Cga plaquete maio 2016 11 o sapateiro rev1

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O Sapateiro Seumas O’Kelly (1881-1918)


Introdução Esta nova empreitada da Oficina de Tradução da Casa Guilherme de Almeida, intitulada “Contos de Humor, Ironia e Sátira”, buscou contemplar contos da língua inglesa que retratam situações humorísticas, irônicas e satíricas, sempre revelando – ou sugerindo – uma visão crítica da sociedade e das ações humanas. Trata-se de uma coletânea de contos que inclui sobretudo autores americanos, ingleses e irlandeses: Mark Twain, O. Henry, Ring Lardner, William T. Thompson, Saki, Oscar Wilde, James Joyce e Seumas O’Kelly; entretanto, aqui se encontram também respeitados autores de outros países de língua inglesa: Premchand (Índia), Thomas C. Haliburton (Canadá) e Henry Lawson (Austrália), aparentemente pouco conhecidos no Brasil. Com isso, pretendemos mostrar a variada gama de estilos, aspectos culturais e morais de diferentes regiões e a universalidade dos sentimentos e atitudes humanas. Esperamos ter contribuído para a difusão da cultura e da literatura em tradução. Com exceção de um conto, “O Funeral de Buck Fanshaw”, de Mark Twain, que foi traduzido coletivamente, os outros foram traduzidos em pares, pequenos grupos ou, em situações especiais (casos de desistência), individualmente. A elaboração desta coletânea em tradução, é importante dizer, foi uma riquíssima fonte de aprendizado e de conhecimento para todos os participantes. A troca de informações, as discussões coletivas e as interpretações compartilhadas resultaram nestes textos que agora submetemos à apreciação do leitor, que terá a oportunidade de ler (ou reler) alguns autores conhecidos e de conhecer alguns até então desconhecidos no Brasil, mas que em seus respectivos países desfrutaram de grande sucesso. Que o humor, a ironia e a sátira aqui contidos revelem um pouco mais da face humana que, apesar de diferente aqui e acolá, revela-se, no fim das contas, a mesma em qualquer rincão do universo. Alzira Allegro Coordenadora da Oficina de Tradução


O Sapateiro Seumas O’Kelly (1881-1918)


Seumas O’Kelly (1881-1918) Seumas O’Kelly nasceu e cresceu em Loughrea, Condado de Galway, na Irlanda. Ainda adolescente começou a escrever para um jornal local, e aos 22 anos tornou-se editor de outro jornal em Cork; logo depois, entrou em contato com escritores e futuros revolucionários em Dublin. Com problemas de saúde (febre reumática), foi obrigado a renunciar a dois postos como editor em Dublin e passou a exercer cargos que lhe exigiam menos esforço. Passou a substituir o líder irlandês Arthur Griffith, que então estava preso, como editor do jornal Nationality, do grupo Sinn Fein, em Dublin. Um ataque ao escritório do jornal levou O’Kelly a um ataque cardíaco fatal. Antes de sua morte prematura, ele havia escrito quatro peças, publicado um romance, The Lady of Deerpark (1917), e cinco volumes de contos, entre os quais destacam-se “The Weaver’s Grave” e “The Shoemaker”, revelando seu pendor para o realismo e a sátira.


O sapateiro I. Obedecendo a uma imposição doméstica, Padna embrulhou em papel um par de botas e as levou ao sapateiro, que trabalhava por detrás de uma janela em uma rua tranquila. Pareceu a Padna que o sapateiro era um homem taciturno. Usava óculos grandes, tinha uma mancha na testa e nela duas grandes saliências. Padna concluiu que elas foram estimuladas pela necessidade profissional constante de pender a cabeça sobre os joelhos. O sapateiro convidou Padna a sentar-se, o que ele fez. Padna pensou que devia ser muito aborrecido sentar-se lá o dia todo entre botas velhas e novas, pedaços de couro, caixas de ilhoses de metal, sovelas, facas e furadores. Não era de estranhar que o sapateiro fosse um homem de aparência melancólica. Padna manteve um silêncio discreto enquanto o sapateiro dirigia um olhar crítico para as botas que ele havia trazido para conserto. De repente, os óculos grandes voltaram-se para o próprio Padna e o sapateiro dirigiu-se a ele com um tom de voz surpreendentemente afável. – Quando foi que você ouviu o cuco? – perguntou ele. No início, Padna assustou-se, mas logo se recompôs. – Ontem – respondeu. – Você olhou a sola de suas botas quando o ouviu? – perguntou o sapateiro. – Não – respondeu Padna. – Bem – considerou o sapateiro –, sempre que você ouvir o cuco pela primeira vez na primavera olhe na sola da sua bota direita. Lá você vai encontrar um fio de cabelo. E esse fio de cabelo vai dizer a você o tipo de esposa que terá. O sapateiro pegou o longo fio de cabelo da sola da bota de Padna e levou-o à luz da janela. – Você se casará com uma mulher de cabelos castanhos – disse ele. Sem receio, aprovação ou emoção, Padna olhou para o cabelo e nada disse.


O sapateiro tomou seu lugar no banco, selecionou um sapato quase pronto, colocou-o entre os joelhos e começou a costurar com grande prazer. Padna ficou admirado com a maneira habilidosa com a qual ele fazia furos com a sovela e enfiava o fio encerado com movimentos rápidos. Padna descartou a impressão de que o sapateiro era um homem melancólico. Percebeu que nunca havia se sentado perto de um homem tão otimista, tão livre mentalmente, tão indiferente à indignidade da profissão. – Estes sapatos que o senhor está pespontando são bem pequenos – comentou Padna, tentando ser agradável. – Sim, é verdade, é verdade – concordou o sapateiro. – Mas você sabe quem faz os menores sapatos do mundo? Não sabe? Ora, ora! Os menores sapatos do mundo são feitos pelo clurichaun, primo do leprechaun. Se você caminhar furtivamente até o lado oeste do forte de um duende, depois do pôr do sol, e encostar o ouvido na grama, você ouvirá as batidas do martelo dele. E você sabe para quem são os sapatos que o clurichaun faz? Não sabe? Ora, ora! Ele faz os sapatos para as andorinhas. É isso mesmo; as andorinhas usam sapatos. Elas usam sapatos duas vezes por ano. Elas os usam na primavera e outra vez no outono. Elas os usam quando voam de um mundo para outro. E cruzam o Mar Morto. Você já ouviu falar do Mar Morto? Ah, já ouviu. Pois muito bem! Nenhum pássaro jamais voou sobre o Mar Morto. Qualquer um deles que tenha tentado, caiu e afundou como uma pedra. Então, as andorinhas, quando vêm para o Mar Morto, descem até a margem e lá os clurichauns têm milhões de sapatinhos esperando por elas. As andorinhas calçam os sapatinhos e caminham sobre o Mar Morto pisando em alpondras brilhantes, amarelas e pretas, que reluzem sobre a água como um lindo tapete. E você sabe o que são as alpondras do Mar Morto? São as costas de rãs adormecidas. E quando as andorinhas estão a salvo após a travessia, as rãs acordam e começam a cantar, pois isso é o sinal de que o verão vai chegar. Você já tinha ouvido falar disso antes? Não? Ora, ora! Um gato, tão simpático como o próprio sapateiro, pulou no colo de


Padna. O sapateiro inverteu a posição do sapato que estava costurando entre os joelhos, colocando o salto onde havia estado o dedão. – Você sabe onde eles descobriram a eletricidade pela primeira vez? – perguntou. – Na América – arriscou Padna. – Não. Nas costas de um gato. Era um grande gato chinês. Cada pelo dele media sete polegadas; era de cor dourada e tão espesso como um fio de cobre. Foi o único gato que olhou no rosto da imperatriz da China sem piscar, e quando o imperador viu isso, ele o chamou, e o afagou nas costas. Mal o afagou, o imperador caiu em seu suntuoso trono, tão morto quanto seus ancestrais. Então, chamaram sete doutores sábios dos sete países sábios do Oriente para investigarem o que havia matado o imperador. E, depois de sete anos, eles descobriram eletricidade na espinha dorsal do gato e fizeram uma declaração de que fora em decorrência de um choque que o imperador havia morrido. Quando os americanos leram a declaração, eles decidiram fazer qualquer matança que tivesse que ser feita, como o gato havia matado o imperador da China. Os americanos são assim – sempre imitando famílias reais. – Este gato tem eletricidade no corpo? – perguntou Padna. – Sim, tem, sim – respondeu o sapateiro, puxando o fio encerado. – Mas ele é um gato civilizado; não é como aquele tipo vulgar da China, e gatos civilizados escondem sua eletricidade tanto quanto pessoas civilizadas escondem seus sentimentos. Mas, um dia, no verão passado, eu o vi demonstrando sua eletricidade. Um rato preto veio esgueirando-se da cervejaria, uma parte da cabeça raspada e uma parte do traseiro do lado esquerdo faltando. Vendo aquela criatura saindo de um cano e alcançando a rua em plena luz do dia, qualquer um poderia imaginar que ele era o inspetor de polícia do condado. – E ele lutou com o rato? – Padna quis saber. O sapateiro colocou o sapato na forma e começou a bater de leve com o martelo. – Lutou com ele para valer – afirmou –, foi na direção do rato torcendo


os bigodes; o rato deitou-se de costas. O gato deitou-se de lado. Ficaram lá arreganhando os dentes um para o outro e lutando durante meia hora. Por fim, o monstruoso rato se levantou furioso e, com as presas à mostra, veio na direção do gato. O gato girou ao redor do pátio, duplicou a velocidade, fazendo círculos em torno do rato como fogos de artifícios, até que o velho salafrário ficou mesmerizado. Ah, se você pudesse ver o volume da cauda do gato, com toda a eletricidade lá acumulada! Ele o pegou com um golpe sob a mandíbula e o rato caiu desfalecido. O gato ficou sobre ele com as costas curvadas em arco, a cauda se agitando, um sorriso de lado na face. E este foi o fim do monstruoso rato da cervejaria. Padna não disse nada, mas colocou o gato no chão. Quando ele fez menção de voltar ao seu colo, o menino sugeriu sub-repticiamente com a ponta da bota que aquela relação havia chegado ao fim. Algumas gotas de chuva bateram na janela e o sapateiro ergueu os olhos, os óculos brilhando, as saliências reluzindo na testa. – Você sabe por que razão Deus faz chover? – perguntou. Padna, que havia escutado a conversa de dois fazendeiros na noite anterior, disse: – Eu sei. Para fazer os nabos crescerem. – Bobagem! – retrucou o sapateiro, alcançando uma sovela. – Deus faz chover para nos lembrarmos do Dilúvio. E não me refiro ao Dilúvio que foi o que foi. Refiro-me ao Dilúvio que está por vir. O mundo será inundado novamente. A barrigueira irá ceder, pois é isso que é o arco-íris, e é feito só de cores. Você nunca soube o que era o arco-íris? Não? Ora, ora! Como eu estava dizendo, quando a barrigueira do céu se romper, o Dilúvio chegará. Em um minuto todos os vales da terra serão inundados. No minuto seguinte, as montanhas estarão cobertas. No terceiro minuto, o céu ficará vazio, sua pele terá desaparecido e a terra não existirá mais. Não haverá arca, nem Noé, nem pomba. Não haverá nada além de uma grande imensidão de água cinzenta e no meio dela, uma folha verde. A folha verde será um sinal de que Deus foi dormir, os problemas do mundo banidos da Sua mente. Portanto, sempre


que chover lembre-se das minhas palavras. Padna disse que se lembraria e, em seguida, foi para casa.

II. Quando Padna voltou ao sapateiro para retirar as botas que havia deixado para consertar, elas estavam quase prontas. Só faltava terminar os saltos. Padna sentou-se na pequena oficina e sob a agradável influência do local, ousou perguntar ao sapateiro se ele havia crescido para ser sapateiro, da mesma maneira como o gerânio havia crescido para ser gerânio num vaso na janela. – O quê? – exclamou o sapateiro. – Você nunca ouviu falar que eu fui encontrado debaixo de um pé de repolho? Não? Ora, ora! Afinal, o que é que conversam com você em casa? – O que eles mais falam comigo – explicou Padna – é para eu ir para a cama e levantar-me de manhã. Como se chama o lugar no interior onde encontraram você? – Gobstown – contou o sapateiro. – Era o lugar mais triste de toda a Irlanda. Vivia sob a influência maléfica de um bom senhor, sem dúvida. Esse foi o infortúnio de Gobstown e, especialmente, o meu infortúnio. Se o senhor de Gobstown não fosse tão bom, eu estaria hoje comandando um império, em vez de estar martelando saltos nas suas botas. Como isso aconteceu? Vou contar para você. “Em Gobstown os arrendatários se insurgiram e exigiram uma redução no arrendamento; o bondoso proprietário a concedeu. Eles se insurgiram novamente e exigiram outra redução do valor do arrendamento; e ele a concedeu. Eles continuaram a se insurgir, pedindo reduções e conseguindo-as, até que nenhum valor sobrou para ser reduzido. O proprietário era tão bondoso e tão pobre quanto os nossos melhores homens. “E enquanto isso acontecia, Gobstown foi cercada por propriedades,


cujos donos eram os mais ferozes espoliadores – proprietários que cobravam aluguéis excessivos, absentistas que expulsavam os arrendatários, senhores tão selvagens quanto tigres. E esses senhores-tigres saltavam sobre os seus arrendatários que revidavam ao ataque da melhor forma como podiam. Nada, meu caro, senão sangue e a música da metralha e gritos na noite vindos da floresta. Em Gobstown, tínhamos que sentar e contemplar, fingindo – ai – que éramos tão felizes quanto o dia era ensolarado. “Nenhum escalpo jamais foi trazido a Gobstown. Nenhum de nossos homens jamais saiu para uma aventura que pudesse trazê-lo de volta para casa através da entrada da prisão do condado. Nenhuma empreitada secreta que pudesse se tornar uma alegria para o grande público fora maquinada, para não dizer desencadeada. Mal tínhamos uma banda de pífanos e tambor. Não sabíamos como tocar um apito de lata ou bater no sininho. Nunca uma bandeira verde tremulou. Não tínhamos qualquer espécie de liga. Não tínhamos nenhum homem com habilidade para elaborar uma resolução, redigir uma carta ameaçadora, arrastar um caixão, crânio e ossos cruzados, brigar com um policial ou mesmo fazer um discurso. Nunca tivemos um representante em uma convenção, um emissário à América, um executivo de departamento, uma comissão, uma manifestação pública. Nunca fomos nada. Murchávamos sob a influência maléfica do nosso bom senhor como o caule verde murcha sob a geada da noite escura. – Passe-me aquela faca. Aquela com cabo de madeira. “Em desespero, costumávamos nos insurgir e participávamos de manifestações em outras propriedades. Éramos uma tribo pequena e desconhecida. O contingente de Gobstown sempre se apresentava no final da passeata – um bando desajeitado, disperso, marchando a esmo, e sem saber se à esquerda ou à direita! Os que assistiam mal olhavam para nós. Não significávamos nada. Não tínhamos nome. Uma vez improvisamos um estandarte com os dizeres “Gobstown para o Front!”, mas ainda assim nos colocaram atrás e quando entramos nesta cidade, as criadas saíram das cozinhas, riram de nós


e gritaram “Gobstown para trás do Front!”. “Os combatentes vieram até nós, puxaram-nos de lado e perguntaram o que estávamos fazendo em Gobstown. Não soubemos responder. Propusemos trazer nosso bondoso senhor como um exemplo notável, conduzir nossa ovelha adiante, para que ele pudesse desmascarar os canibais nas outras propriedades. Os organizadores foram completamente hostis. Não permitiram mais nossa presença nas manifestações. Se pudéssemos trazer algum tipo de demônio negro vociferador seríamos mais do que bem-vindos. Exemplos notáveis não estavam a favor. Fomos mandados para casa em desgraça e nos dispersamos. Como dizem os pregadores, nossa última condição estava pior do que a primeira. “Tornamo-nos intratáveis e apáticos e gordos e letárgicos. Passamos a nos odiar um ao outro, tanto que começamos a pagar nossos arrendamentos pelas costas uns dos outros; no início, os valores reduzidos, depois a cada vencimento do arrendamento, acabamos voltando ao valor original e continuamos a pagá-lo. Nosso bondoso senhor pegava o dinheiro e não dizia nada. Gobstown passou a ser o local mais amaldiçoado de toda a Irlanda. Irmão não podia confiar em irmão. E nossos vizinhos passavam de um sentimento para outro. Eram tão vivazes quanto trutas, tão ativos quanto bodes e tão inteligentes quanto os homens de Cork. Estavam magros, ansiosos, mas bem-humorados. Comiam muito pouco, bebiam água, dormiam bem; homens de fibra, entranhas limpas e olhos pálidos. Qualquer coisa que atingissem, caía. Estavam sempre prontos a ir para a forca uns pelos outros. “Eu tinha um primo famoso em uma dessas propriedades; suponho que você tenha ouvido falar dele. Não ouviu? Afinal, o que eles estão ensinando na escola? Gramática latina? Ora, ora! Meu primo era um indivíduo desajeitado, com aquele tipo de cérebro medíocre, mas um pouco combativo. Mas veja o caminho que ele seguiu e eu aqui, explicando coisas para garotinhos como você! Eu nasci sob a estrela da sorte, mas meu primo nasceu sob um senhor da sorte – um indivíduo cruel que entrou em um sótão em Londres


e permaneceu bradando à Irlanda por mais e mais sangue. Toda vez que eu pensava na carcaça velha daquele homem uivando no sótão de Londres, eu dizia para mim mesmo “Ele vai ‘fazer’ o meu primo”. E, de fato, ele fez. Três agentes foram trazidos para a propriedade do meu primo. Os julgamentos do governo continuavam como grandes peças no tribunal. O sangue sempre fervia. Eles tinham seis bandas de pífanos e tambor e uma banda de metais. Tinham estandartes verdes e dourados com harpas e flâmulas e lemas em letras amarelas, que precisavam de quatro homens fortes para carregá-los em dia de muito vento. As cabeças dos Peelers raramente estavam sem os capacetes. Um dia o magistrado local levantou-se no recesso do lar, os olhos fechados para dar graças antes das refeições, e pela força do hábito recitava o Ato de Desordem Civil à mesa, até que sua esposa lançou-se sobre ele, dizendo: “Como você ousa, George? A carne de carneiro não está nada ruim!”. Garotos da sua idade, caminhando para a escola ao longo das estradas naquela esplêndida propriedade, pulavam sobre a vala e faziam bons discursos. “Os livros de atas do meu primo – ele era secretário de tudo – abasteceriam uma livraria e eram conhecidos pelas bonitas expressões que ele escrevia. Foi autor de dez estilos de resoluções. Um inimigo o batizou de Kavanagh Resolução. Todas as vezes que ele tomava uma resolução, a resolução estava tomada. Todos se hospedavam em sua casa. Ele era visto em mais manifestações à luz de tochas do que Bryan O’Lynn. Um dos cômodos de sua casa tinha uma bela decoração, com discursos debruados com iluminuras dos desenhos do Livro de Kells. As casas das pessoas viviam cheias de tocos de velas queimadas, restos da grande iluminação para meu primo quando ele voltou da prisão. Não minto quando digo que aquele meu primo desajeitado tornou-se esperto e refinado, tudo por pura prática. Ele teve os melhores tutores. O sovina de um proprietário em um sótão em Londres, seus agentes, os subordinados deles, magistrados, juízes, advogados da Coroa, inspetores de polícia do condado, sargentos, policiais, homens do serviço secreto – todos o impulsionaram de renome em renome até que, ao


final, eles o encaixaram na única vaga deixada aberta para gente como ele: o Parlamento Inglês. Veja que guinada na carreira desse homem! – E lá estava eu, um homem com capacidade e cérebro, nascido no berço de ouro do talento, morto para o mundo de Gobstown! Eu apodrecia como um nabo sob o melhor e o mais amaldiçoado dos senhores. No fim, não pude aguentar – nenhum homem de espírito aguentaria. “Um dia, peguei minha bengala, cuspi nas mãos e parti para a casa do meu primo. Ele não me deu boas-vindas. Eu o informei como estavam as coisas em Gobstown. Disse-lhe que deveríamos ter permissão para construirmos nosso próprio nome como produtores de um exemplo notável de proprietário. Meu primo inclinou a cabeça um pouco para o lado e disse, “Neste país, exemplos notáveis somente deveriam ser usados com muita moderação”. Olhou pela janela e depois de algum tempo disse “Esse senhor de Gobstown é o lunático mais perigoso de toda a Irlanda”. “Como assim?”, perguntei. “Porque”, respondeu meu primo famoso, “ele tem um coração perfeito”. Ele pendeu a cabeça para o outro lado, olhou para mim e falou, “Se Gobstown não fizer alguma coisa, ele poderá nos destruir a todos”. “Como?”, perguntei. “Ele pode tornar-se contagioso”, disse meu primo. “Pense apenas se o exemplo dele for seguido e a Irlanda se transformar em um vasto território de Gobstowns! Não seria qualquer outro destino bem melhor do que este?” Eu, que sabia disso, respondi: “Deus sabe que seria”. “Meu primo suspirou pesadamente. Afastou-se de mim, deixando-me lá de pé na cozinha; e eu o vi pegar uma escada e ir em direção ao sótão. Subiu por ela e desapareceu entre as vigas escuras. Eu podia ouvi-lo remexendo em algum lugar sob o telhado de sapé. Logo em seguida, ele desceu pela escada, com um revólver em uma mão e um punhado de cartuchos na outra. Não disse uma palavra e eu também não disse uma palavra. Ele veio até mim, colocou o revólver em minha mão e o punhado de cartuchos no meu bolso. Foi até a lareira e lá permaneceu com as costas voltadas para mim. Eu fiquei onde estava, um moicano de Gobstown, com a arma na mão. Finalmente, eu disse:


“Para que é isso?” e coloquei o revólver no chão. Meu primo não respondeu de imediato. Ao final, falou sem se mover “É para mexer o seu chá, para que mais seria?”. Olhei para ele, que permaneceu como estava, e, com o suor brotando do pescoço, deixei meu primo e atravessei os campos em direção à minha casa. As balas chacoalhavam no meu bolso a cada vala que eu saltava, a sensação do revólver em minha mão ficava mais familiar e menos hostil. “Finalmente cheguei ao alto de uma pequena colina verde, de onde se descortinava Gobstown, e lá me sentei. A vista de Gobstown provocou-me náusea. Nada vinha de lá, exceto um pouco de fumaça de turfa das chaminés – fiapos pequenos, pálidos e escassos que balançavam ao vento. Aí está, pensei, o apogeu de Gobstown. E de lá não veio nenhum som, exceto o cacarejar dos gansos e, em seguida, o berro de um velho asno no pântano. Aí está, pensei, a ruína de Gobstown. E levantando-me da colina verde, decidi salvar a Irlanda da influência de Gobstown, mesmo que para isso perdesse minha própria alma. Eu colocaria uma bala no coração sublime do nosso bondoso senhor. “Naquela noite deitei-me atrás de uma vala. A lua brilhava atrás de mim. O bondoso senhor passou por mim na estrada – ele e sua bondosa esposa, conversando, felizes como um casal de amantes. Tateei ao redor em busca do revólver. Um estranho sentimento me dominou. Nem mesmo levantei a arma. Não tive coragem. Estremeci. Os passos deles eram como as batidas de um martelo na minha cabeça. Naquele minuto eu soube, então, que eu era inútil e que Gobstown estava perdida para sempre... O que aconteceu comigo? Quem pode saber ao certo? Muitas vezes perguntei a mim mesmo o que teria ocorrido comigo naquele momento. Só posso supor. Nenhum dos meus jamais fora extorquido. Jamais alguém do meu próprio povo fora despejado. Nenhum juiz do tribunal olhou para mim, no banco dos réus, com ar de desprezo e dirigiu-se a mim com palavras duras. Nunca ouvi o som metálico da porta da prisão fechando-se atrás de mim. Nenhum policial da real força irlandesa jamais bateu em minha cabeça com o cassetete. Nenhum rifle jamais atingiu a carne do meu corpo. Não fiquei com cicatrizes que pudessem enru-


bescer com as lembranças. As memórias que tive e que poderiam me encorajar não foram memórias de senhores. Eu não guardava no coração nenhum rancor do senhor de Gobstown. E ele passou por mim. Arrastei-me para fora da vala e afundei o revólver de meu primo no pântano. Em seguida, joguei lá o punhado de balas. Elas fizeram um pequeno gorgolejar na água escura como o sangue escorrendo da garganta de um homem baleado. Na mesma noite fui para casa, coloquei algumas coisas em um lenço vermelho e como um ladrão saí de Gobstown às escondidas. Caminhei pelas estradas até chegar a esta cidade, aprendi meu ofício, tornei-me um respeitável sapateiro e – diga para a sua mãe que só uso o melhor couro. Aqui estão suas botas, Padna. Gorjeta e serviço completo – dois xelins. Obrigado, espero que elas durem!

Tradução: Thelma Squillante e Maria Leonor da Costa Cione


criação: angela kina | carlos santana


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