Uma modesta proposta

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Apresentação A tradução de “A Modest Proposal”, de Jonathan Swift – parte principal do módulo Prosa do Curso Formativo de Tradução Literária de 2014/2015 – foi o resultado do trabalho feito na oficina, em pequenos grupos, pelos alunos das duas turmas. Após ricas e profícuas discussões em busca de algum consenso, o que, em tradução literária sempre se configura um enorme desafio quando não uma “doce ilusão”, alguns grupos apresentaram sua proposta final de tradução; cada uma delas foi avaliada cuidadosamente e um texto definitivo e único, que aqui se encontra, buscou contemplar as soluções consideradas mais adequadas em cada proposta. Vale dizer que, como coordenadora e responsável pela edição definitiva, exerci o direito – e a prerrogativa – de fazer minhas escolhas dentre as opções que foram apresentadas; utilizei como base principal o texto produzido pelos alunos Adriano Aprigliano, Bruno Gambarotto, Guilherme Mazzafera e Maíra Mendes Galvão, o qual avaliei mais adequado, porém nele fiz algumas alterações e ajustes que as também preciosas propostas dos outros grupos sugeriam; os nomes de todos aqueles que se envolveram no trabalho estão listados abaixo. Agradeço a todos, indistintamente, pela valiosa contribuição, pelo grande empenho, pela seriedade, pelo senso de responsabilidade e pela dedicação aos trabalhos propostos. Esperamos que a memorável sátira de Jonathan Swift, com suas reflexões ‘absurdas’, porém, muito ‘lógicas’, lance um pouco de luz neste conturbado mundo contemporâneo, em que tantos valores vêm sendo subvertidos. Boa leitura! e, no fim das contas, a mesma em qualquer rincão do universo.

Coordenadora: Alzira Leite Vieira Allegro


Participantes: Adriano Aprigliano Alessandro Funari Bruno Gambarotto Camila Franco Batista Carlos David O. Soares Daniela G. A. Antoniazzi Daniela Rigon Débora Donadei Diego Fracari Erika Nogueira Vieira Fábio Bonillo Fabíola Cardoso Fernanda Romero F. Engel Flora Vaz Manzione Guilherme Mazzafera S. Vilhena Juliana Frutuoso Vieira Laura S. M. Chagas Maíra Mendes Galvão Marcelo Dias Almada Marcelo Maneo de Oliveira (in memoriam) Maria Cristina Fukushima Marina Hion Oswaldo Paião Rafael M. Romão Renato Santana dos Santos Samanta B. de Abreu Thelma Squillante Vera Helena P. Maluf Victor Toscano


Uma modesta proposta para evitar que os filhos dos pobres da Irlanda sejam um fardo aos pais e ao país, e para torná-los úteis ao público Jonathan Swift (1667-1745)


É objeto de melancólica tristeza àqueles que passam por esta grande cidade ou viajam pelo campo, ver as ruas, as estradas e as portas dos casebres apinhadas de pedintes do sexo feminino, acompanhadas de três, quatro ou seis crianças, todas em andrajos, importunando cada transeunte por uma esmola. Essas mães, em vez de poderem trabalhar honestamente para sobreviverem, são forçadas a empregar todo o seu tempo perambulando em busca de sustento de sua prole indefesa, cujos membros, ao crescer, ou tornam-se ladrões à falta de trabalho, ou deixam sua querida terra natal para lutar em favor do Pretendente ao trono na Espanha, ou se vendem a Barbados.

Creio ser consensual a todas as partes que esse prodigioso nú-

mero de crianças nos braços, ou nas costas, ou nos calcanhares de suas mães, e amiúde nos de seus pais, acrescenta-nos, no deplorável estado atual do reino, um enorme agravo; portanto, quem quer que possa encontrar um método justo, barato e fácil de tornar essas crianças membros sadios e úteis à comunidade bem merece que o povo lhe erija uma estátua como protetor da nação.

Minha intenção, porém, está muito distante de se limitar a aten-

der apenas os filhos de pedintes professos; ela é de muito maior alcance e deverá abarcar o número integral de crianças de determinada idade, nascidas de pais efetivamente tão pouco capazes de sustentá-las quanto os que imploram por nossa caridade nas ruas.

Quanto a mim, tendo me debruçado ao longo de muitos anos

sobre esse importante assunto e examinado com sensatez os mais variados esquemas propostos por outros, sempre os considerei inteiramente equivocados nos cálculos. É bem verdade que uma criança recém-parida pode ser sustentada pelo leite materno ao longo de todo um ano solar praticamente sem necessidade de nutrição suplementar – no máximo, não passaria de 2 xelins, que a mãe certamente pode obter em espécie ou em migalhas, em sua lícita ocupação de mendicante; e é justamente com a idade de um ano que


proponho provê-las de tal maneira que, em vez de se tornarem um fardo aos pais ou à paróquia, ou de carecerem de ração e vestimentas pelo resto de suas vidas, elas possam contribuir para a alimentação e, em parte, para o vestuário de milhares de outras crianças.

Há, ainda, outra grande vantagem em meu projeto, qual seja o de

evitar esses abortos voluntários e aquela prática horrenda, tão frequente entre nós – Oh, céus! – de mulheres que assassinam seus bastardos, sacrificando os pobres bebês inocentes, suspeito eu, mais para evitar gastos do que a vergonha, o que suscitaria lágrimas e compaixão no mais selvagem e desumano dos corações.

Sendo o número de almas neste reino geralmente estimado em

um milhão e meio, destas calculo que haja por volta de 200 mil casais cujas mulheres são reprodutoras, dos quais subtraio 30 mil casais em condições de sustentar seus filhos, embora entenda que não possam existir tantos assim, em face do atual estado de calamidade em que se encontra o reino; mas, isto posto, restarão 170 mil reprodutoras. Novamente, subtraio 50 mil referentes às mulheres que sofrem aborto espontâneo ou cujos filhos morrem por acidente ou doença no primeiro ano de vida. Restam, então, apenas 120 mil crianças nascidas anualmente de pais pobres. A questão, por conseguinte, é como esse contingente há de ser criado e sustentado, o que, como eu já disse, no presente estado das coisas, é decididamente impossível por todos os métodos até aqui propostos, pois não podemos empregá-las nem em manufatura nem na agricultura; não construímos casas (no campo, quero dizer); tampouco cultivamos a terra. Raramente elas conseguem garantir seu sustento, roubando, enquanto não atingem a idade de 6 anos, à exceção dos especialmente talentosos, embora eu admita que estes aprendem os rudimentos muito mais cedo, tempo no qual, contudo, podem ser considerados apenas aprendizes, como me informou um influente cavalheiro do condado de Cavan, que contra-argumentou jamais ter conhecido mais do que um ou dois exemplares abaixo


de 6 anos de idade, mesmo em uma parte do reino tão célebre por sua notável proficiência nessa arte.

Garantem-me nossos mercadores que, antes de chegar aos 12

anos, um menino ou menina não se constitui mercadoria vendável; e, mesmo quando atingem tal idade, não renderão mais do que 3 libras – quando muito, 3 libras e meia coroa – no mercado, o que não traz qualquer vantagem aos pais ou ao reino, sendo os custos com andrajos e alimentação ao menos quatro vezes esse valor.

Destarte, procedo humildemente à minha proposta, que, espe-

ro, não será passível da menor objeção.

Assegurou-me um douto cidadão de meu círculo social em Lon-

dres que uma criança de um ano de idade, saudável e bem criada, constitui alimento dos mais deliciosos, substanciais e saudáveis, seja cozido, assado, grelhado ou ensopado; e não tenho dúvidas de que seria igualmente apreciado como fricassê ou guisado.

Submeto, portanto, à apreciação pública, minha proposta de que,

das 120 mil crianças já computadas, 20 mil sejam reservadas para reprodução, das quais somente uma quarta parte será de machos, o que é mais do que permitimos com relação a carneiros, gado de corte ou suínos; e meu argumento é que essas crianças raramente são fruto de casamento – uma circunstância não muita cara aos nossos selvagens; assim, um macho será suficiente para cobrir quatro fêmeas; e que as 100 mil restantes possam, à idade de um ano, ser postas à venda a pessoas de estirpe e fortuna pelo reino afora, sempre aconselhando à mãe que as deixe sugar à vontade no último mês, para que fiquem bem roliças, dignas de uma boa mesa. Uma criança renderá dois pratos em um festim entre amigos; e, para uma ceia em família, o quarto dianteiro ou traseiro fará um prato razoável, que, temperado com um pouco de sal ou pimenta e cozido, terá, no quarto dia, especialmente no inverno, o sabor mais apurado.


Calculo que, em média, uma criança recém-nascida pesa 12 li-

bras e, dentro de um ano solar, se nutrida de modo razoável, chega a 28 libras.

Reconheço que esse repasto será especialmente caro e, por con-

seguinte, muito apropriado aos grandes proprietários de terras, os quais, já tendo devorado boa parte dos pais, parecem ter primazia sobre os filhos.

A temporada de carne infantil perdurará por todo o ano, mas

será mais abundante em março – e um pouco antes e um pouco depois –, pois ouvimos de um respeitável escritor e eminente médico francês, que sendo o pescado uma dieta prolífica, nascem mais crianças em países católicos romanos cerca de 9 meses depois da Quaresma do que em qualquer outra época do ano; portanto, calculando um ano após a Quaresma, os mercados estarão mais abastecidos do que o normal, pois o número de infantes papistas é de ao menos três para um neste reino; e, destarte, haverá mais uma vantagem colateral: a redução do número de papistas entre nós.

Já estimei que os encargos com a criação de um filho de pedinte

(em cujo rol incluo todos os aldeões e lavradores e quatro quintos dos camponeses) são de 2 xelins por ano – andrajos inclusos; acredito que gentil-homem algum queixar-se-ia de oferecer 10 xelins pela carcaça de uma criança sã e roliça, que, como já afirmei, renderá quatro pratos de carne deveras nutritiva, quando houver apenas um amigo ou a própria família para lhe fazer companhia no jantar. Assim, o cavalheiro aprenderá a ser um bom senhorio e a granjear popularidade entre os arrendatários; a mãe terá um lucro líquido de 8 xelins e estará apta a trabalhar até produzir outra criança.

Aqueles mais frugais (e, devo confessar, os tempos atuais o exi-

gem) poderão pelar a carcaça; a pele, artisticamente tratada, fará primorosas luvas para senhoras e botas de verão para cavalheiros distintos.

Quanto a nossa cidade de Dublin, podem-se criar matadouros

para esse fim nas áreas mais convenientes, e estejamos seguros de que não


faltarão açougueiros, embora eu recomende que as crianças sejam adquiridas ainda vivas e destrinchadas quentes à faca, como fazemos para assar porco.

Um mui digno cidadão, deveras fiel a seu país e cujas virtudes

tenho em altíssima conta, recentemente, sentiu grande satisfação em discutir a matéria comigo, oferecendo-se para burilar meu plano. Tendo em vista que muitos cavalheiros deste reino recentemente dizimaram seus cervos, imaginou ele que essa carência poderia ser perfeitamente suprida com os corpos de rapazotes e moçoilas, com idade não inferior a 12 nem superior a 14 anos, uma vez que grande número de jovens de ambos os sexos estão agora em vias de quedar famélicos à falta de trabalho e assistência; bastaria que os pais, se vivos, ou os parentes mais próximos, dispusessem deles. No entanto, com a devida deferência a tão nobre amigo e tão louvável patriota, não posso partilhar inteiramente de sua opinião, pois no que toca aos jovens do gênero masculino, meu amigo americano garantiu-me por constante experiência que essa carne é geralmente magra e rija, como a de nossos meninos em idade escolar, em virtude de exercício físico contínuo, e seu sabor é desagradável; submetê-los a um regime de engorda não valeria o esforço. No caso das fêmeas, penso, muito humildemente, que seria grande perda para o público, pois estas logo poderiam tornar-se reprodutoras; ademais, não é improvável que alguns mais cheios de pruridos morais venham a se sentir inclinados a censurar tal prática (não obstante isso seja de todo injustificável) como beirando a crueldade, o que, confesso, tem sido a minha maior objeção a qualquer projeto, por mais bem-intencionado que seja.

Todavia, fazendo justiça a meu amigo, admite ele que tal projeto

lhe veio à mente graças ao famoso Psalmanazar, nativo da ilha de Formosa que, há mais de 20 anos, de lá veio para Londres, e em conversa contou a meu amigo que, em sua terra, quando alguma pessoa jovem era executada, o algoz a vendia como iguaria ímpar a pessoas de estirpe; e que à época o corpo de


uma menina rechonchuda de 15 anos, crucificada por tentativa de envenenamento do imperador, foi vendido ao primeiro-ministro de sua majestade imperial e a outros grandes mandarins da Corte, em peças de carne cortadas no próprio patíbulo, a 400 coroas. Na verdade, tampouco posso negar que, se a mesma finalidade fosse dada a várias jovens rechonchudas desta cidade, que, mesmo sem um único tostão por fortuna, são incapazes de circular sem que as carreguem em liteiras, aparecendo em teatros e assembleias em exóticos atavios pelos quais jamais pagarão – o reino não ficaria pior.

Algumas criaturas desalentadas alimentam muita inquietude

quanto ao grande número de pobres, velhos, doentes ou aleijados que nos afligem, e me foi solicitado que empregasse meus pensamentos em alguma ideia que se possa adotar para aliviar a nação de tão deplorável fardo. Não estou, porém, minimamente preocupado com o assunto, pois bem se sabe que, dia após dia, eles estão morrendo ou apodrecendo de frio e de fome, imundos ou cheios de vermes, com a rapidez que se pode razoavelmente esperar. Quanto aos trabalhadores mais jovens, estes se encontram em condição quase igualmente alvissareira. Não conseguem trabalho e, em decorrência disso, definham com a falta de alimento, a tal ponto que, se em algum momento são por acaso contratados para a mais comum das empreitadas, não dispõem de forças para levá-la a cabo. Sendo assim, o país e eles próprios são, providencialmente, poupados de males vindouros.

Divaguei por tempo demais; destarte, devo retornar ao meu

tema. Penso que as vantagens de minha proposta são óbvias e numerosas, bem como da mais alta relevância.

Primeiro, como já observei, ela reduziria substancialmente o

número de papistas, que ano a ano nos infestam, sendo eles não só os principais reprodutores da nação, mas também nossos mais temíveis inimigos, que permanecem em nossa terra de propósito, com o desígnio de entregar o reino


ao Pretendente, no desejo de obter vantagens pela ausência de tantos e tão dignos protestantes, que preferiram deixar o país a nele permanecer e pagar, com dor na consciência, o dízimo a um vigário.

Em segundo lugar, os arrendatários pobres estarão em posse de

algo valioso, que por lei lhes viria a ser útil numa adversidade e os ajudaria a pagar o arrendamento ao senhorio, estando já confiscados seu milho e gado – e dinheiro sendo-lhes algo desconhecido.

Em terceiro lugar, porquanto o sustento de 100 mil crianças a

partir de 2 anos de idade não se pode calcular em menos de 10 xelins por cabeça ao ano, a riqueza da nação, portanto, aumentará anualmente em 50 mil libras, sem contar o lucro que significaria a introdução de um novo prato nas mesas de todos os cavalheiros abastados do reino e que possuem algum refinamento de gosto. E o dinheiro haverá de circular entre nós mesmos, já que as mercadorias serão inteiramente produção e manufatura nossa.

Em quarto lugar, as reprodutoras mais assíduas, além da renda

de 8 xelins ao ano, resultante da venda de sua prole, ver-se-ão livres do encargo de sustentá-la após o primeiro ano de vida.

Em quinto lugar, esse repasto traria igualmente grande clientela

às tavernas, cujos proprietários terão decerto a prudência de buscar as melhores receitas para prepará-lo à perfeição e, por conseguinte, ver seus estabelecimentos frequentados por todos os mais distintos cavalheiros que, com justiça, se vangloriam de seu conhecimento da boa cozinha; e um cozinheiro habilidoso que saiba agradar a seus clientes haverá de envidar esforços para fazê-lo tão dispendioso quanto lhes apeteça.

Em sexto lugar, seria um grande estímulo ao casamento, o que

todas as nações sábias têm encorajado, seja com recompensas, seja como obrigação legal e penalidades; também aumentaria o cuidado e a ternura das mães por seus filhos, quando estiverem seguras de um acordo vitalício para


seus pobres rebentos, acordo este provido de alguma maneira pelo público, para seu lucro anual ao invés de gasto. Veríamos uma rivalidade honesta entre as mulheres casadas, disputando quem conseguiria levar ao mercado a criança mais gorducha. Os homens tornar-se-iam tão afeiçoados às suas mulheres durante o período de gravidez como são agora às suas éguas prenhes, às suas vacas pejadas ou às porcas, quando prontas para parir; eles jamais fariam menção de espancá-las ou chutá-las (como é prática muito frequente) por receio de provocar um aborto.

Muitas outras vantagens poderiam ser enumeradas. Por exem-

plo, o acréscimo de alguns milhares de carcaças em nossa exportação de charque em barris, a difusão da carne de suínos e um aprimoramento na arte de fazer toucinho de boa qualidade, do qual estamos tão carentes devido à matança de porcos, cuja carne é muito comum em nossas mesas, e que, de maneira alguma, se compara em sabor ou magnificência a uma criança sobreana, bem nutrida e roliça, que, assada por inteiro, causará excelente impressão em um banquete do senhor prefeito ou em qualquer outra festividade pública. Omito, porém, esta e muitas outras, zeloso que sou da brevidade.

Supondo que mil famílias nesta cidade sejam consumidoras

constantes de carne de criança, além de outras que o fariam em reuniões festivas, sobretudo em casamentos e batizados, calculo que Dublin livrar-se-ia de 20 mil carcaças por ano, e as 80 mil dos sobejos seriam destinadas ao restante do reino (onde provavelmente serão vendidas a um preço menor).

Não me ocorre qualquer objeção que possa ser levantada contra

essa proposta, a menos que se alegue que, desse modo, o número de pessoas do reino tornar-se-á muito reduzido. Isso eu livremente encampo: na verdade, esse era um desígnio central de meu projeto quando o submeti ao mundo. Rogo ao leitor que observe que o remédio que proponho aplica-se única e individualmente ao Reino da Irlanda e a nenhum outro que jamais tenha existi-


do, exista ou, creio, jamais possa existir na face da Terra. Que homem algum, portanto, me venha falar de outros expedientes tais como: tributar os não residentes em 5 xelins por libra; abdicar de roupas e móveis que não tenham sido desenvolvidos e manufaturados em nosso próprio país; rejeitar completamente materiais e instrumentos que fomentem luxos do estrangeiro; curar o excesso de gastos de nossas mulheres com seu orgulho, vaidade, ócio e jogatina; introduzir entre nós um veio de parcimônia, prudência e temperança; aprender a amar nosso país naquilo em que nos diferenciamos dos lapões e dos habitantes da terra dos Tupinambás; abandonar nossas animosidades e facções, não mais agindo como os judeus, que assassinavam uns aos outros no momento exato em que sua cidade era tomada; exercer um pouco mais de cautela para não vendermos nosso país e nossa consciência a troco de nada; ensinar os proprietários de terras a ter ao menos um mínimo de misericórdia por seus arrendatários; por fim, investir nossos comerciantes de um espírito de honestidade, diligência e habilidade, pois se decretado fosse que, daqui em diante, somente seria permitido comprar produtos nacionais, eles se uniriam imediatamente para nos enganar e extorquir em preço, quantidade e qualidade, e jamais se prestariam a fazer um acordo justo, embora sejam sempre instados com muito empenho a fazê-lo.

Em vista disso, reitero: que homem algum me venha falar desses

e outros expedientes, até que tenha apanhado um vislumbre de esperança de que uma tentativa genuína e sincera possa ser feita para colocá-los em prática.

Quanto a mim, todavia, quebrantado que me sinto depois de

tantos anos oferecendo pensamentos vãos, inúteis e visionários; e, por fim, já sem qualquer esperança de sucesso, felizmente ocorreu-me esta proposta que, sendo totalmente nova e apresentando algo de sólido e real, é isenta de qualquer ônus e traz pouco aborrecimento; ademais, está plenamente em nosso poder, e com ela não corremos o risco de desagradar a Inglaterra. De fato,


esse não é o tipo de mercadoria que pode ser exportada, pois a carne sendo de consistência assaz tenra, não admite prolongada conserva em sal, embora talvez eu possa citar o nome de um país que teria muito prazer em devorar nossa nação inteira sem ele.

Afinal, não sou tão ferrenho defensor de minha opinião a pon-

to de rejeitar quaisquer sugestões propostas por homens sábios, as quais hão de ser igualmente despretensiosas, baratas, simples e efetivas. Mas antes que algo dessa natureza venha a ser apresentado em contraponto ao meu plano, sugerindo outro melhor, desejo que o autor ou autores considerem com muita sensatez dois pontos. Primeiro: dada a atual situação do reino, como serão eles capazes de encontrar alimento e vestes para 100 mil bocas e lombos inúteis? Segundo: havendo um milhão de criaturas sob forma humana neste reino, cuja única subsistência, colocada sob a responsabilidade de todos, criaria uma dívida de 2 milhões de libras esterlinas, somando-se aqueles que são pedintes por ofício à massa de agricultores, lavradores e artesãos, com suas mulheres e crianças, que, em essência, são também pedintes, desejo que os políticos a quem minha proposta desagrada e que talvez sejam intrépidos o bastante para refutá-la com uma réplica, perguntem, antes de tudo, aos progenitores desses mortais se eles, no presente momento, não acreditariam ser uma enorme felicidade terem sido vendidos como comida com a idade de um ano, da maneira como prescrevo, e, desse modo, terem sido poupados desse perpétuo palco de infortúnios, como os que desde então padecem diante da opressão dos senhores proprietários, da impossibilidade de pagarem o aluguel – pois que não têm dinheiro ou mercadoria de troca –, da falta de sustento mínimo, sem teto ou vestes para protegê-los das inclemências do tempo, e da absolutamente inevitável perspectiva de legar à sua prole para sempre as mesmas ou piores agruras.

Declaro, com toda a sinceridade de meu coração, que não tenho


qualquer interesse pessoal em tentar promover essa obra necessária; viso única e exclusivamente ao bem comum de meu país, incentivando nosso comércio, provendo nossas crianças, aliviando o sofrimento dos pobres e dando algum prazer aos ricos. Não tenho filhos por intermédio dos quais possa tentar obter um único centavo; o mais novo deles já conta 9 anos, e minha mulher já passou da idade fértil.


criação: angela kina | renato marciano


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