Revista Atlântica de Cultura Ibero-Americana 02

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O QUE FAÇO EU AQUI

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um avião saía dali a duas horas e o voo era de cinquenta minutos apenas. Despedi-me da Marianne. Que não se preocupasse. Fosse para o hotel, descansasse, provasse a praia, que eu haveria de aparecer ainda que a nado, de visto na mão, à Camões na foz do Cambodja. Afinal o avião descolou com atraso latino-americano. Avaria técnica foi a desculpa do costume, para razões que podem ir de uma ressaca do piloto a ter-se o fornecedor dos sumos distraído na soneca. Cheguei a San Juan perto das cinco de uma tarde carregada de cinzento. Dirigi-me em linha recta à cabine telefónica mais próxima e mergulhei nas páginas amarelas. Mas nem elas nem as brancas nem ninguém havia por ali que soubesse do paradeiro ou sequer existência do consulado dominicano. Nova elipse de pormenores que só atrapalhariam o leitor como me atrapalharam a mim. Agarrei de um táxi e larguei rumo à cidade, que me era já algo familiar, embora nunca alguma vez na vida me tivesse sido necessário achar o endereço do consulado da República Dominicana. O taxista não o sabia e perguntou-me onde queria que me deixasse. Quem sabe? No Viejo San Juan. Ou, se calhar, não. Era um à sorte e por isso fiquei lá. Na rua, sem nada nas mãos e apenas a carteira como posse. As malas levara-as a Marianne para o hotel e nem me ocorrera precaverme porque, optimista de nascença, tinha a certeza de regressar naquela mesma tarde. Daí que a minha segunda surpresa tenha sido uma pancada de água que se abateu sobre mim sem préaviso. Ou talvez as nuvens o estivessem dando, mas eu voltara as antenas para outros comprimentos de onda. Lancei-me em cata de hotel. E, enquanto a roupa secava, fui fazendo pesquisa. Desta vez, frutífera. Farpela molhada e tudo, tornei a sair a ver se chegava a tempo de apanhar o consulado aberto. Não respondiam ao telefone, mas tinha de lá entrar quanto antes, porque era nada mais nada menos do que... sexta-feira. Pormenor insignificante de que apenas me apercebera no avião, a meia viagem. Adensava--se a perspectiva de ficar retido em San Juan até segunda-feira, assim de molha no pêlo e nem uma escova de dentes, nem um livrinho para adormecer. A chuva amainara e julguei até que se esquecera de cair, mas isso foi apenas para descansar enquanto esperava a minha saída do hotel.

Eu, todavia, não podia deter-me. Por isso me aventurei San Juan fora, primeiro de táxi, depois a pé. Ao fim de errantes deambulações, escorregaram-se-me os olhos num letreiro: Consulado de la República Dominicana. Cerradíssimo, porém. Nem uma luzinha a iluminar o que quer que fosse. De porta em porta aberta na vizinhança, atravessada sempre sob chuvada tropical a encharcar-me os ossos, soube da queixada de um velhote, descansando sobre uma bengala, que o señor cônsul se chamava Luiz A. López. Armado dessa pista, voltei ao hotel e à lista telefónica enquanto a roupa secava e eu me enrolava na toalha após um duche quente. Os Luiz A. López eram muitíssimos. As minhas hipóteses, porém, eram poucas. Ao acaso poderia acertar, mas a sorte naquele dia não estava comigo. O melhor seria um procedimento sistemático. Dispus-me a levá-lo a cabo com a paciência beneditina de quem necessita e não tem outro remédio. Oito chamadas seguidas sempre introduzidas por É da casa do senhor cônsul da República Dominicana? Aliás, a pergunta foi feita inúmeras vezes, porque os porto-riquenhos que atendiam o telefone não decifravam o meu portunhol. Os mais delicados pediam simpaticamente para repetir. Outros, mais rafeiros, mandavam-me ir bugiar para sítios que o meu magro espanhol de calão felizmente não me permitia localizar. Mas, finalmente, Eureka! Eureka! Ouvi um ¡Sí, para servirlo. Era ele ali ao vivo, e eu a querer colá-lo à linha telefónica para que me escutasse a súplica. O senhor, que imaginei com sotaque, de bigode e uns bons sessenta anos, não exibia grande dose de paciência perante o meu arremedo de espanhol. Despachava-me repetindo com um ¡El lunes, el lunes!, a cada frase minha, até atingir o tom de quem já esgotara a pachorra:Ya le he dicho a usted que aparezca el lunes en el consulado. E eu voltando sempre à carga a fazer-lhe ver as razões da minha insistência. Não sei exactamente em que parte da conversa o ouvi resmungar: ... los americanos... Ripostei: ¡Señor cónsul, yo no soy americano! Cual es, entonces, su nacionalidad? Por-tu-gue-sa! ¿Portugués? ¿Es usted portugués? Entonces venga mañana a las nueve al consulado. Sem querer acreditar, acho que me escapuliu um urrah!, com o señor cónsul ainda em linha. Desliguei, eufórico, para contactar a Marianne em Santo Domingo. Precavera-me com o número de telefone do hotel onde certamente ela estaria à espera de notícias. A telefonista, porém,


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