Cga plaquete maio 2016 13 o ardil de hargraves rev1

Page 1

O Ardil de Hargraves O. Henry (1862-1910)


Introdução Esta nova empreitada da Oficina de Tradução da Casa Guilherme de Almeida, intitulada “Contos de Humor, Ironia e Sátira”, buscou contemplar contos da língua inglesa que retratam situações humorísticas, irônicas e satíricas, sempre revelando – ou sugerindo – uma visão crítica da sociedade e das ações humanas. Trata-se de uma coletânea de contos que inclui sobretudo autores americanos, ingleses e irlandeses: Mark Twain, O. Henry, Ring Lardner, William T. Thompson, Saki, Oscar Wilde, James Joyce e Seumas O’Kelly; entretanto, aqui se encontram também respeitados autores de outros países de língua inglesa: Premchand (Índia), Thomas C. Haliburton (Canadá) e Henry Lawson (Austrália), aparentemente pouco conhecidos no Brasil. Com isso, pretendemos mostrar a variada gama de estilos, aspectos culturais e morais de diferentes regiões e a universalidade dos sentimentos e atitudes humanas. Esperamos ter contribuído para a difusão da cultura e da literatura em tradução. Com exceção de um conto, “O Funeral de Buck Fanshaw”, de Mark Twain, que foi traduzido coletivamente, os outros foram traduzidos em pares, pequenos grupos ou, em situações especiais (casos de desistência), individualmente. A elaboração desta coletânea em tradução, é importante dizer, foi uma riquíssima fonte de aprendizado e de conhecimento para todos os participantes. A troca de informações, as discussões coletivas e as interpretações compartilhadas resultaram nestes textos que agora submetemos à apreciação do leitor, que terá a oportunidade de ler (ou reler) alguns autores conhecidos e de conhecer alguns até então desconhecidos no Brasil, mas que em seus respectivos países desfrutaram de grande sucesso. Que o humor, a ironia e a sátira aqui contidos revelem um pouco mais da face humana que, apesar de diferente aqui e acolá, revela-se, no fim das contas, a mesma em qualquer rincão do universo. Alzira Allegro Coordenadora da Oficina de Tradução


O Ardil de Hargraves O. Henry (1862-1910)


O. Henry (1862-1910) William Sydney Porter, mais conhecido por seu pseudônimo O. Henry, nasceu na Carolina do Norte, Estados Unidos. Dedicou-se aos estudos por um período curto; em 1882 foi para o Texas e, depois de tentar vários tipos de serviço, fundou um periódico semanal, The Rolling Stone; passou também a publicar narrativas bem-humoradas para uma coluna diária de um jornal de Houston. Acusado de fraude a um banco onde trabalhara, ficou preso durante três anos, período em que começou a escrever contos, com base na experiência de vida que conhecera no Texas, em Honduras (para onde havia fugido) e em outras regiões dos Estados Unidos. Tornou-se um dos mais populares contistas americanos, tendo publicado várias coletâneas, entre as quais destacam-se Cabbages and Kings (1904), The Four Million (1906), Heart of the West (1907), The Voice of the City (1908), The Gentle Grafter (1908) e Roads of Destiny (1909). Em sua obra, O. Henry revela enorme talento para o humor, a ironia e finais inesperados.


O Ardil de Hargraves Quando o Major Pendleton Talbot, cavalheiro de Mobile, e sua filha, senhorita Lydia Talbot, chegaram a Washington para fixar residência, decidiram morar numa pensão distante cerca de cinquenta metros de uma das avenidas mais tranquilas. Tratava-se de uma antiga construção de tijolos, com um pórtico sustentado por altos pilares brancos. O pátio ficava sob a sombra de majestosas alfarrobeiras e olmos, além de uma catalpa que na época da floração cobria o gramado com uma chuva de flores rosa e brancas. Fileiras de altos arbustos aparados ladeavam as passagens e cercas. O estilo e o aspecto sulistas do lugar agradaram aos olhos dos Talbots. Nessa pensão aprazível e particular, eles alugaram aposentos, inclusive um gabinete para o Major Talbot, que finalizava os últimos capítulos de seu livro: Anedotas e Reminiscências do Exército, dos Juízes e do Tribunal do Alabama. O Major Talbot era um típico sulista da velha guarda. A seus olhos, o presente tinha pouca importância ou mérito. Sua mente vivia naquele período anterior à Guerra Civil, quando os Talbots possuíam milhares de acres de terra produtora de bom algodão, e escravos para cultivá-los; quando a mansão da família era cenário de principesca hospitalidade e atraía hóspedes da aristocracia sulista. Dessa época, provinha todo seu antigo orgulho e honradez, um requinte e uma formalidade antiquados, e (como se pode logo imaginar) o seu vestuário. Com certeza, roupas como aquelas já não se encontrava quem as fizesse havia pelo menos cinquenta anos. O major era um homem alto, mas sempre que realizava aquela maravilhosa e arcaica genuflexão, a qual ele chamava de reverência, a bainha de sua sobrecasaca varria o chão. Essa peça de vestuário deixaria surpreso até mesmo Washington, que havia muito já não se espantava com os casacos e chapéus de abas largas dos congressistas do


Sul. Um dos hóspedes batizou a casaca de “Pai Hubbard”, de roda realmente ampla, e alta na cintura. Porém, o major, com todas as suas roupas estranhas, com o enorme peitilho franzido e desfiado, com o laço preto estreito que teimava em escorregar para um lado, provocava ao mesmo tempo risos e simpatia na seleta pensão da senhora Vardeman. Alguns dos jovens funcionários de escritórios costumavam ‘laçá-lo’, como costumavam dizer, e puxavam conversa com ele sobre o assunto que ele mais apreciava – as tradições e histórias de seu adorado Sul. Durante as conversas, o major fazia citações do seu Anedotas e Reminiscências. Entretanto, os rapazes tomavam todo o cuidado para que o major não percebesse seus intentos, pois apesar de seus sessenta e oito anos, ele podia desconcertar o mais ousado deles com seus olhos cinzentos firmes e penetrantes. A senhorita Lydia era uma donzela gorducha de trinta e cinco anos, de cabelos puxados para trás e firmemente trançados, o que a fazia parecer ainda mais velha. Também ela era antiquada, embora o brilho da glória dos tempos de antes da guerra não a iluminasse tanto quanto iluminava o major. Era parcimoniosa; era ela quem controlava as finanças da família e recebia a todos os que vinham fazer as cobranças. O major via as contas de hospedagem e de lavanderia como inconveniências abjetas. Elas insistiam em chegar com tanta frequência! Por quê, gostaria de saber o major, não se podia arquivá-las e pagá-las de uma só vez quando fosse mais conveniente, digamos, quando as Anedotas e Reminiscências já tivessem sido publicadas e pagas? A senhorita Lydia continuava calmamente com sua costura e dizia: – Iremos pagando à medida que forem chegando e enquanto o dinheiro durar; depois, quem sabe, teremos que deixá-las acumular. A maioria dos hóspedes da senhora Vardeman passava o dia fora, uma vez que quase todos trabalhavam em escritórios ou eram homens de negó-


cios; mas havia um que ficava pela casa a maior parte do tempo, de manhã até a noite. Tratava-se de um jovem chamado Henry Hopkins Hargraves (todos na pensão se dirigiam a ele pelo nome completo), que fora contratado por um dos mais populares teatros de vaudeville. O vaudeville vinha alcançando um nível tão respeitável nos últimos anos e o senhor Hargraves era uma pessoa tão comedida e bem educada, que a senhora Vardeman não encontrara objeções em incluí-lo entre seus hóspedes. No teatro, Hargraves era conhecido como um consumado comediante; fazia imitações de dialetos de todas as partes, com um amplo repertório especializado em alemães, irlandeses, suecos e rostos pintados de preto. Entretanto, o senhor Hargraves era um homem ambicioso e costumava falar de seu grande desejo de fazer sucesso em comédia autêntica. O jovem parecia nutrir grande admiração pelo Major Talbot. Sempre que o velho cavalheiro começava com suas reminiscências sulistas, ou repetia suas histórias mais animadas, lá estava Hargraves, seu ouvinte mais atento. Durante algum tempo, o major tentou desencorajar a aproximação do ‘saltimbanco’, como o denominava na intimidade; mas logo os modos simpáticos do jovem e a indubitável apreciação que mostrava pelas histórias do velho cavalheiro conquistaram-no totalmente. Não demorou muito para que se tornassem íntimos. O major reservava as tardes para ler o manuscrito de seu livro para ele. Durante a leitura das histórias, Hargraves sempre ria exatamente nas passagens certas. O major se comovia tanto, que um dia chegou a declarar à senhorita Lydia que o jovem Hargraves era dotado de uma percepção admirável e um gratificante respeito pelo antigo regime. E quando se tratava de falar sobre aqueles tempos – caso o Major Talbot estivesse disposto – o senhor Hargraves se maravilhava ao ouvi-lo. Como quase todos os velhos que falam sobre o passado, o major adorava deter-se em detalhes. Ao descrever os esplêndidos, quase régios dias


dos antigos fazendeiros, hesitava até que lembrasse o nome do negro que segurava seu cavalo, ou a data exata de certos acontecimentos menores, ou o número de fardos de algodão colhidos naquele ano; mas Hargraves jamais se impacientava ou perdia o interesse. Ao contrário, fazia perguntas sobre vários assuntos relacionados à vida daquela época e jamais deixava de extrair prontas respostas. A caça às raposas, o cozido de jupati, as quadrilhas e celebrações nos bairros dos negros, os banquetes nos salões da sede da fazenda, em que havia convidados que vinham de até oitenta quilômetros das redondezas; as contendas ocasionais entre a nobreza local; o duelo do major com Rathbone Culbertson por causa de Kitty Chalmers, que depois se casou com um dos Thwaites da Carolina do Sul; e as corridas particulares de iate na Baía de Mobile, envolvendo elevadas somas; as crenças estranhas, os hábitos imprudentes, a lealdade genuína dos velhos escravos – esses eram os assuntos que mantinham tanto o major como Hargraves ocupados por horas. Às vezes, à noite, quando o rapaz subia para seus aposentos, de volta de sua apresentação no teatro, o major aparecia à porta de seu gabinete e o chamava com um ar ardiloso. Ao entrar, Hargraves encontrava uma mesinha servida com uma decantadeira, um açucareiro, frutas e um grande maço de hortelã fresca. – Ocorreu-me – começava o major, sempre cerimonioso – que o senhor talvez possa achar seus deveres no... no seu local de trabalho... bastante árduos, senhor Hargraves, para poder apreciar o que o poeta poderia muito bem ter tido em mente quando escreveu “o doce restaurador da Natureza cansada” referindo-se a um de nossos julepos sulistas. Para Hargraves, era fascinante observá-lo preparar a bebida. O major se equiparava a um artista quando começava, e nunca mudava o processo. Com que delicadeza amassava a hortelã, com que perfeita exatidão media os


ingredientes; com que diligência cobria o composto com a fruta brilhante cujo tom escarlate contrastava com o verde escuro da guarnição! Com que hospitalidade e graça ele então a servia, depois de mergulhar um seleto canudo de palha em seu âmago frisante! Certa manhã, após cerca de quatro meses em Washington, a senhorita Lydia descobriu que eles estavam quase sem dinheiro. O livro Anedotas e Reminiscências fora concluído, mas os editores não demonstravam grande interesse pela coleção de pérolas da sensibilidade e do humor do Alabama. O aluguel de uma pequena casa que ainda possuíam em Mobile estava atrasado em dois meses. A conta da pensão daquele mês venceria em três dias. A senhorita Lydia chamou o pai para uma conversa. – Sem dinheiro? – disse ele com ar de surpresa. – Que inconveniente ser cobrado a toda hora por quantias tão pequenas! Sinceramente, eu... O major procurou nos bolsos. Só encontrou uma nota de dois dólares, que tornou a colocar no bolso do colete. – Preciso cuidar desse assunto imediatamente, Lydia – disse. – Queira fazer o obséquio de me pegar o guarda-chuva; irei agora mesmo ao centro. O congressista de nosso distrito, General Fulghum, me garantiu há alguns dias que faria uso de sua influência para que meu livro seja logo publicado. Irei até seu hotel sem demora, e verei o que ele tem a dizer. Com um sorriso triste, a senhorita Lydia observou-o abotoar seu “Pai Hubbard” e partir, depois de parar à porta, para saudá-la, como sempre fazia, com uma profunda reverência. Já estava escuro quando ele voltou. Aparentemente, o congressista Fulghum havia se encontrado com o editor que recebera o manuscrito do major para leitura. A tal pessoa havia dito que se as histórias etc. fossem cuidadosamente excisadas, reduzidas à metade, eliminando os preconceitos de classe e ideias separatistas que maculavam o livro de ponta a ponta, ele poderia considerar a publicação.


O major ficou pálido de raiva, mas se recompôs assim que se viu diante da senhorita Lydia, condizendo com seu código de boas maneiras. – Precisamos arranjar dinheiro – disse a senhorita Lydia, com uma pequena ruga acima do nariz. – Dê-me os dois dólares, para eu telegrafar ainda esta noite ao tio Ralph, pedindo-lhe alguma ajuda. O major retirou um pequeno envelope do bolso superior do colete e o atirou à mesa. – Talvez eu tenha sido imprudente – disse com brandura –, mas a quantia era tão sem importância que comprei bilhetes para o teatro, esta noite. É um novo drama de guerra, Lydia. Pensei que você gostaria de testemunhar a primeira encenação em Washington. Disseram-me que o Sul recebeu um tratamento muito justo na peça. Confesso que eu mesmo gostaria de assistir a essa apresentação. A senhorita Lydia ergueu as mãos em calado desespero. Todavia, já que os bilhetes haviam sido comprados, poderiam muito bem ser usados. Então, naquela noite, sentados no teatro e ouvindo a alegre abertura, até mesmo a senhorita Lydia tentava, por ora, relegar suas preocupações para segundo plano. O major, em um traje de linho impecável, com seu extraordinário casaco, visível somente onde bem abotoado, e seu cabelo branco cuidadosamente aparado, parecia realmente refinado e distinto. A cortina subiu para o primeiro ato de A Flor de Magnólia, revelando uma cena típica de fazenda do Sul. O Major Talbot deixou transparecer certo interesse. – Ah, veja! – exclamou a senhorita Lydia, cutucando o braço do major e apontando para o programa que tinha nas mãos. O major colocou os óculos e leu a linha na coluna das personagens que ela indicava: Coronel Webster Calhoun … Sr. Hopkins Hargraves.


– É o nosso conhecido senhor Hargraves – disse a senhorita Lydia. – Deve ser sua primeira apresentação no que ele chama de ‘comédia autêntica’. Estou tão feliz por ele! Foi somente no segundo ato que o Coronel Webster Calhoun apareceu no palco. Quando fez sua entrada, o Major Talbot fungou de modo audível, olhou fixamente para ele e pareceu congelar. A senhorita Lydia emitiu gritinhos ambíguos e amassou o programa nas mãos. O Coronel Calhoun fora criado quase à exata imagem e semelhança do Major Talbot. Os cabelos brancos, longos e finos, cacheados nas pontas, o nariz aquilino e aristocrático, a frente ampla e amassada da camisa desfiada, a gravata estreita com o laço quase debaixo da gola eram uma cópia quase perfeita. E então, completando a imitação, o ator usava o irmão gêmeo do supostamente inigualável casaco do major. Colarinho alto, largo, cintura alta, ampla roda, pendendo cerca de trinta centímetros a mais na frente do que atrás, a vestimenta não poderia ter sido desenhada de nenhum outro padrão. Depois disso, perplexos, o major e a senhorita Lydia assistiram à falsa apresentação de um Talbot arrogante e “arrastado”, como mais tarde expressou o major, “pelo conspurcado lamaçal de um palco corrupto”. O senhor Hargraves soube aproveitar bem suas oportunidades. Havia captado à perfeição as pequenas idiossincrasias de fala, sotaque e entonação do major e sua cortesania pomposa – exagerando tudo para efeitos de palco. Quando apresentou aquela maravilhosa reverência que o major ternamente imaginava fosse o máximo das saudações, a plateia respondeu com uma repentina e calorosa onda de aplausos. A senhorita Lydia ficou imóvel; não ousou olhar para o pai. Às vezes, levava a mão que estava mais próxima dele ao rosto, como se quisesse disfarçar o sorriso, que apesar de censurar, ela não conseguia reprimir de todo. A audaciosa imitação de Hargraves culminou no terceiro ato. A cena


era aquela em que o Coronel Calhoun entretinha os vizinhos fazendeiros em seu ‘gabinete’. De pé, próximo a uma mesa no centro do palco, com os amigos agrupados em seu redor, ele apresenta aquele inimitável e incoerente monólogo do personagem tão famoso em A Flor de Magnólia, e, ao mesmo tempo, com toda a maestria, prepara julepos para o grupo. O Major Talbot permanecia quieto, embora pálido de indignação, e ouvia suas melhores histórias recontadas, suas estimadas teorias e passatempos ofertados e aumentados e o sonho das Anedotas e Reminiscências servido, exagerado e adulterado. Nem sua narrativa favorita – a do duelo com Rathbone Culbertson – foi omitida; foi relatada com mais ardor, presunção e prazer do que o próprio major a ela atribuía. O monólogo foi concluído com uma breve, mas fantástica, deliciosa e divertida exposição ilustrada da arte de preparar julepos. Aqui, a delicada, porém ostentosa, sapiência do Major Talbot foi reproduzida com toda a precisão – desde seu modo afetado de manusear a fragrante erva – “a milionésima parte de um grão de pressão a mais, cavalheiros, e será extraído o amargor, em vez do aroma desta planta paradisíaca” – à seleção cuidadosa de canudos de palha de aveia. Ao final da cena, o público reagiu com uma algazarra efervescente de satisfação. O tipo fora retratado com tamanha exatidão, tanta segurança e profundidade que os personagens principais da peça ficaram esquecidos. Depois de repetidas chamadas pelo público, Hargraves apareceu diante das cortinas e agradeceu com uma reverência; sua face corada de garoto brilhava com a certeza do sucesso que alcançara. Finalmente, a senhorita Lydia voltou o olhar para o major, cujas estreitas narinas moviam-se como guelras de peixe. Ele apoiou as mãos trêmulas nos braços da cadeira para levantar-se. – Vamo-nos daqui, Lydia – disse, sentindo-se sufocado. – Isso tudo é


abominável, ultrajante! Antes que se levantasse, ela o empurrou de volta ao assento. – Vamos ficar até o final – declarou. – O senhor pretende alardear a cópia exibindo o casaco original? – Assim, permaneceram até o final. O sucesso de Hargraves deve tê-lo mantido acordado até tarde naquela noite, pois nem para o café da manhã, nem para o almoço, ele apareceu. Por volta das três da tarde, ele bateu à porta do gabinete do Major Talbot. O major a abriu e Hargraves entrou, carregado de jornais matutinos – absorto demais em seu triunfo para notar qualquer diferença no comportamento do major. – Arrebatei a todos ontem à noite, major! – começou, exultante. – Eu tinha uma jogada nas mãos e acho que marquei um ponto. Eis o que diz o The Post:

Sua concepção e personificação do coronel sulista de antanho, com sua grandiloquência absurda, seu garbo excêntrico, suas expressões e frases extravagantes, seu carcomido orgulho de família, seu coração realmente bondoso, seu obstinado senso de honra e adorável simplicidade são a melhor construção do papel de uma personagem, atualmente em cartaz. O próprio casaco usado pelo Coronel Calhoun nada mais é do que a criação de um gênio. O senhor Hargraves cativou o público.

– Que tal lhe parece, major, para a primeira noite? – Tive a honra de assistir – a voz do major soava com uma frigidez ominosa – à sua notável atuação, senhor, ontem à noite. Hargraves parecia desconcertado. – O senhor estava lá? Eu nunca imaginei que – eu não sabia que o senhor se interessava por teatro. Ah, quero dizer, Major Talbot – exclamou com


toda a franqueza –, não se ofenda. Admito ter aproveitado muitas de suas sugestões, que foram extraordinariamente úteis na construção do papel. Mas é só um tipo, o senhor bem sabe, não retrata nenhuma pessoa em especial. O modo como o público reagiu demonstra isso. Metade dos frequentadores daquele teatro é sulista. Eles reconheceram o tipo. – Senhor Hargraves – disse o major, ainda de pé –, o senhor fez a mim um insulto imperdoável. O senhor parodiou minha pessoa, traiu grosseiramente minha confiança e abusou de minha hospitalidade. Se o senhor se achasse possuidor da mais ínfima concepção de quais são as regras básicas de um cavalheiro, ou do que lhe é devido, eu o desafiaria, senhor, mesmo sendo um velho. Agora peço-lhe que se retire, senhor. O ator pareceu ligeiramente desnorteado, com dificuldade em captar todo o significado das palavras do cavalheiro. – Eu realmente sinto muito se o senhor se sentiu ofendido – disse, arrependido. – Aqui no Norte, não encaramos as coisas como os senhores. Conheço pessoas que comprariam metade da bilheteria só para que sua personalidade fosse encenada e o público a reconhecesse. – Elas não são do Alabama, senhor – disse o major com arrogância. – Talvez não. Tenho muito boa memória, major; deixe-me citar algumas passagens de seu livro. Em resposta a um brinde feito num banquete – creio que em Milledgeville – o senhor fez uma declaração, que pretende publicar, usando estas palavras:

Os Nortistas não têm qualquer sentimento ou afeto exceto com relação a emoções que possam ser transformadas em lucro comercial. Eles toleram, sem ressentimento, imputações impingidas à honra deles mesmos ou de seus entes queridos desde que elas não venham acompanhadas


de perda pecuniária. Em termos de caridade, são muito generosos; mas isso precisa ser anunciado ao som de trombetas e gravado em bronze.

– O senhor acha que esse retrato é mais justo do que o do Coronel Calhoun que o senhor viu ontem à noite? – A descrição – disse o major, franzindo o cenho – é... não deixa de ter fundamentos. Algum exage... é preciso admitir certa liberdade quando se fala em público. – Assim como quando se fala em público – replicou Hargraves. – Isso não vem ao caso – persistiu o major, obstinado. – A caricatura foi pessoal. Recuso-me categoricamente a deixar isso passar em branco, meu caro. – Major Talbot – disse Hargraves, com um sorriso de vencedor –, eu gostaria que o senhor me compreendesse. Quero que saiba que nunca, jamais, pretendi insultá-lo. Em minha profissão, todas as vidas me pertencem. Vou coletando o que quero, e o que posso, e devolvo tudo sobre a ribalta. Agora, se o senhor não se importa, fiquemos por aqui. Vim vê-lo a respeito de outra coisa. Há alguns meses temos sido bons amigos e vou arriscar-me a ofendê-lo novamente. Sei que o senhor está com dificuldades financeiras, não importa como descobri; numa pensão não há como manter essas questões em segredo – e quero que me permita ajudá-lo a sair desse apuro. Eu mesmo já estive nessa situação muitas vezes. Venho recebendo um bom salário durante a temporada e economizei um pouco. O senhor pode dispor de algumas centenas de..., ou até mais,... até que... – Pare! – ordenou o major, com o braço estendido. – Afinal, parece que meu livro não mentiu. O senhor acha que seu bálsamo financeiro pode curar todas as feridas da honra. Em hipótese alguma eu aceitaria um empréstimo de um


conhecido eventual, e quanto ao senhor, eu preferiria morrer de fome a considerar sua insultuosa oferta de ajuste financeiro, diante das circunstâncias que acabamos de discutir. Reitero meu pedido para que se retire de meu apartamento. Hargraves retirou-se sem mais palavras. Também deixou a pensão no mesmo dia, mudando-se, como a senhora Vardeman explicou à mesa do jantar, para a vizinhança mais próxima do teatro, no centro, onde a bilheteria de A Flor de Magnólia já se esgotara para toda a semana. Crítica estava a situação do Major Talbot e da senhorita Lydia. Não havia ninguém, em Washington, a quem os escrúpulos do major permitissem um pedido de empréstimo. A senhorita Lydia escrevera uma carta ao tio Ralph, mas era pouco provável que os restritos negócios desse parente lhe permitissem prestar qualquer assistência. O major viu-se obrigado a se desculpar junto à senhora Vardeman com relação ao atraso no pagamento da pensão, referindo-se a ‘inquilinos inadimplentes’ e ‘remessas em atraso’ de maneira bastante confusa. A salvação veio de uma fonte completamente inesperada. Ao final de uma tarde, o porteiro subiu e anunciou ao Major Talbot que um negro velho desejava vê-lo. O major pediu que o fizessem subir ao seu gabinete. Logo um preto velho surgiu à porta, com o chapéu na mão, fazendo reverência e arrastando um pé de maneira desajeitada. Trajava-se com bastante decência, usava um casaco preto folgado, os sapatos grosseiros tinham um brilho metálico que indicava terem sido engraxados. Sua carapinha era grisalha, quase branca. Após a meia idade, é difícil estimar a idade de um negro. Este, provavelmente, já teria contemplado o passar de tantos anos quanto o Major Talbot. – ’Credito que vosmecê não me conhece, Sinhô Pendleton – foram suas primeiras palavras. O major ergueu-se e se aproximou, reconhecendo o antigo modo fami-


liar de tratamento. Era um dos negros da fazenda, sem dúvida; eles haviam se espalhado por toda parte, mas não conseguia lembrar-se da voz ou das feições. – Creio que não – disse com atenção –, a não ser que me ajude a lembrar. – Vosmecê não se alembra do Mose da Cindy, Sinhô Pendleton, que migrou no fim da guerra? – Espere um pouco – disse o major, massageando a testa com a ponta dos dedos. Ele adorava lembrar-se de tudo o que se relacionasse àqueles tempos tão amados. – O “Mose da Cindy” – refletiu. – Você trabalhava com os cavalos... domando os potros. Sim, agora me lembro. Após a rendição você adotou o nome – espere, deixe-me lembrar – Mitchell, e foi para o Oeste, para Nebraska. – Sim sinhô, sim sinhô – o rosto do velho abriu-se num sorriso largo e satisfeito. – É ele, é eu sim. Nibraska. É eu, sim... Mose Mitchell. O velho tio Mose Mitchell, é assim que eles chama eu agora; o sinhô velho, vosso pai, me deu umas mula quando eu fui embora, pra eu começá. Vossuncê lembra as mula nova, Sinhô Pendleton? – Eu acho que não me lembro dos potros – disse o major. – Você sabe, eu me casei no primeiro ano da guerra e vivia na velha Follinsbee. Mas sente-se, sente-se, tio Mose. Estou contente em vê-lo. Espero que tenha prosperado. Tio Mose pegou uma cadeira e colocou cuidadosamente o chapéu no chão ao seu lado. – Sim sinhô; nos último tempo fiquei muito conhecido. Quando cheguei em Nibraska, o povo de lá foi se chegando pra ver as mula nova. Eles nunca tinha visto mula como aquela em Nibraska! Eu vendi as mula por trezento dólar. Sim sinhô, trezento. – Intão eu abri uma ferraria, sinhô, juntei um dinheiro e comprei umas terra. Eu e a minha patroa criamo sete filho e nóis tava indo muito bem, a não ser por dois deles que morreram. Faz uns quatro ano, veio a estrada de ferro e


eles quiseram as minha terra; e, sinhô, patrãozinho Pendleton, tio Mose vale onze mil dólar em dinheiro, propriedade e terra. – Folgo em saber – disse o major, entusiasmado. – Fico feliz em saber disso. – E aquele nenezinho de vosmecê, Sinhô Pendleton – aquela que chamava Sinhá Lyddy –, aposto que aquela pequeninha já ’tá tão crescida que nem dá mais prá reconhecê. O major foi até a porta e chamou: – Lydia, minha querida, venha até aqui. A senhorita Lydia, com sua aparência de bem ‘crescida’ e um tanto preocupada, entrou no aposento. – Minha nossa! Eu não falei? Eu sabia que aquele nenê gorduchinho ’tava bem crescidinho. Não se alembra do tio Mose, criança? – Este é o Mose da tia Cindy, Lydia – explicou o major. – Ele deixou Sunnymead e foi para o Oeste quando você tinha dois anos. – Bem – disse a senhorita Lydia –, acho que não se pode esperar que me lembre, tio Mose, com aquela idade. E, como o senhor disse, estou ‘bem crescidinha’, e já faz bastante tempo, graças a Deus. Mas estou feliz em vê-lo, mesmo que não consiga me lembrar do senhor. E ela realmente estava. E o major também. Alguém vivo e tangível viera conectá-los ao passado feliz. Os três sentaram-se e conversaram sobre os velhos tempos; o major e o tio Mose corrigiam-se e ajudavam mutuamente na recordação dos cenários e dos tempos da antiga fazenda. O major quis saber o que o velho fazia tão longe de casa. – O tio Mose é representanti – explicou – na grande convenção Batista desta cidade. Nunca fiz pregação, mais sou presbito da igreja, e pudia pagá os meus gasto, intão, eles me mandaram prá cá. – E como ficou sabendo que estávamos em Washington? – inquiriu a senhorita Lydia. – Tem um preto que trabaia no hotel onde eu ’tô, que vem de Mobile. Ele


me disse que um dia viu o Sinhô Pendleton saindo aqui desta casa de manhã. – Mais o que é que eu vim fazê aqui – continuou tio Mose, buscando algo no bolso – além de vê o pessoal lá da terra, foi pagar o Major Pendleton o que eu lhe devo. – O senhor me deve? – perguntou o major surpreso. – Sim, sinhô; trezento dólar – e passou às mãos do major um rolo de notas. – Quando eu fui embora, o sinhô seu pai me disse: “Leva as mulas novas, Mose, e, se puder, depois você paga”. Sim, sinhô, foi isso que ele disse. A guerra deixou o major pobre, também. E como ele morreu já faz tempo, a dívida ficou pro Sinhô Pendleton. Trezento dólar. Tio Mose tem bastante pra pagá agora. Quando a estrada de ferro comprou minhas terra, eu separei um tanto pra pagá as mula. Vosmecê conte o dinheiro, Sinhô Pendleton. Esse é o preço que vendi as mula, sim sinhô. Lágrimas brotaram dos olhos do Major Talbot. Emocionado, segurou as mãos de Tio Mose, agradecendo com um tapinha nas costas. – Meu caro e fiel servidor – disse com voz trêmula. – Não me importo de lhe dizer que já há uma semana o ‘Sinhôzinho Pendleton’ gastou o último dólar que tinha no mundo. Vamos aceitar esse dinheiro, tio Mose, já que, de certa forma, é como que um pagamento, assim como prova da lealdade e devoção ao antigo regime. Lydia, minha querida, pegue o dinheiro. Você tem mais jeito do que eu para administrar os gastos. – Pega, meu anjo – disse Tio Mose. – Ele é seu. É dinheiro dos Talbot. Depois que tio Mose se retirou, a senhorita Lydia caiu no choro – de alegria –, e o major voltou-se para o canto e fumou como um vulcão seu cachimbo de barro. Nos dias que se seguiram, os Talbots recuperaram a paz e a tranquilidade. O rosto da senhorita Lydia perdeu os sinais de preocupação. O major apareceu usando um casaco novo, o que o fazia parecer uma figura de cera


personificando a memória de sua época dourada. Outro editor que lera o manuscrito de Anedotas e Reminiscências achou que com um ligeiro retoque e atenuando os excessos, poderia torná-lo um volume realmente brilhante e vendável. De modo geral, a situação era confortável, sem deixar de ter um toque de esperança que, em geral, é mais doce do que as graças recebidas. Um dia, cerca de uma semana depois da virada da sorte, uma criada subiu até os aposentos da senhorita Lydia e entregou-lhe uma carta, cujo carimbo postal indicava ter vindo de Nova York. Como não conhecia ninguém por lá, ela teve um leve sobressalto; sentou-se à mesa e abriu a carta com a tesoura. Eis o que leu: Cara senhorita Talbot: Acredito que ficará contente em saber da minha boa sorte. Recebi e aceitei uma oferta de duzentos dólares por semana de uma companhia de teatro de Nova York para representar o Coronel Calhoun em A Flor de Magnólia. Há mais uma coisa que eu gostaria que a senhorita soubesse. Acho melhor não dizer nada ao Major Talbot. Eu estava me sentindo aflito e queria retribuir a grande contribuição que ele representou em minha preparação para o papel, e reparar o mal estar que isso lhe causou. Ele se recusou a aceitar minha ajuda, mas, de alguma forma, acabei ajudando-o. Pude dispor facilmente dos trezentos dólares. Atenciosamente, H. Hopkins Hargraves,

P.S. Como me saí como tio Mose?


Major Talbot, de passagem pelo hall, viu a porta dos aposentos da senhorita Lydia aberta e parou. – Alguma coisa do correio para nós esta manhã, Lydia querida? – perguntou. A senhorita Lydia escondeu a carta sob uma dobra do vestido. – Chegou o Mobile Chronicle – disse ela prontamente. – Está sobre a mesa do seu gabinete.

(1902)

Tradução: Cintia Mendonça Garcia e Eliana Stella Pires


criação: angela kina | carlos santana


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.