitamente, um buliçoso grupo vedou-nos o caminho. Tentámos cautelosamente contorná-lo, mas não havia remédio senão passar pelo meio. Um mal-encarado, com a raiva toda do universo no semblante, invectivou-me com os olhos e mandou: Gringo!...Yankee, go home! Eu inventei a maior descontracção, tentei espremer o meu melhor sorriso e, no mais arremedado espanhol, atirei: ¡Yo no soy gringo! Sem intervalo, um outro do grupo: ¡Tu a mi non me pareces japonés! Ainda parei, resistindo à Marianne que me puxava o braço: ¡Es cierto! Yo soy portugués! ¡Mira, amigo! – um gorducho careca, com bonomia nos olhos e na mão que me deixou cair no ombro – e o original da frase em espanhol foi-se-me, mas guardei bem nítida a ideia: quando isto começar, não há português nem francês. Há dominicanos e o resto é gringo! Desapeguem-se vocês para o hotel imediatamente que isto vai ficar feio! Conseguimos furar mais um magote aqui, outro logo ali, desviámos por um pequeno largo mais desafogado, o barulho sempre a adensar-se, os olhares das pessoas a fulminarem-nos, barrando-nos ostensivamente o caminho e empurrando-nos. Mas dali a minutos estávamos já numa clareira que se alargava mais e mais, e logo ao fundo emergia o hotel. O percurso até lá estava desobstruído. Faltavam dez minutos para as quatro quando entrámos. Cruzando-se connosco, um parzinho de gringos apaixonados com ar de inocentes em lua-de-mel, de mão dada e boquinhas uma na outra sem olharem sequer onde punham os pés, quase chocou comigo. – Desculpem intrometer-me na vossa vida particular, mas para onde vão? – Dar um passeio pela marginal. Porquê? – Não sabem da manifestação? – Não. Só há pouco saímos do quarto. – Pois regressem a ele imediatamente. Hoje é um daqueles dias em que vocês não podem pôr o pé na rua. Não sei se chegaram a prestar atenção ao conselho, tão nas nuvens caminhava aquela dupla. E, se foram até ao malecón, nem devem ter reparado na multidão, nem os manifestantes, se calhar, conseguiriam diferenciar-lhes o rosto, tão enlevadamente encobertos estavam, beirando o nirvana.


A MARESIA DO MUNDO

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PROVÍNCIA

Assim, no centro da praça, ouvi a música branca do coreto vazio, e um coro de pássaros afinados pelo outono, cantando a melancolia branda da província. Uma infância antiga corria pelo meio do empedrado, atirada pelo vento; e as bolas de bilhar batiam nas tabelas do jardim onde os velhos liam o jornal, na página dos anúncios, em busca de viagens que nunca mais fariam. Todos os outonos são feitos de coisas banais, colam-se a um sentimento que não tem nome, empurram a alma para fora do asfalto, sujando-a na lama das bermas, enchem de névoa o horizonte dos olhos, obrigam o ser a descobrir uma forma para o tédio, como se não houvesse mais nada na sua existência, põem-nos pela frente um velho mapa de nuvens desbotadas. Sigo com o indicador o rumo dos rios. Algures, há uma saída para esta praça; e é como se o gesto que faço sobre o fio azul, no papel, me levasse na sua corrente, até esse mar que não tem portos nem barcos. Mas invento descobertas nas colunas do coreto; abro hemisférios nas fachadas por pintar; ouço temporais nos telhados que vão cair. E ao sair da praça, deixando para trás o Outono, levo comigo os jornais que os velhos deitaram fora, depois de ler os anúncios.

Poema inédito de

Nuno Júdice


Fotografia do Arquivo Museu Municipal de PortimĂŁo


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Retrato de Juanito Rulfo Mempo Giardinelli


Fotografia publicada com a autorização da senhora Clara Aparicio de Rulfo


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Foi, possivelmente, o homem menos influenciável que conheci na minha vida, e, realmente, a química dos seus afectos e desafectos era totalmente improvável, arbitrária como ele próprio

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Conheci Juan Rulfo nos anos do meu exílio no México e posso dizer que fomos amigos. Na realidade, foi ele que me honrou com o seu afecto, quando eu era muito jovem e ele era já um escritor consagrado, avesso à celebridade e com fama de intratável. Demo-nos desde finais dos anos 70 até à sua morte em 1986: encontrámo-nos para conversar todas as sextasfeiras, durante cinco anos, e mantivemos longas conversas peripatéticas pelas ruas do México e de Buenos Aires. Juanito, como lhe chamávamos, distinguiu-me nos seus últimos anos de vida com uma generosidade e um alento enormes e constantes. A nossa amizade não foi estritamente literária, foi sobretudo vital, como me aconteceu com outros velhos escritores, grandes pela sua literatura mas sobretudo pela sua sabedoria, vitalidade e coerência. Porque há que ser muito grande para sê-lo e que não se note, não incomode e não esmague. No dia em que Juan morreu – 8 de Janeiro de 1986 –, eu encontrava-me no México e devia visitá-lo nessa tarde, como havíamos combinado dias antes. Nessa mesma semana eu tinha ido várias vezes a sua casa na Colónia Guadalupe Inn. Naquele terceiro piso que eu conhecia bem, onde se tinha instalado o seu leito de doente num pequeno quarto, creio que de um dos seus filhos, conversámos muito e eu falei-lhe da Argentina, país que ele adorava, e falámos de amigos comuns que ele sempre me mandava saudar. Falámos de política, como de costume, e depois mostrou-me umas notas que andava a escrever, a lápis, das quais desdenhou, como sempre fazia com o que escrevia.

Desde então, e depois de o ter acompanhado, em silêncio, de um recanto da Funerária Gayosso da Avenida Félix Cuevas, nunca mais consegui escrever sobre ele, salvo uma pequena nota necrológica que enviei do México para um diário portenho (o Clarín) nessa mesma noite. Nunca mais consegui falar de Juan em público, embora tenha sido solicitado por muitas revistas, diários e universidades para escrever sobre a sua intimidade, mas sempre me neguei. Porque ele não teria gostado. Juan impunha-nos um silêncio absoluto, e os seus amigos respeitávamos religiosamente a proibição implícita. Mas já passaram muitos anos e creio que talvez seja tempo de falar dele sob outro ângulo. Fi-lo com muitas destas palavras no meu livro Final de Novela en Patagonia e faço-o agora. Porque tive o privilégio de ser seu amigo e de o conhecer bem, e parece-me que o meu testemunho pode ter agora algum interesse. Diz-se que Juan, nos últimos anos, já não escrevia. Não é verdade. O que acontecia era que não se preocupava com a publicação e preferia manter-se afastado de qualquer veleidade. Não era tímido, como também se costuma pensar. Pelo contrário, era ousado, chalaceiro, brincalhão, divertido e dotado de uma mordacidade implacável. A sua ironia era capaz de desfazer até os seus amigos, com os quais era terrivelmente exigente. E era, além disso, um homem apaixonado, violento, arbitrário, inclusive néscio, desses que, se têm uma ideia na cabeça – e ele tinha muitas –, ou há que ser bastante brilhante para dar-lhe a volta ou não há maneira de os fazer mudar de opinião.


Juan Rulfo com Mempo Giardinelli, Arquivo pessoal de Mempo Giardinelli


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A Planície em Chamas, Pedro Páramo e El Gallo de Oro são, na minha opinião, uma chave para definir a continuidade da narrativa mexicana deste século

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Foi, possivelmente, o homem menos influenciável que conheci na minha vida, e, realmente, a química dos seus afectos e desafectos era totalmente improvável, arbitrária como ele próprio. Mas houve um aspecto na sua vida que me impressionou ainda mais, nos anos em que o conheci e me dei com ele, sozinho ou com amigos comuns que ele estimava profundamente (jovens escritores como o sonorense Federico Campbell, o brasileiro Eric Nepomuceno, ou os velhos camaradas Valadés e Augusto Monterroso), e esse aspecto foi a solidez da sua ética. Para Juan, ser escritor significava, antes de mais, ter um compromisso com a seriedade. Não era solene, nem a sua rudeza derivava de pose ou de snobismo, mas também não era frívolo. Desesperava com a superficialidade, detestava a ignorância, o falar sem saber, o escrever sem o suporte de uma biblioteca que escudasse cada página. Odiava muito e com infantil veemência vários colegas da sua geração, alguns grandes das letras mexicanas, e nas suas preferências literárias sempre elaborava um juízo que passava por uma exacta combinação de exigências: destreza formal, originalidade, substância, capacidade de transcendência e, especialmente, o suporte ético de cada texto. Para ele não havia escrita válida sem significado, ou se não conjugasse o significado com o brilhantismo da forma e se, ao mesmo tempo, não se inferisse uma moralidade textual interna capaz de se projectar no espaço e no tempo particular de cada leitor. Juan acreditava, como Ezra Pound, que, quando todas as indicações superficiais fazem pensar que se deve descrever um

apocalipse, é impossível – e vão – tentar fazer a descrição de um paraíso. Nesse sentido, foi sempre um transgressor. Todo o artista o é, sabemo-lo. Toda a obra artística que merece ser considerada como tal altera e subverte uma ordem estabelecida. Por isso não há literatura conservadora, embora existam inúmeros textos passadistas, insignificantes e olvidáveis. Aspiramos ao céu porque precisamos de transgredir. Desejamo-lo como evasão do que nos é mais provável: o inferno. A glória, então, não resulta de merecimento, mas de uma elusão que é, por sua vez, ilusão. A glória literária (por exemplo, a felicidade de um texto) depende da constante alusão e elusão, requisitos de toda a literatura significante. Consequentemente, o caminho para o céu (literário) não passa de uma transgressão para eludir o inferno e aludir ao que se passa criando essa ilusão que é cada conto e cada romance. Susana San Juan – é evidente – descrê do céu com a mesma exactidão com que crê no inferno. As buscas fantasmáticas, os rancores vivos, os ares dilaceradores e dilacerantes que percorrem Comala são transgressões que expressam uma mesma ética desesperada. Creio que essa era, aproximadamente, a filosofia de Juan Rulfo. Sabia que a transgressão é criativa. Transgredimos a linguagem, moldamo-la, reinventamo-la. A transgressão é condição inerente à arte. Maldizente e transgressor, ele próprio, nos seus contos e em Pedro Páramo notamos o combate silencioso, desesperado, que se expressa na estranha moralidade das suas personagens, sempre confrontadas com aqui-


lo a que, desde os gregos, em Ética, se chama «decisões trágicas», isto é, aquelas cuja resolução feliz é impossível e nas quais todos os resultados hão-de ser nefastos. Não há muitas esperanças na obra de Rulfo, porque ele próprio não era homem de ilusões. Nem sequer prático, mais parecia resignado, sempre angustiado. Tenho para mim que, se devesse ter parafraseado o seu admirado Pablo Neruda, Juan não teria dito «confesso que vivi», mas sim «lamento tê-lo feito; peço desculpa por ter vivido». A pena e a dor eram, para ele, uma constante. Ética e Dor, na minha opinião, são dois caminhos que inexoravelmente se cruzam quando se tem a devida sensibilidade. São como prisões perpétuas, não há escapatória nem sequer através da ironia ou do jogo de palavras, matérias que ele dominava na perfeição. Ou seja, essas artes da inteligência não são senão, ao fim e ao cabo, uma forma de transgredir o desespero que essa prisão produz. Juan nunca deixou de escrever. Eu tive acesso a vários contos que ele tinha na gaveta. E li também uma versão de «La Cordillera», o seu romance frustrado que não se refere a uma cadeia de montanhas, mas às récuas de gado unidas por uma corda, como ele mesmo se enfadava a explicar. Mas, se escrevia, não publicava. Por alguma estranha decisão que nunca me atrevi a questionar, há já muitos anos que havia decidido o seu silêncio. Não lhe agradava nem o fazia feliz. Havia, pois, que respeitá-lo. Para mim, conjecturalmente, durante muito tempo foi uma manifestação de protesto, de rebeldia. Outra

transgressão face ao esperado, ao previsível: que um escritor escreva e, por conseguinte, publique. Daí a sua aspereza, o seu enfado fácil, o seu pequeno refúgio nos livros e na música clássica, particularmente no canto gregoriano. Só agora, quando já passei dos cinquenta anos e sou, eu também, um escritor veterano, creio entender o seu obstinado silêncio: a auto-exigência de Juan era devastadora. Tinha absoluta consciência da qualidade dos seus primeiros textos. Conhecia o valor e o significado dos seus livros fundacionais: A Planície em Chamas e Pedro Páramo. E não se permitia publicar nada que pudesse ser inferior a esses textos; detestava as mediocridades, mas era implacável com a própria, ou com o que ele terá suposto que era a sua própria mediocridade. Descortês, às vezes, inclusive desagradável com as suas ironias, as manifestações da sua aspereza não eram, na minha opinião, derivações de um espírito grosseiro, mas de um rebelde, submetido ao contínuo conflito dos seus princípios morais em luta com as suas próprias contradições. É conhecida a história daquela senhora que se abeirou dele, durante um jantar, e lhe perguntou: – Senhor Rulfo, o que é que o senhor sente quando escreve? Juan, levantando os olhos do prato, respondeu: – Remorsos. Que remorsos eram esses que Juan sentia? Os mesmos que sentiam as suas personagens? Eram, creio eu, os remorsos que falavam por ele, pela sua incapacidade de modificar uma realidade que o atormentava. Sofria até ao desespero e ao desalento

Conhecia o valor e o significado dos seus livros fundacionais: A Planície em Chamas e Pedro Páramo. E não se permitia publicar nada que pudesse ser inferior a esses textos


CRUZEIRO DO SUL

A Juan havia que amá-lo com muita calma, serenamente, compreendendo a sua orfandade afectiva em vez de lhe exigir que cumprisse papéis sociais que ele jamais cumpriu

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mais absolutos pelas imperfeições do sistema político mexicano. Falava de sistema, não de democracia. E julgava-o não só sob o ponto de vista literário, mas também sob o ponto de vista político-social. Censurava a sensualidade do poder com espírito acrata, libertário, porque o poder – sabe-se – nem sempre compreende a cultura; antes a oprime, ou a teme, ou a combate. Ofendia-se com os subsídios que compram consciências, criticava os escritores que eram, além disso, amigos do governante de turno em prossecução de apoios pecuniários. Mas, apesar desses desprezos, também se deixava mimar, desfrutava secretamente do reconhecimento público, dos prémios, das honrarias: o seu comportamento era pontualmente o de um fóbico. Contraditório e temperamental, numa ocasião viu-me a folhear a revista Vuelta, que nesses dias causava furor nos meios literários latino--americanos, dirigida por Octavio Paz, então um escritor reconhecido e ensaísta candidato ao Prémio Nobel, e tirou-ma das mãos com violência, atirou-a para o chão e gritoume, furibundo: «Não leias essa porcaria!» Arbitrariedade que eu não partilhava, mas que me serviu para compreender, mais tarde, a dimensão do interminável combate das suas paixões, da sua submissão ao inferno interior que o acossava, da sua infinita honestidade, da sua interminável qualidade de homem puro e, portanto, solitário. Em 1980 ou 1981, não me lembro bem, organizou-se uma homenagem nacional ao serviço da qual se pôs toda a estrutura do sistema cultural do Estado mexicano, dirigida pelo próprio Presidente José López Portillo.

Na primeira ocasião, Juan, acaloradamente, proferiu um suave, delicado, mas implacável discurso contra a corrupção no seu país. Acusou, sem concessões, militares e políticos. No dia seguinte, suspenderam-se todos os festejos rulfianos e ele voltou a encerrar-se no seu mutismo, ignorando críticas, defesas e interpretações. Ele pensava que tinha razão; não devia, então, retroceder nem um milímetro. Não havia sensualidade que o dobrasse nestes assuntos. E, muito orgulhoso e ao mesmo tempo irónico (porque a ironia é consentimento do orgulho), alguns anos depois ainda nos perguntava: «E o que é que eu ia dizer, senão aquilo? Ou não era verdade o que eu disse?» Mesmo após a sua morte, continua a ser destinatário de críticas e rancores, ou mesmo de um reconhecimento algo cínico por parte de muitos dos seus compatriotas. Essas lições são as que sempre prefiro evocar. Tudo o mais é literatura, e sobre ela utilizaramse adjectivos e qualificações precisas e suficientemente justiceiras. Prefiro sabê-lo pai de uma das narrativas mais vigorosas do nosso castelhano: A Planície em Chamas, Pedro Páramo e El Gallo de Oro (ainda que a ele já não lhe agradasse, para mim continua a ser uma obra deliciosa) são, na minha opinião, uma chave para definir a continuidade da narrativa mexicana deste século. Equidistam perfeitamente dos melhores, mais revolucionários e mais modernos romances do México: La Sombra del Caudillo, de Martín Luis Guzmán, de 1928, e Noticias del Imperio, de Fernando del Paso, de 1987. Da última vez que fui visitá-lo na sua casa da Colónia de


Guadalupe Inn, ele estava ansioso pela minha visita porque eu vinha de Buenos Aires, e estivemos a conversar um bom bocado. Como sempre, perguntou-me como estava a Argentina e disse-me que tínhamos de voltar a ver-nos. Encontrei-o muito animado, embora fraco e consumido na cama de um só lugar, estreita e de madeira escura. Impressionou-me muito vê-lo assim: era um quarto despojado, e essa cama tinha uma cabeceira arqueada, alta e escura onde só pareciam brilhar os lençóis brancos. Havia uma luz à direita de Juan e creio que nada mais. O quarto estava mergulhado na penumbra e dei-me conta de que ele tinha estado a escrever porque sobre a mesinha havia alguns papéis com a sua letra e, ao lado, um infalível lápis amarelo, de mina HB ou 2B, que era os que ele preferia. Escrevia quase sempre com lápis, embora tivesse várias lapiseiras. Encantavam-no as canetas de tinta permanente e, especialmente, uma Pelikan de tampa prateada que costumava usar para autografar os seus livros, mas preferia escrever com esses lápis amarelos que têm uma borrachinha a modo de coroa. Quando chegou a hora de me retirar, porque ele estava muito fatigado e tinham de lhe dar não sei que medicamentos, ofereceu-me essa Pelikan com um gesto cúmplice e um sorriso forçado. Eu saí daquela casa sabendo que, assim, nos tínhamos despedido. O que aqui tentei traçar foi o retrato do Juan Rulfo que eu conheci: um homem no ocaso da sua vida, cansado mas não vencido, tremendamente carente de afectos, mas absolutamente

incapaz de os pedir. A Juan havia que amá-lo com muita calma, serenamente, compreendendo a sua orfandade afectiva em vez de lhe exigir que cumprisse papéis sociais que ele jamais cumpriu. Havia que amá-lo sem pedir nada em troca, sem esperar nem exigir nada dele. Na noite do dia em que morreu, estive na Funerária Gayosso, da Avenida Félix Cuevas, que fica perto da Guadalupe Inn. É uma casa muito grande, com sucursais em quase todos os bairros da Cidade do México. Era uma noite muito fresca e o local estava cheio de gente. Montes de escritores e amigos, e gente do povo, desfilavam diante do caixão. Eu não os vi todos, mas lembro-me de Arreola, com a sua grande capa negra, a dar uma entrevista para a televisão, e recordo Tito Monterroso com a sua esposa, a narradora Barbara Jacobs, e Edmundo Valadés com a sua esposa Adriana, e Elenita Poniatowska, e Juan Antonio Asencio, e Monsreal, havia ali um montão de gente. Era um desfile incessante de pessoas que choravam para dentro, com profundo desgosto, com esse respeito reverencial que os mexicanos têm pela morte. Quando saí fazia frio, e talvez chovesse, ou, agora que escrevo isto, parece-me que devia ter chovido. O que é certo é que soprava um vento que me pareceu falador e que eu imaginei que vinha dos Altos de Jalisco. Afastei-me pensando que todos os que ali estávamos éramos – e talvez continuemos a ser para sempre – irremediável e completamente rulfianos. Tradução de MGMV

Afastei-me pensando que todos os que estávamos ali éramos – e talvez continuemos a ser para sempre – irremediável e completamente rulfianos


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Luvina Juan Rulfo

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Fotografia de Juan Rulfo, publicada com a autorização da senhora Clara Aparicio de Rulfo


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Dos cerros altos do sul, o de Luvina é o mais alto e o mais pedregoso. Está amaldiçoado por essa pedra cinzenta com a qual fazem a cal, mas em Luvina não fazem cal com ela nem dela tiram nenhum proveito. Ali chamam-lhe pedra crua, e à lomba que sobe para Luvina chamam-lhe Cuesta de la Piedra Cruda. O ar e o sol encarregaram-se de esmiuçá-la, de tal maneira que a terra por ali é branca e brilhante como se estivesse sempre molhada pelo orvalho do amanhecer; embora isto seja falar por falar, porque em Luvina os dias são tão frios como as noites e o orvalho coalha no céu antes de cair sobre a terra. ... E a terra é empinada. Desgarra-se para todos os lados em barrancos fundos, de uma profundidade que se perde de tão distante. Dizem os de Luvina que daqueles barrancos sobem os sonhos; mas eu, a única coisa que vi subir foi o vento, em tremolina, como se lá em baixo o tivessem encanado em tubos de caniço. Um vento que não deixa crescer nem as dulcamaras: essas plantinhas tristes que só podem viver um bocadinho untadas à terra, agarradas com todas as suas mãos ao despenhadeiro dos montes. Só às vezes, onde houver um pouco de sombra, escondida entre as pedras, floresce a argemona com as suas papoilas brancas. Mas a argemona depressa murcha. Então, uma pessoa ouve-a arranhando o ar com os seus ramos espinhosos, fazendo um barulho parecido com o de uma navalha sobre uma pedra de afiar. – Logo verá esse vento que sopra sobre Luvina. É pardo. Dizem que é porque arrasta areia de vulcão; mas a verdade é que é um ar negro. Você logo verá. Fixa-se em Luvina agarrando-se às coisas como se as estivesse a morder. E são demasiados os dias em que leva consigo os tectos das casas como se levasse um chapéu de palha, deixando as paredes lisas, desabrigadas. Depois arranha como se tivesse unhas: ouvimo-lo de manhã à tarde, hora após hora, sem descanso, raspando as paredes, arrancando coalhos de terra, cavando com a sua pá bicuda por baixo das portas, até o sentirmos ferver dentro de nós como se se pusesse a remover as dobradiças dos nossos próprios ossos. Vai ver. Aquele homem que falava calou-se por um momento, olhando lá para fora. Até eles chegava o barulho do rio passando as suas águas da cheia pelos ramos das figueiras; o rumor do ar abanando suavemente as folhas das amendoeiras, e os gritos das crianças brincando

no pequeno espaço iluminado pela luz que saía da taberna. Os carunchos entravam e ressaltavam contra o candeeiro de petróleo, caindo no chão com as asas chamuscadas. E lá fora a noite avançava. – Ouve, Camilo, manda-nos mais duas cervejas! – voltou a dizer o homem. Depois acrescentou: – Outra coisa, senhor. Nunca verá um céu azul em Luvina. Lá, todo o horizonte está desbotado; nublado sempre por uma nódoa caliginosa que não se apaga nunca. Toda a cumeada careca, sem uma árvore, sem qualquer coisa verde para descansar os olhos; tudo envolto na caligem cinzenta. Verá isso: aqueles cerros apagados como se estivessem mortos, e Luvina no mais alto, coroando-o com o seu branco casario, como se fosse uma coroa dos mortos... Os gritos das crianças aproximaram-se até se meterem dentro da taberna. Isso fez com que o homem se levantasse, fosse até à porta e lhes dissesse: «Vão para mais longe! Não interrompam! Continuem a brincar, mas sem fazerem alvoroço.» Depois, dirigindo-se outra vez para a mesa, sentou-se e disse: – Pois sim, como lhe dizia. Lá chove pouco. Em meados do ano chegam umas quantas tempestades que açoitam a terra e a arranham, deixando somente o pedregal a flutuar em cima do calcário. É bom ver então como as nuvens se arrastam, como andam de um cerro para o outro dando tombos como se fossem bexigas assopradas; ressaltando e estoirando em trovões como se se quebrassem por cima dos barrancos. Mas, após dez ou doze dias, vão-se embora e não regressam senão no ano seguinte, e às vezes dá-se o caso de não regressarem em vários anos. «... Sim, chove pouco. Pouco ou quase nada, tanto que a terra, para além de estar ressequida e mirrada como couro velho, encheu-se de rachadelas e dessas coisas que ali chamam passagens de água, que não são mais do que torrões endurecidos como pedras afiadas, que se cravam nos pés de uma pessoa ao caminhar, como se ali até à terra tivessem nascido espinhos. Como se fosse assim.» Bebeu a cerveja até deixar só borbulhas de espuma na garrafa e continuou a dizer: – Por qualquer ângulo que se olhe, Luvina é um lugar muito triste. Você, que vai para lá, dar-se-á conta. Eu diria que é o lugar onde aninha a tristeza. Onde não se conhece o sorriso, como se tivessem entabuado a cara a toda a gente. E você, se quiser, pode ver essa tristeza à hora que quiser.


O ar que ali sopra remexe-a, mas nunca a leva. Está ali como se ali tivesse nascido. E até se pode provar e sentir, porque está sempre em cima da gente, apertada contra nós, e porque é oprimente como um grande cataplasma sobre a carne viva do coração. «... Dizem os de lá que, quando a lua se enche, vêem de raspão a figura do vento percorrendo as ruas de Luvina, levando de rastos uma manta negra; mas eu o que sempre cheguei a ver, quando havia lua em Luvina, foi a imagem do desconsolo... sempre. «Mas tome a sua cerveja. Vejo que nem sequer lhe deu um sorvinho. Beba-a. Ou talvez não goste dela assim morna como está. É que aqui não há outra. Eu sei que assim sabe mal; que agarra um sabor a mijo de burro. Aqui uma pessoa acostuma-se.Vai uma aposta como lá nem isto se arranja. Quando for a Luvina vai sentir a falta. Ali não poderá provar senão um mescal que eles fazem com uma erva chamada alcaçuz e que aos primeiros sorvos começa logo a dar cambalhotas como se estivesse bêbado. É melhor beber a sua cerveja. Eu sei o que lhe digo.» Lá fora continuava a ouvir-se o batalhar do rio. O rumor do ar. As crianças brincando. Parecia que ainda era cedo, na noite. O homem tinha assomado mais uma vez à porta e regressado. Agora vinha dizendo: – É fácil ver as coisas daqui, somente trazidas pela lembrança, onde não têm nenhuma semelhança. Mas a mim não me custa nada continuar a falar-lhe daquilo que sei, tratando-se de Luvina. Vivi lá. Lá deixei a vida... Fui a esse lugar com as minhas justas ilusões e voltei velho e acabado. E agora você vai para lá... Está bem. Penso que me lembro do princípio. Ponho-me no seu lugar e penso... Olhe, quando eu cheguei pela primeira vez a Luvina... Mas permite-me que antes beba a sua cerveja? Vejo que você não faz caso dela. E a mim serve-me de muito. Alivia-me. Sinto como se me enxaguassem a cabeça com óleo canforado... Bom, contava-lhe que, quando cheguei pela primeira vez a Luvina, o arrieiro que nos levou nem sequer quis deixar que as bestas descansassem. E, quando nos pôs no chão, deu meia volta: «Eu vou voltar», disse-nos. «Espera, não vais deixar os teus animais descansar? Estão muito estafados.» «Aqui estafavam-se mais», disse-nos. «É melhor regressar.»

«E abalou, deixando-se cair pela Cuesta de la Piedra Cruda, metendo esporas aos seus cavalos, como se se afastasse de algum lugar endemoninhado. «Nós, a minha mulher e os meus três filhos, ficámos ali, parados no meio da praça, com todo o nosso enxoval nos braços. No meio daquele lugar onde só se ouvia o vento... «Uma praça sozinha, sem uma só erva para deter o ar. Ali ficámos. «Então eu perguntei à minha mulher: «Em que país estamos, Agripina?» «E ela encolheu os ombros. «Bom, se não te importas, vai procurar onde poderemos comer e onde poderemos passar a noite. Esperamos-te aqui», disse-lhe. «Ela agarrou no mais pequeno dos seus filhos e foi. Mas não regressou. «Ao entardecer, quando o sol alumiava somente as pontas dos cerros, fomos procurá-la. Andámos pelos boqueirões de Luvina, até que a encontrámos metida na igreja: sentada mesmo no meio daquela igreja solitária, com a criança adormecida entre as suas pernas. «Que fazes aqui, Agripina?» «Entrei para rezar», disse-nos. «Para quê?», perguntei-lhe eu. «E ela encolheu os ombros. «Ali não havia a quem rezar. Era um telheiro vazio, sem portas, só com umas socavas abertas e um tecto rachado, por onde passava o ar como por uma peneira. «Onde está a taberna?» «Não há nenhuma taberna.» «E a estalagem?» «Não há nenhuma estalagem.» «Viste alguém? Alguém vive aqui?», perguntei-lhe. «Sim, ali à frente... Umas mulheres... Continuo a vê-las. Olha, ali atrás das frinchas dessa porta vejo brilhar os olhos que nos olham... Têm estado a espreitar para cá... Olha-as. Vejo as bolas brilhantes dos seus olhos... Mas não têm nada para nos dar de comer. Disseram-me, sem mostrar a cabeça que nesta aldeia não havia de comer... Então entrei aqui a rezar, a pedir a Deus por nós.» «Porque não regressaste ali? Estivemos à tua espera.» «Entrei aqui para rezar. Ainda não acabei.» «Que país é este, Agripina?» «E ela voltou a encolher os ombros. «Naquela noite acomodámo-nos para dormir num canto da igreja, atrás do altar desmantelado.


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O vento chegava até lá, embora menos forte. Estivemos a ouvi-lo passar por cima de nós, com os seus longos uivos; estivemos a ouvi-lo entrar e sair pelos buracos socavões das portas; batendo com as suas mãos de ar nas cruzes da via sacra: umas cruzes grandes e duras, feitas com pau de acácia, despenduradas das paredes a todo o comprimento da igreja, amarradas com arames que rechinavam a cada sacudidela do vento como se fosse um ranger de dentes. «As crianças choravam porque o medo não as deixava dormir. E a minha mulher, a tentar retê-los a todos nos seus braços. Abraçando o seu molho de filhos. E eu ali sem saber o que fazer. «Pouco antes do amanhecer o vento acalmou. Depois voltou. Mas houve um momento nessa madrugada em que tudo ficou tranquilo, como se o céu se tivesse juntado com a terra, esmagando os barulhos com o seu peso... Ouvia-se a respiração das crianças já descansada. Ouvia o ofegar da minha mulher ali ao meu lado: «O que é?», disse-me. «O que é o quê?», perguntei-lhe. «Isso, esse barulho.» «É o silêncio. Dorme. Descansa, mesmo que seja pouco, que está quase a amanhecer.» «Mas, passado pouco tempo, eu também ouvi. Era como um esvoaçar de morcegos na escuridão, muito perto de nós. De morcegos de grandes asas que roçavam o chão. Levantei-me e ouviu-se o esvoaçar ainda mais forte, como se o bando de morcegos se tivesse espantado e voasse para os buracos das portas. Então caminhei em bicos dos pés para lá, sentindo à minha frente aquele surdo sussurro. Detive-me na porta e vi-as. Vi todas as mulheres de Luvina com o seu cântaro ao ombro, com o rebuço pendurado da sua cabeça e as suas figuras negras sobre o fundo negro da noite. «Que querem?», perguntei-lhes. «Que procuram a estas horas?» «Uma delas respondeu: «Vamos buscar água.» «Vi-as paradas à minha frente, olhando-me. Depois, como se fossem sombras, começaram a caminhar rua abaixo com os seus cântaros negros. «Não, nunca me esquecerei dessa primeira noite que passei em Luvina. «... Não acha que isto merece outro copo? Mesmo que seja só para tirar o mau sabor da lembrança.» – Parece-me que você me perguntou quantos anos estive em Luvina, não é verdade...? A verda-

de é que não sei. Perdi a noção do tempo desde que as febres me baralharam; mas deve ter sido uma eternidade... É que lá o tempo é muito longo. Ninguém leva a conta das horas, ninguém tão pouco se preocupa como se vão amontoando os anos. Os dias começam e acabam. Depois vem a noite. Só o dia e a noite, até ao dia da morte que, para eles, é uma esperança. «Você deve pensar que estou a dar voltas e mais voltas à mesma ideia. E assim é, sim senhor... Estar sentado na ombreira da porta, olhando o nascer e o pôr do sol, levantando e baixando a cabeça, até que acabam por afrouxar as molas e então tudo fica quieto, sem tempo, como se se vivesse sempre na eternidade. É o que os velhos fazem ali. «Porque em Luvina só vivem os que são mesmo velhos e os que ainda não nasceram, como quem diz... E mulheres sem forças, quase entrevadas de tão magras. As crianças que nasceram ali abalaram... Apenas os aclara a alva e já são homens. Como quem diz, dão um salto do peito da mãe para o enxadão e desaparecem de Luvina. Assim são ali as coisas. «Só restam os mesmos velhos e as mulheres sozinhas, ou com um marido que anda onde só Deus sabe... Vêm de vez em quando como as trovoadas de que lhe falava; ouve-se um sussurro em toda a aldeia quando eles regressam e uma coisa parecida com um grunhido quando abalam... Deixam o saco do abastecimento para os velhos e plantam outro filho no ventre das suas mulheres, e já ninguém volta a saber deles a não ser no próximo ano e, às vezes, nunca mais... É o costume. Ali chamam-lhe a lei, mas é a mesma coisa. Os filhos passam a vida trabalhando para os pais como eles trabalharam para os seus e como, sabe-se lá, quantos atrás deles cumpriram a sua lei... «Entretanto os velhos esperam por eles e pelo dia da morte, sentados às suas portas, de braços caídos, movidos só por essa graça que é a gratidão do filho... Sós, naquela solidão de Luvina. «Um dia tentei convencê-los a que fossem para outro lugar, onde a terra fosse boa. «Vamonos embora daqui!», disse-lhes. «Não faltará maneira de nos acomodarmos em qualquer parte. O governo ajudar-nos-á.» «Eles ouviram-me sem pestanejar, olhando-me do fundo dos olhos, dos quais só espreitava uma luzinha lá muito para dentro. «Dizes que o governo nos ajudará, professor? Tu não conheces o governo?»


«Disse-lhes que sim. «Também nós o conhecemos. É essa a coincidência. De quem não sabemos nada é da mãe do governo.» «Eu disse-lhes que era a pátria. Eles abanaram a cabeça dizendo que não. E riram-se. Foi a única vez que vi rir as pessoas de Luvina. Mostraram os dentes tortos e disseram-me que não, que o governo não tinha mãe. «E têm razão, sabe? Esse senhor só se lembra deles quando algum dos seus rapazes fez alguma malfeitoria cá em baixo. Então manda-o procurar em Luvina e matam-no. Para mais do que isso não sabem se existe. «O que tu nos queres dizer é que deixemos Luvina porque, segundo tu, já chega de aguentar fomes sem necessidade – disseram-me. «Mas, se nós abalarmos, quem levará os nossos mortos? Eles vivem aqui e não os podemos deixar sozinhos.» «E lá continuam. Como você vai para lá, vai vê-los. Mastigando bagaços de acácia seca e engolindo a sua própria saliva para enganarem a fome. Vê-los-á passar como sombras, colados às paredes das casas, quase arrastados pelo vento. «Não ouvem esse vento?», acabei por lhes dizer. «Ele acabará convosco.» «Dura o que tiver que durar. É o mandamento de Deus», responderam-me. «Mau é quando deixa de fazer ar. Quando isso acontece, o sol arrima-se muito a Luvina e chupa-nos o sangue e a pouca água que temos no couro. O ar faz com que o sol esteja lá em cima. É melhor assim. «Não voltei a dizer-lhes nada. Saí de Luvina e nunca mais voltei nem penso regressar. «... Mas olhe as voltas que o mundo dá. Você vai para lá agora, dentro de poucas horas. Talvez já tenham passado quinze anos desde que a mim me disseram a mesma coisa: «Você vai para San Juan Luvina.» «Nessa época eu ainda tinha as minhas forças. Estava carregado de ideias... Você sabem que a todos nós nos impingem ideias. E uma pessoa vai com essa praga em cima para a plasmar em todo o lado. Mas em Luvina isso não coalhou. Fiz a experiência e desfez-se... «San Juan Luvina. Aquele nome soava-me a nome de céu. Mas aquilo é o purgatório. Um lugar moribundo onde até os cães morreram e já não há nem quem ladre ao silêncio; pois assim que uma pessoa se acostuma ao vendaval que ali sopra, não se ouve senão o silêncio que há em todas as solidões. E isso acaba com uma pessoa.

Olhe para mim. Acabou comigo. Você que vai para lá depressa compreenderá o que lhe digo... «Qual é a sua opinião de pedirmos a este senhor que nos matize uns mescalinhos? Com a cerveja uma pessoa levanta-se a todo o momento e isso interrompe muito a conversa. Ouve, Camilo, manda-nos agora uns mescais! «Pois sim, como eu lhe estava dizendo». Mas não disse nada. Ficou a olhar um ponto fixo sobre a mesa onde os carunchos já sem as suas asas rondavam como vermes nus. Lá fora continuava a ouvir-se como avançava a noite. O chapisco do rio contra os troncos das figueiras. A gritaria já longínqua das crianças. Pelo pequeno céu da porta assomavam as estrelas. O homem que olhava os carunchos recostou-se sobre a mesa e adormeceu. A Planície em Chamas Tradução de Ana Santos Todos os direitos reservados © Heirs of Juan Rulfo, 1953 © 2004, Cavalo de Ferro Editores


CORRENTES ATLÂNTICAS

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Um investigador português atravessa o Atlântico em busca de Rivera, Siqueiros e Orozco. E nos labirintos do muralismo mexicano é todo o México que se reflecte. Às vezes, também, a evocação de Camões. Ou como, num ecrã adiado, encontramos de novo o México e Portugal


Como se Rulfo e Páramo, os eternos desejados do cinema português, atravessassem o mar, de lá para cá, e numa manhã de nevoeiro irrompessem num ecrã iluminado. E da outra América, a do Norte, um manuscrito em rolo, que percorremos como uma estrada.


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Nas palavras de Octavio Paz, «El movimiento muralista fue ante todo un descubrimiento del presente y del pasado de México». Segundo o autor de El laberinto de la soledad, «Todos tenemos nostalgia y envidia de un momento maravilloso que no hemos podido vivir. Uno de ellos es el momento en el que, recién llegado de Europa, Diego Rivera vuelve a ver, como si nunca la hubiese visto antes, la realidad Mexicana».

Muralismo Mexicano – labirinto da universalidade e espelho de utopias Fernando Amaro


Diego Rivera: El Arsenal (detalhe). Patio de las Fiestas, Secretaría de Educación Pública, Cidade do México, 1928.


CORRENTES ATLÂNTICAS

Nas palavras de Octavio Paz, «El movimiento muralista fue ante todo un descubrimiento del presente y del pasado de México». Segundo o autor de El laberinto de la soledad, «Todos tenemos nostalgia y envidia de un momento maravilloso que no hemos podido vivir. Uno de ellos es el momento en el que, recién llegado de Europa, Diego Rivera vuelve a ver, como si nunca la hubiese visto antes, la realidad Mexicana». Quando eu desembarquei, no início do ano de 1991, no aeroporto da Cidade do México, haviam passado exactamente 70 anos desde que Diego Rivera regressara ao México, após uma ausência de 14 anos na Europa. A «Realidade Mexicana» era, no essencial, desconhecida para mim. Nessa ocasião, as televisões fustigavam os espectadores com as imagens da Guerra do Golfo, estabelecendo um estranho pano de fundo para o trabalho de investigação que me propusera realizar na área do Muralismo Mexicano e das suas mitologias. Na bagagem levava comigo algumas dúvidas, para as quais procurava respostas, e umas quantas certezas a verificar no âmbito do meu ambicioso projecto mitográfico: identificar uma possível matriz e a autoria do programa mitológico do Muralismo Mexicano. Já no México, bem me avisaram que o tema era «una trampa», um labirinto. Hoje, muitos anos passados e concluída uma tese de doutoramento em História da Arte, Mexican Mural Movement: Myths and Mythmakers, as minhas dúvidas e certezas foram relativizadas. Nesse longínquo ano de 1991, eu estava longe de imaginar as surpresas e as experiências que esse labirinto me viria a propor-

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cionar durante essa minha primeira estada no México. É dessa universalidade labiríntica que me proponho agora falar. O Muralismo Mexicano, iniciado em 1921, é normalmente descrito pela historiografia convencional, norte-americana e europeia, como um resultado e ao mesmo tempo uma espécie de espelho da Revolução Mexicana de 1910. Nesta fórmula redutora a

Nesse longínquo ano de 1991 eu estava longe de imaginar as surpresas e as experiências que esse labirinto me viria a proporcionar durante essa minha primeira estada no México

arte dos muralistas, nomeadamente a dos chamados «Três Grandes» – Diego Rivera, David Alfaro Siqueiros e José Clemente Orozco –, é explicada como sendo uma arte próxima do Realismo Social, cujo programa recupera o passado histórico e mitológico do México, conferindo-lhe

simultaneamente uma actualidade revolucionária, emanada da própria Revolução. Não raramente encontramos, às vezes num mesmo mural, representações de pessoas, lendas e mitos associados à história e à mitologia do México, como a fundação de Tenochtitlán, o mito de Quetzalcóatl, a Conquista e a Revolução, convivendo no mesmo espaço personagens tão distintas como Cortés, Montezuma, Cuauhtémoc, Hidalgo, Zapata, etc. Diego Rivera é, nesta visão maniqueísta, um comunista assumido, frequentemente associado a escândalos e a provocações, como a inclusão do retrato de Lenine no mural do Rockefeller Center em Nova Iorque, a representação de Karl Marx no Palácio Nacional na Cidade do México, às palavras «Deus não existe» no mural do Hotel Prado, etc. Sobre os outros, são referidos igualmente escândalos e um ou outro episódio mais ou menos anedótico, como a participação de Siqueiros, El Coronelazo da Guerra Civil Espanhola, na tentativa de assassinato de Trotsky. Nas últimas décadas a pintora Frida Kahlo é regularmente associada ao Movimento Muralista, assumindo uma espécie de estatuto de «Quarto Grande», apesar de não ter produção mural própria, sendo a sua vida objecto de inúmeras publicações e filmes, onde a sua biografia é frequentemente mistificada, qual figura de culto para o movimento feminista. Para Paz, há uma imerecida tentativa de beatificação de Rivera e Frida: «La tentativa de beatificación de estos dos artistas, que no tuvieron escrúpulos en traicionar y difamar bajamente a su antiguo amigo y guía, León


Trotsky, me parece un síntoma más de una infección moral muy grave.» Na minha opinião, para se entender o Muralismo Mexicano e a sua mitologia deve-se analisar o percurso e a obra dos dois actores principais do Movimento, o ministro José Vasconcelos e o pintor Diego Rivera. O nome e a obra de Rivera são por demais conhecidos e estão omnipresentes quando se aborda a ideia mesma de México. Já o nome do secretário da Educação Pública de Álvaro Obregón, José Vasconcelos, o mecenas inicial do Movimento Mural Mexicano, é normalmente mencionado num pequeno parêntese, sem significação especial. O historiador e crítico Antonio Rodríguez, que escreveu em 1969 um trabalho com o título Mexican Mural Movement, A History of Mexican Mural Painting, acredita que não se sabe ao certo quem foi o responsável pelo programa e quem o iniciou, afirmando: «Someone must have started it, but who he was led to much controversy later on.» Quando em 1991 eu entrevistei Antonio Rodríguez na sua casa na Colónia de los periodistas da Cidade do México, Rodríguez estranhou o meu interesse por Vasconcelos, minimizando a sua importância no contexto do Muralismo Mexicano. Nessa tarde do dia 14 de Março, eu estava longe de perceber quem era aquela pessoa sábia e afável que tinha diante de mim, que citara Os Lusíadas na análise do mural de Rivera no Palácio Nacional: «Um Pacheco fortíssimo, e os temidos Almeidas, por quem sempre o Tejo chora; Albuquerque terríbil, Castro forte, E outros em quem poder não teve a

morte.» Nesse livro, Rodríguez descreve Rivera como um «poeta, que usa as cores para cantar as glórias do seu povo. Ele é consanguíneo de Camões, autor da epopeia nacional portuguesa». Para Rodríguez, «Com a ‘’fúria grande e sonorosa’’ com que Camões implorou lhe fosse concedida para cantar a epopeia do seu povo», Diego Rivera «retrata a batalha que pelo seu

Eu estava longe de perceber quem era aquela pessoa sábia e afável que tinha diante de mim, que citara Os Lusíadas na análise do mural de Rivera no Palácio Nacional

movimento pode ser comparada à batalha de Bonampak». O autor destas palavras, que me acolhera em sua casa, era nem mais nem menos que Francisco de Paula Oliveira Júnior, célebre militante do Partido Comunista Português, o mítico Pavel dos tempos do Arsenal

da Marinha e secretário da Federação da Juventude Comunista Portuguesa em 1932, que se tinha instalado no México em 1939, adoptando então o nome de Antonio Rodríguez. As reticências de Rodríguez visavam Vasconcelos, eu só as perceberia bastante mais tarde. Nessa altura, Rodríguez falar-me-ia de Gerardo Murillo, mais conhecido por El Dr. Atl, dos muralistas em geral e, em especial, de Diego Rivera, que nunca lhe perdoara o facto de o crítico de origem portuguesa ter, muito legitimamente, questionado a veracidade da afirmação de Rivera, referindo-se ao programa do seu primeiro mural, La Creación, pretensamente estabelecido já em 1910, com o intuito de legitimar a coerência do seu percurso revolucionário: «Desde ese momento escogí la Historia de la Filosofía empezando por el Pitagorismo y terminando con el materialismo dialéctico.» Para Rivera, é imperdoável que «hombres venidos a las letras y a la crítica de arte después de una vida de acción revolucionaria llena de sacrifícios», referindo-se a Antonio Rodríguez, ponham em causa a exactidão das suas afirmações. Como represália, Rivera não falaria com Rodríguez durante um largo período de tempo. Perante a minha admiração, Rodríguez justificou essa atitude com o estatuto e o enorme peso da autoridade que Rivera tinha no México. Defensor incondicional da obra de Diego Rivera, de quem me mostrou a máscara funerária na altura da minha visita, Antonio Rodríguez descreve no entanto Rivera, num artigo publicado no jornal El Universal de 31 de Janeiro de 1978, como o


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pintor da «Revolução que não se fez». Efectivamente, a Revolução de Rivera nunca teve lugar senão nos seus murais. Segundo Paz, «Este es el rasgo más extraño y turbador del muralismo como fenómeno histórico, político y moral. Ni la nación era comunista ni el Estado Mexicano lo era; sin embargo, el Estado adoptó como suyo un arte que expresaba ideas distintas y aun contrarias a las suyas». No mural O Arsenal, de 1928, encontramos Frida Kahlo, representada com uma estrela vermelha ao peito, distribuindo espingardas e baionetas aos trabalhadores, o que nunca aconteceu. No canto esquerdo da imagem espreita David Alfaro Siqueiros, o qual viria posteriormente a acusar Rivera de ser «valiente con los muertos y cobarde con los vivos». Antonio Rodríguez viria a morrer em 1993 e, numa recepção oferecida à comunidade portuguesa no México em 12 de Novembro de 1999, o Presidente da República Portuguesa homenageou Rodríguez a título póstumo caracterizando-o como «seguramente uma das figuras mais notáveis da diáspora de portugueses que, neste século, tiveram de buscar noutros países a liberdade que lhes era negada na sua própria terra». A «pista» portuguesa do Muralismo passa igualmente por Diego Rivera. De seu nome completo (segundo o próprio), Diego María de la Concepción Juan Nepomuceno Estanislao de la Rivera Barrientos de Acosta Sforza y Rodríguez de Valpuesta, Rivera reivindica uma genealogia quase universal, onde não falta a ascendência portuguesa: «La madre de mi padre, mi abuela Inés Acosta, provenía de una familia de judíos portugue-

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ses que descendía del filósofo racionalista Uriel Acosta.» José Vasconcelos, cuja ascendência portuguesa, através dos Vasconcelos da Índia, nos aparece como uma possibilidade, apesar de o próprio não a assumir, é a personagem principal do Movimento Muralista Mexicano, a par de Rivera. A sua importância é capital para a evolução sociocultural moderna do

No mural O Arsenal, de 1928, encontramos Frida Kahlo, representada com uma estrela vermelha ao peito, distribuindo espingardas e baionetas aos trabalhadores, o que nunca aconteceu México, mas não está suficientemente reconhecida. Em 1921, Vasconcelos deu aos pintores mexicanos mais conhecidos de então o encargo da decoração de vários edifícios públicos. Rivera ainda se encontrava na Europa, mas viria a juntar-se aos demais companheiros a pedido de Vasconcelos.

Durante quatro anos, entre Junho de 1920 e Julho de 1924, José Vasconcelos, primeiro como reitor da Universidade do México e depois como ministro da Educação Pública, durante o regime de Álvaro Obregón, determinou o rumo da Educação e da Arte pós-revolucionárias no México. Para ele, a Cultura e a Arte eram assuntos de Estado, baseadas na ideia mesma de Mexicanidad e na unificação das raças. Já no discurso da tomada de posse do cargo de reitor da Universidad Nacional de México em 1920, Vasconcelos dirá: «En estos momentos yo no vengo a trabajar por la Universidad sino a pedir a la Universidad que trabaje por el pueblo.» Também é ele quem imagina o ainda actual símbolo da Universidade: «Imaginé así el escudo universitario que presenté al consejo, dibujado toscamente y con su leyenda ‘’Por mi raza hablará el Espíritu’’, pretendiendo significar que despertaba nuestra raza después de la larga noche de su opresión. Éramos, como el judío, un pueblo que de su dolor secular debía extraer fuerza para las creaciones poderosas.» Vasconcelos elabora uma «filosofia da raça ibero-americana», que constituiu a primeira tentativa para resolver um conflito latente, que a revolução de 1910 não resolvera. Para Octavio Paz, «ni la Revolución ha sido capaz de articular toda su salvadora explosión en una visión del mundo, ni la ‘’inteligencia’’ mexicana ha resuelto ese conflicto entre la insuficiencia de nuestra tradición y nuestra exigencia de universalidad». O projecto de Vasconcelos procura fundir numa experiência universal tanto a política, como os assuntos sociais e as artes,


considerando o catolicismo como uma componente fundamental de coesão latino-americana, para alcançar uma síntese racial através da miscigenação. Vasconcelos, na sua obra Estudios indostánicos, afirma que «sólo las razas mestizas son capaces de las grandes creaciones». A mestiçagem racial e cultural, A Raça Cósmica, tem por alavanca a leitura das obras clássicas que vão de Ésquilo, Eurípides, Homero, Platão e Virgílio, a Dante, Shakespeare, Goethe e Tolstoi, obras que Vasconcelos faz publicar em edições populares de dezenas de milhar. A revista El Maestro, publicada entre 1921 e 1923, contém um pequeno manual de cultura geral, secções sobre assuntos nacionais e internacionais, história universal, literatura, uma secção infantil, uma secção sobre conhecimentos práticos, poesia e assuntos de natureza geral. No âmbito do seu programa de messianismo cultural, que procura abranger toda a cultura latino-americana e ibérica,Vasconcelos viaja até à América do Sul e convida personalidades como Gabriela Mistral a visitar e trabalhar no México. A aspiração de Vasconcelos era «hacer de México una Metrópoli del Continente latino; una Atenas, no por la ridícula pretensión de emular a la antigua, sino por el amor a la cultura y por la liberalidad, la hospitalidad para el talento extranjero. A cada uno de nuestros visitantes sudamericanos o españoles, procurábamos informarlos detalladamente y los hacíamos viajar por el interior del país». Em 1924 foi publicado o livro preparado por Gabriela Mistral, Lecturas Clásicas para Mujeres, que serviria ao mesmo tempo de texto escolar e

guia do professor. Em 1922, alguns meses depois de chegar ao México, a escritora diria: «Aquela era a raça com que ela tinha sonhado, as pessoas que cantam.» Em 1925 ela lamentará o exílio do Mestre, a quem descreveu como «el hombre más constructor que la raza de Adán ha hec ho sobre esta pobre América».

Bosques, além da sua vivência com Siqueiros e Rivera, contou-me na altura, na primeira pessoa, as coisas mais extraordinárias como, em Cuba, as suas tertúlias com Che Guevara fumando puros em pleno Banco Nacional de Havana

Quando Vasconcelos participou, no Rio de Janeiro, na comemoração do Centenário de Independência do Brasil em 1922, levava consigo uma réplica do monumento de Cuauhtémoc do Paseo de la Reforma, feita na Tiffany de Nova Iorque. Na cerimónia de apresentação

da escultura, Vasconcelos apelaria à união dos países latinoamericanos: «Y ahora Cuauhtémoc renace porque ha llegado, para nuestros pueblos, la hora de la segunda Independencia, la Independencia de la civilización, la emancipación del Espíritu.» Em 1924, Vasconcelos deixaria a Secretaría de Educación Pública, desgostado com o rumo dos acontecimentos. Em 1925, publicou em Barcelona La Raza Cósmica: Misión de la Raza Iberoamericana, uma reflexão utópica ibero-americanista. Nesse livro, Vasconcelos faz uma descrição idílica do Brasil: «El Brasil es un país en el que todo el mundo es instr uído», deixando igualmente algumas referências gastronómicas e literárias a Portugal: «En todas las fonduchas baratas del barrio antiguo se come bien al rico estilo português: canja y peces y aquel vinito ligero que llega al alma’’, que pedimos recordando a Eça de Queiroz.» Dado a especulações, Vasconcelos dirá na Raza Cósmica que «a medida que las investigaciones progresan, se afirma la hipótesis de la Atlántida, como cuna de una civilización que hace millares de años floreció en el continente desaparecido y en parte de lo que es hoy América», retomando uma velha questão sobre a origem dos povos da América Central. Em 1947, Gerardo Murillo, El Dr. Atl, utilizaria no seu livro Un Grito en la Atlántida argumentos antropológicos e etimológicos para tentar provar que o povo náhuatl teve origem na Atlântida: «Atl significa agua (la estructura de la palabra y las reglas gramaticales de la lengua exigen la sola conservación de la raíz a). Tlan significa abundancia o


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inmensidad. Tico denota posesión, o más bien, adueñarse de una cosa, y al mismo tiempo es demostrativo del lugar donde se efectúa la posesión. Así es que Atlántico, en lengua nahuatl, quiere decir: donde nos posesionamos del agua grande, o sea, del mar». Depois da sua candidatura mal-sucedida para a Presidência do México em 1929, Vasconcelos foi definitivamente marginalizado. Desiludido com a orientação da política mexicana, Vasconcelos foi atraído a políticas antidemocráticas, o que justifica o ostracismo a que foi votado. De acordo com Carlos Monsiváis, «a partir de los cuarentas, Vasconcelos se irá desgastando y petrificando en un despeñadero ideológico. Allí concluirá exaltando dictaduras como la franquista, situándose como símbolo de la extrema derecha. Este más que melancólico ocaso de Vasconcelos (asumido con orgullo) ha dificultado durante muchos años la reconsideración de su obra». O papel de Rivera é aqui importante. Depois de sair da Secretaria e passar a ser persona non grata, Rivera nunca deixará de ridicularizar o ex-ministro. Num painel da Secretaría de Educación Pública, que o próprio Vasconcelos mandara construir, Rivera aproveita o ensejo para achincalhar os intelectuais do seu tempo, atacando inclusivamente José Vasconcelos, o mentor inicial do seu trabalho, escarnecendo-o e aos seus projectos educacionais. Vasconcelos aparece nesse painel, Os Sábios, de costas para nós, montado num pequeno elefante hindu, com uma pena de ganso na mão, metendo a sua pena num escarrador.

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Uma das mais gratificantes experiências que tive no México em 1991, que recordo com emoção, foi o encontro com Gilberto Bosques, que, tal como Aristides de Sousa Mendes, salvou inúmeras pessoas da morte, enquanto cônsul geral do México em Marselha. Em 1944, diria: «Hice la política de mi país, de ayuda, de apoyo material y moral a los heroicos defensores de la República Española, a los esforzados paladines de la lucha contra Hitler, Mussolini, Franco, Petain y Laval.» Esta extraordinária e lúcida pessoa, que contava 99 anos quando me recebeu em sua casa na Cidade do México, fora embaixador em Portugal, em Cuba e na Suécia. Com ele e com Antonio Rodríguez aprendi muito mais do que já lera e viria a ler sobre o Muralismo Mexicano. Bosques, além da sua vivência com Siqueiros e Rivera, contou-me na altura, na primeira pessoa, as coisas mais extraordinárias, como o seu tempo em Cuba, as suas tertúlias com Che Guevara fumando puros em pleno Banco Nacional de Havana, o seu tempo de embaixador em Portugal, o trato com Salazar, o relato de um Portugal que não vivi. Ainda guardo dele os originais dois discursos: «Dos conferencias sobre Diego Rivera», por Gilberto Bosques, Embajador de México, 1958. A «Realidade Mexicana» apresentou-se-me familiarmente estranha, como um déjà vu, juntando coisas aparentemente irreconciliáveis, qual Fado Tropical de Chico Buarque e Ruy Guerra: «Guitarras e sanfonas; Jasmins, coqueiros, fontes; Sardinhas, mandioca; Num suave azulejo; E o rio Amazonas; Que corre Trás-os-Montes; E numa pororoca; Desagua no Tejo.»

Para Octavio Paz, «vivimos, como el resto del planeta, una coyuntura decisiva y mortal, huérfanos de pasado y con un futuro por inventar. La Historia universal es ya tarea común. Y nuestro laberinto, el de todos los hombres».


Diego Rivera: Los sabios. Patio de las Fiestas, Secretaría de Educación Pública, Cidade do México, 1928.


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Eu começava este filme de uma maneira muito simples: a câmara numa grande grua, num cemitério pobre, tipicamente português. A chover. Barulhos. Uma espécie de fogo-fátuo. Linguagens quase dodecafónicas ao nível dos sons. Parava a chuva, calmamente. Sentia-se o calor, e a luz mudava completamente. A câmara subia e, ao longe, percebia-se que alguém estava a caminhar, estava a chegar. Sentias uma sombra a chegar e entrava então no enquadramento, na diagonal, outra sombra com um burro a cortar o caminho à primeira.

Pedro Páramo, o desejado um filme português em 3 takes – ou nenhuma Anabela Moutinho


Fotografia de Juan Rulfo. Publicada com a autorização da senhora Clara Aparicio de Rulfo

É uma história. Tem tudo a ver com as tentativas, por cá, de adaptação ao cinema. De Páramo, o Pedro. E de Rulfo, o Juan. O que é dizer: esta é uma história pouco conhecida do nosso cinema sobre dois desconhecidos. «No me gusta hablar de Juan» – um amigo diz, no documentário que o filho Juan Carlos Rulfo dedicou a seu pai (belíssimo, belíssimo, tão caleidoscópico e entrecortado em socalcos e decomposto em depoimentos abruptos e às vezes só um sorriso, às vezes só um suspiro, às vezes um silêncio só, rostos inundando todo o ecrã tanto quanto a rocha, a montanha ou a planura porque da procura por um rosto ausente marcado pela intensidade de uma geografia presente se fez esta tentativa de reconstituir al-

guém situado entre o Del Olvido al No Me Acuerdo1) –, e não gostamos de falar de Rulfo porque ele faz parte da lenda, e essas incomodam-nos tanto quanto o fascínio pelo eternamente escorregadio perturba as nossas desajeitadas mãos. Seja grão de areia ou gota de mar. Ou um fantasma chamado Páramo. Contudo, este texto não é sobre Juan Rulfo, mas sobre o excelente filme que ele recomendava que se visse – e não existia. Nessa mentira, nessa fantasia, nesse gesto borgesiano (também recordado no referido documentário por um outro amigo seu) nem imaginava o próprio Rulfo que o México e Portugal se encontrariam algures num ecrã adiado. O impacto da novela Pedro Páramo foi, como é sabido, imenso – na América do Sul sentiram nela a fonte de onde o realismo


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Porque aí se cumpririam verdadeiramente Rulfo e Páramo: os eternos desejados do cinema português a desconjuntarem-se, não em cavalo branco em manhã de nevoeiro, mas em ecrã iluminado em sala escurecida

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fantástico específico daquelas paragens havia de irromper, e terá efectivamente irrompido; em todo o mundo ficou anunciado, para usar as palavras de José Luís Peixoto (em resposta a um pedido que lhe foi feito para que expressamente comentasse aquela obra tendo em vista o presente artigo), um «universo que é como um novo nível de realidade»; «um livro que cria um mundo» – dois, aliás; múltiplos, a bem dizer: o mundo de Páramo e o mundo de Rulfo; o mundo destes dois e o mundo da literatura sul-americana; o mundo desta e o mundo da restante. O segredo de tanta eficácia reside, a meu ver, no carácter dos autores dela – ambos, assim ditos, Páramo enquanto personagem independente do seu criador Rulfo, e Rulfo enquanto autor nunca independente do personagem Páramo que criou. Páramo e Rulfo são espectros. E foram-no em vida. Tal como os habitantes da Comala que Juan Preciado, o protagonista da novela, encontra até ele mesmo morrer – ou, se calhar, sempre tendo estado tão morto quanto os demais. Porque não é isso mesmo, a vida? Lugar de morte? Não é isso mesmo, a memória da vida? Reconstituição da morte? E não é isso mesmo, a morte? Morte? Almas penadas em processo de reconhecimento mútuo, portanto. É da ordem do arrepio o que se passa com a tentativa de adaptação de Pedro Páramo em obra cinematográfica portuguesa. Arrepio «como um frio de morte ou um medo», para usar o verso de Álvaro de Campos. Que se sente ao dar de caras com um fantasma – ou quando este nos sussurra ao ouvido.

Salvo erro ou omissão, a história que agora vou contar é completa. António Reis e Margarida Cordeiro. Jaime, 1974 – ele realiza, ela assiste-lhe a realização. E depois Trás-os-Montes, 1976. Realizam ambos. Pela primeira vez na história do cinema português – uma dupla de criadores. A seguir, Ana, 1983. Realizam ambos. A dupla confirmava-se. A seguir, Rosa de Areia, 1989. Realizam ambos. O nome dela em primeiro lugar na ficha técnica. A seguir, Pedro Páramo, 1989 – o projecto. Realizam ambos – o projecto. Entregam ambos – o projecto. No IPC2. Resposta nenhuma – mesmo que e mesmo quando o reconhecimento internacional desta peculiar, intensa, especial obra fílmica em 4 peças fosse enorme e tivesse aberto, nos anos quentes da Revolução por cá, as portas à revolução lá fora no que se refere ao prestígio do nosso cinema no mundo. Mesmo assim, com Pedro Páramo – a morte. O IPC não subsidia – isto é, mata à nascença – e entretanto António Reis morre – literal e inesperadamente. Em 1991. Esta a primeira take. De analogias assombrosas entre a novela e a tentativa de adaptação dela: os singulares criadores (Rulfo, Reis/Cordeiro) enquanto Juan Preciados a ensaiar descortinar Pedro Páramo no meio das brumas da sua própria vida/morte. Universos poderosos (os de Rulfo e Reis/Cordeiro) algures entre o poder da memória e o desvario da criação dela; as prepotências dos caciques e a gente sã que grita como o bêbado na novela «ai vida, não me mereces!» 3 Bêbados? De dor. Eles – e nós, por Reis não ter podido dar corpo à


sua vontade de filmar Pedro Páramo, ele, de quem de si mesmo escreveu o justo verso «eu não voo/ ando/ quero que me oiçam». Que versão nos daria Reis? A dos espectros que não voam, andam. Estou segura que os ouviríamos. Mas a segunda take tem nome, e rosto, e corpo, e é comovente passagem de testemunho e expressão de afecto – Margarida Cordeiro. Ela. «Estou decidida a que, se não fizer o Pedro Páramo que era para dar ao António, e como ando a pintar um quadro de cada sequência que já tínhamos imaginado, quando acabar todo o trabalho exponho. Em homenagem ao António. Simplesmente.»4 Não pode ser, não podia ser. Uma exposição de quadros parados? Não, teria de ser, este gesto de amor, uma exposição de quadros em movimento: um filme. Uma adaptação – dela? de Reis? de Reis nela? de que morto nela? da morte, agora que a vida lhe havia roubado quem mais amara? Pedro Páramo? Coragem, então: Pedro Páramo seria. Entre 1996 e 1999, duas tentativas de obtenção de subsídio no IPACA/ICAM5. Em 2000 foi de vez. Uma festa, uma surpresa, uma inquietação. Margarida, o que vais fazer? Margarida, como vais conseguir? Margarida, como vais dar Rulfo se ele se tornou António? Margarida, como lidar com a morte tão dentro de ti? Que versão nos darás, Margarida? Ai, a do aborto – interrompe-se voluntariamente uma vida que não conseguiríamos suportar, nem mimar, nem velar. Porque dolorosa demais seria essa gestação. A morte em nós, tanto preciados que somos que morremos antes de chegarmos sequer à aldeia de Comala

– essa, que nem sabemos onde é porque está em todo o lugar. O lugar da morte deu lugar à morte. Em 2001, Margarida anuncia oficialmente que não se encontra em condições de realizar o filme. Espantosamente, uma terceira take ainda: quem há 15 anos carrega este fardo e o transmite de mão em mão, o produtor José Mazeda, não desiste de tentar uma adaptação portuguesa de uma novela tão universal. E em 2003 ela é reapresentada ao ICAM. Argumento: Félix Murcia. Realizador: Fernando Matos Silva. Quem? O amigo de Reis? E de Margarida? E de Mazeda? Sim, e amigo de Rulfo também, mesmo que figurativamente: «Toda a gente do cinema conhece e quer fazer o Pedro Páramo.»6 Projecto aprovado, aguarda-se conclusão. O que vai ser, Fernando, como vai ser? «Eu começava este filme de uma maneira muito simples: a câmara numa grande grua, num cemitério pobre, tipicamente português. A chover. Barulhos. Uma espécie de fogo--fátuo. Linguagens quase dodecafónicas ao nível dos sons. Parava a chuva, calmamente. Sentia-se o calor e a luz mudava, completamente. A câmara subia, e ao longe percebia-se que alguém estava a caminhar, estava a chegar. Sentias uma sombra a chegar e entrava então no enquadramento, na diagonal, outra sombra com um burro a cortar o caminho à primeira.» Pareceme bem. Limpa e seca, esta abertura. E curiosamente com um possível significado suplementar – a sombra que atravessasse o plano não seria a do almocreve, mas sim a de todos estes «homens do burrico»

tornados tão espectrais quanto Páramo e Rulfo ao terem tentado, até agora em vão, adaptar a novela para criar um filme português. Paradoxalmente, o final que imagino para esta história é que, tal como na frase final de Pedro Páramo, ela morra como um monte de pedras a desmoronar-se no chão7. Porque aí se cumpririam verdadeiramente Rulfo e Páramo: os eternos desejados do cinema português a desconjuntarem-se, não em cavalo branco em manhã de nevoeiro, mas em ecrã iluminado em sala escurecida pela força do nosso querer, ou pela impotência dele. Se o cinema é fantasma, realidade imaterial em substituição de uma outra tornada irreal pela primeira, então que seja presença ausente – e o seja assumidamente neste caso. Ou, como diria por outras palavras José Luís Peixoto: «Reproduzir tanta beleza e tanta verdade, fazer o mesmo que Rulfo dispondo de outras ferramentas, parece-me ser o grande desafio que este livro propõe a quem se decida a adaptá-lo. Fazê-lo de uma forma convincente poderá ser o projecto de uma vida.» Basta-nos então desejar que a sua sombra permaneça. Em arrepio como um frio do corpo – ou um medo. 1 Realização e argumento de Juan Carlos Rulfo, México, 1998, 70’. 2 Instituto Português de Cinema. 3 Trad. port. de Rui Lagartinho e Sofia Castro Rodrigues, Lisboa, ed. Cavalo de Ferro, 2004, p. 33. 4 In António Reis e Margarida Cordeiro – a poesia da terra, Anabela Moutinho e Graça Lobo (org.), Faro, ed. CCF, 1997, p. 25. 5 IPACA (Instituto Português da Arte Cinematográfica e Audiovisual) e ICAM (Instituto do Cinema, Audiovisual e Multimedia). O que vale é que, no meio de tanta feérica denominação nos últimos anos, continua a ser conhecido simplesmente por Instituto do Cinema. 6 Em declarações à autora, Lisboa, 11 de Março de 2005. 7 «Deu um golpe seco contra a terra e foi-se desmoronando como se fosse um montão de pedras», ed. cit., p. 115.


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E porque a América é também a do Norte, o escritor chileno radicado nos Estados Unidos, Roberto Ampuero, escreve sobre um rolo de papel exposto em Iwoa. Trata-se do manuscrito do romance Pela Estrada Fora, símbolo da contracultura da Geração Beat. É o regresso de Jack Kerouac, admirador tanto de Charlie Parker como de Julio Cortázar.

O regresso de Jack Kerouac Roberto Ampuero



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Iowa City é uma pequena cidade do Midwest norte-americano que tem muito que contar do ponto de vista literário. Foi no âmbito da Universidade de Iowa que se criou pela primeira vez um curso de escrita criativa. Corria o ano de 1936 quando um grupo de romancistas e poetas, sob a direcção de Wilbur Schramm, iniciou o primeiro curso, ideia que, décadas mais tarde, alastraria a todo o planeta. O curso de Iowa City, que hoje ministra um mestrado em escrita criativa, é uma lenda viva porque pelas suas aulas passaram pessoas como Raymond Carver, John Irving, Kurt Vonnegut Jr., Flannery O’Connor, John Cheeter e T.C. Boyle, para só referir alguns. Mas isso não é tudo: existe também nessa cidade liberal, uma das poucas do Midwest, em que Bush foi derrotado por uma ampla maioria, um programa internacional de escritores, o IWP, a que assistem anualmente vinte escritores de todo o mundo. Concretamente, trata-se de uma bolsa concedida pelo IWP a intelectuais para passarem três meses a escrever nos Estados Unidos. Por isso, não é de surpreender que neste contexto literário se esteja a expor nestes meses, desdobrado, um dos manuscritos de um dos romances mais surpreendentes que existem: o rolo de 40 metros de comprimento no qual Jack Kerouac, símbolo da contracultura dos anos cinquenta, escreveu On the Road (Pela Estrada Fora). E não há nada a fazer. Sentimo-nos emocionados enquanto se avança ao longo do amarelento manuscrito do romance publicado em 1957 pelo norte- americano que se tornou o símbolo da contracultura da Ge-

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ração Beat. O texto está patente no excelente Museu de Arte da Universidade de Iowa, numa sala imersa numa semipenumbra inquietante, onde se pode desfrutar de filmes e jazz dos anos cinquenta. Kerouac escreveu o romance à máquina numa espé-

Um romance devia ser como uma improvisação de Charlie Parker, trompetista que Kerouac admirava tanto como Julio Cortázar

cie de rolo de telex, hoje zelosamente vigiado, avaliado em mais de dois milhões de dólares. O rolo encontra-se numa longa vitrine em forma de mesa e parece um papiro egípcio, ressequido e carcomido, com correcções à mão e à máquina, sem metade da última página. Nesse

manuscrito, um dos mais valiosos da cultura estado-unidense, Kerouac narra ficcionalmente as viagens que fez por estradas norte-americanas, entre 1947 e 1949, com o seu colega e amigo Neal Cassidy, que viria a morrer no México em 1969 com uma overdose de droga. Cassidy – que no romance se chama Dean Moriarty, enquanto Kerouac é Salvatore Paradise – foi outro caso de vida levada ao limite: aos vinte anos tinha roubado automóveis, estado num reformatório, feito amor, dizia ele, com 500 mulheres e desejava ser escritor. No romance não acontece nada de espectacular, a não ser cenas que escandalizaram os conservadores, e o seu atractivo reside no retrato fresco de jovens que gozam do sexo, do álcool e das drogas, e dos Estados Unidos profundos do pós-guerra, que começavam a perder a sua identidade para avançar por uma nova, contraditória, de superpotência ocidental. E tudo isso foi escrito numa linguagem irreverente, simples e coloquial, até então inaceitável para a «grande» literatura, representada para Kerouac por escritores como Henry James, Ernest Hemingway ou Jonh Dos Passos. A origem de Kerouac é curiosa: como estava convencido de que tinha algo de muito forte para narrar, criou um artefacto cultural com o manuscrito, o segundo livro dos vinte que escreveu. Assim, em Abril de 1951, colou com fita-cola 13 folhas de papel com três metros de comprimento cada uma, recortou-as para que pudessem entrar na sua máquina e redigiu a história em três semanas com a ajuda de droga, como é defendido por muitos. No manuscrito,


sem parágrafos, há poucas correcções, e quase todas elas estão feitas à máquina, havendo um ou outro apontamento escrito. Kerouac desejava promover a escrita espontânea, que se assemelhava à escrita automática dos surrealistas e aproximá-la da fluidez da improvisação no jazz. Um romance devia ser como uma improvisação de Charlie Parker, trompetista que Kerouac admirava tanto como Julio Cortázar, embora haja muitos que duvidam que ele tenha improvisado Pela Estrada Fora. Se bem que num dado momento Marlon Brando lhe tenha oferecido 100 000 dólares para levar o romance ao cinema, nem tudo foram rosas para este livro de Kerouac, um tipo lúcido e metódico, que morreu em 1969 muito jovem, aos 47 anos, alcoolizado. Quanto terminou a sua obra, que faria história na literatura norte-americana, não encontrou editor. Para os seus críticos, seguidores do cânone tradicional, baseado numa literatura alheia à oralidade e com trama claramente estabelecida, o romance estava mal escrito e mal estruturado, e não merecia ser publicado. Isto desesperou Kerouac, que precisava de dinheiro e estava convencido de que tinha uma grande obra nas mãos. Nessa altura, o manuscrito começou a sofrer alterações, e em 1957 a Viking Press decidiu arriscar. Com a publicação, Kerouac tornou-se famoso da noite para o dia e apodaram-no de Marlon Brando da literatura, mas a sua timidez nunca o deixou projectar-se mediaticamente. Embora os críticos literários tenham tido posições polarizadas em relação ao romance, a sua publicação causou um im-

pacto social só comparável A Paixão do Jovem Werther de Goethe, que levou românticos ao suicídio, Cem Anos de Solidão, que atirou muitos para o precipício de García Márquez, ou O Sol Nasce Sempre, o romance de Hemingway cujos personagens conta-

Allen Ginsberg, do núcleo criador da geração beat, afirmou que Pela Estrada Fora vendeu um quatrilião de Levis e um milhão de máquinas de café expresso, e encaminhou um número indeterminado de jovens para a estrada

giaram com o seu estilo a juventude dos anos vinte e trinta. A influência de Pela Estrada Fora sentiu-se de imediato no mundo: milhões de jovens começaram a usar blusões de cabedal preto, camisolas justas, calças escuras e botas, a deixar patilhas, a explorar as margens da

sociedade. James Dean, Marlon Brando e Elvis Presley entroncam nesse look juvenil de rebeldes sem causa nos Estados Unidos que dominavam no Ocidente e caíam na repressão maccarthista. Todavia, o look inspirado por Kerouac começa rapidamente a ser comercializado pela indústria do vestuário, do cinema e da música, e começa a perder o seu carácter autenticamente contestatário do início. A chamada Geração Beat era a contracultura de jovens que procuravam um interstício no sufocante mundo imposto pelo maccarthismo e pelo anticomunismo, jovens que rejeitavam a homogeneização dos seus comportamentos através de um consumo impulsionado pelas grandes empresas e pelos meios de comunicação social mais influentes. Os Estados Unidos passavam da Segunda Guerra Mundial para a Guerra Fria e começavam a perder heterogeneidade regional, e, assim, a construção de estradas com cafés-restaurantes, espaços-chave na cultura Beat, constitui a premissa para a mudança drástica que se avizinhava. William Burroughs, romancista e membro, juntamente com Kerouac e o poeta Allen Ginsberg, do núcleo criador da Geração Beat, afirmou que «Pela Estrada Fora vendeu um quatrilião de Levis e um milhão de máquinas de café expresso, e encaminhou um número indeterminado de jovens para a estrada». Aí, estes encontraram um país em acelerado processo de mudança e com personalidades contraditórias, conservadoras ou liberais. Aí estavam McCarthy e Kerouac, Nixon e Elvis Presley, Eisenhower e Ginsberg, Kennedy e Martin Luther King, Arthur Miller e Jonh Cheever, o


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movimento pelos direitos civis e o anticomunismo, a prosperidade e «os outros Estados Unidos», a nova superpotência e o plano Marshall, enfim, fenómenos que punham em tensão a identidade norte-americana e empurravam uns para a direita e outros para uma esquerda desorientada ideologicamente. E, mostrando certas semelhanças

É impossível entender os Estados Unidos do pós-guerra sem Kerouac e a geração à qual ele deu nome

com o que hoje acontece, um sector advogava, perante a crise de identidade, a conveniência de voltar aos valores da religião, da família e da comunidade, e o outro a de explorar mudanças. Kerouac, que passou por uma fase budista e depois regressou ao catolicismo, nunca

propôs, como se poderia supor, uma utopia concreta. Pelo contrário, ele procurou a alternativa nacional na inocência e na rusticidade dos Estados Unidos que estavam a desaparecer. Deprimido e desiludido com a sua carreira, Kerouac acabaria por renegar a sua influência no Movimento Beat e por afirmar que este se tinha convertido num produto do mercado. Para ele, o Movimento Beat tivera o seu esplendor desde finais dos anos quarenta a meados dos anos cinquenta, quando os seus representantes, segundo ele, tinham desaparecido «em prisões e manicómios, ou tinham sido atirados para uma conformidade silenciosa». É impossível, porém, entender os Estados Unidos do pós-guerra sem Kerouac e a geração à qual ele deu nome. É impossível entender Vonnegut e Bukovski, mas também Easy Rider, sem Kerouac. Até as diferenças radicais que hoje dividem o país têm substratos Beat. Kerouac provocou mudanças: aproveitou o jazz negro da época da discriminação para provar que era possível criar à margem do mainstream, mas opôs-se à modernização e vislumbrou a solução no passado rural e nos marginais, com os quais se identificava. Foi um revolucionário no aspecto literário, mas não no aspecto social. O seu curioso manuscrito tipo rolo de telex parece sublinhá-lo na semipenumbra do museu: para ele, a grande mudança devia ter lugar no papel, no texto e no comportamento individual, mas não na agenda social, radical ou de direitos civis, que foi a que, nos anos sessenta transformou radicalmente os Estados Unidos. Tradução de AJM



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