A senhora Dowey mostra suas medalhas

Page 1

Governo do Estado de SĂŁo Paulo | Secretaria da Cultura Caixa EconĂ´mica Federal | Poiesis

James M. Barrie




Nota Introdutória

O Programa Formativo para Tradutores Literários de 2016 consistiu, entre outros trabalhos, na tradução coletiva da peça em um ato The Old Lady Shows Her Medals, do escritor e dramaturgo escocês James M. Barrie. Para os mais desavisados Barrie (1860-1937) é o autor do mundialmente aclamado clássico da literatura infantil Peter Pan. De origem humilde (o pai era fiandeiro e a mãe, filha de um pedreiro), Barrie era o nono de dez irmãos. Sempre interessado por teatro e literatura, buscou caminhos, ingressando na Universidade de Edimburgo e, posteriormente, trabalhou como jornalista; em 1885 mudou-se para Londres para iniciar a carreira de escritor freelancer, produzindo textos humorísticos para revistas. Seu primeiro sucesso teatral foi Auld Licht Idylls, um retrato em esquetes da vida escocesa, que lhe valeu elogios da crítica. Seguiram-se outros trabalhos, alguns melodramáticos, outros de mistério, outros com toques de humor; vários deles se tornaram filmes, encenações, peças radiofônicas e televisivas. O maior sucesso, entretanto, foi a publicação (e encenação) de Peter Pan, em 1904. A versão impressa, porém, somente apareceu em 1911, e até hoje a história do garoto que, criado pelas fadas, não queria crescer e vivia no mágico reino da Terra do Nunca, desperta o interesse de crianças, jovens e adultos. Autor de cerca de 20 obras, entre peças, romances e contos, além de artigos para jornais, Barrie tem em The Old Lady Shows Her Medals, cujo título, nesta tradução, é A Senhora Dowey Mostra Suas Medalhas, uma de suas melhores obras para teatro. Publicada em 1918 na coletânea de peças em um ato Echoes of War, já foi encenada inúmeras vezes mundo afora e também transformada em filme, musical e produções no rádio e na televisão. A trama envolve um retrato do front doméstico da Primeira Guerra Mundial: narra a história da velha e solitária faxineira, Sra. Dowey, que, a partir de uma notícia de jornal, “adota” um jovem soldado, pois não quer se sentir “inferior” às suas amigas, que estão sempre conversando e competindo sobre qual delas tem o filho em posição mais alta no exército, qual deles é o mais valente. A partir daí, a trama se complica com a chegada do


“filho adotado” que, em licença do exército vem a Londres e, por obra de um reverendo, conhecido da Sra. Dowey, é levado para a casa dela, a sua suposta “mãe”. Vemos como se desenvolvem as relações entre “mãe” e “filho”, duas figuras solitárias que arriscam um jogo de faz de conta, criando um rico e vívido quadro da triste e sofrida experiência da guerra, da solidão de duas criaturas em busca de uma família, num misto de comédia, de expressão do vazio e da ânsia de preenchê-lo; uma trama que, ao mesmo tempo, encanta, emociona, diverte e, mais do que qualquer outro aspecto, sutilmente nos fornece um retrato da amarga experiência da guerra – no front e longe dele –, de como duas almas solitárias decidem se arriscar a investir uma na outra em busca de algum bálsamo para suas vidas. Considerada uma das melhores peças de James M. Barrie, A Senhora Dowey Mostra Suas Medalhas foi um trabalho ao qual nosso grupo se dedicou com enorme empenho, e que, esperamos, projete para o público brasileiro mais uma obra notável desse grande dramaturgo. Que ela se junte a Peter Pan. Alzira Allegro


Participantes: Anderson Mezzarano Lucarezi Antonia Marisa Rodrigues Brandão Caíque Oliveira dos Santos Cecília Silva Furquim Marinho Cesar Luiz Veneziani Daniela Lopes Vilarinho David D. Defensor Edilene Pereira Possibom Erika Perosa S. Jurdi Juliana Danielle Gasparin Karina Araújo Leonardo Pinto Silva Liana Amaral Liana Lopes de Souza Lilian Moreira Mendes Livia Almeida C. Campos Maria Angélica Carvalho Maria Regina Sá M. Canova Maura Costa Cimini Milena Durante Naia V. Gomes da Silveira Nair Ferraz Natalia Consonni Cesana Paula Rubia Baltazar Paula Sacrini Espírito Santo Roberto Fabra Simone Kormanski Thelma Squillante Vera Maluf Vitor P. Visconti dos Santos Alzira Leite Vieira Allegro: professora e coordenadora dos trabalhos Armando Olivetti: revisão




A senhora Dowey mostra suas medalhas James M. Barrie (1861-1937)



[Enquanto tomam chá, três simpáticas velhinhas e uma trapaceira mais simpática ainda conversam a respeito da guerra. A trapaceira, que é a anfitriã, refere-se a essa pequena reunião como “um prato de chá”, o que revela que ela vem da Caledônia (ou seja, da Escócia), mas não foi esse o seu “delito”. Todas elas trabalham como faxineiras em Londres, porém três delas, incluindo a anfitriã, são o que, profissionalmente, se pode chamar de “domésticas e...”, ou simplesmente “es”. Uma “e” é também zeladora, quando necessário; é dessa maneira que o nome dela está registrado a tinta em um livro de registros; transações financeiras ocorrem sobre o balcão entre ela e o secretário e, falando de maneira geral, ela pertence a uma classe social muito diferente de alguém que, como a sra. Haggerty, é faxineira e nada mais. A sra. Haggerty, embora presente, não se juntou ao grupo por ter sido convidada; ao ver a sra. Dowey comprando os mariscos, ela a seguiu escada abaixo – e, desse modo, arrastando os pés, acabou entrando na peça e, contra nossa vontade, sentou-se lá. Nós a removeríamos à força, ou pelo menos imprimiríamos seu nome em letras bem pequenas, não fosse pelo fato de que ela se melindra com muita facilidade e diz que ninguém a respeita. Portanto, sra. Haggerty, já que a senhora veio parar aqui, sente-se ali, mas mantenha-se calada. Por hora, nada há para a sra. Dowey, nossa anfitriã, em termos de zeladoria, mas isso não lhe arrefece o entusiasmo, já que, para alguém como ela, o serviço de zeladoria significa apenas um extra em termos financeiros e lhe confere uma aura de prestígio em termos sociais. Se ela tivesse a honra de receber uma intimação cobrando-lhe imposto, ela provavelmente preencheria um daqueles desagradáveis campos com as palavras – “Ofício – faxina. Profissão (se aplicável) – Zeladora”. A casa dela (da qual, de vez em quando, para fazer uma faxina para você, ela se ausenta temporariamente em grande estilo, escoltando uma carriola) localiza-se em uma daquelas ruas para as quais não damos a menor importância, e que só descobrimos que existe quando nos perdemos; e quando as descobrimos, é nosso dever comunicar a existência delas às autoridades que, imediatamente, as incluem no mapa de Londres. É por essa razão que estamos informando a existência da Friday Street. No esboço bem rústico que fizemos para os jornais de amanhã, vamos chamá-la de “Rua na qual residia a trapaceira”; no mapa você verá a residência da sra. Dowey marcada com um X.


Na verdade, a moradia dela consiste em um único cômodo, mas ela sustenta que há dois; portanto, melhor do que argumentar, digamos que existem dois. O outro não tem janela, e lá suas velhas saias sempre acabam esbarrando em alguma coisa; o que mais se destaca no local é uma ostensiva exposição de panelas de estanho e uma faiança, dispostas sobre um baú com tampa; para erguer a tampa, é preciso remover os utensílios que estão sobre ela, e eis que surge uma banheira com água quente e fria. A sra. Dowey tem muito orgulho dessa peça e, quando a exibe – o que talvez ocorra com bastante frequência –, ela, primeiramente, sinaliza com os punhos cerrados (que criatura divertida!), convidando você a se aproximar delicadamente. Em seguida, na ponta dos pés, ela caminha até o baú e, de supetão, levanta a tampa, como se quisesse apanhar a banheira desprevenida. Depois, ela suga os lábios e, se você fizer a gentileza de emitir uma exclamação de surpresa, ela se fará de modesta. No cômodo verdadeiro há uma cama, embora essa seja uma maneira sucinta demais de colocar a questão. A maneira justa de começar, se é que gostamos da sra. Dowey, é dizer-lhe que é uma lástima que ela não tenha uma cama. Se ela estiver no melhor de seu humor, dará uma risadinha discreta e concordará que a falta de uma cama é uma verdadeira provação para suas dores no corpo; ela irá deixá-lo, por assim dizer, “pendurado”, durante o tempo que julgar interessante; e, em seguida, novamente com aqueles movimentos de ratazana, irá projetar a cama sobre você. Você achava que aquilo era um guarda-roupa, mas ela o puxa da parede e – veja só! – é uma cama! Nada mais há em sua moradia (que, vemos agora, constitui-se de quatro cômodos – cozinha, despensa, quarto e banheiro) que ofereça uma grande surpresa; mas está repleta de “bugigangas”, cada uma das quais ela comprou com dinheiro vivo, depois de contemplá-las com satisfação e sonhar com elas até que se tornassem sua propriedade, ou melhor, parte da proprietária – ela própria. Doweys genuínos – diriam os comerciantes –, embora provavelmente nada haja no local, exceto a cama valendo não mais que meia coroa. Sua morada fica no porão, de forma que só é possível ver a metade inferior dos que transitam acima, na calçada. Ali, à janela, em noites de verão, a sra. Dowey, às vezes, se acomoda, não para observar sem sentimentalismo um vaso com um frágil bulbo, ou, sem nenhum suspiro anelante, um pedacinho de céu; nessas ocasiões, ela sente um prazer mundano ao detectar meias furadas


e coisas afins, que, de sua posição estratégica, a ela se revelam. Você, prezado leitor ou leitora, pode passar por ali ostentando roupas vistosas e achando que elas impressionam os outros transeuntes, mas somente a sra. Dowey tem condições de revelar (e ela o faz) que as solas dos seus sapatos estão a carecer de uma boa troca. Ademais, como as partes inferiores do corpo são tão expressivas quanto o rosto para aqueles cuja perspectiva de visão torna-se dessa forma limitada, ela poderia, em um tribunal, servir de testemunha para uma multidão de transeuntes. Essas quatro animadas e excêntricas senhorinhas se divertem à mesa, deleitando-se com uma xícara de chá e revelando muito humor e perspicácia. Como se pode notar pelos seus trajes do dia a dia, seus baldes e esfregões (que também estão fazendo uma pequena pausa para o chá num canto do aposento), não se trata de uma reuniãozinha planejada de antemão. Trata-se de um evento puramente informal, o que o torna muito mais atraente – você não acha? – do que banquetes elaboradamente organizados com boa antecedência. Sabemos muito bem como eles ocorrem, sobretudo em tempos de guerra. É muito provável que a sra. Dowey tenha, por acaso, encontrado na rua a sra. Twymley e a sra. Mickleham e tenha pensado em nada mais do que entregarse a um passatempo naquele dia; então, naturalmente, o novo e instigante termo “camuflagem” – tão em voga por causa da guerra – foi mencionado e elas se inflamaram, mas, no fim das contas, a sra. Twymley se desculpou; e então, àquela maneira estranha em que uma coisa conduz a outra, o homem dos mariscos apareceu, e a sra. Dowey se lembrou que tinha aquele pote de geleia e que, da última vez, a sra. Mickleham havia arcado com as despesas; e sem demora, as três estavam descendo as escadas, seguidas da acanhada tal sra. Haggerty. Elas estão extremamente alegres; nunca houve quatro diligentes velhinhas mais merecedoras dessa pausa. Tudo o que uma mulher pode fazer em tempos de guerra elas o fazem diariamente e com muita alegria, da mesma maneira como os homens de suas respectivas famílias estão fazendo no front; e agora, com os esfregões e baldes deixados de lado, elas estão à vontade e demonstram muita jovialidade. Não pretendem, de forma alguma, discutir


condições de paz até que uma vitória definitiva esteja confirmada nos campos de batalha (Sarah Ann Dowey), até que o Kaiser seja convidado a bater em retirada (Emma Mickleham), cantando bem baixinho (Amelia Twymley). Nesse encontro para um chá, a atriz que fará o papel de sra. Dowey tem certeza de querer insinuar que nossa heroína guarda uma angústia secreta; ou seja, o tal delito. Mas você devia nos ver tirando essa ideia da cabeça dela! A sra. Dowey sabe que é uma trapaceira, porém, diferentemente da atriz, ela não sabe que está prestes a ser desmascarada; e ela é, para usar seu jeito escocês sem rodeios, a mais alegre do quarteto. Insiste em servir mais chá para suas convidadas, mas elas a rechaçam com um gesto de mão, àquela maneira agradável como fazem damas que sabem que já se fartaram de chá.] SRA. DOWEY Aceita mais um marisco, sra. Mickleham? [Na verdade, resta apenas um marisco. Mas a sra. Mickleham insinua, educadamente, que se ela pegasse esse último, ele deveria escapar nadando. É a sra. Haggerty que, mais tarde, o pega, quando pensa, equivocadamente, que ninguém a está observando. A sra. Twymley está amuada. Com certeza, alguém a contrariou. Provavelmente foi a tal sra. Haggerty.] SRA. TWYMLEY Pois digo que é isso mesmo. A TAL SRA. HAGGERTY Pois eu digo que pode ser isso mesmo. SRA. TWYMLEY Suponho que devo saber: eu, que tenho um filho prisioneiro na Alemanha. [Está tão óbvio que nesse momento ela marcou um ponto, que todos os sentimentos generosos parecem exortá-la a parar por aqui. Mas ela segue em frente, de maneira bastante inadequada.] Das que estão aqui, sou a única que tem orgulho desse desgosto. [As outras sentem uma alfinetada.] SRA. DOWEY


Meu filho está servindo na França.

SRA. MICKLEHAM O meu foi ferido em dois lugares. A TAL SRA. HAGGERTY O meu está em Salonica. [A pronúncia absurda dessa pessoa inculta provoca nas outras uma gargalhada retumbante.] SRA. DOWEY Desculpe a gente, sra. Haggerty, mas a pronúncia certa é Salônica. A TAL SRA. HAGGERTY [Disfarçando seu constrangimento.] Acho que não é, não. [Ela sente que isso não é nem um pouco convincente.] E quem fala é alguém que tem Caderneta de Poupança da Guerra. SRA. TWYMLEY Todas nós temos. [A tal sra. Haggerty começa a se lamuriar, e as outras a observam com um desdém impiedoso.] SRA. DOWEY [Restaurando a alegria.] Ah! É uma guerra terrível! TODAS [Iluminando-se.] É verdade. É a pura verdade. SRA. DOWEY [Sentindo-se encorajada.] O que quero dizer é que os homens são esplêndidos, mas eu não acho a mesma coisa dos oficiais. Esse é que é o seu ponto fraco, sra. Mickleham. SRA. MICKLEHAM [Na defensiva, mas determinada a não revelar nada que possa ser-


vir de arma para o inimigo.] Pode acreditar em mim. Não tem nada de errado com os oficiais. SRA. DOWEY Que alívio escutar isso! [É nesse instante que a tal sra. Haggerty pega o marisco que restava.] SRA. MICKLEHAM A senhora não entende muito bem de guerra nas trincheiras. Se eu tivesse um mapa... SRA. DOWEY [Umedecendo o dedo para desenhar algumas linhas na mesa.] Aqui fica o rio Somi. Então, se a gente tivesse umas barragens aqui... SRA. TWYMLEY Não ia demorar muito e a senhora ia ficar bem na linha de fogo. Cadê a sua base de apoio, minha senhora? [A sra. Dowey sente-se desalentada.] SRA. MICKLEHAM Uma coisa que vocês não entendem é que essa guerra é uma guerra de artilharia... A TAL SRA. HAGGERTY [Fortalecida depois de comer o marisco.] Garanto que a pronúncia certa é Salonica. [As outras comprimem os lábios.] SRA. TWYMLEY [Em tom grave.] Vamos mudar de assunto. Já leram a Fashion Chat desta semana? [Ela, evidentemente, a leu e a devorou, lambendo até mesmo as migalhas.] A gabardine plissada está saindo de moda. SRA. DOWEY [Suas feições envelhecidas cintilam.] Nossa! É mesmo?


SRA. TWYMLEY [Com aquele toque de arrogância que surge de grandes tópicos.] O vestido liso entrou na moda de novo, com laços de seda, que dão aquele efeito chique e charmoso. SRA. DOWEY Nossa! SRA. MICKLEHAM Confesso que nunca fui muito a favor do corte reto [pensativa, observa a falta de contornos na pessoa da sra. Twymley], mas tento aceitá-lo, pois dá um contorno agradável. [É nesse momento que os dedos da tal sra. Haggerty se fecham despretensiosamente sobre um torrão de açúcar.] SRA. TWYMLEY [Velejando na direção do espaço celestial.] Viram a Lady Dolly Kanister conversando com alguém no gradil. Ela usava um de jou muito lindo. SRA. DOWEY Ah, que pena que eu perdi isso! SRA. TWYMLEY Ela é muito conhecida como solteira, criada, esposa e operária em uma fábrica de armamentos. Ela aparece com os dois filhos na foto. A Lady Pops Babington casou usando um vestido de tule bem apertado. SRA. MICKLEHAM E que roupa ela usou para viajar na lua de mel? SRA. TWYMLEY Era um vestido de veludo creme, meio champanhe, com um corpete lindo. Ela casou com um nobre, o Coronel Chingford... “O Esnobe”; era assim que ele era conhecido em Eton. A TAL SRA. HAGGERTY


[Depois de dispor do torrão de açúcar.] Talvez ele seja mandado para a Salonica. SRA. MICKLEHAM Seja lá para onde ele for mandado, ela vai sentir as mesmas aflições que todas nós sentimos. Ela vai ficar aflita, igualzinho a nós, para receber as cartas que ele vai escrever a lápis. SRA. TWYMLEY Essas cartinhas escritas a lápis! SRA. DOWEY [Em seu doce acento escocês, timidamente, com receio de que possa estar indo longe demais.] E tem mulher em terra inimiga que recebe essas cartas a lápis e depois para de receber, igual acontece com a gente. De vez em quando é bom pensar nisso. [Ela foi longe demais. Cadeiras são empurradas para trás.] A TAL SRA. HAGGERTY Ora, faça-me o favor! SRA. MICKLEHAM Isso não é jeito de falar, sra. Dowey! SRA. DOWEY [Assustada.] Desculpa. Que um raio caia na minha cabeça se eu for uma dessas pacifistas igual a vocês. SRA. MICKLEHAM Tudo bem. Está desculpada. SRA. TWYMLEY Ouvi falar de mulheres que não têm nenhum homem na família, e por isso elas não têm nenhum parente lutando na guerra. Eu só ouvi falar delas; não me misturo com elas.


SRA. MICKLEHAM O que é que gente como nós tem a dizer pra elas? Essa guerra não é guerra delas. SRA. DOWEY [Melancolicamente.] Elas são dignas de pena. SRA. MICKLEHAM Mas o lugar delas, sra. Dowey, é dentro de casa, com as persianas fechadas. SRA. DOWEY [Apressadamente.] Pois é esse mesmo o lugar delas. SRA. MICKLEHAM Hoje eu vi uma comprando uma bandeira. Achei muita falta de vergonha. SRA. DOWEY [Com toda a modéstia.] E é mesmo. SRA. MICKLEHAM [Tentando parecer modesta, adotando uma atitude de triunfo indiferente.] Ontem eu recebi uma carta do meu filho, Percy. SRA. TWYMLEY O Alfred me mandou uma foto dele. A TAL SRA. HAGGERTY Não é muito comum receber cartas da Salonica. [Três peitos arfam, exceto – oh, céus! – o da sra. Dowey. No entanto, ela comprime os lábios tenazmente.] SRA. DOWEY [A farsante.] O Kenneth me escreve toda semana. [Exclamações ecoam pela sala. A velha e destemida criatura ergue para o alto um calhamaço


de cartas.] Olha só! Tudo carta que recebi dele. [A tal sra. Haggerty se lamuria.] SRA.TWYMLEY O Alfred mal tem tempo para escrever porque ele serve na artilharia.

SRA. DOWEY [Implacável.] As cartas que ele escreve pra senhora começam com “Querida mãe”? SRA.TWYMLEY Quase sempre. SRA. MICKLEHAM É sempre desse jeito. A TAL SRA. HAGGERTY Toda vez. SRA. DOWEY [Desferindo o golpe certeiro.] As do Kenneth começam assim: “Mamãe adorada”. [Nenhuma das outras consegue pensar numa resposta apropriada.] SRA. TWYMLEY [Fazendo o melhor que pode.] Julgando pela senhora, ele deve ser baixinho. [Era melhor ela ter ficado de boca fechada.] SRA. DOWEY Ele tem 1 metro e 88... e meio. [O clima de melancolia fica mais pesado.] SRA. MICKLEHAM


[Relutando.] Um soldado que usa kilt? Foi isso mesmo que a senhora disse? SRA. DOWEY Isso mesmo. Ele serve no famoso Regimento Black Watch. A TAL SRA. HAGGERTY [Retirando um lenço do bolso.] O Surrey Rifles é que é o regimento mais famoso. SRA. MICKLEHAM Nesse ponto, a senhora e sua Majestade, o Rei, discordam, sra. Haggerty. O Rei prefere o Buffs, que é onde está o meu Percy. SRA. TWYMLEY [Em atitude de magnanimidade.] Me dê o R.H.A. e a senhora pode ficar com todos os outros regimentos. SRA. DOWEY Não tenho nada a dizer contra o Surreys, nem contra o Buffs, nem contra o R.H.A., mas entendo que eles são só regimentos de soldados que usam bombacha. A TAL SRA. HAGGERTY Não dá para todos serem soldados que usam kilt. SRA. DOWEY [Aniquilando.] Pura verdade! SRA. TWYMLEY [Tolice da parte dela, mas ela não consegue resistir.] O seu querido Kenneth tem pernas peludas e bonitas? SRA. DOWEY Peludas e espetaculares! [Mulher perversa, mas digamos também, “Pobre Sarah Ann Dowey”, pois nesse momento surge Nêmesis, a deusa da


vingança. Em outras palavras, no topo da escadaria surge a parte menos importante do corpo de um clérigo.] SRA. MICKLEHAM É o Reverentíssimo senhor! SRA. DOWEY [Mal sabe ela o que o levou até lá.] Estou vendo que ele trocou o salto da bota. [Com relação ao sr. Willings, pode-se dizer que seu sorriso aberto chega sempre antes dele. Esse sorriso significa música em sua vida; significa que, mais uma vez, ele foi escolhido, em sua própria opinião, como a figura central de uma história instigante. Ninguém pode levar uma existência mais monótona do que ele, mas ele jamais terá consciência disso; sempre se verá a si mesmo de maneira humilde, porém exultante, como o escolhido dos deuses. Deve ter sido com relação a ele que se escreveu originalmente que aventuras são para os aventureiros. Ele as encontra em cada esquina. Por exemplo, está sempre pronto a ajudar uma velhinha a descer do ônibus e perguntar a ela se pode assisti-la em mais alguma coisa; e ela lhe diz que deseja saber onde fica a casa de carnes Maddox. Então, eis que surge aquele tipo de sorriso triunfante, que sempre se manifesta primeiro, seguido de uma explicação: “Estive lá ontem!”. Este é um mero exemplo das aventuras que mantêm o sr. Willings dentro dos padrões que se espera dele. Desde o início da guerra, seu entusiasmo pela vida tornou-se quase angustiante. Ele mal consegue apanhar um jornal e ler a respeito de um herói sem lembrar que conhece alguém com o mesmo nome. O Soldier’s Rest, o abrigo de soldados ao qual ele está ligado, foi no passado um empório de porcelana, e – guardem bem o que digo! – foi lá que ele comprou seu jogo de chá. Assim é a vida quando se está completamente mergulhado nela. Por vezes, ele sente como se fizesse parte de um gigantesco drama de espionagem. No curso de suas extraordinárias idas e vindas ele se encontra com Grandes Personagens, é claro, e é o recipiente confidencial de notícias secretas. Antes de comunicar a notícia, ele não exibe, como seria de se esperar, seu sorriso aberto; pelo contrário, seu semblante assume uma solenidade terrível, que, no entanto, significa a mesma coisa. Ao anunciar os nomes das personagens, ele primeiro olha ao redor para se certificar de que não há nenhuma figura suspeita por perto e, então, diminuindo o tom de


voz, diz: “Fiquei sabendo pelo próprio sr. Farthing – o secretário da região de Bethnal Green – Shhh!... Silêncio!”. Há algum alvoroço na busca de uma cadeira digna para o “reverente” e também algum desdobrar de mangas; mas ele permanece de pé e, com seu sorriso triunfante, fica a observar as velhinhas. Esse homem extraordinário sabe que está prestes a marcar mais um ponto.] SR.WILLINGS [Dispensando as cadeiras com um gesto de mão.] Obrigado. Não se preocupem. Minhas amigas, trago notícias. SRA. MICKLEHAM Notícias? A TAL SRA. HAGGERTY Do front? SRA. TWYMLEY É sobre o meu Alfred, senhor? [Subitamente todas elas ficam ansiosas – todas, exceto a anfitriã, que sabe que, para ela, jamais haverá qualquer notícia do front.] SR. WILLINGS Preciso dizer, logo de início, que está tudo bem. A notícia é para a sra. Dowey. SRA. DOWEY [Com os olhos fixos nele.] Pra mim? SR. WILLINGS Seu filho, sra. Dowey – ele ganhou uma licença de cinco dias. [Ela sacode levemente a cabeça – ou talvez seja apenas um leve tremor na base.] Calma! Calma! Notícia boa não mata ninguém! SRA. TWYMLEY


Que coisa boa, sra. Dowey!

SRA. DOWEY O senhor tem certeza? SR. WILLINGS Certeza absoluta. Ele acabou de chegar. SRA. DOWEY Ele está em Londres? SR. WILLINGS Está. Falei com ele. SRA. MICKLEHAM Mulher de sorte! [É provável que elas tenham percebido que a sra. Dowey não demonstra estar se sentindo uma mulher de sorte, mas a experiência lhes diz que as pessoas reagem diferentemente umas das outras a situações como essa.] SR.WILINGS [Maravilhando-se cada vez mais à medida que desvela sua história.] Senhoras, é uma história muito interessante. Eu estava na... [ele olha ao redor com muita cautela, mas sabe que pode confiar nelas] sede da organização evangelista Church Army da Central Street, tentando descobrir o paradeiro de um ou dois de nossos soldados desaparecidos. De repente, meus olhos – não sei dizer como – mas, de repente, meus olhos pousaram em um montanhês da região das Highlands, que parecia muito deprimido, sentado em um banco, com a mochila ao lado. A TAL SRA. HAGGERTY Ele era um homem parrudo? SR. WILLINGS Um sujeito alto e musculoso. [A tal sra. Haggerty emite um gemido.] “Meu amigo”, eu disse imediatamente, “bem-vindo à terra Natal.” Fiz


questão de dizer “Terra Natal”. E perguntei a ele: “Há algo que eu possa fazer para ajudá-lo?”. Ele balançou a cabeça negativamente. “Qual é o seu regimento?”, perguntei. [Nesse ponto, o sr. Willings, muito apropriadamente, diminuindo o tom de voz, sussurra.] “Black Watch, 5º Batalhão”, ele respondeu. “Seu nome?”, perguntei. “Dowey”, ele respondeu. SRA. MICKLEHAM Não me diga! Que surpresa!

SR. WILLINGS [Com a ajuda de uma cadeira, demonstra como tudo foi feito.] Coloquei a mão no ombro dele, assim. “Kenneth Dowey”, eu disse, então, “conheço sua mãe”. SRA. DOWEY [Umedecendo os lábios.] E o que foi que ele falou? SR. WILLINGS Ele me pareceu desconfiado. Na verdade, tive a impressão de que ele achou que eu era maluco. Mas eu me ofereci para trazê-lo imediatamente até a senhora. Eu disse a ele quanto a senhora havia me contado a respeito dele. SRA. DOWEY Pois então traga-o aqui! SRA. MICKLEHAM Mas será mesmo que ele precisa ser trazido até aqui? SR. WILLINGS Ele tinha acabado de chegar e estava muito desorientado no meio da cidade grande. Ele me ouviu daquele jeito carrancudo dos escoceses e depois soltou uma risada bem estranha. SRA. TWYMLEY


Risada? SR. WILLINGS [Cuja vida turbulenta o coloca em contato com gente de todo tipo.] Os escoceses, sra. Twymley, expressam suas emoções de forma diferente de nós. Para eles, lágrimas significam alegria contagiante, enquanto muita alegria significa que eles estão mergulhados em profunda depressão. Quando terminei, ele logo disse: “Então vamos ver a velhinha”.

SRA. DOWEY [Recuando, no primeiro movimento que faz desde que ele começou a história.] E ele... está vindo? SR. WILLINGS [Exultante.] Já veio. Está lá em cima. Eu disse a ele que primeiro seria melhor eu dar a ótima notícia à senhora. [Três mulheres correm até a janela. A sra. Dowey olha para a porta da despensa, mas é provável que se lembre de que não há tranca do lado de dentro. Ela se levanta, fica estática; seu rosto está muito pálido.] SRA. DOWEY Por favor, o senhor pode pedir a elas pra irem embora? SR. WILLINGS Minhas senhoras, acho que não há necessidade de permanecerem aqui nessa ocasião tão especial. [Não é de seu feitio pedir a uma mulher que faça um sacrifício que ele próprio não está preparado para fazer.] Eu também já estou me retirando. [Todas elas observam a sra. Dowey e compreendem – ou acham que compreendem – a situação.] SRA. TWYMLEY [Segurando o balde e o esfregão.] Eu não faria questão nenhuma da companhia de ninguém se o meu Alfred estivesse chegando.


SRA. MICKLEHAM [Também apanhando seus apetrechos de limpeza.] Concordo. Posso pedir para ele descer, sra. Dowey? [A velha senhora não a ouve. Aterrorizada, fica à escuta de passos na escada.] Veja só a pobrezinha, senhor! Toda feliz! Está segurando as cartas dele nas mãos. [As três mulheres se retiram. O sr. Willings coloca uma mão afetuosa no ombro da sra. Dowey. Ele acha que compreende perfeitamente a situação.]

SR. WILLINGS A senhora tem um bom filho, sra. Dowey; prova disso são as cartas que ele lhe envia com tanta assiduidade. [Nossa velha trapaceira estremece, mas segura as cartas com mais firmeza. O soldado Dowey desce as escadas.] Dowey, meu amigo, ei-la esperando-o com as cartas que você enviou a ela. DOWEY [Com semblante melancólico.] Que ótimo! [Cavalheiro refinado que é, o sr. Willings sobe as escadas sem olhar para trás; e os Dowey são deixados a sós, cada um em um canto extremo da sala. Dowey é uma fatia rústica da Escócia, desentranhada dela mais liberalmente do que de forma ordenada; trajando o uniforme do Regimento Black Watch, está todo enlameado; com seu equipamento do exército e quase todos os seus pertences presos às costas, ele é uma aparição um pouco menos assustadora (mas muito menos esfarrapada) do que a de seus ancestrais que, no século XVIII, trotavam com o Príncipe Charlie – o Jovem Pretendente à coroa inglesa –, a caminho de Derby. Ele permanece de pé, em silêncio, fitando, com o cenho franzido, a velha senhora, desafiando-a a erguer a cabeça; e ela gostaria muito de fazê-lo, ansiosa que está por ter um primeiro vislumbre de seu filho. Quando ele resolve falar, zomba dela.] DOWEY E então? A senhora não está reconhecendo seu filho querido? [“Ah, que cheirinho gostoso de escocês que ele tem!”, pensa ela.]


SRA. DOWEY [Trêmula.] Estou muito feliz com as cartas que o senhor me enviou com tanta frequência. [“Ah, mas ele está aborrecido!”, pensa ela. Com passadas largas, ele caminha até ela e, bruscamente, toma-lhe as cartas das mãos.] DOWEY Vejamos o que temos aqui. [O pacote de cartas está atado com um barbante; ele o desata e as examina sem pressa e com muita curiosidade. Os envelopes estão dispostos em ordem, todos endereçados a lápis à sra. Dowey, e ostentam a altiva expressão “Aberto pelo Censor”. Porém, o papel no interior dos envelopes está totalmente em branco.] DOWEY Nada, a não ser folhas em branco! Foi a senhora que escreveu isso a lápis no envelope? [Com um sinal de cabeça, ela aquiesce. e ele considera a questão com mais profundidade.] Aquele sujeito me disse que a senhora trabalha como faxineira. Então, suponho que a senhora pega os envelopes dos cestos de lixo ou coisa parecida e muda o endereço, certo? [Ela aquiesce novamente com a cabeça, mas ainda não ousa levantá-la; está admirando as pernas dele. Entretanto, quando ele está prestes a jogar as cartas no fogo, ela se inflama subitamente e as agarra.] SRA. DOWEY Senhor, não queima essas cartas! DOWEY Mas não são cartas de verdade! SRA. DOWEY Elas são tudo o que eu tenho. DOWEY [Voltando a ser irônico.] Eu achei que a senhora tinha um filho.


Não tem? SRA. DOWEY Nunca tive nenhum homem na minha vida, nem filho nem ninguém. Só me apresento como “senhora” para ser mais respeitada. DOWEY Bem, isso vai muito além do que eu consigo compreender. [Ele se volta para as paredes em busca de alguma explicação. Finalmente, ela dá uma espiada rápida nele. Ah, que corpo magnífico! Ah, que passos firmes! Ah, que fúria nobre! Ah, Sansão foi assim antes de ser controlado por aquela mulher.] DOWEY [Rodopiando ao redor dela.] Por que a senhora fez isso? SRA. DOWEY A guerra era de todo mundo, senhor, menos minha. [Ela agita os braços.] E eu queria que fosse a minha guerra também. DOWEY A senhora precisa ser mais clara. E, mesmo assim, se eu ouvir o que a senhora tem a dizer, sua velha trapaceira, estou perdido. [As palavras são meramente o que se esperava e, portanto, toleráveis; mas ele se encaminha para a porta.] SRA. DOWEY O senhor não está indo embora, está? DOWEY Sim, estou. Só vim até aqui para lhe passar um sabão. SRA. DOWLEY [Estendendo os braços com muita ansiedade.] Mas o senhor ainda não me passou nenhum sabão.


DOWEY Como a senhora é atrevida! SRA. DOWEY [Dando mais provas de seu atrevimento.] Não quer um chazinho? DOWEY Nem pensar! Fique sabendo que vim até aqui com o único objetivo de lhe dizer umas boas verdades. [Trata-se de uma recusa tão estrondosa que a faz cair sentada numa cadeira. Porém, no mesmo segundo, essa vivaz senhorinha se levanta novamente.] SRA. DOWEY O senhor podia beber o chá enquanto vai me dizendo as suas verdades; ah, também tem uns mariscos prontinhos. DOWEY Ah, é mesmo? [Mostrando-se interessado, ele se encaminha para a mesa, mas seu altivo temperamento escocês o reprime – o que está muito certo, pois ela já deveria ter dito que antes havia mariscos.] Não. Não. Não quero. A senhora é uma embusteira como qualquer outra. [Ele se senta longe da mesa.] Muito bem, vamos lá! Ponha tudo para fora! Sente-se aqui! [Submissa, ela se senta; não há nada que ela não faça por ele.] Como a senhora faz faxina, imagino que fique de pé o dia inteiro. SRA. DOWEY Fico mais tempo de joelhos. DOWEY Pois é exatamente assim que a senhora deveria estar diante de mim. SRA. DOWEY Ah, senhor! Estou disposta a fazer isso. DOWEY Não faça! Continue, sua grande mentirosa!


SRA. DOWEY É verdade que meu nome é Dowey. DOWEY Isso é motivo suficiente para eu mudar o meu. SRA. DOWEY Faço faxina e mais faxina e mais faxina desde que me lembro. Faz 20 anos que moro em Londres. DOWEY Vamos pular essa parte do início. Eu tenho um compromisso. SRA. DOWEY E então, quando eu já era velha, a guerra começou... DOWEY E como foi que ela afetou a senhora? SRA. DOWEY Ah, senhor, aí é que está. A guerra não me afetou. Ela afetou todo mundo, menos eu. Os vizinhos começaram a me desprezar. Até os cartazes pendurados nas paredes, com aquela mulher dizendo “Vá, garoto!”, olhavam para mim com maldade. Às vezes, eu chorava sozinha no escuro. Não quer mesmo uma xícara de chá? DOWEY Não. SRA. DOWEY De repente eu tive a ideia de fingir que tinha um filho. DOWEY Sua velhota trambiqueira! Mas por que diabos a senhora me escolheu entre todos os outros soldados do Exército Britânico?


SRA. DOWEY [Com uma risadinha. Não há dúvida de que na sua juventude, ela foi uma inveterada namoradeira.] Talvez, senhor, porque eu gostei mais do senhor do que dos outros soldados. DOWEY Ora! Ora, mulher! SRA. DOWEY Um dia eu li no jornal “no que ele foi socorrido pelo soldado raso K. Dowey, do 5º Batalhão, Regimento Black Watch”. DOWEY [Lisonjeado.] É mesmo? Bem, tomara que essa tenha sido a única vez em que apareci nos jornais. SRA. DOWEY [Tentando provocá-lo novamente.] Mas não foi só por isso que eu escolhi o senhor. Antes eu tinha lido uma história do Black Watch, para ter certeza que era o melhor regimento do mundo. DOWEY Qualquer um poderia ter dito isso à senhora. [Menos mal-humorado, ele se movimenta pela sala e, nesse vaivém, depara com o pão na mesa e pega uma fatia, mal se dando conta disso; mas a sra. Dowey está muito atenta.] Gosto de seu jeito escocês de falar, mulher. Flui suave como um riacho numa colina. SRA. DOWEY O Prosen Water corre bem perto do lugar onde eu nasci. Vai ver que foi ele que me ensinou a falar desse jeito, senhor. DOWEY A senhora é uma mulher muito esperta. Muito esperta. SRA. DOWEY


Eu li sobre o fantasma do tocador de gaita de fole do Black Watch, que toca com o maior orgulho quando os homens do Black Watch se dão bem, e com mais orgulho ainda quando eles são abatidos. DOWEY Tem mesmo uma história meio idiota desse tipo. [Displicentemente, ele corta outra fatia do pão.] Não é possível que a senhora estivesse morando aqui naquela época, ou eles teriam descoberto. Suponho que a senhora tenha se mudado, certo? SRA. DOWEY Mudei, sim. E gastei mais ou menos 11 libras com isso. DOWEY Como a senhora descobriu que o K de meu nome era Kenneth? SRA. DOWEY E é mesmo? DOWEY Não entendi nada! SRA. DOWEY Um anjo me cochichou quando eu estava dormindo. DOWEY Bem, esse deve ser o único anjo em toda essa história suja. [Ele dá uma risadinha.] A senhora nunca imaginou que eu ia aparecer! [Virando-se na direção dela.] Ou imaginou? SRA. DOWEY Eu estava pensando em desistir de um dia ver você, Kenneth. DOWEY Qual foi a palavra que a senhora usou?


SRA. DOWEY Senhor. [Ele se serve de manteiga e ela lhe oferece geleia; mas ele a rejeita com muita arrogância. Você está achando que agora ela se dá por vencida? De maneira alguma! Ele retoma o tom sarcástico.] DOWEY Espero que esteja contente comigo agora que está me vendo.

SRA. DOWEY Estou muito contente. Os seus pais moram na Escócia? DOWEY Em Glasgow. SRA. DOWEY Os dois estão vivos? DOWEY Sim. SRA. DOWEY Sua mãe deve ter muito orgulho do senhor. DOWEY Claro! SRA. DOWEY O senhor vai se encontrar com eles? DOWEY Primeiro vou me divertir um pouco em Londres. SRA. DOWEY [Dando uma fungadela.] Ah, então ela está em Londres?


DOWEY Ela quem? SRA. DOWEY A sua garota. DOWEY Está com ciúmes?

SRA. DOWEY Eu? Nem um pouco! DOWEY E nem precisa ficar. Ela é bem jovem.

SRA. DOWEY O senhor me assusta. Ela deve ser muito linda, não? DOWEY Pode acreditar que sim. [Ele experimenta a geleia.] Ela é uma pessoa de classe. E também é popular como criada, esposa e operária em uma fábrica de munições. [A senhora Dowey se lembra de Lady Dolly Kanister, tão familiar aos leitores de fofocas da época; uma expressão muito desconfiada surge em seu rosto.] SRA. DOWEY Fala mais sobre ela, meu rapaz. DOWEY Ela me mandou muitas coisas, principalmente bolos, e um colete de lã penteada, que chegou com um cartão e uma linda mensagem. [A velhinha encontra-se agora em estado de pura agitação. Perde o controle dos braços, que se agitam sem parar.]


SRA. DOWEY Não quer provar um dos meus bolos, senhor? DOWEY Nem pensar. SRA. DOWEY Fui eu mesma que fiz.

DOWEY Não, obrigado. [Mas numa disparada divertida ela vai até a despensa e volta. Coloca um bolo diante dele; quando o vê, ele fica boquiaberto.] SRA. DOWEY O que aconteceu? Me diz, senhor! Pelo amor de Deus, me diz, fala! DOWEY Este bolo é igualzinho ao que a tal jovem costuma me enviar! [Agora, a sra. Dowey sente-se, de fato, uma personagem absolutamente gloriosa.] SRA. DOWEY O colete serviu, senhor? Espero que as cores do Black Watch tenham sido do seu agrado. DOWEY Como é que é? Então foi a senhora? SRA. DOWEY Não me atrevi a dar o meu nome verdadeiro, sabe? Eu sempre lia o dela nos jornais. [Pela última vez, o jovem, exasperado, aproxima-se dela, com um ar ameaçador.]


DOWEY A senhora não tem jeito mesmo! SRA. DOWEY Está muito bravo comigo? [Com um gemido, ele se senta.] DOWEY Ah, que inferno! Me dê um pouco de chá! [Ela se apressa em preparar uma refeição para ele; cada pedacinho dela queria gritar para outro pedacinho: “Gloria! Glória! Glória!”. Por alguns instantes, ela para atrás da cadeira onde ele está sentado.] SRA. DOWEY Kenneth! [Ela murmura.] DOWEY O que é? [Pergunta, agora sem ter consciência de que ela está tomando liberdades.] SRA. DOWEY Nada. Só estou dizendo Kenneth. [E, tomada por intensa alegria, vai buscar a chaleira. Mas quando ela lhe serve o chá e ele o beberica, o instinto de autopreservação retorna entre duas mordidas.] DOWEY Minha senhora, não pense nem por um único segundo que a senhora me conquistou. SRA. DOWEY Não! De jeito nenhum! [Com base nesse entendimento, ele relaxa.] Vou ao teatro hoje à noite, e depois vou cair na farra. SRA. DOWEY Ora! Kenneth, esse é um primeiro encontro bem estranho!


DOWEY Estranho mesmo, mulher – ah! É verdade. (Cautelosamente.) E é também o último! SRA. DOWEY Pois é. Pois é. DOWEY Então, um brinde a vocês – balde e esfregão. Ave atque vale. SRA. DOWEY O que é que isso quer dizer? DOWEY Quer dizer “Saudações e Adeus”. SRA. DOWEY O senhor é uma pessoa estudada? DOWEY Como sou escocês, não tem praticamente nada que eu não saiba. SRA. DOWEY O que é que o senhor fazia antes da guerra? DOWEY Fui carroceiro, vidraceiro, fazia bicos e qualquer tipo de serviço pesado. SRA. DOWEY O senhor é o tipo do homem que a gente gosta de ficar olhando. DOWEY As pessoas geralmente me admiram mesmo. SRA. DOWEY


Ela é uma mulher de sorte.

DOWEY Ela quem? SRA. DOWEY A sua mãe. DOWEY É mesmo? Ah, isso foi só para me proteger da senhora. Não tenho nem pai nem mãe, nem esposa, nem avó. [Com expressão amargurada.] Esta criatura aqui nunca nem mesmo chegou a saber quem foram seus orgulhosos pais. SRA. DOWEY [Resplandecente.] É... é verdade? DOWEY Juro que é verdade. SRA. DOWEY Deus seja louvado! DOWEY Ah, não é nada disso! Fui um idiota em contar-lhe essa história. Mas não pense a senhora que pode tirar vantagem disso. Me passe o bolo. SRA. DOWEY Acho que a gente nunca mais vai se ver de novo, Kenneth, mas... mas se isso acontecer, estou aqui pensando... onde será? DOWEY Não vai ser neste mundo. SRA. DOWEY Ninguém pode dizer... [Olhando de soslaio, tentando cair nas


graças dele.] Podia bem ser em Berlim. DOWEY Espertinha! Se um dia eu for a Berlim, acho que vou topar com a senhora me esperando lá! SRA. DOWEY Com uma xícara de chá na mão prontinha para você.

DOWEY É. [Com muito entusiasmo.] E um chá muito bom. [Depois de se refestelar, ele, agora, está com excelente humor.] SRA. DOWEY Kenneth, na volta a gente podia passar em Paris! DOWEY A mulherada adora Paris! SRA. DOWEY Ah, Kenneth, Kenneth! Se pelo menos uma vez antes de morrer eu tivesse um daqueles lindos vestidos de corpete que as mulheres costumam usar em Paris! É meu sonho! DOWEY Vocês são todas iguais – um bando de velhotas! Existe até uma canção sobre isso. [Ele canta.] Dona Val vai muito mal Não há remédio para seu tédio Exceto ver o Jardin des Tuileries E saracotear no Louvre lá em Paris [Nenhuma canção teve tanto sucesso quanto essa. A sra. Dowey se contorce de tanta alegria. Quando se recompõe – quando ambos se recompõem, pois agora formam um par –, ela grita.] SRA. DOWEY Você precisa me ensinar a cantar essa. [Ela se retira can-


tando também.] Dona Dowey vai muito mal Não há remédio para seu tédio DOWEY Pare com isso! [Mas ela termina os versos.] SRA. DOWEY Exceto usar um vestido de Paris E saracotear lá no Louvre [Ambos jogam a cabeça para trás. Ela aponta para ele; ele aponta para ela.] SRA. DOWEY [Em êxtase.] Que perna peluda! [Uma observação insana, que o traz de volta à realidade; ele lembra quem e o que ela é.] DOWEY Tenha modos! [Levantando-se.] Bem... obrigado pelo chá. Preciso ir. [Pobre sra. Dowey! Ele está colocando a mochila às costas.] SRA. DOWEY Onde você está hospedado? DOWEY [Suspirando.] Aí é que está a questão. Tem um lugar chamado A Cabana, onde estão alguns recrutas do 2º Batalhão. Vou ficar lá com eles. [Amargurado.] A cavalo dado não se olham os dentes. SRA. DOWEY Cavalo dado? DOWEY Nunca estive aqui em Londres antes. Ah! Se a senhora soubesse [um ar de melancolia se apodera dele] o que é estar num lugar como este


sem ter nenhum amigo! Fiquei louco de felicidade quando consegui minha licença, pensando que, finalmente, eu ia conhecer Londres; mas depois de ficar vagueando pelas ruas durante quatro horas, até comecei a sentir falta das trincheiras. [“Se a senhora soubesse”, ele disse; na verdade, a velhinha sabe.] SRA. DOWEY Eu também sinto esse infortúnio, Kenneth. [Solidário, ele concorda com um aceno da cabeça.] DOWEY Sinto muito, minha velhinha [acomodando a mochila às costas], mas não vejo saída para nenhum de nós dois. SRA. DOWEY [Murmurando.] Não vê mesmo? DOWEY Lá vem a senhora de novo! [Ela sabe que é agora ou nunca. Deixou as melhores táticas para o final. Está tão exultante que se levanta e abaixa nas pontas dos pés.] SRA. DOWEY Kenneth, ouvi dizer que não tem nada que um soldado em licença gosta mais do que uma cama com um lençol limpinho e um bom banho. DOWEY É a maior verdade do mundo. SRA. DOWEY Então vai até a despensa, Kenneth Dowey, levanta o tampo daquele baú e me diz o que você vê. [Ele vai até lá. Silêncio absoluto. Impressionado, ele retorna.] DOWEY Aquilo é uma espécie de banheira!


SRA. DOWEY Dá pra você se virar muito bem com ela, metade de cada vez. DOWEY Eu? SRA. DOWEY Tem uma mulher do outro lado da parede que está disposta a me emprestar uma cama improvisada até a sua licença terminar. DOWEY [Com ar de deboche.] Ah, é mesmo? [Ela ainda não o conquistou, mas tem um último trunfo.] SRA. DOWEY Kenneth, veja isso! [Apenas com essas palavrinhas, ela faz surgir a cama. Não diz mais nada; falar qualquer coisa poria a perder todo o efeito disso. Felizmente, ele é de carne e osso. Ele vibra.] DOWEY Santo Deus! É desse o truque que precisamos nas trincheiras! SRA. DOWEY Aí está a sua cama, Kenneth. DOWEY Minha? [Ele é puro sorriso agora.] Sua velha maluca! Por que tanto interesse num idiota como eu? SRA. DOWEY Ha! Ha! Ha! Ha! DOWEY Fique sabendo de uma coisa. Eu sou a pessoa mais comum do mundo.


SRA. DOWEY E eu sou a velhota mais comum do mundo. DOWEY Nunca tive onde morar. Sempre vivi vagando por aí e não sou um grande soldado na guerra. SRA. DOWEY Você é, sim. Quantos alemães você já matou? DOWEY Dois com certeza, mas não tem glória nenhuma nisso. Foi só porque eles queriam a minha camisa. SRA. DOWEY A sua camisa? DOWEY É. Eles disseram que a camisa era deles. SRA. DOWEY E já fez prisioneiros? DOWEY Uma vez prendi meia dúzia, mas isso também foi uma coisa que não gostei de fazer. SRA. DOWEY Como é que um homem pode prender meia dúzia? DOWEY Do jeito mais comum. Eu cerquei os seis. SRA. DOWEY Kenneth, você é o meu herói!


DOWEY A senhora se contenta com pouca coisa. [Novamente, ele se volta para a cama.] Vamos ver como essa coisa funciona. [Ele apalpa o colchão, e o resultado é tão satisfatório que ele põe a mochila no chão.] Muito bem, minha velha senhora, já que insiste, vou ficar aqui. SRA. DOWEY Ah! Ah! Ah! Ah! [A alegria dela é tamanha que ele se vê forçado a adverti-la.] DOWEY Mas preste atenção; não aceito a senhora como parente. Para se exibir, a senhora pode continuar fingindo para os vizinhos, mas o máximo que posso lhe dizer é que a senhora está em período de experiência. Sou um tipo precavido e precisamos ver como a senhora vai se sair. SRA. DOWEY Combinado, Kenneth. DOWEY E agora, acho que está na hora daquele banho. O teatro começa às 6 e meia. Um sujeito que eu conheci num ônibus vai comigo. SRA. DOWEY [Um pouco apreensiva.] Tem certeza que vai voltar para cá? DOWEY Tenho. Tenho. [De um jeito magnânimo.] Vou deixar minhas coisas aqui como garantia. SRA. DOWEY Promete que não vai beber demais? DOWEY [Rindo.] A senhora é a primeira pessoa que se importa se eu bebo ou deixo de beber. [Nada do que ela disse deu ao pobre solitário tanta


alegria quanto isso.] Prometo. Velhinha esperta, estou começando a gostar de ideia de ser acordado de manhã, ouvindo a senhora gritar “Levanta, seu porco preguiçoso!”. Sempre senti um pouco de inveja dos homens que tinham mulheres na família com liberdade para dizer isso para eles. [Ele está a caminho da banheira, quando uma ideia divertida lhe vem à cabeça.] SRA. DOWEY O que foi, Kenneth? DOWEY O teatro. Seria bem chamativo se eu levasse uma dama comigo. [A sra. Dowey sente o peito palpitar.] SRA. DOWEY Kenneth, me diz agorinha mesmo o que é que você quer dizer com isso. Não me deixa agoniada. [Ele a faz girar.] DOWEY Não. Não vai dar certo. SRA. DOWEY Era em mim que você estava pensando? DOWEY Só por um momento [demonstrando pesar], mas a senhora não tem classe nenhuma. [Ela o segura pela manga da camisa.] SRA. DOWEY Com essa roupa, claro que não tenho. Mas, ah, Kenneth, se você me visse em meu vestido de lã merino! Tem um laço nas costas – a última moda. DOWEY


Hmmm... [Hesitando.] Vamos dar uma olhada nele. [Com uma pressa quase indecorosa, a velhinha corre e abre uma gaveta; de lá emerge o vestido. O connoisseur o examina com um olhar crítico.] DOWEY Até que não é feio. A senhora tem algum chiffon, alguma coisa para pôr no pescoço? Não é em nada sofisticado, nem da Tipperary ou da altura do Kaiser, que os homens das trincheiras pensam; é em coisas bem simples, como um lenço. SRA. DOWEY Juro que tenho, Kenneth. E tenho também um bracelete e um protetor bem quentinho para as mãos e um par de luvas. DOWEY Está bem, está bem. [Ele fica pensando.] Acha que conseguiria deixar seu rosto menos sem graça? SRA. DOWEY Claro que sim. DOWEY Então, podemos tentar. Mas, veja bem, não prometo nada. Tudo vai depender do efeito. [Ele entra na despensa, e a sra. Dowey fica sozinha. Não propriamente sozinha, pois está em meio a um torvelinho de expectativas fascinantes e temores medonhos. Eles sorriem para ela e zombam dela; arrastam-na de um lado para outro. Com dificuldade, ela se livra deles e corre na direção do balde, da água quente, do sabão e de um espelho. No último vislumbre que temos dela nessa noite, nós a vemos contemplar não sem contentamento seu rosto suave e envelhecido, lamber a palma da mão e alisar o cabelo. Seus olhos cintilam.] [Certa noite, alguns dias mais tarde, as sras. Twymley e Mickleham estão na casa da sra. Dowey, aguardando o seu retorno de alguma diversão então em moda. Sem dúvida, elas conversavam a respeito da guerra, pois estas são as primeiras palavras que captamos.]


SRA. MICKLEHAM Pois eu lhe digo francamente, Amelia; não ajoelho de jeito nenhum ao poderio dos alemães. SRA. TWYMLEY Cá entre nós, perto dessa lareira, você e eu, de uma para a outra, o que você acha que vai acontecer depois da guerra? Será que a gente vai voltar a ser o que era? SRA. MICKLEHAM Falando por mim, Amelia, eu não vou. A guerra me fez acordar e me fez descobrir minha própria importância, e isso é realmente uma coisa impressionante. SRA. TWYMLEY Penso igualzinho a você. Em vez de ser essas moscas mortas que gente como nós achava que fosse, a gente vira uma parte bem visível de um império grande e atrevido. [A conversa já está bem adiantada, e com um pouco de sorte, podemos então ouvir o que elas pensam a respeito de várias questões correntes à época, tais como o descaso da ciência em nossas escolas públicas. Mas, lá vem a tal sra. Haggerty, que arruína tudo. Como as outras, ela está usando, por assim dizer, seus trajes de domingo; mas o efeito disso é que parece que suas roupas saíram para passear e ela ficou em casa.] SRA. MICKLEHAM [Demonstrando profundo desagrado.] Lá vem aquele submarino de novo.[A tal sra. Hag gerty se encolhe diante delas e não obtém nenhum encorajamento.] A TAL SRA. HAGGERTY É uma guerra terrível. SRA. TWYMLEY Você acha mesmo?


A TAL SRA. HAGGERTY O que será que vai acontecer quando ela acabar? SRA. MICKLEHAM Não tenho a menor ideia. [A intrusa retira o lenço do bolso, mas não o usa. Afinal de contas, ela está usando seus trajes de domingo.] A TAL SRA. HAGGERTY Eles ainda não voltaram? [Damas exemplares não podem deixar de responder a uma pergunta direta.] SRA. MICKLEHAM Não [em tom gélido]. Já faz meia hora que estamos esperando. Eles foram ao teatro de novo. A TAL SRA. HAGGERTY Não me diga! Dei uma passadinha aqui só para deixar uma lembrancinha para ele, já que a licença dele está acabando. SRA. TWYMLEY A gente também veio só para isso. A TAL SRA. HAGGERTY Meu presentinho é um pacote de cigarros. [Elas não têm a menor intenção de revelar que presentes trouxeram, mas o segredo escapa.] SRA. MICKLEHAM O meu também. SRA. TWYMLEY E o meu também. [Vitória da tal sra. Haggerty, mas não por muito tempo.]


SRA. MICKLEHAM Os meus têm a ponteira dourada. SRA. TWYMLEY Os meus também. A TAL SRA. HAGGERTY [Não precisa dizer nada. Basta olhar para ela para saber que os cigarros que ela traz não têm a ponteira dourada. Ela tenta enfrentar a situação com galhardia, o que frequentemente é um grande erro.] O que importa? O meu é Hallywood. [Não é surpresa que elas deem risadinhas.] SRA. MICKLEHAM Desculpe, sra. Haggerty – se é esse mesmo o seu nome –, mas o certo é Hollywood. A TAL SRA. HAGGERTY Muito agradecida! [E começa a choramingar.] SRA. MICKLEHAM Acho que ouvi barulho de táxi. SRA. TWYMLEY Já é o terceiro dela nesta semana. [Elas espreitam através da persiana. Estão tão agitadas que a hierarquia é deixada de lado.] A TAL SRA. HAGGERTY Muito agradecida! [Choramingando.] SRA. MICKLEHAM Ele deu pra ela um novo casaco de astracã, com mangas vênus. A TAL SRA. HAGGERTY Ela vendeu o de gabardine?


SRA. MICKLEHAM Imagina! Mesmo nessa noite quente, ela foi ao teatro usando os dois, o de astracã e carregando o de gabardine, jogado assim com displicência no braço. A TAL SRA. HAGGERTY Eu vi quando ela passou se pavoneando toda na companhia dele ontem, como se achasse que os dois estavam desfilando. SRA. TWYMLEY Shhh! [Espiando lá fora.] Que caia um raio na minha cabeça se ela não está descendo as escadas toda afetada e enganchada no braço dele! [De fato, é dessa maneira que a sra. Dowey entra. Talvez ela tenha visto as sombras espiando pela persiana e, então, imediatamente, ela tenha se enganchado no braço de Kenneth para impressionar as visitas. Ela é bem capaz disso. Agora sabemos o que Kenneth viu naquela tarde, 5 dias antes, quando ele emergiu da ‘sala de banho’ e encontrou a velhinha tremendo de ansiedade, aguardando a inspeção dele. Lá estão o protetor quentinho para as mãos e o par de luvas e o lenço de chiffon e uma espécie de toucado antigo que, de imediato, provoca risos. Não sei como descrevê-lo, mas está ajeitado com esmero, como toucados devem ser quando a usuária é velha e frágil. Precisamos ver o vestido de lã merino com naturalidade, até que ela tire o astracã. Ela estava muito elegante; quanto a isso, não há dúvida. Sim, mas será que o seu rosto está menos simplório? Acima de tudo, será que ela tem “classe”? A resposta é definitivamente “sim”. Pergunte a Kenneth. Ele sabe. Várias vezes ele corre para trás da porta para rir da velha senhora a bandeiras despregadas. Para ele, ela oferece um ótimo motivo para divertir seus companheiros dentro em pouco; mas por alguma razão que ele não consegue compreender, ele também sabe que jamais fará isso.] SRA. DOWEY [Fingindo surpresa.] Kenneth, temos visita! DOWEY Seu criado, madames.


[Ele agora não está nem enlameado nem carrancudo. Esse soldado raso, Dowey, é um tipo muito inteligente; e ele dá uma piscadela cativante às visitas, como alguém que sabe que, quando se deseja uma companhia alegre, faxineiras são imbatíveis. Quanta amabilidade ele e elas trocaram durante essa semana! Quanto atrevimento ele concedeu a elas! A perspicácia da sra. Mickleham; os gracejos da sra. Twymley; as risadinhas geniais da tal sra. Haggerty. Não há nada melhor do que isso, essas velhinhas são impagáveis.]

SRA. TWYMLEY Pedimos desculpas. Não vamos demorar. SRA. DOWEY Vocês são muito bem-vindas. Esperem só um minutinho. [Que ostentação!] Vou tirar meu astracã... e o meu protetor quentinho para as mãos... e a minha luva... e [chegou a vez do toucado] meu Excelsior. [Finalmente nós a vemos em seu vestido de lã merino – um verdadeiro triunfo.] SRA. MICKLEHAM O senhor deu a ela momentos gloriosos, sr. Dowey. DOWEY Foi ela que me deu momentos gloriosos, senhora. SRA. DOWEY Ei! Ei! Ei! Ele me paparica muito. [Ela agita os pulsos.] Que Deus nos perdoe, mas como essa é a última noite, a gente foi num restaurante! [Com veemência.] Juro por Deus que bebemos um champanhe. [Faz-se um silêncio mortal, e ela sabe muito bem o que isso significa; ela até já se preparou para isso.] E para as que estão duvidando de mim, olha a rolha aqui. [Ela coloca a rolha com um lindo arranjo dourado sobre a mesa.] SRA. MICKLEHAM Não duvido não!


SRA. TWYMLEY Eu lhe agradeço, sra. Dowey, por não dizer nada contra o meu Alfred. SRA. DOWEY Eu? DOWEY Basta! Basta, minhas senhoras! [Com aquele jeitinho habilidoso a que dificilmente as mulheres resistem.] Se disserem mais alguma coisa, vou dar um beijo em cada uma! [Por alguns momentos, segue-se uma cena de alegre confusão.] SRA. MICKLEHAM Realmente! Esses soldados! A TAL SRA. HAGGERTY Os que usa kilt é os pior! SRA. TWYMLEY [Com muita sinceridade.] Não pense que a gente não tem inveja dos mimos que a senhora recebeu, sra. Dowey; a gente até sente muito que isso está chegando ao fim. DOWEY Pois é. Está acabando. [Lançando um olhar apreensivo para a velha Dowey.] Preciso sair em 10 minutos. [A pobre criatura é valente demais para perder o controle diante do grupo. Corre para a despensa e fecha a porta.] SRA. MICKLEHAM Pobrezinha! Mas a gente precisa ir andando, pois o senhor com certeza ainda quer trocar umas palavrinhas com ela. DOWEY Eu resolvi sair com ela por mais tempo de propósito, justamente para ter menos tempo para conversar aqui dentro. [Na verdade, mais


do que nunca ele gostaria agora de correr para um botequim.] SRA. TWYMLEY O senhor agiu muito certo. [Nas questões importantes da vida não há muito mais a ensinar a uma doméstica.] Isso é apenas uma lembrancinha – para lhe desejar tudo de bom, sr. Dowey. [As três o presenteiam com os cigarros.]

SRA. MICKLEHAM Um agradinho, como se diz. A TAL SRA. HAGGERTY [Com uma expressão enigmática.] É de coração, mesmo sem a ponteira dourada. DOWEY Vocês são incríveis! AS TRÊS Boa sorte, seu convencido! DOWEY Igualmente para as senhoras. E se virem lá em cima um soldado de kilt, é ele que vai voltar comigo. Digam a ele para não descer, mas... mas para esperar até o último minuto, e então assobiar. [Ele agora está sozinho e muito circunspecto, refletindo sobre o que fazer em seguida. Tenta dar uma gargalhada, mas isso em nada o ajuda. Diz “Diabos!” para si mesmo, mas isso também não resolve. Então, abre a porta da despensa e chama.] DOWEY Senhora! [Ela vem timidamente até a porta, com uma mão levantada como se estivesse preparada para se proteger de um soco.]


SRA. DOWEY Já chegou a hora? [Uma voz encorajadora responde.] DOWEY Não. Não. Ainda não. Mandei recado para o Dixon assobiar quando chegar a hora.

SRA. DOWEY Acabou tudo. DOWEY Ora! A senhora me prometeu que não ia ficar triste. Combinamos de um ajudar o outro. SRA. DOWEY Está certo, Kenneth. DOWEY É ruim para mim, mas eu sei que é pior para a senhora. SRA. DOWEY Os homens têm que ganhar medalhas, não é? DOWEY As mulheres também têm as suas medalhas. [Ele sabe que ela gosta que ele lhe dê ordens; então, ele tenta fazer isso novamente.] Venha cá. Não. Eu vou até aí. [Ele se levanta, olhando, admirado, para ela. Não encontra palavras para dizer o que pensa e também não sabe muito bem o que gostaria de dizer.] Oh, Deus! SRA. DOWEY O que foi, Kenneth?


DOWEY A senhora é uma mulher! SRA. DOWEY Eu tinha quase esquecido disso. [A essas alturas, ele gostaria de já estar na estação com Dixon. Com certeza, Dixon tem uma garrafa no bolso. Dali a pouco, eles estarão cantando bem alto uma canção. Mas nesse ínterim... tem aquela história do filho. Bobagem! Tudo uma bobagem, é claro... ou a maior parte. Mas essa é a maneira de agradá-la.] DOWEY A senhora reparou que nunca me chamou de filho? SRA. DOWEY E como reparei! Eu estava com medo, Kenneth! Você disse que eu estava em período de experiência. DOWEY E estava mesmo, mas ele já acabou. [Ele ri, constrangido.] Mas que tipo de gente sou eu? Se a senhora quiser, posso ser seu filho. SRA. DOWEY E será que eu vou querer, Kenneth? DOWEY [Ardilosamente alegre.] Mulher, não seja tão atrevida! Espere até eu fazer o pedido. SRA. DOWEY Pedido para eu ser sua mãe? DOWEY E por que não? [Em grande estilo.] Sra. Dowey, sua criatura estranha, sua pequena corajosa e atrevida, permita-me fazer-lhe a pergunta mais importante que um órfão abandonado pode fazer a uma velha senhora. [Ela está transbordando de tanta felicidade. Quem resistiria a isso? O


rapaz tem um jeito tão especial!] SRA. DOWEY Pode parar com esse atrevimento, Kenneth! DOWEY Não é possível, sra. Dowey, que durante todo esse tempo, a senhora não tenha percebido meus sentimentos filiais pela senhora.

SRA. DOWEY Espera aí! Vou pegar o esfregão e... DOWEY E se a senhora não quiser ser minha mãe, eu juro que nunca vou pedir isso para mais nenhuma outra mulher. [A velha brincalhona puxa-o para junto de si e o afaga na cabeça.] Fui uma criança bem comportada, mamãe? SRA. DOWEY Nem um pouco, filhinho... você foi um moleque encapetado. DOWEY Demorei muito para aprender a andar? SRA. DOWEY Foi o que aprendeu mais rápido lá na nossa rua. Ha! Ha! Ha! [Ela se levanta de um salto.] Ele apitou? DOWEY Não. Não. Preste atenção. Se me assumir como filho, a senhora, por assim dizer, passa a fazer parte do Black Watch. SRA. DOWEY Gostei disso, Kenneth.


DOWEY Então a senhora vai ter que se comportar direitinho, para deixar o fantasma do tocador de flauta orgulhoso da senhora. Sentido! [Corajosamente, ela assume a posição de ‘sentido’.] É assim mesmo. Agora escute bem o que vou dizer. Dei o seu nome como sendo meu parente mais próximo, e a senhora vai receber o seu abono toda semana, regularmente. SRA. DOWEY Ei! Ei! Ei! Isso não é errado, Kenneth? DOWEY Vou me responsabilizar por isso nos dois mundos. Veja bem, quero que a senhora fique protegida caso alguma coisa acon... SRA. DOWEY Kenneth! DOWEY Sentido! Não tenha medo! Eu vou voltar coberto de lama e de medalhas. Pode me esperar com aquela xícara de chá prontinha. [Ele está atento, esperando o assobio. Puxa-a para junto de si.] SRA. DOWEY Ei! Ei! Ei! Ei! DOWEY A gente vai se divertir muito escrevendo um para o outro! E dessa vez, cartas de verdade! SRA. DOWEY Isso mesmo! DOWEY Vai ser uma boa ideia se a senhora escrever a primeira carta logo depois que eu for embora.


SRA. DOWEY Combinado. DOWEY Espero que a Madame Dolly continue a me mandar bolos. SRA. DOWEY Pode ter certeza disso. [Ele amarra o seu cachecol no pescoço dela.] DOWEY A senhora deve ter sido muito magrinha, esquelética, quando era jovem. SRA. DOWEY Dá o fora daqui! DOWEY Este cachecol lhe cai muito bem. SRA. DOWEY Azul sempre foi minha cor preferida. [Eles ouvem o assobio.] DOWEY Minha velhinha, agora a senhora é o que a minha Pátria significa para mim. [Novamente, ela se esconde na despensa. Não conseguimos vê-la, mas ela faz alguma coisa que leva o soldado Dowey a tirar a boina. Em seguida, ele coloca a mochila nos ombros e sai. E agora, lá está ele com Dixon, dando uma risada grosseira.] [Temos um último vislumbre da velhinha – um mês ou dois depois de Kenneth morrer em combate. Poderíamos vê-la em seus trajes de luto, dos quais ela tem muito orgulho; mas contentemo-nos em espreitá-la nos trajes familiares, que, com seu esfregão e seu balde, formam um conjunto de três. É


ainda bem cedo, e ela está contemplando suas medalhas antes de partir para o turno diário. Elas estão guardadas em uma gaveta, cobertas pelo cachecol de Dowey, e sobre o cachecol um galhinho de alfazema. Primeiro, o vestido preto que ela carrega nos braços como se fosse um bebê. Em seguida, seus Certificados de Poupança de Guerra, a boina de Kenneth, um magro pacote de cartas verdadeiras e a famosa rolha do champanhe. Sem cair no choro, ela beija as cartas. Acaricia o vestido, meneia a cabeça sobre os certificados, pressiona a boina contra a bochecha e, usando o avental, esfrega cuidadosamente o ouropel da rolha. Vemos uma pobre criatura trêmula, porém exultante, pois agora ela é proprietária de todas essas coisas e também da medalhinha que traz no peito. Ela guarda tudo de volta na gaveta, o cachecol por cima, e sobre ele o galhinho de alfazema. Seu ar de triunfo lhe cai bem. Ela apanha o balde e o esfregão e, encurvada, parte corajosamente para a labuta do dia a dia.] FIM




Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.