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Na Barbearia Ring Lardner (1885-1933)


Introdução Esta nova empreitada da Oficina de Tradução da Casa Guilherme de Almeida, intitulada “Contos de Humor, Ironia e Sátira”, buscou contemplar contos da língua inglesa que retratam situações humorísticas, irônicas e satíricas, sempre revelando – ou sugerindo – uma visão crítica da sociedade e das ações humanas. Trata-se de uma coletânea de contos que inclui sobretudo autores americanos, ingleses e irlandeses: Mark Twain, O. Henry, Ring Lardner, William T. Thompson, Saki, Oscar Wilde, James Joyce e Seumas O’Kelly; entretanto, aqui se encontram também respeitados autores de outros países de língua inglesa: Premchand (Índia), Thomas C. Haliburton (Canadá) e Henry Lawson (Austrália), aparentemente pouco conhecidos no Brasil. Com isso, pretendemos mostrar a variada gama de estilos, aspectos culturais e morais de diferentes regiões e a universalidade dos sentimentos e atitudes humanas. Esperamos ter contribuído para a difusão da cultura e da literatura em tradução. Com exceção de um conto, “O Funeral de Buck Fanshaw”, de Mark Twain, que foi traduzido coletivamente, os outros foram traduzidos em pares, pequenos grupos ou, em situações especiais (casos de desistência), individualmente. A elaboração desta coletânea em tradução, é importante dizer, foi uma riquíssima fonte de aprendizado e de conhecimento para todos os participantes. A troca de informações, as discussões coletivas e as interpretações compartilhadas resultaram nestes textos que agora submetemos à apreciação do leitor, que terá a oportunidade de ler (ou reler) alguns autores conhecidos e de conhecer alguns até então desconhecidos no Brasil, mas que em seus respectivos países desfrutaram de grande sucesso. Que o humor, a ironia e a sátira aqui contidos revelem um pouco mais da face humana que, apesar de diferente aqui e acolá, revela-se, no fim das contas, a mesma em qualquer rincão do universo. Alzira Allegro Coordenadora da Oficina de Tradução


Na Barbearia Ring Lardner (1885-1933)


Ring Lardner (1885-1933) Ring[gold] Wilmer Lardner, filho de pais abastados, nasceu em Niles, estado de Michigan, Estados Unidos. Iniciou sua carreira como colunista esportivo e contista, e tornou-se conhecido por seu afiado senso de humor e suas histórias satíricas sobre o mundo dos esportes, do casamento e do teatro. Sua primeira coletânea de contos, You Know me, Al: A Busher’s Letter, foi publicado em 1916. Em seguida publicou Gullible’s Travels (1917). Vieram depois Treat’em Rough (1918), How to Write Short Stories (With Samples), em 1924, além de outras coletâneas; em 1921 surgiu seu único romance, The Big Town. Lardner possuía uma notável capacidade de registro da fala e dos idiomatismos regionais, o que lhe rendeu fama e reputação; americanos de todas as classes sociais, com sua fala característica, são representados em suas muitas histórias satíricas.


Na Barbearia Tem outro barbeiro que vem de Carterville e me ajuda nos sábados, mas o resto do tempo eu consigo dar conta sozinho. Você pode ver por você mesmo que isto aqui não é nenhuma Nova York; além disso, a maioria dos meninos trabalha o dia inteiro e não tem nenhuma folga pra passar por aqui e se embelezar. Você é de fora, não é? Eu percebi mesmo, não tinha visto você por aqui antes. Espero que goste daqui o suficiente pra ficar. Como eu digo, não somos nenhuma Nova York ou Chicago, mas a gente se diverte pra caramba aqui; mas agora nem tanto, desde que o Jim Kendall morreu. Quando ele estava vivo, ele e o Hod Meyers costumavam deixar esta cidade em polvorosa. Aposto que o povo dava mais risada por aqui do que em qualquer outra cidade do tamanho desta na América. O Jim era cômico, e ele e o Hod formavam uma bela dupla. Desde que o Jim se foi, o Hod tenta segurar a barra como se nada tivesse acontecido, mas é duro continuar quando não se tem ninguém pra, vamos dizer, trabalhar junto. Eles costumavam ser a diversão aqui nos sábados. Este lugar fica abarrotado nos sábados – das quatro da tarde em diante. O Jim e o Hod apareciam depois do jantar, lá pelas seis da tarde. O Jim se aboletava naquela cadeira grande, aquela ali, a mais perto da cuspideira azul. Qualquer um que estivesse sentado naquela cadeira se levantava quando o Jim entrasse pra ele poder sentar lá. Você podia pensar que era um lugar reservado, como esses que têm no teatro. O Hod, na maioria das vezes, ficava de pé ou andava pra lá e pra cá, ou alguns sábados, é claro, ele sentava nesta cadeira parte do tempo, pra cortar o cabelo.


Bem, o Jim ficava sentado lá por um bom tempo, sem abrir a boca, exceto pra cuspir, e então finalmente, ele me dizia: “Branquelo” – meu nome de verdade, quer dizer, meu primeiro nome de verdade é Dick, mas todo mundo por aqui me chama de Branquelo – Jim dizia, “Branquelo, seu nariz está parecendo um botão de rosa esta noite. Acho que você anda bebendo sua água de colônia”. Então eu dizia, “Não estou, Jim, mas acho que você anda bebendo alguma coisa desse tipo ou coisa bem pior”. Jim tinha que rir disso, mas aí ele falava alto e dizia: “Não bebi nada não, mas isso não quer dizer que eu não gostaria de beber alguma coisa. Eu nem ligaria se fosse metanol”. Então o Hod Meyers dizia: “Nem a sua mulher ligaria”. Aquilo fazia todo mundo rir, porque o Jim e sua mulher não estavam se dando muito bem. Ela já teria se divorciado dele; só que ela não tinha nenhuma chance de receber pensão e não tinha como cuidar dela e das crianças. Ela nunca conseguiu entender Jim. Ele era meio bruto, mas era um cara de bom coração. Ele e o Hod divertiam-se de tudo quanto é jeito com Milt Sheppard. Acho que você não conhece o Milt. Bem, ele tem um pomo de adão que mais parece um cogu-melão. Então, eu estava barbeando o Milt e, quando eu começava a barbear o pescoço dele, o Hod berrava, “Ei, Branquelo, espera um pouco! Antes de você cortar isso, vamos fazer uma bola de aposta e vamos ver quem acerta o número mais próximo de quantas sementes tem lá dentro”. E o Jim dizia: “Se o Milt não fosse tão guloso, ele teria pedido meio melão em vez de um melão inteiro e talvez ele não ficasse preso na garganta dele”. Todos os meninos morriam de rir; até o Milt forçava um sorriso, mesmo sabendo que a piada era com ele. O Jim era com certeza uma figura! Olha a caneca de barbear dele lá, naquela prateleira, bem ao lado da do Charley Vail. “Charles M. Vail.” É o farmacêutico. Ele vem sempre aqui pra


fazer a barba, três vezes por semana. E a caneca do Jim é a que está perto da do Charley. “Damas H. Kendall.” Jim não vai precisar mais de caneca de barbear, mas quero que ela fique ali do mesmo jeito, pra lembrar os velhos tempos. Jim era mesmo uma figura! Um bom tempo atrás, Jim costumava viajar como representante de uma firma de enlatados de Carterville. Eles vendiam enlatados. O Jim era responsável por toda a metade do norte do estado e ficava na estrada cinco dias por semana. Ele parava aqui nos sábados e contava suas experiências da semana. Era muito divertido. Acho que ele caprichava mais contando piadas do que vendendo enlatados. No fim, a firma pôs ele na rua e ele veio direto pra cá e disse pra todo mundo que tinha sido demitido, em vez de dizer que se demitiu, como a maioria dos camaradas fazia. Era um sábado e o salão estava cheio e o Jim levantou daquela cadeira e disse: “Cavalheiros, tenho um anúncio importante a fazer: eu fui demitido do meu emprego”. Bem, eles perguntaram se ele estava falando sério; ele disse que sim, e ninguém conseguia pensar em nada pra dizer, até que ele mesmo quebrou o gelo. Ele então disse, “Eu vendia enlatados e agora quem está enlatado sou eu!”. Veja bem, o negócio em que ele vinha trabalhando era uma fábrica de enlatados. Lá em Carterville. E aí o Jim disse que ele próprio estava ‘enlatado’. Que figura! Jim tinha um truque incrível que ele costumava usar quando estava viajando. Por exemplo, ele viajava de trem e eles iam pra uma cidadezinha qualquer, como, vamos dizer, Benton. Jim olhava pra fora da janela do trem e lia as placas das lojas. Por exemplo, havia uma placa: “Henry Smith, Produtos Secos”. Bem, o Jim anotava o nome da loja e o nome da cidade e quando chegava aonde


quer que estivesse indo, ele mandava um cartão-postal pra Henry Smith, em Benton, sem assinar o nome, mas escrevia no cartão... bem... alguma coisa do tipo “Pergunte pra sua esposa sobre aquele agente de livros que passou a tarde com ela na semana passada”, ou “pergunte pra sua patroa quem não deixou que ela se sentisse solitária da última vez que você foi pra Carterville”. E ele assinava o cartão, “Um Amigo”. É claro que ele nunca soube o resultado de nenhuma dessas brincadeiras, mas podia bem imaginar o que provavelmente aconteceu, e isso era suficiente. O Jim não teve emprego fixo depois que perdeu o cargo lá em Carterville. O que ele ganhava fazendo bicos aqui e ali ele gastava quase tudo em gim, e sua família podia ter morrido de fome se as lojas não tivessem ajudado. A mulher do Jim tentou trabalhar como costureira, mas nesta cidade ninguém fica rico fazendo vestidos. Como eu digo, ela queria se divorciar do Jim, mas viu que não conseguia sustentar nem ela nem as crianças, e vivia na esperança que um dia o Jim resolvesse cortar seus hábitos e dar a ela mais do que dois ou três dólares por semana. Teve um tempo que ela ia atrás de quem quer que fosse que tivesse contratado ele e pedia pra entregar o salário pra ela, mas depois de ter feito isso uma ou duas vezes, ele foi mais esperto do que ela pedindo a maior parte do salário adiantado. Ele contava pra todo mundo na cidade, como tinha tapeado a patroa. Ele era com certeza um perigo! Mas ele não ficou satisfeito só em passar a perna nela; ele ficou ofendido com o jeito que ela agia, tentando passar a mão no pagamento dele. E aí ele decidiu que ia dar o troco. Bem, ele esperou até que anunciaram que o Circo Evan vinha pra cidade. Ele falou pra sua mulher e seus dois filhinhos que ia levar eles ao circo. No dia do circo, ele disse que ia comprar os bilhetes e que encontrava eles do lado de fora da entrada da tenda.


Bem, ele não tinha a menor intenção de ir lá ou de comprar bilhete nem nada. Ele se encheu de gim e ficou em volta do bilhar do Wright o dia inteirinho. A mulher e os filhos esperaram e esperaram e, claro, ele não apareceu. Sua mulher não tinha nem dez centavos com ela, e nem em lugar nenhum, eu acho. Ela, então, no fim, teve que contar às crianças que não iam mais ao circo, e eles choraram tanto que parecia que nunca mais iam parar de chorar. Bem, parece que enquanto eles choravam, o doutor Stair apareceu e perguntou qual era o problema, mas a senhora Kendall era teimosa e não quis contar pra ele, mas as crianças contaram, e ele insistiu em levar os filhos e a mãe pra ver o show. O Jim descobriu isso depois e essa foi uma razão por que ele vivia criticando o doutor Stair. O doutor Stair veio pra cá mais ou menos um ano e meio atrás. Ele é um camarada novo e bonitão e parece que só usa roupa feita sob encomenda. Ele vai pra Detroit duas ou três vezes por ano e enquanto ele está lá, deve ter um alfaiate que tira as medidas e faz as roupas pra ele sob encomenda. Elas custam quase o dobro, mas ficam bem melhor do que se você tivesse comprado em alguma loja. Durante um bom tempo todo mundo ficou imaginando por que um médico novo como o doutor Stair veio pra uma cidade como esta, onde nós já temos o velho doutor Gamble e o doutor Foote; os dois vivem aqui faz muito tempo e os dois sempre dividiram o serviço médico na cidade. Depois teve uma história correndo por aqui que a garota do doutor Stair tinha dado um pontapé nele; uma garota lá de cima, de algum lugar lá no Canadá, e foi por isso que ele veio pra cá; pra se esconder, pra esquecer dela. Ele mesmo disse que achava que não tinha nada melhor do que exercer a profissão num lugar como o nosso pra fazer um homem ser médico dos bons. É por isso que veio.


Bom, não demorou muito e ele começou a ganhar o suficiente pra sobreviver, apesar de eu escutar por aí que ele nunca cobrou de ninguém o que eles devem pra ele, e o pessoal daqui com certeza tem o hábito de dever, mesmo no meu negócio. Se eu recebesse tudo o que me devem por cada barbeada, eu podia ir pra Carterville ficar uma semana no hotel Mercer e ver um filme diferente cada noite. Por exemplo, tem o velho George Purdy – mas acho que eu não devia ficar fofocando. Bem, no ano passado, nosso legista morreu; morreu de gripe. Ken Beatty, esse era o nome dele. Ele era o legista. Então, eles tinham que escolher outro homem pra ser legista no lugar dele e escolheram o doutor Stair. Ele primeiro riu e disse que não queria, mas insistiram e ele acabou aceitando. Não é o tipo de serviço que alguém corre atrás e o que um homem ganha por ano nesse serviço só dá pra comprar sementes pro jardim. Mas o doutor é gentil, não consegue dizer não pra nada se você ficar no pé dele por tempo suficiente. Mas eu ia contar pra vocês sobre um coitado de um menino aqui da cidade – Paul Dickson. Ele caiu de uma árvore quando tinha mais ou menos dez anos de idade. Ele bateu a cabeça e nunca mais ficou certo das ideias. Ele não teve nenhum ferimento, mas ficou bobo. Jim Kendall costumava chamar ele de cuco; esse era o apelido que o Jim tinha pra qualquer um com a cabeça fora do lugar; ele chamava a cabeça das pessoas de cérebro de ervilha. Essa era mais uma das suas brincadeiras – chamar as pessoas de cérebro de ervilha e os doidos de cuco. Só que o coitado do Paul não era doido; só era bobo. Dá pra imaginar que o Jim costumava se divertir de todo jeito com o Paul. Mandava ele pra oficina Frente Branca atrás de uma chave-inglesa pra canhotos. É claro que não existe uma coisa como chave-inglesa pra canhotos. E uma vez a gente teve uma espécie de feira aqui e teve um jogo de basquete entre os gordos e os magros e antes do jogo começar o Jim chamou o Paul e pediu pra ele ir na loja de ferragens Schrader pra pegar uma chave pro


box do arremessador. Não tinha brincadeira que o Jim não conseguisse inventar, quando ele colocava isso na cabeça. O coitado do Paul vivia suspeitando das pessoas, talvez por causa do jeito como o Jim sempre caçoava dele. O Paul não tinha muito a ver com ninguém, apenas com a mãe dele, com o doutor Stair e com uma garota aqui da cidade chamada Julie Gregg. Isto é, ela não é mais uma garota; já está bem perto dos trinta ou mais. Logo quando o doutor chegou na cidade, parecia que o Paul tinha encontrado nele um amigo de verdade; ele ficava no consultório do doutor a maior parte do tempo; só saía de lá pra ir comer ou dormir, ou quando via a Julie Gregg sair pra fazer compras. Quando ele olhava pela janela do doutor e via a Julie passando, ele descia as escadas correndo, chegava até ela e ia andando bem perto dela, e ela entrava em uma porção de lojas. O coitadinho era louco pela Julie e ela sempre tratava ele muito bem, e fazia ele se sentir bem-vindo, mas é claro que não era nada além de pena da parte dela. O doutor fez tudo o que pôde pra melhorar a cabeça do Paul e uma vez ele me disse que chegou mesmo a pensar que o garoto estava melhorando, que tinha vezes que ele era esperto e ajustado como qualquer um. Mas eu ia contar sobre a Julie Gregg. O velho Gregg trabalhava no ramo de madeira, mas deu pra beber; então perdeu quase todo o dinheiro e quando morreu não deixou nada de nada, além da casa e um seguro que mal dava pra menina sobreviver. A mãe dela era meio que inválida e quase nunca saía de casa. Depois que o velho morreu, Julie queria vender a casa e se mudar pra outro canto, mas a mãe disse que tinha nascido ali e que ia morrer ali. Isso foi duro pra Julie, enquanto pro pessoal jovem da cidade... bom, ela é boa demais pra eles.


Ela tinha ido estudar fora; foi pra Chicago, pra Nova York e pra outros lugares, e não tem assunto que ela não sabe discutir, enquanto você pega o resto do pessoal jovem daqui e fala pra eles qualquer coisa que não seja Gloria Swanson e Tommy Meighan e eles acham que você está delirando. Você viu a Gloria no Wages of Virtue? Você não sabe o que perdeu! Bom, o doutor Stair não fazia nem uma semana que estava aqui quando apareceu um dia pra fazer a barba. Eu reconheci quem ele era porque já tinham me falado dele; então contei sobre minha velha. Ela estava sofrendo fazia uns dois anos e nem o doutor Gamble nem o doutor Foote, nenhum dos dois, pareciam estar ajudando. Então, ele disse que ia fazer uma visita, mas que se ela conseguisse ficar de pé, que era melhor ela ir até o consultório, onde ele podia fazer um exame mais completo. Então, levei minha velha até o consultório e, enquanto esperava na recepção, aparece a Julie Gregg. Quando alguém entra no consultório do doutor Stair tem uma campainha que toca lá na sala dele pra ele saber que chegou alguém. Então ele deixou minha velha lá dentro e foi até a porta do consultório – e foi a primeira vez que ele e Julie se viram, e eu acho que é isso que as pessoas chamam de amor à primeira vista. Mas não foi meio a meio. Ele era o rapaz mais jeitoso que ela já tinha visto na cidade, e ela ficou enlouquecida por ele. Pra ele, ela era só mais uma moça que queria falar com o doutor. Ela tinha aparecido mais ou menos pelo mesmo motivo que eu. A mãe dela estava se tratando havia anos com o doutor Gamble e o doutor Foote, sem nenhum resultado. Então, ela ouviu dizer que tinha um doutor novo na cidade e decidiu dar uma chance a ele. Ele prometeu ligar e ver a mãe dela naquele dia mesmo. Acabei de dizer que tinha sido amor à primeira vista da parte dela. Não estou julgando agora só pelo jeito como ela agiu depois, mas pelo jeito como


ela olhou pro doutor no primeiro dia no consultório. Não leio pensamentos dos outros, mas isso estava escrito direitinho na cara dela. Bom, o Jim Kendal, apesar de ser uma comédia e muito bom de copo... bom, o Jim era um mulherengo. Aposto que ele ficava bem descontrolado nos tempos em que trabalhava pro pessoal de Carterville e caía na estrada e, além disso, ele tinha uns casinhos aqui mesmo na cidade. Como falei, a mulher dele queria pedir o divórcio, mas não podia. Mas o Jim era como a maioria dos homens, e das mulheres também, eu acho. Ele queria o que não podia ter. Ele queria a Julie Gregg e fez tudo que pôde pra fisgar ela. Mas não teve jeito. Bom, os hábitos e as piadas do Jim não agradavam Julie nem um pouco e, é claro, ele era um homem casado; então ele não tinha mais chance do que... bem, do que um coelho. Era uma expressão que ele mesmo usava. Quando uma pessoa não tinha a menor chance de ser eleito ou qualquer coisa assim, Jim sempre dizia que ela não tinha mais chances que um coelho. Ele não fazia nenhum segredo sobre como se sentia. Bem aqui, mais de uma vez, na frente de todo mundo, ele disse que estava fissurado na Julie e que qualquer um que conseguisse fazer a cabeça dela seria bem-vindo na casa dele, inclusive por sua mulher e seus filhos. Mas ela não queria nada com ele; nem sequer falava com ele na rua. Ele finalmente viu que não estava indo a lugar nenhum com seu estilo de sempre e decidiu jogar mais duro. Uma noite ele foi até a casa dela e quando Julie abriu a porta, ele entrou à força e agarrou ela. Mas ela conseguiu fugir e antes que ele pudesse impedir, ela correu pra sala ao lado, trancou a porta e ligou pro Joe Barnes. Joe é o delegado. O Jim ouviu pra quem ela estava ligando e deu o fora antes do Joe chegar. Joe era um velho amigo do pai de Julie. Joe procurou Jim no dia seguinte e disse o que aconteceria se ele fizesse aquilo de novo.


Não sei como as notícias desse casinho se espalharam. De certo o Joe Barnes contou pra mulher e ela contou pra mulher de alguém e elas contaram pros maridos. De qualquer forma, o caso se espalhou e o Hod Meyers teve o descaramento de zombar do Jim por causa daquilo bem aqui na barbearia. Jim não negou nada de nada, deu uma risadinha e disse pra gente esperar pra ver; disse que muita gente tinha tentado fazer dele um palhaço, mas que ele sempre se vingava. Enquanto isso, todo mundo na cidade sabia que Julie estava enlouquecida pelo doutor. Não acho que ela tivesse qualquer ideia de como o rosto dela mudava quando os dois estavam juntos; claro que ela não podia saber; se soubesse teria ficado longe dele. E ela não sabia que nós todos reparávamos quantas vezes ela inventava desculpas pra ir ao consultório, ou passar do outro lado da rua e olhar pra janela pra ver se ele estava lá. Eu tinha pena dela, e a maioria das pessoas também. O Hod Meyers continuava esfregando na cara do Jim como o doutor tinha passado ele pra trás. Jim não prestava nenhuma atenção na brincadeira e dava pra perceber que ele estava planejando uma das suas brincadeiras. Um truque que Jim tinha era a habilidade de mudar de voz. Ele podia fazer você pensar que era uma garota falando e imitava a voz de qualquer homem. Pra mostrar o quanto ele era bom nisso, vou contar uma peça que ele pregou em mim uma vez. Você sabe, na maioria das cidades, de qualquer tamanho, quando um homem morre e precisa fazer a barba, o barbeiro toma do morto cinco dólares pelo serviço; quer dizer, ele não toma do morto, mas, de qualquer forma, de quem pede a barba. Eu cobro só três dólares, porque, pessoalmente, não me importo de fazer a barba de um morto. Eles ficam muito mais quietos que os clientes vivos. A única coisa é que não dá pra conversar com ele; e isso deixa a gente meio solitário.


Bom, em um dos dias mais frios que já tivemos aqui – fez dois anos no inverno passado – o telefone tocou em casa enquanto eu jantava, e eu atendi o telefone, e era uma voz de mulher, e ela disse que era a senhora John Scott e que seu marido estava morto, e me pediu pra ir lá e fazer a barba dele. O velho John sempre foi um bom cliente meu. Mas eles moram a onze quilômetros daqui, bem na zona rural, na estrada Streeter. Mesmo assim, eu não tinha como dizer não. Então, eu disse que iria lá, mas que teria de pegar uma condução e isso custaria três ou quatro dólares além do preço da barba. Então ela – ou a voz – disse que tudo bem; então eu pedi pro Frank Abbott me levar até lá, e não é que quando eu cheguei, quem abriu a porta foi o próprio John?! Ele estava mais vivo do que... bem... do que um coelho. Não precisou de nenhum detetive particular pra descobrir quem tinha me pregado esse pequeno trote. Ninguém além do Jim Kendall poderia ter bolado isso. Que figura ele era! Contei esse incidente só pra mostrar como ele podia disfarçar a voz e fazer a gente acreditar que era a voz de outra pessoa. Eu podia jurar que foi a senhora Scott quem tinha ligado. De qualquer forma, era voz de mulher. Bom, o Jim esperou até aprender direitinho como era a voz do doutor Stair; e então foi atrás da vingança. Ele ligou pra Julie numa noite quando ele sabia que o doutor estava em Carterville. Ela não tinha dúvida nenhuma que era a voz do doutor. Jim disse que precisava se encontrar com ela, que não podia mais esperar pra dizer uma coisa pra ela. Ela ficou toda entusiasmada e disse pra ele ir até a casa dela. Mas ele disse que estava esperando uma ligação importante de longe e pediu pra ela esquecer pelo menos uma vez essa coisa de princípios morais e ir até o consultório. Ele falou que não ia acontecer nada com ela e que ninguém ia ver e nem saber de nada, e que ele só precisava conversar um pouquinho com ela.


Bom, a coitada da Julie caiu nessa. À noite, o doutor sempre deixava uma luz acesa no consultório; então a Julie achou que tinha alguém lá dentro. Enquanto isso o Jim Kendall foi pro salão de bilhar do Wright, onde uma gangue inteira se divertia. A maioria deles tinha bebido muito gim, e eles eram casca-grossa até mesmo quando não bebiam. Eles gostavam dos trotes do Jim e quando ele chamou a turma pra ir com ele ver algo engraçado, eles largaram as cartas e o bilhar e seguiram o Jim. O consultório do doutor era no segundo andar. Bem ao lado da porta tinha uma escada que levava pro andar de cima. O Jim e sua turma se esconderam no escuro atrás da escada. Bom, uma saia de tule subiu até a porta do consultório do doutor e tocou a campainha, e ninguém atendeu. Ela tocou de novo, e tocou de novo, sete ou oito vezes. Então, ela tentou a maçaneta, mas a porta estava trancada. Então, o Jim fez algum barulho e ela ouviu e esperou um minuto, e aí ela perguntou: “É você, Ralph?”. Ralph é o primeiro nome do doutor. Ninguém respondeu e ela deve ter percebido de repente que tinha sido tapeada. Ela quase rolou escada abaixo e toda a gangue foi atrás dela. Eles foram atrás dela todo o caminho até ela chegar em casa, gritando “É você, Ralph?” e “Oh, Ralphie, querido, é você?”. O Jim diz que ele mesmo não conseguia gritar, já que ria sem parar. Coitada da Julie! Ela não apareceu por aqui na Main Street durante muito, muito tempo. E, é claro, o Jim e sua gangue contaram o caso pra todo mundo na cidade; todo mundo menos o doutor Stair. Eles tinham medo de contar pra ele, e ele podia ter ficado sem saber pra sempre se não fosse pelo Paul Dickson. O coitado do tonto, como Jim chamava ele; ele estava aqui na barbearia uma noite quando o Jim ainda se gabava do que tinha feito com a Julie. E Paul entendeu o quanto ele pôde entender sobre aquilo e foi correndo levar a história pro doutor.


Nem é preciso adivinhar que o doutor ficou furioso e jurou que faria o Jim sofrer. Mas era o tipo de coisa delicada, porque se as pessoas ficassem sabendo que ele bateu no Jim, a Julie com certeza ia ficar sabendo, e então ela ia saber que o doutor sabia e, é claro, ao saber que ele sabia ficaria pior do que nunca pra ela. Ele ia fazer alguma coisa, mas levou tempo pra ele descobrir o quê. Bom, foi uns dias depois, quando o Jim estava aqui na barbearia de novo, e o cuco estava também. Jim ia caçar patos no dia seguinte e veio aqui procurar o Hod Meyers pra ir com ele. Acontece que fiquei sabendo que o Hod tinha ido pra Carterville e só ia voltar no final da semana. Então o Jim disse que detestava ir sozinho e que ia cancelar a coisa. Então o coitado do Paul abriu a boca e perguntou ao Jim se não podia ir com ele. Jim pensou um pouco e então disse, bem, que ele imaginava que a ajuda de um palerma era melhor do que de ninguém. Imagino que ele estava planejando levar o Paul pro barco e então pregar algum trote nele, como jogar o Paul na água. De qualquer forma, ele disse que o Paul podia ir. Ele perguntou se Paul já tinha alguma vez caçado um pato e Paul disse que não, que nunca nem tinha segurado uma arma nas mãos. Então o Jim disse que ele podia ficar sentado no barco e ficar olhando e, se ele se comportasse, talvez até emprestasse a arma pra ele dar uns tiros. Eles marcaram de se encontrar pela manhã e essa foi a última vez que eu vi o Jim vivo. Na manhã seguinte, eu tinha aberto a barbearia não fazia nem dez minutos, quando o doutor Stair entrou. Ele parecia nervoso. Perguntou se eu tinha visto o Paul Dickson. Eu disse que não, mas que sabia onde ele estava; caçando patos com o Jim Kendall. Então, o doutor disse o que já tinha ouvido, mas que ele não conseguia entender nada, porque o Paul falou pra ele que não tinha mais nada a ver com o Jim enquanto ele vivesse. Ele disse que o Paul tinha contado pra ele sobre o trote que Jim tinha pregado na Julie. Ele disse que o Paul tinha perguntado pra ele o que achou


da brincadeira e o doutor disse que qualquer um que tivesse feito algo do tipo não merecia viver. Eu disse que tinha sido uma coisa muito rude, mas que o Jim simplesmente não conseguia resistir a nenhum tipo de brincadeira, por mais pesada que fosse. Eu disse que eu achava que ele tinha um coração bondoso, mas que vivia fazendo travessuras. O doutor virou as costas e saiu. Ao meio-dia ele recebeu uma ligação do velho John Scott. O lago onde o Jim e o Paul tinham ido caçar ficava nas terras do John. O Paul tinha entrado correndo na casa alguns minutos antes e disse que tinha acontecido um acidente. O Jim atirou em alguns patos e então deu a arma pro Paul, e disse pra ele tentar a sorte. O Paul nunca tinha pegado em uma arma e ficou nervoso. Ele estava tremendo tanto que não conseguiu controlar a arma. Ele deu um tiro e o Jim caiu de costas no barco, morto. O doutor Stair, que era o legista, pulou no carro do Frank Abbott e voou pra fazenda do Scott. Paul e o velho John estavam na beirada do lago. O Paul tinha trazido o barco até a margem, mas deixou o corpo no barco, esperando o doutor chegar. O doutor examinou o corpo e disse que era melhor levar ele de volta pra cidade; não tinha por que deixar ele lá ou abrir um processo, que tinha sido um caso claro de tiro acidental. Pessoalmente eu nunca deixaria uma pessoa usar um revólver no mesmo barco que eu, a não ser que eu tivesse certeza que ela sabia alguma coisa sobre armas. O Jim foi um trouxa de deixar um novato, pra não dizer um meio desequilibrado, pegar a arma dele. É provável que o Jim teve o que mereceu. Mas eu sinto muito a falta dele por aqui. Ele era mesmo uma figura! E aí? Como quer que penteie seu cabelo, seco ou molhado?

Tradução: Luciana P. Alvarez e Soraya S. Quintela


Realização:

criação: angela kina | carlos santana


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