Fluxo Revista de Criação Literária - 6ª edição

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FEMINISMO

6ª edição 1


Editorial


Nossa 6ª edição vem em um momento inusitado, onde a pandemia nos força a ficar em casa para zelarmos por nós mesmos e pelo Outro. Isso pode possibilitar a reflexão e a compreensão de nosso lugar neste universo tão contraditório e, muitas vezes, injusto! Feminismo, tema desta edição, é um movimento que busca ampliar direitos e equidade das mulheres na sociedade. Por meio da sororidade, elas podem alcançar seus objetivos e ocupar os espaços que desejarem. Muito já foi conquistado, mas não é o suficiente. Não podemos generalizar a situação da mulher, não podemos ignorar a desigualdade social e cultural que a reveste e, por vezes, a oprime. Ainda há muito o que fazer. A estrutura mental precisa ser reeducada para que os limites físico e emocional sejam respeitados. E a escrita é um condutor que possibilita esta transformação. Recebemos muitos textos, alguns nos fizeram sorrir, outros nos fizeram chorar, mas todos nos fizeram sentir que, de alguma maneira, um pouco de cada personagem está em cada uma de nós. Por isso, não foi fácil selecionar apenas 10. Agradecemos as escritoras em todo o espectro LGBTQ+, de qualquer etnia, que compartilharam suas vivências através da palavra escrita. Isso nos enriquece e nos fortalece. Alguns homens enviaram seus textos acerca do feminismo. Agradecemos a demonstração de apoio, pois seu processo de desconstrução ao tentar reconhecer em si o machismo estrutural e apoiar o movimento feminista é bem-vindo. Sejam ouvintes e impeçam que esta cultura nociva continue a ser reproduzida, não compactuem e repreendam ações machistas.


Ă?ndice


Senhora ruga...................................................6 A gente é macha............................................10 Mulheridades..................................................14 Dois séculos....................................................18 O tártaro.........................................................22 A história de Jane..........................................28 Em transe........................................................34 A Churrasqueira............................................36 Calor...............................................................40 Um móbil........................................................44


Senhora ruga Kíssila Muzy

Kíssila Muzy é bem jovem: nasceu em agosto de 2019 quando submeteu seu primeiro conto a um concurso literário. Na vida anterior foi advogada, mestre em Direito, licenciada em Letras, especialista em culturas na América Latina e professora universitária.

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– JESUSCRISTOMARIA E JOSÉ, O QUE É ISSO?

– “Amiga” uma ova que eu não te dei essa confiança! — a essa altura, a mulher quase babava de raiva.

Jô foi tomada de assalto pelo que viu no espelho. Ela, que até ontem se via como uma menina, deparou-se com a primeira ruga praticamente piscando na sua testa.

A ruga ficou atordoada. Caso tivesse que se mudar, o processo todo seria muito doloroso para ambas as envolvidas. Precisava rever a estratégia, já que um passo em falso colocaria tudo a perder. Decidiu, então, agir na humildade: lacrimosa, disse que não escolheu estar ali; que nascera há pouco tempo e sentia-se perdida e sem função, mas acreditava que poderia vir a ser uma espécie de ícone dos dias vividos, ainda que não fossem os melhores, mas também uma referência para as experiências futuras; se ela, a ruga, coube numa testa antes virgem, é porque uma nova e bela fase da vida seria inaugurada, sem desmerecer das memórias de tudo o que a Jô havia passado até aqui; por fim, sentia muito pela má impressão causada, mas não foi ensinada sobre como chegar à vida de alguém. Encerrou o discurso pedindo perdão à moça pelo transtorno e disse que compreenderia se ela a expulsasse, apesar de que seria um tanto quanto difícil uma separação de corpos naquela altura do campeonato quando ambas já faziam parte indelével uma da outra.

Era um risco fundo tipo o avesso de um vinco de calça; uma voçoroca que a maquiagem certamente não esconderia. A linha media quase dois centímetros e era reta que nem o registro de uma facada entre os olhos. Facada mesmo foi na alma. A ruga, percebendo o desconforto que causara na anfitriã, esforçou-se para ser simpática: – Olá, muito prazer, meu nome é Dois Mil e Dezenove. Espero que sejamos muito amigas porque passaremos todo o tempo juntas e eu já gosto de você. A dona da testa - e agora também da ruga ficou perplexa com o que acabara de ouvir. Nunca havia sido vítima desse tipo de assédio, uma clara tentativa de manipulação emocional, pois a ruga estava falseando uma afetividade que não existia entre elas, provavelmente para conseguir um lugar para morar sem contradita.

Não há quem resista a um pedido de desculpas aparentemente sincero, principalmente se vier acompanhado de uma razão indiscutível: o fato — sempre os fatos — de que uma declaração de guerra seria a ruína de ambas, já que o que se formara entre elas era um vínculo absoluto e vitalício e Jô não possuía recursos financeiros para investir numa medida cirúrgica.

– Eu não te conheço e não a quero como inquilina ou companheira de quarto. Não a convidei e não desejo sua companhia — Jô respondeu com firmeza. – Amiga...

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A moça desculpou-se com a ruga reconhecendo ter sido rude, pois nem lhe oferecera uma água no primeiro contato. Explicou que a condômina repentina trouxe na bagagem muitas lembranças desconfortáveis com as quais teria que lidar para sempre e isso fora o mais assustador. Comprometeu-se a tentar aceitar a novidade com a mente aberta e o coração cheio de amor por sua própria história. Contente com a conquista de mais um território - o coração da Jô -, e à vontade para estabelecer-se em definitivo sem medo de ser feliz, a ruga respondeu:

grias da maturidade. Prometo que estaremos cada dia mais fortes e unidas. Seremos um lindo exemplo de aceitação para dar para as minhas muitas irmãs que já estão a caminho. Seremos uma enorme família feliz. Jô custou a compreender o que acabara de ouvir. Quando, enfim, realizou que aquela maldita intrusa era o arauto de uma invasão inexorável em sua vida e que de nada adiantaria negar a realidade iminente, percebeu um leve embaçamento nas vistas e até sentiu que lhe faltaria o ar. Encostou na parede e, enquanto deslizava até o chão, ouviu:

– Que bom que você não vai mais me rejeitar. Assim poderemos caminhar juntas pelo resto da vida, uma apoiando a outra nos momentos difíceis e compartilhando as ale-

– Que tal fazermos uma selfie enquanto ainda somos só nós duas?

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A gente é macha Ângela Coradini

Ângela Coradini é contadora de mentiras e editora na revista ruidomanifesto.org Tem doutorado em Cultura Contemporânea e é autora dos livros “Imagens-espectro de futuridades no Amplo Presente”, (EdUFMT), e “Já não podem ser amanhã...” (Carlini e Caniato).

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Era fim de tarde e, por além do muro, ouvi uma conversa ouriçada de crianças. Algumas vozes de meninos comemoravam grandiosamente alguns saltos por cima de uma comprida vala coberta por grama que se estendia por todo o terreno. Ao mesmo tempo, os aventureiros diziam às amigas:

– Eeeeeeeeeeeeeeu consegui!… Era um berro potente, sonoro, lindo! E muito enfático no primeiro pronome pessoal Do lado de cá do muro, entrei num riso festivo e tive de sentar para conter minha vontade de espiar por cima do muro. A forma como ela prolongava aquele “eu-menina” era provocativamente doce e forte.

– Vocês são meninas, não vão conseguir! O sábado estava quase indo embora. Ao invés de olhar por cima do muro, deitei no quintal para imaginar, através daquelas vozes o desenrolar da brincadeira. Com o cheiro da grama imergi nas memórias dos meus joelhos esfolados pelo cascalho vermelho, das pernas cobertas por desenhos dos tais bichinhos geográficos, a trilhas de bicicleta e das vezes que tive que brigar para conseguir jogar futebol com os meninos…

Ouvi outra voz infantil anunciar que também iria tentar o salto. Havia um timbre delicioso. E a primeira, vitoriosa, incentivava a segunda desafiante àquele salto não autorizado para meninas, segundo os meninos.

“nada mal”, pensei.

– Vem, balança o braço, assim oh (nesse momento imaginei o ritmo do balanço quando a gente movimenta o corpo como se fosse voar, vocês sabem, certo?). Balança bem forte, pra trás e pra frente. E é só pular!

Fui desperta da minha infância por um grito. Era uma das meninas além do muro que atreveu-se a encerrar a gozação dos amigos e anunciou a façanha a ser realizada:

Entre a hesitação da segunda e o otimismo da primeira, ouço a frase que diz tanto sobre um mundo que dita tantas regras e proibições para nós, meninas:

– Eu vou pular! Eeeeeeeeeeeu vou pular!

– Vem, você é macha!

O silêncio de todos foi completo. Mas o tempo de mudez foi muito curto comparado à longa comemoração que o substituiu. Com toda a garganta, por umas três vezes consecutivas, a saltadora aventureira gritou:

Segundos depois, aquele coro de duas garotas com muita adrenalina no corpo tocou o meu rosto que se moveu num sorriso escancarado:

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– A gente é macha!, A gente é macha! Eu gargalhava com elas mesmo sem que elas soubessem. Não dava para exigir de suas meninas que elas utilizassem outra expressão que não “macha”. Nós éramos duas meninas e uma mulher comemorando a derrubada de um barreira que parecia tão simples, mas que naquele momento poderia desencadear tanta potência e segurança dentro delas. Fiquei doida de vontade de pular o muro da minha casa e de ir até lá, olhar na cara daquelas duas e dizer que esse negócio de “macha” tem outros nomes. Que elas podiam responder “porque sim”, “porque não”, “porque eu quero”, ou “não sou obrigada a nada”! Lembrei de como foi desafiador crescer no meio de sete meninos, e que “menina, tenhas modos!” é a merda de mais um jargão opressor. Mas, naquele fim de tarde, eram elas que tinham algo para me dizer.


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Mulheridades Jacqueline Oliveira

Jacqueline O. da Conceição é mulher de Àse, professora, colunista da revista Publiquei, escritora, pesquisadora de Literaturas de Autoria Negra, graduada em Letras Clássicas/UFRJ e pós-graduanda em Produção de Textos e Escrita Criativa (Faveni).

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“É preciso uma vez, ao menos uma única vez, Afogar-se nos próprios poemas Para descobrir O peso que as palavras carregam”

seus personagens. Como poderia ser personagem coadjuvante da própria história? Como, ela poderia ocupar o papel de segundo plano dessa trama?

Jacqueline Oliveira

Deja vu – essa é a palavra e sensação que tomaram conta de Nyara. Um sentimento de liberdade, agora. Porém, com amarras no tempo, presas igual um pássaro na gaiola. A sua vida não poderia ser mais dúbia. Não poderia ser mais, apenas um roteiro, para apreciação do povo. A sua vida não era uma mercadoria. A sua vida não era uma peça de teatro em cartaz.

Aquela mulher optou por afogar-se das próprias palavras. Procurou o velho diário no quartinho escuro, de sua vó Bita, lá na vila do Canhangá. Abriu o mais denso de seus livros de memórias e começou a lê-lo. Não respeitou as vírgulas e nem os amigos de pontuação. Queria beber de uma vez só aquelas estórias. Se pausasse, certamente engasgaria pelas letras, e o dia não pedia má digestão. Resolveu tomar um porre de culpas.

“É preciso morder os versos E sentir a dor fluir Descer escorrendo até Ponto do desague De sentimentos que precisam ser Expulsos de nossa alma”

Abrir aquele diário não foi fácil. O virar de páginas doeu, mexendo em feridas recém cicatrizadas. Mas, era necessário. Não podia mais passar. Fingir que não precisava retornar ao passado e isentar-se das culpas. Na verdade, ela precisava sentir o peso das palavras para então subir à margem e, enfim respirar. Assim foi feito. Mergulhou o máximo que pôde explorando as profundezas de sua alma. Observou as espécies que habitavam as águas barrentas de seu interior. Diversas vezes esbarrou com mulheridades desconhecidas por ela. Pedaços de sua existência nunca vistas. Mulheres estranhas.

A mulher, cujo nome revelava: “alguém em busca de grandes objetivos”. Qual seria o seu? Nyara havia apertado o acelerador. Resolvera andar. Ir em busca dos relatos de sua vida. Agora, precisava abrir a gaiola e deixar o pássaro voar. Uma espécie furta-cor, que com o passar do tempo, foi ganhando um intenso colorido. As cenas deixaram de ser pretas e brancas. No lugar, cores de todos os tipos foram ganhando o cenário. Subiu a margem levando consigo registros de barro. Eram relatos de enchente. Escritos de alguém que passara com o coração cheio de dor, angústia, perda e lágrimas. No diário, dizia:

A sensação de não pertença era natural. Nunca imaginou um corpo de metades. Jamais poderia pensar que essas águas fossem um grande espelho redondo transmitindo a sua vida. Ali dentro, conheceu o Tempo. Cada imagem da sua vida. Cenários, episódios, enredos, narrador e principalmente

– Você está curada Nyara! – Não precisa mais violentar-se! 15


– Deixe que as mulheres que habitam dentro de você voem. Deixe que elas se apresentem. Aprenda a conhecer seus rostos, do que gostam, suas opiniões, seus desejos, devaneios, vontades, qualidades. Aprenda a virar-se do avesso e a levantar oferecendo a melhor face. Apresentando uma metade-inteira. Um corpo autodefinido. Um corpo localizado, um corpo menos colonizado, um corpo moldado por si. – Entenda que eu, seu diário, já tive meus dias de lamento. – Lembra dos dias em que você não quis tocar-me e deixou-me sobre a mesa jogado? Eu fiquei lá. Triste, solitário e sem ter alguém para conversar. As minhas páginas encolhiam-se pelo frio da ausência de escritas. O vazio tomava conta de mim. Páginas em branco não sustentavam a vontade de falar, como as palavras faziam. E ainda assim, eu fui forte! Resiliente, seria a melhor forma, e aprendi a aprender que às vezes é preciso sair do próprio corpo para voltarmos ser sóbrios. – Por que você não consegue? – Agora, eu sei que vai doer. A ferida vai arder e quando você por pra fora, ela fechará. Você já está curada! Mas para que se torne inteira, é preciso fechar esse ciclo. Esse é o seu ritual de passagem!

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Dois séculos Ercilene Vita

Ercilene Vita é professora, escritora e tradutora, Doutora em Linguagem e Educação pela FEUSP. Autora do livro Mar de palavras-chave: domínio e estranhamento em relação à Língua Portuguesa (no prelo) e de alguns artigos, contos e poemas já publicados em revistas e sites literários.

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“Me enterre longe de seu pai”, a voz suave se fazia ouvir na memória do homem que tinha aprendido ao longo da vida a confiar mais nessa voz do que em qualquer outra coisa nesse mundo. Chovia. Uma chuva forte e densa, que tinha derrubado a ponte que dava a passagem para a cidade vizinha. “Me enterre longe de seu pai”. Não bastava a dor de ter visto a dona da voz estendida em um caixão, não bastava. Estendida no caixão a dona da voz em que ele mais confiava. Perdida para sempre. Não. Ele ainda teria que transportá-la imóvel para sempre e para longe. Ao menos a ponto de o corpo dela nunca mais ficar perto do corpo de seu pai. Não bastava. Ele estava sozinho, sob a chuva, um caixão amarrado na charrete, o pequeno rio, a ponte arrebentada e a voz.

Onde agora? Onde agora seria acolhido? “Longe de seu pai”. Sua mãe era forte como o carvalho que algum ancestral havia plantado. Era o que ele achava, menino. “Sou eu que vou lhe passar o mundo, eu sei”. E era assim. Agora ainda estranhamente assim, no meio do breu, ele não tinha medo de fantasmas, nem de assassinos. Ela estava lá ainda. Ao menos era o que preferia crer. Pensou em voltar atrás. Para a cidade em que morava. Não conseguiu. Ficou à beira do rio. Olhando o escuro. Talvez alguém passasse por lá, e não se assustasse com a visão da charrete. Talvez uma pequena embarcação. No meio da água, tentou ver alguma canoa. Nenhuma. Esperou. E esperou. Talvez de manhã, alguém passasse e o ajudasse.

Lembrou dos olhos dela. Abertos. Explicando a ele o que fazer com suas roupas quando foi para São Paulo pela primeira vez estudar, como guardá-las na mala, dobrá-las, depois passá-las. Explicando a ele como olhar para as plantas do quintal, qual usar para as dores de uma noite de insônia, para as dores do fígado, para um corte. Desde pequeno via o mundo pelos olhos dela, as cores, os cobertores que ela tecia tão coloridos, os carneiros que ela tosava, de que tirava a lã que depois ia ser colorida e tecida nos cobertores. Ela o esquentava. Sempre o esquentou e ele agora, diante do mandamento materno, sentia-se dilacerado pelo frio da noite. Chovia e chorava. Ela sempre o havia acolhido em seu choro ainda que ele o dissimulasse várias vezes:

De cansaço, pois não havia dormido na noite anterior, dormiu uma hora ao lado do corpo. Sonhou. A sensação de ter dois corações, o da mãe também dentro de seu peito. Não respirava direito. Acordou. No dia da morte dela, precisou brigar com o padre, com o prefeito da pequena cidade, com as beatas. Todos eles conformes às leis do mais cômodo. Como era o único filho, sua vontade prevaleceu Ameaçou-os de não respeitar a vontade da morta. Amaldiçoou-os. Depois das rezas, da verificação do médico, precisava sair da cidade o mais cedo possível. “Me enterre longe”. Ela é a voz que move o mundo. Ela fazia vir livros de longe. Lia melhor que o padre, que o prefeito, que o marido. Sabia mais. Fazia seus cordiais, remédios com que curava Alcides. Sua busca por eles começou quando perdeu o gêmeo de seu agora único filho.

– Venha, Alcides. Eu lhe conheço mais que qualquer ser nessa terra. Venha. 19


Nunca mais iam tirá-lo dela, como o que tinham feito com o outro. O médico que não sabia das dores do corpo, o marido que não sabia das dores do parto, o padre que não sabia das dores da alma, o prefeito que não sabia de cidadania. Ela também disso não sabia, mas já era capaz de intui-la, apesar de seu casamento quase que infantil, com um homem bem mais velho, incapaz de entendê-la, apesar do casamento arranjado entre as famílias com o primo menos conhecido, apesar de não ter podido ser médica porque era mulher naquele Brasil de longa data, de matos, engatado em ré, de onde vinha e tinha vivido sua infância de menina prometida. Apesar de. Tinha conseguido brigar com o padre e esconjurá-lo, cuidar dos escravos abandonados que via pelas ruas da cidade, salvar a perna de um sobrinho que ia ser amputada pelo médico. “Deixem esse menino seis meses comigo, se eu não der jeito, podem amputar”. Deixaram. Com seus cordiais. O seu cuidado. Salvou-o. Também tinha conseguido ficar longe do marido, indo para uma casa antiga da família, abandonada. E criar seu filho, carregado nas costas, quando trabalhava, ele que agora a carregava. Os pensamentos de Alcides pesavam na noite tanto quanto um corpo. Ele tinha agora duas cargas. Que sempre o constituíram. Que, paradoxais, o levantavam. Dava-se conta delas, de modo súbito. Um susto, um desamparo e o alento de ter sido conduzido por essa mulher ao longo de sua vida. O que fazer para realizar seu último desejo? Era o discurso dela que ele seguia. Um norte. Um caminho, um carinho, uma vida. Ninguém soube lhe dar tanta vida quanto ela, quase tão alta quanto ele, os olhos negros refletindo o escuro, o breu em que agora se via. Ele era o discurso dela

em pé. Suas palavras e seus dias. Seguia. Tendo brigado com o padre, com o resto não tão próximo da família, com o prefeito, com as beatas. Seguia. Seguiu assertivo até o rio. E amaldiçoou os deuses quando viu a ponte quebrada. Conhecia bem o rio. Tinha que enterrá-la do outro lado, o cemitério da cidade vizinha, não aquele em que estava o corpo de seu pai morto há uns vinte anos. Não aquele. Fez cálculos, a parte mais baixa do rio, ele conhecia. Depois de ter pensando em voltar, em desistir, em consertar a ponte, sozinho, depois de esperar alguém chegar, pensou em se arriscar e atravessar a nado, com o cavalo, a charrete, o caixão. Pensou em um acidente, pensou em perdê-la como um barco que parte. Não suportaria. Decidiu esperar o dia amanhecer. Dormiu de novo, dessa vez longamente, abraçado. “Longe de seu pai”. Acordou de manhã aos sobressaltos. Olhos e um rosto escuro o olhavam de perto. Sentiu a respiração próxima, acre. Que depois veio com um sorriso. Era um liberto, o velho Julião, que havia sido cuidado por sua mãe quando ainda vivia na rua, abandonado. Desde então, havia se enfurnado no mato. Sozinho. Sem querer a proximidade daqueles que o haviam escravizado. Ele havia escutado o choro de Alcides no meio da noite, mas não quis se aproximar. Com a luz do dia, teve coragem. Viu o homem, já conhecido e percebeu a tragédia. Alcides lhe contou o que havia acontecido. O grande medo da mãe de passar, assim seria?, o resto da eternidade ao lado de quem não queria. Imediatamente se puseram a tentar encontrar uma forma de atravessar o rio. 20


Caminharam até uma margem mais estreita. O dia dava ideias e uma certa esperança.

Quando chegaram ao outro lado da margem, desatrelaram o caixão do cavalo. Em terra firme, ele não mais se equilibrava em cima do animal. Decidiram levá-lo nos ombros pela estrada, o cavalo ao lado. Havia nos olhos de Alcides, uma tristeza esperançada. A mulher que lhe sustentava o dia, que lhe cobria a noite, mandava. Ia cumprir a sua vontade. Para sempre. Havia no rosto de Julião uma alegria de quem retribui uma generosidade.

“Sou eu que lhe mostro o mundo”. Seu pai mandava, fazia absurdos, desperdiçava dinheiro, bebia, era cruel e despertava medo. Mas seu discurso não ficava entranhado em sua pele como o dela. “Sou eu que lhe mostro o mundo”. Julião e Alcides acharam o mais estreito do rio, e nele a parte mais rasa. Finalmente chegados lá, apressaram-se em desatrelar o cavalo, desceram o caixão da charrete, amarraram-no no cavalo e conduziram os dois pelo rio. Nas ondas da correnteza, na diagonal, avançavam aos poucos. Quase caíram, engoliram água, se embarrearam. O cavalo andando devagar, guiado pelo dono. Julião atrás, de vigia, impedindo a queda. Preciso.

Sob o sol, mediram a distância que teriam que percorrer até a cidade vizinha. Começaram o caminho. Seguiram. Até o final. Altivos, irmãos. Eram dois homens livres dando voz à liberdade.

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O tártaro Mariana Vieira

Mariana Vieira Gregorio nasceu em 13 de novembro de 1990, em Campinas. Formou-se em Audiovisual pela USP e, desde então, vive em São Paulo. Trabalha com edição de som de cinema e TV e está para lançar seu primeiro livro de contos, o Noturna, pela editora Patuá.

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Estava eu na rua à lateral do meu trabalho, donde saí, não sem antes tudo trancar, cada porta com sua respectiva chave, e há meia dúzia de portas que não podem ficar abertas e acionar o alarme e me esquecendo de dar boa-noite ao vigia da rua e colocando uma perna depois da outra arqueada sobre a lombar passiva de lordose, quando o tártaro olhou estranhamente para mim. Minutos antes reparei nos dois corpos masculinos visíveis no escuro da rua: mais distante, um homem com sua mochila (o tártaro, nessa hora, não passava de um vulto qualquer) e um outro tentava levar uma espécie de porta, como essas que se põe na entrada de vistosas casas, com vãos quadrados onde deveria haver vidro. Presumi seu peso, a porta estava apoiada no asfalto, ele parou – descansava? – de frente a ela, quase no meio da rua, se é que pode se chamar de rua está esquina onde parece-se mais como uma viela, inteira escura às oito da noite. Segui com meus devaneios, sem pensar em homem algum, nem o da mochila, nem o da porta e, evidentemente, nem no vigia; avistei-os meramente por uma rápida checagem de sobrevivência, como um pequeno animal que antes de andar, de dormir, caçar, comer, dar de mamar, distrair-se com o formato de uma nuvem, antes de viver, de tomar qualquer ação que envolve qualquer necessidade fisiológica, emocional ou prazerosa, tem de olhar bem se não há predadores, se é seguro avançar, se correr o risco valia a vida, a carregar de forma casual, acidental, fortuita, entre respirações e ovulações incontroláveis.

entre as copas frondosas de árvores (já as árvores, sombreiam os resquícios de luz); os faróis do carro me permitem ver, mal-ver, onde piso, a luz do farol me deu o vislumbre do olhar estranho do homem de mochila. No punho fechado segurava um cabo de vassoura, a mochila era dessas de viajantes-andarilhos, surrada, por debaixo de seu shorts um outro de lycra, como alguém que pedala ou vive em outro século, o braço esquerdo segurava outra mala, igualmente preta e surrada, o preto encardido das mochilas a caminhar sem descanso por entre oceanos e continentes. Nada disso eu teria reparado se ele não virasse e me olhasse: quando eu o vi, parecia-me que a algum tempo já me olhava. E por quê haveria de ser estranho? Ora, porque não se parecia com nenhum olhar que um homem me dirige na rua, não estava tentando me amedrontar ou intimidar, não havia malícia, como é de costume dos homens ao encontrarem uma mulher sozinha: o estranho foi me olhar com temor, como se fosse eu a ameaça. Balançou nervoso o cabo de vassoura na mão e a boca chegou a repuxar para os cantos, aqui permito-me descrever as feições do rapaz. Tinha um rosto particular por conta de seus olhos puxados, o rosto era todo afilado e a cabeça quase nua, uma barba preta e pontuda caía ao queixo, como um tártaro, sim tinha feições de um tártaro, na hora pensei também em russo, mas russo mal servia para definir seu rosto; brandia o cabo da vassoura como se fosse uma lança, sem ponta afiada era apenas um cajado carregado como se fosse lança. E tinha medo nos olhos. Eu andava com o peso do dia sobre meus ombros, os olhos quase se fechando de exaustão, o enjôo de refazer todo dia o mesmo trajeto e não tinha feição alguma, talvez alguma arrogância no

A rua se encosta na escuridão, não há muitos postes acesos aqui, todo o outro lado é ocupado por um muro baixo de cemitério, e assim é a morada dos mortos, sem lâmpadas 23


andar, uma arrogância não planejada, um desinteresse latente pela vida ao redor, e, surpresa, reparei no seu olho trêmulo. Será que eu também deveria sentir medo? Olhei por detrás dos meus ombros e diminuía o homem parado no meio da rua com a porta sem vidros. O tártaro apertou o passo, como se eu estivesse a persegui-lo e olhou para os lados como quem busca abrigo. Àquela hora todo o comércio local fechara: duas mecânicas, uma loja de material de construção, uma barbearia pequena onde o barbeiro, um homem curiosamente mirrado, passa todo o dia na porta. Atravessamos o longo muro do ecoponto. O escuro da noite apaga os grafites, o galpão vazio parece agora um ótimo lugar para matar alguém ou, quem sabe, entre os entulhos, esconder seu corpo. É isso o que ele pensa? Eu, logo eu, seria capaz de arrastar seu pesado corpo pelos pés, a cabeça tártara tremulando ao chão, a boca aberta a escorrer um filete de sangue, e de ali deixá-lo entre os entulhos, junto da mochila surrada, empilhado de tal modo que não se perceba diferença entre um homem e uma mochila; e como, com qual força? Se nem uma arma tenho, se é ele quem anda por aí passando de uma mão a outra um cabo de vassoura de forma ameaçadora. E se tivesse razão, por que eu o perseguiria? Poderia eu, uma mulher, ser capaz de perseguir um homem, de intimidar um homem, de botar medo, como eles o fazem tão facilmente comigo e minhas companheiras de gênero? Mas se não estou o perseguindo, por quê então este olho de horror? E por quê apressa o passo nervoso, e sem mais nem menos, retarda? Para me testar, ver se o alcanço e desvio, revelar minha não-intenção, como eu mesma já fiz quando me senti perseguida por um homem?

Estou a menos de dois passos de distância de seu corpo e de sua mochila e a luz do posto de gasolina da esquina desfaz o escuro que estávamos mergulhados, ali a ilha de luz oferecerá um desconcertante desconforto a todos os assassinos, estupradores, ladrões, malfeitores, stalkers, paisanos e paranóicos que desejam ardentemente perseguir alguém no escuro. E não sempre fora tal ilha de luz um oásis para mim? Não quero passar ao seu lado e tomar a frente neste caminho, perto de seu cabo de vassoura vacilante, pois temo que o jogo se inverta e, novamente, serei eu a perseguida, a presa habitual das noites. Ninguém nunca me falou sobre o estranho prazer de perseguir, ser finalmente tigre e não coelho. Mas por quais motivos eu o persigo? Da janela de sua casa, vê uma sombra se mover lá fora, ouve passos que nunca revelam a origem. Neste mundo patriarcal, é o homem que persegue mas, num susto, vê-se perseguido pela própria presa, como se relógio resolvesse andar para trás e a realidade não passasse de um reflexo invertido nas águas de um rio divino. E se a porta emperrada no meio daquela rua me jogou num mundo invertido, a cada passo estou mais próxima do século V, o cemitério se desfaz na árida paisagem do deserto de Gobi e minhas roupas ganham os tons dourados e vermelhos do exército de Gengis Khan. Persigo, pois perco-me na história dos dias dos homens e minha vulva cospe para fora seu onipotente colosso. Mas sou eu, mulher, a perseguida ao longo dos séculos e adiante, desde o primeiro genocídio da pólis matriarcal, amazonas extirpadas, sal na terra onde concebeu-se a deusa da fertilidade. E quando o porteiro da porta mágica cansar de inverter mundos, estarei em apuros, sozinha nova24


mente. Antes do encanto acabar (ou sequer iniciar), preciso me adiantar, como sempre, me precaver.

o tártaro engole é a vitória do corpo sobre o fogo irascível. Fico interessada em saber o aspecto tem sua garganta. Mas o que um homem desses teme? A vingança de uma deusa? A vingança curva-se sobre mim, sou eu que todo dia deve carregá-la, como se não doesse, como se não envergasse minha coluna, pouco a pouco, a vingança me toma sem eu perceber. A vingança por si só, sem razão, caótica, serpenteando em todas as esquinas escuras do mundo, aguardando o momento propício para se fazer vidente. Ela clama meu nome. Ouça o sussurro das árvores sobre as lápides do cemitério. O que é matar dentro de um cemitério, eu me perguntei tantas vezes a atravessá-lo, matar alguém dentro de um santuário de corpos petrificados, de ossos desenterrados, cal e mármore, creolina e o perfume selvagem de rosas e cravos, matar um corpo dentro de um lugar onde tão fácil seria desmembrá-lo e distribuir os ossos em diferentes lápides; espantariam-se os mortos com braços, pernas, unhas e globo ocular intrusos, sem sobrenome em comum ou divisão das taxas de manutenção, a lotar um pedaço já tão apertado de terra?

Na outra viela à esquerda do posto, há uma pequena quadra onde pessoas um pouco excêntricas juntam-se para fazer todo tipo de coisa circense: malabares principalmente, e uma vez ou outra, cuspidores de fogo, palhaços. O tártaro é um cuspidor de fogo, e leva na mochila todo apetrecho necessário para se matar alguém: algum líquido inflamável, isqueiro, garrafas tintilantes de vidro; sua postura é cigana, não tem lar, vive do espetáculo oferecido no bueiro. Quanta coragem é preciso para atear fogo na sua própria garganta? Precisa-se de tanto mais para queimar o corpo de outro ser humano? Numa dessas noites a voltar do trabalho, uma travesti contou-me, com felicidade, que ateou fogo ao corpo de um homem que tinha lhe roubado. Falou-me: minha maior desgraça foi ele não morrer. Como se ateia fogo ao corpo de alguém? Poucos segundos e já não há ninguém ali: o corpo perde sua forma, peso e cor, consomem-se as feições do rosto e até o horror dos olhos, cala-se o grito interditado. Tudo que era próprio some. A substância torna-se outra, já não se é sólido, a carne flameja: desesperado e afônico, a vítima tenta apagar com as mãos em chamas o resto do fogo. Neste momento, nada mais se é além de um fogo vivo. Sou ou não sou eis a questão e outras perguntas consumidas no calor da morte. Um corpo em chamas são apenas chamas sem corpo. E se o corpo não se reduzir a pó e fumaça, nunca repetirá sua mesma imagem: coberto das escamas anfíbias da marca das chamas, das cicatrizes pútridas dos que anteviram a morte, exposta a tragédia. As labaredas que

O tártaro me teme pois sabe que a vingança é um incêndio a qual não escolhe sua vítima: ele se espalha por todo o território, mata cachorros, crianças e delicia-se nos móveis de madeira, nos sofás arranhados por gatos coléricos. O cuspidor de fogo me teme porque conhece bem o fogo que come para comprar o pão duro a escorregar garganta adentro. O fogo era seu ato de coragem, mas tornou-se sua covardia seca e triste dos que têm de trabalhar para viver; o fogo mal arde, é murcho e triste feito uma laranja amarga demais, uma banana passada 25


dos dias, uma maçã apodrecida por dentro. Cuspi-lo aos aplausos dos olhos flamejantes das crianças e das avós gordas é o seu tempo vendido como o meu ao sorrir e servir, servir e sorrir, trancar bem as portas, abrir bem as portas, abrir bem as janelas para arejar, sentar-se e esperar, fingir que não espera, cuspir sorrisos tão perigosos quanto labaredas de mentira. O tártaro me teme e tem razão, a ira sopra junto ao vento, brinca entre as folhas das árvores, busca abrigo nos túmulos vazios e sobe escaldante nos dias de calor, cai como chuva fria nas noites cinzas, a ira não tem forma de tempestade nem se manifesta derrubando árvores no meio-fio, ela está esperando, esperando pacientemente pela próxima mulher que deixe-a entrar qual um desejo irrecusável. O cuspidor de fogo sabe quando vê alguém que não sabe cuspir o fogo; alguém que só o engole, uma estufa cultivadora de incêndios, e está prestes a entrar em combustão sem o menor sinal de antecipação: alguém

que não tem mais nada a perder. Consumir as lembranças, os sorrisos, o tempo, consumir o rosto, apagar a si mesmo e qualquer um que cruze seu caminho; e é por isso que ele anda sempre com um cabo de vassoura, é por isso que ele sabe que a guerra não termina, nunca terminou, Irã, Iraque, Mongólia, Coréia, Paraguai, Romênia, Albânia, Alemanha, Japão, Sérvia, Palestina, Congo, Nigéria, Moçambique, Filipinas, Chechênia, China, Timor Leste, Líbia, Sudão, Turquia, Uzbequistão, Cazaquistão, Ucrânia, Turcomenistão, Nicarágua, Equador, as favelas do Rio de Janeiro, os presídios de Natal, São Luís, Altamira, Venezuela, o suicídio dos Guarani-Kaiowá, dezenas de milhares de mortos no mundo todo. Em alguns lugares, há mais mortos que terra para enterrar. Ninguém me falara do prazer no ato de perseguir, queimar e ver morrer alguém tão próximo assim; alguém lúcido o bastante; com dois olhos para poder ver a si mesmo consumindo-se. Ninguém nunca fala disso.

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A história de Jane Ana Carol

Ana Carol da Silva, tem 17 anos, mora atualmente na cidade de Porto Belo – SC, gosta de escrever desde criança, e por muitas vezes a escrita a salvou, onde conseguiu transpassar escrevendo o que não conseguia expressar falando.


Jane, nossa história vai ser sobre essa menina alegre, que com seus 14 anos já tinha uma vontade de lutar pelos seus sonhos, deixando todos admirados, sonhava se tornar uma médica, e fundar uma ONG para cachorrinhos de rua. Mas por que ela queria ser médica? Para poder ir a fundo na anatomia humana e entender porque sempre diziam que as mulheres eram o “sexo frágil”, Jane não conseguia aceitar tal fato como verdade, e por variadas vezes se pegou questionando seus pais, e a resposta era sempre a mesma, que é assim e pronto, e que ela não devia falar desses assuntos, e como sempre, era calada, sem ter o direito de questionar, e voltando a ser a menina quietinha que tanto lutaram para ser, pois alegavam ser mais bonito uma mulher quieta e que não fica incomodando os outros com perguntas que não se deve.

dade de aprender matérias, pois sua família estava ocupada ensinado como se cozinha, e como limpar a casa excepcionalmente bem, pois era muito importante, um passaporte para um bom casamento, eles diziam. E uma menina que sempre tira 10 em todas as matérias, não conseguia se dar bem na matéria de ser uma boa dona de casa, o que deixava seus pais horrorizados, tinham medo de ficar com uma solteirona dentro de casa, pois ninguém iria querer uma menina que fala demais, pensa demais e pouco obedece, mas essa era o último item na lista de preocupações de Jane, para ser sincera, nem na lista estava, mas tinha que fingir para seus pais deixarem ela continuar frequentando a escola. A escola já não era suficiente para a curiosidade de nossa menina Jane, mas quando começou a ter aulas sobre informática ela se sentiu realizada, nas aulas vagas pesquisava tudo que a deixava curiosa sobre o mundo ao seu redor. Em uma de suas buscas, pesquisou sobre as mulheres e seus direitos, por que tão poucos? O que nos difere dos homens? E então ela se deparou com a melhor resposta que poderia encontrar, que nada á diferenciava, poderia ser quem quisesse e ser mulher não era um empecilho.

Nossa Jane tem personalidade grande, mas não é tão grande na altura, e isso não a incomodava, pois o que os outros citavam como algo ruim, que era o fato do seu corpo se desenvolver mais lentamente que o das outras garotas, para ela era uma alegria, pois podia fazer as atividades na escola sem que alguém estivesse a olhando, já suas amigas não tiveram a mesma sorte, não praticavam mais esportes na quadra por se sentirem incomodadas com os olhares dos adultos sobre seus corpos.

As aulas vagas na sala de informática eram inspiradoras, cada dia mais profundas no assunto dos direitos que as mulheres têm, e lendo sobre mulheres incríveis que mostraram sua inteligência e criatividade ao mundo, a deixando inspirada. Ela poderia ler sobre Marie Curie e seus estudos sem cansar, e sempre sonhando com o dia em que assim como ela ganharia um prêmio

Jane sempre gostou de jogar, aliás ela sempre gostou de tudo voltado a escola, aprender era sua coisa preferida, e aproveitava ao máximo as suas 4 horas de aula, sem piscar os olhos para não perder nenhuma informação, sabia que cada minuto era valioso, aliás, em casa não era dado a ela a oportuni29


Nobel, por algum grande feito em suas pesquisas como médica. E a vontade de participar da educação física só aumentava ao ler a história de Kathrine Switer que foi a primeira mulher a participar da maratona de Boston em 1967, onde os homens tentaram impedi-la de correr, Jane ficava sem entender porque os homens se preocupavam tanto me deixa-la correr, já que sempre insinuavam sobre como as mulheres são um “sexo frágil” sendo assim não deveriam ter medo de perder.

manhã ouviam a mãe de Jane gritar. E todos os dias se calavam e fingiam não escutar. E foi ali que Jane soube e entendeu como nunca a importância da luta das mulheres sobre qual tanto lia. Como seus vizinhos não iriam ajudar ela teria que entrar e ligar para a polícia, mas notou que os gritos cessaram, sua casa estava silenciosa como quando chegava da escola, entrou determinada a chamar ajuda, e viu sua mãe no lugar que sempre a via quando Jane vinha da escola, e isso doeu, pois notou que ela soube daquilo porque chegou antes em casa, mas era um fato recorrente o que sua mãe passava.

As aulas nesse dia terminaram mais cedo e nossa querida Jane estava entusiasmada para chegar em casa, talvez se sua mãe soubesse sobre grandes mulheres que conquistaram grandes coisas não iria pensar que mulheres nasceram para ser boas esposas, que na verdade há um mundo de possibilidades dentro de suas escolhas, e se a mãe dela escolheu ser uma boa esposa, dona de casa, tudo bem mas Jane não, e lutaria para ser o que queria.

Caminhou até sua mãe e a abraçou e disse que iria chamar a polícia, mas sua mãe a repreendeu e não deixou que ligasse, Jane se revoltou, e a perguntou porque ela não iria querer ajuda, e foi quando sua mãe a contou que a polícia nunca veio as vezes que ela ligou, pois palavras deles “não se envolviam em problemas familiares”.

O que ela não sabia é que esse dia em que estava tão feliz sobre suas descobertas não era realmente um bom dia, e ela não esqueceria por dois grandes motivos, o primeiro ela viu logo que adentrou em casa, sua mãe no chão e seu pai a agredindo, sua mãe chorava desesperadamente, e seu pai não parecia ligar para isso ao desferir socos, chutes e gritar palavras grosseiras.

Mãe de Jane já havia desistido, pois nunca recebeu ajuda, não tinha coragem, tinha medo, e acima de tudo tinha Jane, sabia que precisava ficar, para proteger Jane da ira de seu pai, e que as vezes que ensinava Jane a ser uma boa esposa, era porque essa era a ideia do marido, e se fosse contra, apanhava. Mas ao contrário de sua mãe Jane estava determinada a lutar pela sua liberdade, seus direitos, sua igualdade no mundo, e não lutar só por ela, mas pela sua mãe e todas as mulheres que passavam pela mesma coisa. Deitada na cama, Jane chorava, e suas lágrimas a davam poder, dentro de si escorriam

Jane após sair de seu choque inicial corre para rua e grita por socorro, mas as casas estão fechadas, janelas, portas, nenhuma alma viva na rua, o que ela não sabia era que os vizinhos sabiam o que estava acontecendo, era algo comum, todos os dias pela 30


angústia, indignação e uma vontade incontrolável de lutar.

qual ameaçava Jane, ela sabia que conhecia ele de algum lugar, mas não sabia de onde, sabia que ele sabia quem ela era. Em casa seu pai fez pouco caso, disse que com certeza era loucura de sua filha, e que deveria ir mais vestida na escola então, pois palavras de seu pai “ se não quiser que olhem, não deve mostrar, “ mas Jane não compreendia, ela apenas mostrava seus braços, pescoço e rosto, e mesmo que fosse mostrado mais, ela sabia que ele estava errado e não era um bom homem. Já a mãe de Jane se preocupou, mas tinha uma vida controlada pelo marido e suas vontades.

Mas não podemos esquecer que ver sua mãe ser agredida não foi a única parte ruim do dia de Jane, aliás naquele mesmo dia, na parte da noite, Jane teve algo anatomicamente normal, que não deveria causar desespero ou medo, mas foi tudo isso que Jane sentiu ao menstruar pela primeira vez, para Jane isso era uma porta aberta para ser assediada mais do que já era, pois, seu corpo iria se desenvolver, e ela não queria aquilo. Pobre Jane, nada estava errado em se desenvolver, estava errado os olhares asquerosos em cima dela, e ela ia entender isso em suas pesquisas pela internet na escola, vendo mulheres falarem sobre seus corpos e direitos sobre eles, e ela as amava. Jane como muitas outras garotas precisou ser ensinada sobre as transformações de seu corpo e direitos sobre cada pedacinho dele fora de casa, mas que bom que existem pessoas para explicar a ela que o corpo é dela e nada nem ninguém podem tocar sem sua permissão.

Jane não conseguia simplesmente aceitar que o caminho de sua escola para casa era o mesmo que ele fazia para o trabalho, e as pessoas não estavam escutando ela, dando soluções de como ela se comportar ao invés de ajudar Jane a denunciá-lo, marcou o número da placa, tentou contatar a polícia, mas parece que ele tinha que fazer mais do que apenas perseguir Jane para eles agirem. Mesmo em casa, os olhares ao redor para ver quem estava ali se tornaram algo normal, tinha medo de sair sozinha, e qualquer barulho ao redor de sua casa a assustava de forma grandiosa, mas ela tinha que aceitar que as pessoas não iriam ajudar, pois não davam voz a uma criança, mesmo que ela estivesse correndo perigo.

O tempo foi passando e o que Jane mais temia foi acontecendo, o seu corpo estava sendo observado de forma indesejada. Dentro da escola, na rua, em sua vizinhança, ela estava triste e revoltada, queria poder sair sem sofrer nenhum tipo de assédio no caminho e principalmente sem sentir medo.

Um local que Jane amava era a biblioteca, sua mãe começou a permitir que ela fosse escondida, já que estavam mais próximas agora que Jane entendia as dores de sua mãe, e sua mãe entendia sua luta e sonhos. Foi na biblioteca e na sua volta para casa foi trazendo livros.

Medo, essa palavra Jane conhecia perfeitamente bem, mas outra palavra entrou em seu dicionário, terror, quando ela notou estar sendo perseguida na volta e ida a sua escola, um carro sempre a acompanhava, e o cara sempre a olhava com um olhar ao 31


Seguia ela pelas ruas, bem movimentadas da cidade, até que para chegar em casa teve que pegar uma rua que a circulação de pessoas era menor, e consequentemente o medo de Jane aumentou, tentou tirar aquilo de sua cabeça e caminhar o mais rápido possível até sua casa, mas quando estava indo um carro parou em sua frente, e Jane conhecia aquele carro, ele estava perseguindo ela por muito tempo, o homem saí do carro rapidamente e fala algo que particularmente Jane não ouviu, seu coração estava a mil, e forçou suas pernas a correrem no sentido contrário, as casas estavam fechadas, não conseguiria adentrar em uma delas, e seus gritos de socorro não pareciam chamar a atenção de alguém, já estava cansada mas quando olhou para trás o carro ainda lhe perseguia, e ali Jane sentiu um pavor que nem se reunissem todos os dicionários do mundo poderiam definir com perfeição seu sentimento.

de mãe de Jane foi incontrolável, e mesmo que não tivessem dito ela sabia o que havia acontecido, e se sentia culpada por não ter tido forças de lutar pelos direitos como sua filha lutou, mas não seria mais assim. Arrumou suas coisas para ir embora. Foi a delegacia para os procedimentos, e lá, ouvindo tudo que foi lhe contado, onde ela foi encontrada, como, e com o que, falaram também que perto da cena do crime foi encontrado livros que por ter a assinatura de Jane logo ligaram a ela, sua mãe pegou os livros na mão e leu os títulos, que eram eles, ” feminismo é para todo mundo: Políticas arrebatadoras” de Bell Hooks e “ O segundo Sexo “ de Simone de Beauvoir. Jane foi morta em 22 de julho de 2001. Seu pai foi preso, o homem que a matou também, a mãe da nossa querida Jane conseguiu uma medida protetiva e teve sua filha como um símbolo para sua luta e agora ajuda mulheres que se encontram nas mesmas situações que ela.

Se ouviu um barulho que mesmo sendo normal por algum motivo soou extremamente ruim, o telefone tocando na casa de Jane, sua mãe atendeu, ela sempre ligou para polícia tentando ajuda para os abusos que sofria pelo marido mas pela primeira em anos quem ligou para ela foi a polícia, não da forma que ele desejava, a mulher do outro lado da linha informou que sua filha Jane havia sido encontrada morta, e que ela precisava ir até a delegacia, algo que nenhuma mãe deseja ouvir, a dor no peito

Devo esclarecer algumas coisas a você caro leitor da história de Jane, nenhum personagem tinha uma característica física definida, porque essa história é a realidade de muitas pessoas no mundo todo, e a luta pelo feminismo, pelos direitos das mulheres vem para que isso não se torne algo normal e aceitável em nosso meio.

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Em transe Amanda Dall´Oca

Amanda Cesar Dall’Oca é formada em Direito e servidora pública do Estado de São Paulo. No seu tempo livre arrisca escrever algumas ideias.

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O Lucas transou com uma menina da escola. O segundo ano todo ficou sabendo. Foi um escândalo e o caso foi parar na diretoria. Logo o Lucas, que os pais confiavam na virgindade. O Lucas era pra transar só depois do casamento, com a pessoa certa. Ou, pelo menos, na faculdade, com alguma pretendente a esposa, de preferência com boas condições financeiras. Os pais foram chamados na escola para que explicassem o tipo de educação que o menino estava tendo em casa. A diretora esbravejava dizendo que era uma vergonha um menino transar com quinze anos de idade. Que com tamanha irresponsabilidade poderia engravidar alguém. A mãe estava preocupada em saber se ele usou camisinha, enquanto o pai não parava de chorar, certamente preocupado com o lacre que lhe fora rompido e que já não tinha mais volta. O que a tia Regina ia falar agora no próximo almoço de domingo? A tia Regina já deve saber de toda a história. Dessa putaria! Vai falar que esse

menino não tem jeito, como ela já desconfiava. Bem que ela avisou, dizia o pai, que o menino estava muito ousado. Ia pra escola com a camiseta colada no corpo, destacando o abdômen bem definido e ressaltando os bicos do peito. É lógico que as meninas não iam deixar passar. Mulheres querem dar e aproveitam qualquer oportunidade, é da natureza delas. A tia avisou que aquelas roupas não eram apropriadas para ir à escola, e que aquele cuidado todo com o cabelo, de forma repentina, não era comum para um garoto virgem. A mãe se culpa. Afinal, quando se tem um menino em casa, é preciso observar, é preciso conversar sobre sexo. Mas tarde demais. A desgraça já está feita e o menino já está mal falado na escola. Melhor procurar saber quem foi a felizarda. Melhor que ela fique sabendo que o Lucas é menino de família, que ele não é desses prostitutos que saem por aí comendo qualquer uma. E que fique bem claro que se ela engravidou, o Lucas vai abortar.

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A Churrasqueira Francine Cruz

Francine Cruz é professora e escritora. Autora de Amor, Maybe (Ícone, 2011 e A Casa dos Dois Amores (AudioLivro, 2014), entre outros. Recebeu o prêmio Agente Jovem de Cultura do Ministério da Cultura (2012).

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montar meu próprio negócio sabia que estava entrando num ramo dominado pelo machismo. E é justamente aí que me destaco: além de atender eventos gastronômicos, dou aulas para mulheres que querem comer um bom churrasco, sem depender de ninguém para isso.

“Eu encomendo um jantar só pra nós dois Se não tem nada depois, por que não eu? Você tá nessa rejeitada, caçando paixão Eu com a cara mais lavada digo: por que não?” (Por que não eu? – Leoni, Herbert Vianna e Paula Toller)

Meu marido não se envolve na minha vida profissional, é analista de sistemas numa grande multinacional e prefere muito mais uma sala confortável com ar condicionado e conexão wi-fi, do que uma churrasqueira pegando fogo. Gosto do modo como ele me respeita e confia em mim.

Mesmo estando no mercado de trabalho há mais de cinco anos, algumas pessoas ainda se surpreendem quando chego para cumprir o expediente. Quando contratam A Churrasqueira para cuidar do seu evento, alguns novos clientes não entendem a referência direta. Tendem a imaginar homens bigodudos de lenço vermelho e bombacha. Chego eu, de jeans, salto alto e cabelos platinados, pronta para dominar a churrasqueira. Eles ficam estupefatos.

Entretanto, ser uma mulher num país misógino como o Brasil continua sendo um desafio. Além das desconfianças iniciais já citadas, outro inconveniente é o fato dos churrascos quase sempre serem acompanhados de bebidas alcoólicas. Quando os metidos a machões começam a beber, tornam-se insuportáveis. Tive que aprender a fazer cara feia e também a recusar certos tipos de festa. Despedidas de solteiro, nem pensar!

Na maioria das vezes é engraçado. Fazem piadinhas, dão risada, mas quando coloco o avental, a touca bandana e começo a afiar as facas, eles veem que a coisa é séria. De vez em quando sinto um pouco de desconfiança, que dura até provarem o primeiro pedaço de carne assada. Não me incomodo, já estou acostumada.

Nunca vou esquecer a última em que trabalhei. Nem foi tanto pelas gracinhas que tive que ouvir, mas pelo que eu mesma tive vontade de fazer. Naquela casa cheia de homens, um se destacou em meio a multidão. Estava solitário num canto, bebericando sua cerveja, tranquilo, talvez romântico demais para se esbaldar com as dançarinas de pole dance como os outros estavam fazendo.

Sou apaixonada por churrasco! Desde criança ficava ao lado do meu pai enquanto ele cuidava da churrasqueira nos almoços de família. Gosto de todas as etapas, desde escolher a melhor carne no açougue, preparar o fogo, temperar, até o ápice de provar a minha própria obra prima.

Era um tipo de homem especial, logo vi. Carnes com camadas uniformes de gordura são sempre melhores do que as carnes

Essa paixão motivou a criação da empresa. Nada melhor do que trabalhar com aquilo que gostamos, não é? Quando pensei em 37


magras. Perdoem a descrição, é a força do hábito. Naquele ambiente dominado pela luxúria, não pude evitar o contágio: aquele gordinho de rosto vermelho era simplesmente uma delícia.

de sal grosso arando nossas costas nuas e temperando nosso cio. Queria tudo dele em mim, os dentes rasgando roupas e tabus, os ossos indo e vindo, movendo músculos e cartilagens numa invasão total do meu ser. Ah, como eu queria... Mas, não podia. O velho ditado “onde se ganha o pão não se come a carne” martelava na minha cabeça. Me restava um pouco de lucidez e muito auto-controle.

Enquanto cuidava dos aperitivos, não parava de pensar que nós dois juntos faríamos um apetitoso choripan. Meu corpo ardia como a brasa que eu atiçava, minha pele fervia ao fogo de Hades. Nunca na minha vida senti algo parecido, era um desejo carnal, literalmente falando. Tinha vontade de roçar barriguinha com barriguinha, outra coisa com outra coisa, lamber todo seu corpo, saborear o sal provindo de seu suor de menino tímido, depois lambuzá-lo com caipirinha e sorver todos os líquidos que ele expelisse.

A carne é fraca, mas o espírito é forte. Resisti bravamente aos ímpetos da matéria e foquei em fazer bem meu serviço. No fim, ele se deu bem: lhe reservei os melhores pedaços de churrasco. Sai da festa orgulhosa de mim mesma, respirei aliviada e liguei pro marido:

No ápice de meu apetite sexual, queria poder comê-lo ali mesmo, com a mesa cheia

– Me espera que eu tô chegando com fome!

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Calor Cláudia Rezende

Graduada em Jornalismo e História, pós-graduada em Revisão de Textos, cursa Letras. Atua como revisora de textos e editora de livros. Autora de Poli escolhe e Enquanto não cresço, faço o mundo que eu mereço. Participou das antologias Elas, a alma, a cura e Elas, as mãos, o infinito.

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Ainda estava com o café entre as mãos, tentando se aquecer naquele inverno gelado, quando ouviu gritos vindos da vizinhança. Apurou o ouvido: seria briga ou brincadeira? É um casal? Pai e filha? Mãe e filho? Não dava para saber, apenas que eram vozes de homem e de mulher. Decidiu chegar à janela. Deixou a xícara de café sobre a pia, não sem lamentar — estava agradável aquele exercício de esquentar, por fora e por dentro, o corpo —, mas sabia que alguém poderia estar precisando de ajuda.

por que saiu do apartamento naquele momento. Ir aonde? Fazer o quê? O que tinha feito já não era suficiente? Não, não era. Para ela, não era possível ficar ali, protegida, resguardada, enquanto, tão perto, alguém precisava de socorro. Com medo, as mãos e o coração ainda gelados, saiu e foi para a portaria do prédio, sem saber o que fazer ali. Talvez pudesse visualizar melhor a situação, entender de onde vinham os gritos. Nada estava claro. Dali também poderia verificar se a polícia veio, se chegou a tempo e quem era, afinal, o agressor, porque, ela sabia, havia uma agressão, física ou psicológica, de um homem contra uma mulher.

Torcendo para que fosse uma brincadeira, esticou os pés, o tronco, o pescoço. Ficou em posição de bailarina, na pontinha dos dedos. Fez o que pôde para que as orelhas capturassem melhor as ondas sonoras que vinham de alguma das janelas do prédio (o dela ou o do lado?). Conseguiu constatar que não era uma brincadeira, e esse foi o segundo lamento dela. Era mesmo uma briga, com alguém precisando de ajuda.

Nessa espera, o coração gelou mais uma vez. Foi um barulho, barulho de correria. Alguém vinha. Mal teve tempo de olhar para trás, enxergou uma mulher com aquela expressão desesperada que só quem já viu alguma vez na vida entende como é. Não teve dúvidas, era a pessoa que estava sofrendo a agressão. Nem pôde oferecer ajuda. Em segundos, um homem muito alto, porém magro, ágil, surgiu no encalço da fugitiva. Passou atropelando tudo, inclusive ela, que estava ali sem ainda ter encontrado nenhuma explicação lógica para estar.

“Ir lá? Chamar a polícia? Acionar o síndico?” As mãos, que haviam começado a se esquentar, esfriaram-se rapidamente, assim como o coração. “Será que dá tempo de socorrer essa pessoa?”. Depois de refletir uns poucos segundos, que pareciam eternos, acabou não tendo coragem para ir procurar o local dos gritos. “E se for um homem muito violento?”, previu. Então, ligou para a polícia e mandou uma mensagem pelo telefone, para chamar a síndica.

A mulher tentou correr, mas não dava para fugir de um homem daquele tamanho, com pernas tão compridas que faziam um passo dele ser equivalente a três da vítima. E ela, a que assistia, tão pequena, tão frágil, o que poderia fazer? Apenas olhava, e cada segundo de cena que via a matava um pouco por dentro.

Agora tinha de aguardar. Alguém iria fazer alguma coisa. Só que ela não estava satisfeita. Muitos anos vão se passar depois daquele dia, e ela nunca vai conseguir explicar

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O homem sojigou, gritou, ameaçou e, por fim, jogou a mulher no chão, finalizando a agressão com um chute na boca do estômago daquela pessoa que nem se quisesse conseguiria reagir. Ela ficou ali, vendo tudo, sentindo o frio das mãos e do coração percorrer o corpo inteiro, como um fio de gelo invadindo cada canal por onde passa o sangue.

a síndica, os vizinhos e os passantes, não apareceu. Foi aí que decidiu levar a mulher para o apartamento. Reuniu as forças que não sabia que tinha e a carregou. A solidão agora abraçava as duas, a dor, o abandono e a impotência expandiam-se e entranhavam pelos poros também dela, a testemunha, a que tentou ajudar. Já no apartamento, deu banho na mulher, emprestou-lhe uma roupa e a colocou na cama. Fez compressa de gelo para os hematomas que davam um colorido triste à pele bronzeada da mulher. Foi até a cozinha, pegou a garrafa de café. Ainda estava quente. Serviu uma xícara para esquentar as mãos e o corpo machucado da inesperada visitante. Ela talvez não tenha percebido, mas o calor daquele cuidado era mais forte que a quentura que vinha da xícara de café. O coração da mulher também se sentia melhor, estranhamente aquecido.

Como a mulher perseguida, ela também não conseguiu reagir. Era apenas uma pedra no meio daquela paisagem, tão insignificante que nem foi notada pelo homem. Ele saiu, dobrou a esquina e não foi mais visto. A polícia não chegou a tempo, a síndica não respondeu à mensagem, os vizinhos não saíram às ruas. Onde estavam os passantes? A mulher ao chão, sozinha, roupa rasgada, mãos no abdome, emitindo aquele choro triste, profundo, de quem se viu completamente vulnerável e só. Ela foi até a mulher, levantou a cabeça dela e a pôs no colo. Pegou o telefone e chamou a emergência, que, assim como a polícia,

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Um móbil Juliana Berlim

Juliana Nascimento Berlim Amorim é professora de Língua Portuguesa e Literatura do Colégio Pedro II. Contos nas revistas Gueto, Germina e Ruído Manifesto, em antologias brasileiras como as da FLUP e um conto em alemão pela editora alemã Hueber. Coorganizadora de Transliteraturas (Oficina Editora, 2019).

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Certeza agora ela tinha uma: aproveitar a vida. Começou por dar-se mimos: um corte de cabelo ousado, uma camisola aconchegante, uma tatuagem no punho direito. Usava um dinheiro que não tinha porque ganhava pouco, mas em sua cabeça tempo de vida tinha menos ainda, e assim o cartão de crédito cortava como navalha. A tatuagem continuava recente quando o vizinho a abordou no hall de entrada do prédio. Ela saía do elevador e, ao se cruzarem, num rodopio de olhares, ela ouviu uma palavra ousada.

meia-idade, recém-divorciado, tremendamente bem vestido, rico. Sussurrou no ouvido dela, nos segundos que se cruzaram tão breves, uma promessa de satisfação sexual. Ela desviou dos ditos infames do bufão até então, mas a fada da satisfação instantânea soprou-lhe na mente uma intuição, que a fez dar meia -volta sobre os calcanhares e responder ao tal homem, antes que a porta do elevador se fechasse. Viu-o ficar vermelho feito tomate, enquanto lhe estendia rápido um pedaço de papel rasgado de improviso com o número de seu apartamento escrito à caneta.

Insolente, pensou.

Ela assistiu o impávido colosso da desistência do galanteador. O homem não tinha princípios, não tinha um móbil. Ela sim.

Todos os dias uma nova palavra do repertório daquele homem. Um tipo bonito de

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Expediente


Editoras Ananda Paradeda Angelita Silva

Editores auxiliares Eduardo Tavares Julio Dominguez

Direção de arte Eduardo Tavares

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