Fluxo Revista de Criação Literária - 4ª edição

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FICção CIENTÍFICA




EXPEDIENTE

Editores_ Ananda Paradeda Angelita Santos da Silva Julio Dominguez Projeto Gráfico e Diagramação_ Eduardo Tavares

© 2016 Publicado originalmente em abril de 2016_ Fluxo - Revista de Criação Literária_ Todos os textos desta edição são Copyright de seus respectivos autores_ © Adriano J_ Bruno Eleres_ Carol M_ Edweine Loureiro_ Frederico Toscano_ Geraldo Lima_ Laís Manfrini_ Luis Daltro_ Luisandro Mendes de Souza_ Marcelo Moreira_ Marialini G. C. Bertolini_ Morphine Epiphany_ mÜller, J._ Nelson Ferraz_ Patricia Porto_ Patrick Brock_ Pedro Silva_ Rodolpho Venturini_ Rodrick Loneman_ Rodrigo de Menezes_ V. H. de A. Barbosa_ Os colaboradores asseguram seu direito moral de serem identificados como autores de seus respectivos textos_

A Fluxo - Revista de Criação Literária é uma revista colaborativa semestral que propõe um tema por edição. Siga-nos nas redes sociais Facebook, Google + e o blog. Dessa forma você se manterá por dentro das nossas novidades e saberá primeiro sobre os editais das próximas edições. Fale com a Fluxo pelo e-mail: fluxoeditora@gmail.com


Todos os direitos reservados


SUMÁRIO EDITORIAL 8

CIGARRAS DO APOCALIPSE

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POEMAS 11

PENSAMENTO 20

ED WOOD 12

SÁDICOS APLICATIVOS 22

VAI, MCFLY! 12

‘’ZI CONVUQUE AUNT TUTRELES!’’

O LADO SOMBRIO DA FORÇA

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“... do vulcão veio a larva...” 26

E.T – NÚMERO 1

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EXPANSÃO 28

E.T – NÚMERO 2

14

“Diagramas flores insetos...” 30

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TÁBULA RASA 32


CONTOS 35

CADÊ AS CRIANÇAS? 96

ORNAMENTOS DE UM VITRAL

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PROFECIAS VIRTUAIS 104

ATUALIZANDO. NÃO DESLIGUE.

46

VIOLAND 110

CAVERNA 54

APENAS POR UMA MEMBRANA

ÁRVORE? 64

PÉROLA DIGITAL DAS FENDAS NASCENTES 126

COMO OS PRÓPRIOS DEUSES

A FLECHA 134

MEMÓRIA RUIM 78

SEGUIMENTO DEVIR 144

INTANGÍVEL 88

66

118

TRANSCENDÊNCIA 146


res que desejam compartilhar seus textos, contos e poemas. Trata-se de um movimento colaborativo, dos escritores e dos editores, em querer mostrar todo o potencial que a arte, neste caso a Literatura, tem: balançar as estruturas da imaginação, expandir para todos os lados a força do imaginário e condensar emoções em imagens, símbolos e significados para que alguém, do outro lado, as decifre, ressignifique e torne suas. São estes, e qualquer outro instante relacionado a elaboração da revista, fatos a comemorar, celebrar e acreditar que um próximo número se irá formar através de um criativo trabalho em conjunto. A todos que a realizam, muito obrigado.

EDITORIAL Quarta edição da Fluxo – Revista de Criação Literária. Temos muitas coisas a comemorar com a chegada – nascimento online – de mais um número da Fluxo. Gostaria de salientar dois, de tantos fatos a comemorar. A primeira, e a mais visível, é a própria chegada desta quarta edição. Os números da Fluxo, como viemos experimentando até o momento, são erráticos e um tanto inseguros. Em contraposição a essa espécie de irregularidade, todas as edições estão carregadas de paixão e força assim que iniciados os trabalhos. O outro fato a ser comemorado é o número de pessoas que mostram interesse na revista. Vivenciamos um crescimento rápido, tanto no número de leitores que procuram por novas vias onde encontrar literatura como na quantidade de escrito-

Os poemas e os contos que formam a revista, todos no gênero Ficção Científica, são, antes de mais nada, uma experiência sensorial que refletem preocupações, ansiedades, desejos e, sem querer resumir, todas aquelas velhas constatações daquilo que não é mencionado tão só por falta de palavras que a signifiquem de maneira pontual. Algo muito importante que devemos ter em conta ao ler os textos que compõem a revista, para além do deleite 8


de histórias inéditas, é tentar perceber todo o potencial, em forma de semente, que carregam no seu interior. Lembremos que a Literatura e o cinema de Ficção Científica, ao longo de todo o século XX, foram germes iniciais que serviram de propulsão para grande parte da inovação científica. Contudo, procurem, explorem, descubram aquilo que mais impacienta e incomoda na realidade em que estamos inseridos. Testem-na através das ficções, pois a Literatura de Ficção Científica está aí para mostrar da melhor maneira possível, tudo aquilo que é inominável, mas precisa, de alguma maneira, ser dito. Para finalizar, uma surpresa e também um desafio. A partir deste número, e em edições especiais, iremos lançar textos inéditos de uma jovem escritora. Pequenos trechos, quem sabe capítulos de uma história com fôlego maior, que irão aparecer aos poucos e nos irá presentear com uma história que quem a ler, e a seguir, irá descobrir do que se trata. Lembremos, mais uma vez, que a vida é feita de histórias, daquelas que ouvimos e daquelas que construímos. Mais detalhes, no exclusivo apartado que será dedicado. Uma boa leitura.


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POEMAS


ED WOOD

VAI, MCFLY!

Se o Drácula teve overdose, Plano B ao Plano 9.

Pois mesmo que o passado pareça tão obscuro, tudo será explicado de volta para o futuro. ***

E se a Vampira desistir? Ponha-se o Tor de zumbi… Pois, no espaço sideral, toda cena é natural quando é Glenda a dirigir. ***

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Sobre Edweine Loureiro Nasceu em Manaus em 20/09/1975. É advogado, professor e reside no Japão desde 2001. Premiado em concursos literários no Brasil e em Portugal, foi o vencedor do Prêmio Ganymedes José (Literatura Infantil) da União Brasileira de Escritores - RJ, em 2015.

O LADO SOMBRIO DA FORÇA Como se não bastassem as guerras semeando a Morte na Terra, ainda quiseram fazê-las para apagarem as Estrelas.

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E.T – NÚMERO 2

E.T – NÚMERO 1

Um dia, um menino de sete anos disse que sou um E.T Por que? Porque sou magro demais, fico de cabeça pra baixo, e não gosto de doritos!

Meu planeta é o oposto de Marte. Aqui, a gente só vive arte. Todo mundo é pateta. Nossas robôs tocam harpa, cantam e sangram carradas de poesia. Ao invés de estômagos, temos na barriga um buraco negro devorador de todos os prazeres. Aqui, ninguém precisa se entender pois cada palavra é supernova. 14


Nossos olhos são estrelas. Vivemos pro dengo, pro acerto e pro sossego. Erramos pra poder nos movimentar, e a velocidade da luz já foi totalmente ultrapassada. Ninguém precisa de ar ou gravidade. Nosso silêncio soa como altas gargalhadas. Inventamos o carnaval cósmico sem força a nos atrapalhar. Quando choramos de alegria, nossas lágrimas saem por todos os poros como o suor de vocês na Terra. Meu planeta tem tantas cores quanto imaginações, e a imaginação de cada um é infinita. Meu planeta é feito do barro do amor, e fica na galáxia mais bonita.

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Sobre Luis Daltro Nasce em 1973, em Salvador. Começa a tocar violão aos 8 anos. Aos 12 escreve seu primeiro poema. Daí até os 18, além de poemas, rascunha contos e diários, para, aos vinte, publicar o romance “O Desencontro” pela editora Revan. Seguem mais três romances pela mesma editora. Em 2008 publica o romance 68, pela Record. Em 2015 defende seu doutorado “Literatura da Bagunça” na UCLA. Morou 2 anos no Rio, 5 na Califórnia e 5 em São Paulo, onde dá aulas de inglês e toca blues no banheiro.


II Mestres e servos Vampiros e zumbis Desertos do medo espalham moribundos Bosques da paz são de rosas e jasmins Nichos selvagens seduzem os intrusos

CIGARRAS DO APOCALIPSE

III Labirintos vigiados Florestas são férteis com revelações Larvas e vermes levam aos pomares Mensagens regadas com revoluções

I Reino de trapaças Vastos pastos são besouros Gafanhotos vibram seitas E os grilos colhem pragas Rituais de ouro e prata Chave mestra da magia Sacrifícios, alquimia Energia condensada

IV As 7 Trombetas dos 7 casulos Combatem as pestes e os frutos maduros Seres ocultos plantam as sementes Controlam as mentes e criam prisões V Taças e selos Cavalos e sangue 16


Agenda da sorte em jogos de azar Líderes governam formando colônias Vozes do céu Comandos do mar

Enganam libélulas com camaleões VIII Raios, trovões Frequências violeta Confrontos de fluidos Efeito borboleta

VI Buracos de minhoca No tempo-espaço O véu e os deuses Triunfos do rei A marca da besta Presságio da morte Serpente do caos Dragões da lei

IX Unidas Formigas emanam poesias Óperas raras tocam as melodias Abelhas de luz Madrugada zangão

VII Nos campos do ego A dualidade Conflito e medo Complexo réptil Demônios das trevas Da escuridão

X Baratas tontas em teias de aranhas Embalam nuances e ondas Viuvinhas, sinfonias Rainhas seduzem vaga lumes Os cantos das cigarras não foram em vão

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XI Zumbidos da corte são moscas e mosquitos Armadilhas das vespas da destruição A era de aquário confunde os peixes Mudanças ativam a nova visão

XIII Lacaios do Abismo trazem as dores Submissão Miragens da mente A alma insana e o corpo dolente Não há salvação sem a vivência no amor

XII Seguindo o infinito no templo humano Progresso interno regados de encanto Servindo ao pecado ou a criação? É livre o arbítrio ou a ordem é prisão?

XIV A fonte da vida é feita de flores da infância Caminhos da prece Coração de criança A seiva interna de luz divina Jardins da verdade Colheita esperança.

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Sobre Marcelo Moreira Natural de Salvador, Bahia. Foi classificado na 4º colocação no XV Festival Nacional de Artes e Poesias. Ganhou Menção Honrosa, pelo conjunto da obra, no I Prêmio Internacional de Literatura Germano Machado. Ficou na 3º colocação no II Concurso Internacional de Poesia da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Foi premiado com o título de Cavaleiro Dragão no Prêmio Arthur Rimbaud. Recebeu a Comenda Gonçalves Dias, pela participação no projeto, “Mil Poemas para Gonçalves Dias”. Bacharel em Administração, poeta contemporâneo, artista livre de padrão.

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Posso decifrar, compreender, explicar O inexplicável. Pois pensamento acompanha imaginação Sem limites, sem dogmas, sem barreiras Sem medo do desconhecido: Fronteiras. O ato de pensar é humano Faz-me gente, faz-me alguém... Pensamento – dom divino – Pensamento é alma também? Enfim, pensando abraço o tudo E sigo, segura, a estrada; Sopro do meu eu interior Sem pensamento... O nada.

PENSAMENTO

O pensamento é vivo... Sei que existo, porque penso. E o ato de pensar me define, me situa... Pensar me põe nua. Quero ser eu mesma, sem preconceito: Levanto, vivo, deito. Quero que o pensamento me complique, me construa Altere-me sem remorsos, sem devolução: Evolução. Pensando posso ser fonte 20


Sobre Marialini Garcia Cardoso Bertolini Tenho 43 anos, nascida e criada em Guarulhos, São Paulo, onde me formei no Magistério, e depois, em Educação Artística.Mudei-me para Bragança Paulista, S.P., com meus pais e irmãs, e aqui conheci Celso, meu marido, com quem já estou casada há 19 anos, e temos uma linda filha, a Isabella. Sou escritora e professora de Ensino Fundamental da Prefeitura de Bragança Paulista, desde 1999; porém de 5 anos pra cá, venho trabalhando em biblioteca escolar, como biblioeducadora. Amo ler e estar no meio dos livros. Mas também amo contar histórias, principalmente para as crianças, e no ano de 2013, tive a satisfação de lançar meu primeiro livro infantil chamado “A Cinderela que não era Bela”, pela Editora All Print, e já estou me preparando para lançar meu próximo livro. Escrevo há muito tempo, desde menina, e quando tinha 18 anos, em minha cidade natal, participei da minha 1ª Antologia Poética e nos dois anos seguintes participei de mais duas antologias. Gosto de escrever, além de livros para crianças, poesias e crônicas, e quem sabe, um dia ainda vou escrever um romance, provavelmente de ficção científica, que eu adoro. Sou membro da ABL – Academia Bragantina de Letras – desde outubro de 2013, mas já sinto um orgulho imenso por fazer parte dela, e por ter a honra de conviver com pessoas tão incríveis, escritores como eu. Planos para o futuro? Continuar escrevendo e ter a satisfação de saber que minhas poesias e histórias, de alguma forma, contribuíram positivamente para a vida de outras pessoas.

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Sugarei horas da sua existência E te farei escolher o cancro Quase sempre informarei da sua nova doença Com exatidão, informarei o número de drogas para o alívio, a lista de prerrogativas do fim

SÁDICOS APLICATIVOS

Adicionarei todos os terrores De crises de novas xias Todas geradas pela minha inteligência

Digo quando tu morres Envio lembrete suicida Te ofereço opções de tortura No touch, teus dedos acionam o comando

Paralelamente, retiro enfermidades e as penetro como brincadeira Testarei curas para o meu prazer

Atualizo o seu funeral Indico a localização das feridas E faço questão de avisar todos os monstros

Download e estarei pronto! Basta abrir e morte a caminho Ferramenta em busca de usuário Apenas um novo aplicativo

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aos poucos se esvaneceu Sentou no lado esquerdo Estranhou o talk show Questionou a futilidade daquela programação hábitos pitorescos da sociedade

‘’ZI CONVUQUE AUNT TUTRELES!’’

Ofereci bebida, café e água Ele não necessitava Um pedaço de pizza? Ele simplesmente ignorava

Zi convuque aunt tutreles! Do planeta Zirerix Habitantes altamente civilizados

Fiz companhia Não entendia o motivo da visita Ele impregnava os olhos na sala como se estivesse decodificando Espinha arrepiada Pelos eriçados Lançado no imprevisível

Duas batidas na porta Reduzi o volume da televisão Mais uma Girando a maçaneta No impulso escancarei Jovem, alto e educado Um feixe de luz nas costas 23


Dez perguntas e ele silenciava Meia hora de vazio Talk show encerrado O aparelho sintonizou uma nova frequência Meu celular imitava A casa possuída pela mesma sintonia

Uma espécie de sonda entrara pelo meu umbigo O cômodo brilhava em diversas cores Sons insuportáveis e psicodélicos Desabei! No meu despertar enxerguei o mesmo jovem em réplicas Laboratório, instrumentos. Meu corpo separara-se da cabeça E dezenas de fios grudados na mente Estava vivo e automaticamente a única coisa que martelava em mim

O jovem estático na minha frente Direcionou olhos que mudavam de cor Tentei fugir Meus pés cravados no carpete Luzes avermelhadas atravessaram minhas órbitas Têmporas alucinadas pela dor Toneladas de concreto pareciam esmagar o meu cérebro

Era Zi convuque aunt tutreles! Do planeta Zirerix Habitantes altamente civilizados

Ultrapassando a tolerância Senti a agonia migrar 24


Sobre Cristiane Vieira de Farias, ou Morphine Epiphany Nasceu em 1987, na cidadede São Paulo. Formada em Produção de Música Eletrônica e Técnica em Operação de áudio. Ex-integrante do Coletivo MINQ. Participou da produção dos curtas: ‘’Obscuro’’,’Privado’’ e ‘’Boggy’’. Primeiro lugar no Prêmio Cultural Japan 2015. Possui textos publicados na Revista Eels, Criticartes e Subversa. Fará parte das antologia 50 tons de vermelho sangue. Seu livro de poesias ‘’Distorções’’ será lançado em 2016.

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sentiu a alma porosa deixou cair o coração e fez-se para sempre homem.

. do vulcão veio a larva e a papoila-dos-ventos.

choveu fogo entre estações e os comboios passaram a andar carregados e devagar.

era o tempo do céu vazio e do mar envidraçado pelo zero.

afinal havia tempo demais para o desastre de viver numa tela contrafeita.

a larva sentou-se na pedra-pomes perto

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Sobre Nelson Ferraz Nasceu no Porto em 1952 Publicou vários livros de poesia e de prosa, desde 1977. Participação e Colaboração em várias Antologias, Colectâneas, Cadernos de Poesia, Jornais e Revistas. 1º. Prémio no Concurso de “Quadras de S. Valentim” 2011, da Poetria/Poesia & Teatro.

no gavetão do meio entre a boca aberta e a cabeça fechada à chave a água foi sempre uma companhia feita de lápis.

Membro da APE (Associação Portuguesa de Escritores) desde 1978.

e não não foram as lulas gigantes que afogaram o armário dos disfarces.

.

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a matemática do sentimento pela eutanásia da palavra cheque seus equipamentos, por favor :há falta de ar suficiente para os passageiros? esse trem parte pra onde, condutor? pedi a Deus um bocado de ambição, recebi um santinho para colocar na carteira

EXPANSÃO

“eu vou rezar por você” “eu vou pedir por você”

as perguntas que não sei responder as perguntas que esqueci de fazer as respostas que estoquei as senhas infringidas os sopros tomados de supetão as perguntas e guerras os acentos, os antolhos

ooh muito obrigada, a sua solidariedade me comove estou encharcada de raiva, mas é só suor na fábrica de calcinhas revistavam nossas bolsas, mas deixavam nossas mentes livres uma gramática meticulosa: “vou pensar em você”

tenho uma queda pela ternura tenho uma queda por aparelhos de medição

o trem partirá e é espacial 28


não acredito em astrologias, prefiro a astronomia os acidentes do espaço a geometria do verbo Sobre Patricia Porto

“vou passar a mão na sua cabeça”

Graduada em Letras pela UFF com mestrado e Doutorado em Políticas Públicas e Educação. Publicou o livro Narrativas Memorialísticas: Por uma Arte Docente na Escolarização da Literatura (2009) e dois livros de poesias: “Sobre Pétalas e Preces” e “Diário de Viagem para Espantalhos e Andarilhos”. Atualmente vem desenvolvendo estudos sobre a Geografia das Narrativas Brasileiras. Poeta, cronista e contista, participa ativamente do blog “Cabeça de Antígona” desde 2007.

não, agora não preciso partir naquele trem soube que explodirá em breve ando com uma leve de dor de lobotomia

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Ser como se fosse Animais, todos eles se alimentam Todos eles choram, todos todos Dormem juntos, agrupados, se viram Sentem frio, mas se esquentam, se esquentam mas ainda sentem frio E também são felizes quando não poderiam ser Fazem guerras, lutam, matam, não destroem tudo mas destroem o máximo que podem Não reconstroem nada, mas tudo se reconstrói A terra é que os limita, não fosse a terra estariam livres Livres de se repetir, livres de serem sempre os mesmos Mas não se importam, esquecem Não porque não pensam, mas não se importam porque pensaram E depois já não se importavam mais em pensar “Fôssemos livres seríamos os mesmos”, pensariam... Suas pétalas continuam lá, suas asas também... mas não possuem esquemas

Diagramas flores insetos Animais racionais todos todos todos belos Esperam correm passeiam brincam com os seus Contam histórias fazem piadas... A vida passa, o tempo não Os animas continuam os mesmos Suas vidas continuam as mesmas Suas piadas continuam as mesmas Tudo como se fosse ontem Amanhã como se fosse hoje Como se fosse ser 30


Sobre Rodolpho Venturini Tem 26 anos. É natural de Antônio Dias – MG e já há vários anos vive em Belo Horizonte. Atualmente é mestrando do programa de pós-graduação em filosofia da UFMG.

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TÁBULA RASA

Meus ouvidos não ouvirão mais tuas sandices, Mas meus ideais ainda reinarão sobre tua arrogância. Tua exclamação renunciará à minha reticência, E meu fim resplandecerá sobre tua ignorância.

Erga-me sobre as cinzas, Acima das sombras da minha existência. Descansa minhas retinas exaustas, (Cansadas da imagem do teu mundo infiel) E evoque esta transição sagrada, Clamada a teus deuses com fervor. Pois tua fé me servirá do outro lado da ponte. Meu legado viverá enquanto em tua memória. Teu remorso validará minha permanência, Honrando meu sangue, derramado em teu nome. 32

Devolvendo-me invicto à minha Tabula Rasa: Retrospecto da Alma reintegrada à Origem. Ejetando-me deste corpo e lançando-o ao léu, A qualquer Cosmo ou Galáxia distante daqui...


Sobre Rodrigo Menezes Nasceu em Brasília/DF em 26/08/1989, é graduando em Psicologia e atualmente reside em Natal/RN desde 1992. Foi ganhador do Concurso Nacional Novos Poetas – Prêmio Sarau Brasil 2013, e em 2014 conquistou a terceira colocação na Categoria Livre (nacional) do XVII Prêmio Cidadão de Poesia (SINECOL). Escritor-poeta desde os 13 anos de idade, esporadicamente é colaborador de publicações culturais e literárias eletrônicas. E-mail para contato: rodrigomenezes13@gmail.com

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CONTOS


marca de 3 segundos. Quer dizer, café era uma palavra ouvida pelos velhos e passada a duros custos para os novos, pois o que tomavam era popularmente chamada de Sincáfi. E era muito cara (o preço de um dia de trabalho para muitos seres), já que afirmava-se que havia água em sua preparação. E todos sabiam o preço da água.

ORNAMENTOS DE UM VITRAL

Ele sinalizou com a mão esquerda no ar o movimento para pedir um copo pequeno de Sincáfi, abaixando-a lentamente, como se esta estivesse na espécie de um guindaste imaginário e, de repente, o guindaste tivesse arrebentado suas cordas e fosse necessário aplicar uma velocidade oposta com a mão. A máquina farejou o recinto com luzes invisíveis e interpretou o pedido. Farejou, inclusive, o teto do recinto em que no centro possuía uma grande claraboia de vidros coloridos, mas, obviamente, a máquina não encontrou nem um complemento do movimento do pedido lá.

A tecnologia dos objetos mais triviais alcançaram tal destreza em suas funcionalidades que já era impossível entender como tudo aquilo funcionava. Embora fosse há muito tempo atrás, tais objetos seriam quebrados e levados para algum sacerdote que, com luvas, pudesse tocar em tais peças malignas para serem ainda mais desmiuçadas por ferramentas bizarras em busca de alguma espécie de casinha em que algum demônio se alojasse para tratar de colocar todo o seu cosmo a funcionar.

– Não há água. Ouviu a emissão de voz sintética da máquina em tom levemente grave, embora desejasse que a opção de tom neutro pudesse ser configurável nesse modelo. Além disso, a máquina era ríspida em acentuar nas frases o seu respectivo ponto final, como se o simples fato

Bem que dentro da cafeteira expressa poderia haver uns mil demoniozinhos a trabalhar arduamente para tornar possível a produção de café na incrível 36


de não haver água fosse categoricamente imutável.

entre outras bebidas da Empresa, eram misturas de líquidos sintéticos com aromas artificiais produzidos em laboratórios. Nada surpreendente, já que tais métodos de produção de bebidas industrializadas eram empregadas há, pelo menos, três gerações atrás dessa.

– Não há água. Embora o fato de não haver água para a população fosse, de fato, categoricamente imutável, as máquinas eram abastecidas frequentemente por esse líquido precioso. Por esse motivo, o Sincáfi era o carro-chefe de vendas da Empresa que também produzia outros tipos de bebidas, mas nenhuma como o Sincáfi. Mas não podia ser negado que sua popularidade também provinha de muita propaganda virtual nas projeções espalhadas pelas paredes do Centro, além dos holofilmes de propaganda entregues aos governos municipais que, com uso de crianças haldracianas, atribuía-se, nas entrelinhas, a baixa popularidade das outras bebidas a esses seres vistos com maus olhos.

Porém, o surpreendente feito da Empresa eram os segredos que envolviam a preparação do Sincáfi, criando em si o mito de algo preparado com técnicas eximias e modernas. Eram feitos a partir do produto da decantação de líquidos extraídos das massas métifas, substâncias essas que possuíam Copyright da Empresa e, assim, não eram divulgados sua origem, e muito menos sua composição, e, obviamente, a fim de manter o patrimônio e preservar os altos investimentos que as métifas tinham em países estrangeiros. – Não há água.

É quase tão bom quanto água, diziam os críticos especializados em bebidas sintéticas, ditos esses que foram por muito tempo o slogan da Empresa repetidamente reproduzidos holograficamente nas embalagens após serem abertas. Pelo menos estamos fazendo propaganda do Sincáfi e não da Amali – diziam os programadores visuais de comerciais da Empresa numa espécie de defesa aos menos afortunados – pelo menos, nós mostramos o nosso melhor produto pra quem só pode pagar por um tantinho de Amali. A Amali,

Repetiu com a mão o movimento do guindaste que desce e, novamente, a emissão de voz fria veio ressoar nas paredes do estreito, porém relativamente alto recinto em que se encontrava. Juntou as mãos numa espécie de concha em que, pelo fundo, houvesse espaço suficiente para encaixar seu olho esquerdo. Encostou a concha-mão pela fina película de vidro na parte frontal da máquina para ten37


tar ver em qual nível estava o reservatório de água, se é que a máquina que estava lidando fazia parte dos modelos que possuíam esse apetrecho acoplado internamente.

o setor de Programação de Circuítos Lógicos (P.C.L.), o qual sabia muito pouco, apenas o lógico mesmo (quando falta algo na elaboração do Sincáfi, então uma frase deve ser emitida, lembrou-se mentalmente da segunda aula de Introdução a P.C.L I, do qual havia reprovado uma vez antes de concluir os estudos).

Em vão. E mesmo que tivesse visto, não saberia dizer exatamente se esse era o motivo da falta de água. Seu departamento programava apenas as frases que as máquinas emitiam, e isso não abrangia todas as máquinas, pois cada máquina usava de um artifício diferente para construir frases. Porém, sabia que para uma máquina emitir não há água não era algo exatamente complexo. E se não havia complexidade, julgava não ser algo relacionado ao seu setor que, no caso, tratava-se do setor de Aprendizagem de Máquina. Para um humano, estar em tal setor era um feito notável, mas nada que justificasse o seu sentimento que, de uma forma sútil, fazia-o se sentir superior. Mas, em sua verdade, isso era o melhor que ele podia mostrar para si mesmo para não correr o risco de perder sua posição de comando entre tantas máquinas inteligentes.

Como a máquina não parava de emitir sons e julgava poder tentar resolver processos dos quais não diziam a respeito dos seus conhecimentos, resolveu escoltar a máquina por trás no pequeno vão que havia entre a parede e ela. Obviamente não sabia o que iria fazer caso encontrasse algo que julgasse estar fora dos padrões do funcionamento correto do artefato. Exatamente acima da máquina, no espaço entre o fim da parede de tijolos e o início do teto que seguiam em azulejos até a claraboia, viu na longa tela de led piscar o código de dezessete dígitos elevado a um outro número sempre múltiplo de sete. Sabia que era a representação numérica e aleatória criada pela

Achou que estava a frente de um modelo que, provavelmente, não possuía a capacidade de manipular símbolos, era um mero modelo desprovido de alma lógica, o que denotava uma ligação muito forte com 38


máquina que codificava o valor que havia depositado para comprar seu problemático Sincáfi. Na atual situação, gostaria que os leds que sinalizavam esses códigos se apagassem de vez, e não piscassem da forma que faziam, pois isso podia significar tanto que a transação foi aceita quanto anulada. Se anulada (e com sorte), o valor teria grandes chances de voltar como crédito em sua conta previamente reconhecida no momento em que a máquina farejou o recinto com suas luzes.

Numa tentativa um pouco desesperada de sair dali, começou a empurrar a máquina com medo de sujar suas calças demasiadamente agarradas e sintéticas. Não obstante, o medo se intensificara depois de um tempo, mas não por suas calças já estarem bem sujas, mas porque começou a ouvir um barulho vindo do teto. Achou que os aparelhos leds estavam oscilando por demais e, por isso, poderiam estar prestes a queimar. Porém, os números continuavam a rodar infinitamente sem demonstrar que iriam parar em algum momento. Mas, na melhor das hipóteses, e levando em consideração sua atual situação, nunca poderia imaginar que alguém poderia vim salvar-lhe, embora salvar não seria algo a dizer para alguém que está preso atrás de uma máquina de café.

Após o painel piscar algumas vezes, exatamente nada mais aconteceu enquanto estava ali, quase preso atrás da máquina obsoleta. Nada de dinheiro ou solução. Típico desses modelos mais antigos, essa falta de inteligência em lidar com situações não usuais, pensou. Obviamente, esse travamento indicava que a máquina não soube lidar com as condições “sem água” e “valor transferido”, que, nesse caso, foram saciadas simultaneamente. Com certeza, erro do departamento de P.C.L, pensou novamente.

Mas é claro que a polícia não mede esforços e discriminação de situação, pensou, e tomara que enviem só humanos. Não sabia ao certo o que estava acontecendo, mas após os pequenos barulhos que oscilavam ao passar do tempo, a claraboia começou a se romper e pequenos pedaços de vidros começaram a cair do teto. De repente, a Claraboia se rompeu totalmente levando a uma avalanche de estilhaços que ofuscaram a descida 39


triunfal do que ele julgava ser a polícia.

Observando-os para poder identificá-los, percebeu que parecia haver alguns armamentos ao lado de seus vestuários. São haldracianos mesmo! Eu sabia! Mas haldracianos, ao contrário do que ele sabia, eram pacíficos e não portavam armas.

Apesar do exagero da situação, começou a sentir-se seguro novamente. Lembrou-se da confusão dos haldracianos no ano anterior que queriam suprir a força policial nas áreas mais baixa da cidade. Se não fosse pela polícia, imagina, iria ficar preso aqui, limitou-se a pensar.

Essa verdade que ele não conhecia poderia ter evitado a sensação estranha que começava-lhe a brotar. Sentia-se gélido sob o aspecto de um sentimento que crescia gradativamente desafiando os limites da física, como se sua alma, ou algo que o valesse, estivesse escorrendo por finos canos que atravessavam seu corpo, desembocando em um ralo localizado exatamente na parte frontal de seu crânio. – Vão me matar! – O ralo parecia estar entupido, pois começou-lhe a acumular sólidas sensações que lhe estimularam um estado de pânico fazendo-o emitir excessivos gritos que algum dia poderia acreditar sair de si completamente capazes de competir em altura e cadência com os dizeres da máquina ressoados pelas paredes, mas que agora eram facilmente escoados pelo recém buraco do teto que, em seu estado atual, parecia mais uma boca com dentes cortantes.

Não se importou muito com a quantidade, embora pareciam ser um grupo de três ou quatro polícias. Se importou, sim, em logo perceber que usavam roupas pretas, cumpridas e pesadas. E isso, infelizmente, não demonstrava uniformidade com os aspectos gerais exaustivamente lembrado pelas propagandas do departamento de polícia local exibidos nos mesmos holofilmes que vendiam Sincáfi. E, em sua opinião, tais roupas também lhe pareciam antiquadas. Caramba, cadê a polícia? Talvez sejam aqueles malditos haldracianos da ala norte, sempre tão baderneiros, lembrando novamente os haldracianos, como se não pudesse esquecê-los, mas não sabia o por quê. Se alguém me ouvisse dizendo isso e não me conhecesse, poderia pensar que eu não gosto desse povo!, embora isso claramente não era evidente mesmo para aqueles que o conheciam.

– Fique quieto. Isso é para seu bem. Embora não fosse a polícia, ele foi “salvo” de trás da máquina. Deu dois tapas com sua mão direita em 40


sua perna esquerda para tirar os vincos que o estresse da situação causou em sua calça sintética. Fingiu que estava ajeitando o óculos na cara, mas iria acionar a polícia verdadeira através do botão planificado na junção de uma das hastes.

nico, tornou a ser regida pelas leis conhecidas, mas com um leve desvio para seus punhos cerrados. – Eu sei, eu sei, sou louco. A Empresa nunca poderia fazer isso com a gente. OK, eu sei. Mas você tem que concordar comigo que alguns anos atrás isso poderia parecer verdade quando encontraram DNA haldracianos em alguns frascos de Amali. E isso já foi discutido por todo a cidade mas, no final das contas, quem ainda toma aquele lixo, não é mesmo? Ou, Além de tudo, quem se importa com os haldracianos.

– Por favor, não ligue para a polícia. Seremos rápidos. Eles querem água, pensou ele. Não tanto quanto cidadão, mas mais como funcionário da Empresa, o roubo da água lhe causaria diretas consequências. Sobre esse prisma, resolveu clamar: – Vocês, haldracianos, sempre vivendo nas custas dos que trabalham. A cidade continuará essa lástima enquanto vocês existirem. – Disse, se enchendo de um sentimento de justiça que era capaz de extinguir a dúvida daqueles que não o conheciam sobre se ele gostava ou não dos haldracianos.

– Idiota – ignorou a parte relatada dos haldracianos, porque não havia porque reafirmar o óbvio – Caso não saiba, trabalho no departamento de Aprendizado de Máquinas dessa empresa a qual você se dirige. Além disso, convivo com a alta cúpula da Empresa. Você acha que eles tomariam… merda? – pausou e abafou um pequeno riso – Apesar de eu já ter reclamado, ainda temos máquinas como essas disponibilizadas gratuitamente para os funcionários. Ou acha que vendemos algo que não compramos? Ou, como você está falando, acha que lá na Empresa bebemos… – pausou, isso não era muito comum no seu vocabulário – merda?

– Não somos haldracianos. E isso também não é água. Na verdade isso é pura – deu uma pausa, mas exclamou – merda! Sua merda, quero dizer. A tal da palavra merda, exalada com tanta veemência, penetrou-lhe em seus pensamentos de tal maneira que a física que, anteriormente lhe proporcionara pâ41


– Todos nós bebemos merda, de uma forma ou de outra. Mas não estamos conscientes disso. Ou você acha que as tais das massas métifas são o que? Um lindo produto criado a partir de muitos estudos pelos maiores cientistas do mundo? Bem, a Empresa quis que fosse assim, mas, perguntou-lhe: você acredita nisso? Mesmo? Você sabe como são os processos?

tou do que viu. Voltou o olhar para a infeliz criatura e, por esse caminho de volta, mediu um de seus comparsas com as lentes de juízo lógico e percebeu que esse possuía um instrumento muito rudimentar e grande, parecido com um T, em que na parte oposta designada para carregá-lo constitui-se de um material muitíssimo rígido.

– Isso não é sobre o meu departamento. – É sobre isso que estou falando. Ele pensou que infeliz momento foi aquele em que quis descer um tanto a mais da rua para chegar a esse lugar, e ainda ter que viver, mesmo que poucos momentos, com essa infeliz criatura que, diga-se de passagem, falavam estranhamente da mesma forma que vestia-se.

Com certa destreza, batiam com esse instrumento na parte frontal da máquina. Teve uma vaga lembrança de ter lido em suas aulas obrigatórias de Antropologia dos Seres Humanos o relato de seres humanos muito primitivos que usavam de tal técnica para conseguir comida, abrigo ou mesmo batalhar com outros

Suas lógicas interpretações foram interrompidas por pequenos e esparramados barulhos de vidros sendo quebrados. Já ouvira antes, mas dessa vez, não vinha do teto. Ainda, não podia identificar se a quantidade de estilhaços de vidros no chão eram todos provenientes dos vitrais quebrados da claraboia. Eram incontáveis pedacinhos e, quando olhou-os no chão, seus formatos irregulares refletiam seu corpo deformado e alteravam a cor de suas calças. Não gos42


seres humanos, mas não conseguia lembrar o nome do tal instrumento usado em tais práticas. – Caso não saiba, isso é uma marreta. – mais um objeto estranho para compor o indivíduo estranho, pensou ele. – Ainda temos algumas dessas guardadas conosco dentre outros artefatos que você ficaria surpreso em descobrir que não são regularizado por códigos. – Parem de fazer isso! Caso o contrário, irão quebrar a máquina! – Mas queremos exatamente isso, o contrário do seu contrário! Sua lógica era boa o suficiente para não pestanejar e responder: – Mas para que querem isso? – Queremos te libertar! – Me libertar? – agora sua lógica não parecia funcionar tão bem – do quê? – da máquina! Pois que, mesmo antes de raciocinar a resposta, a verdadeira polícia chegou pelo buraco dos vitrais. Tão


triunfal quanto a chegada dos primeiros visitantes, mas obviamente não usavam artefatos “analógicos” como as tais marretas; modernos jetpacks e armamento acionados pela mesma enginner das cafeteiras estavam em melhor conformidade com a polícia que ele esperava. Se sentiu seguro quando viu que eles não tinham a menor chance com a tecnologia da polícia. No entanto, alguns deles conseguiram escapar. Atiraram algumas esferas que explodiam, mas em vão, pois não conseguiram detê-los. Eles vão ver quando as esferas de dispersão equipadas com campo de distorção ficarem prontas, pensou. Após toda a bagunça ser limpa, ele pôde, enfim, limpar-se adequadamente. Que noite!, pensou. Obviamente não disse isso pelo fato de ainda fazer uma bela noite lá fora, mas, de qualquer forma, olhou para cima e percebeu que a luz mudava de cor quando passava pelos cacos dos vitrais presos no perímetro da claraboia quebrada.

44


Sobre Adriano J Adriano Jorge nasceu no interior de São Paulo, na cidade de Bauru. Ainda permanece por lá. Atualmente, com 27 anos, inspira-se pela observação e, frequentemente, semeia escondido algumas escritas particulares.

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eram possíveis: ouvir as divagações e afirmações até que todos os fatos estivessem na mesa, formando um mapa inquestionável; ou entrar na discussão, que em poucos minutos pareceria um debate político. - Por favor, Cléber... Já conversamos sobre isso. - Não, Alexandre. Você falou e eu tive que aceitar.

ATUALIZANDO. NÃO DESLIGUE.

- Você falou pra caralho! Mas não me convenceu. Eu quero fazer isso. Preciso. - Você precisa de ar, água, comida. O resto é da tua cabeça.

0%

- Eu não nasci pra ser qualquer um, Cléber. Eu sou um bom médico, eu sei disso, mas tem muitos bons médicos por aí. Todo hospital tem um, dois, até três - as pequenas estrelas locais. Mas eu nasci pra ser maior do que isso, eu sei que nasci. E isso vai me dar o boost que preciso, cara.

- Você não devia fazer isso. Alexandre fechou os olhos. Não queria enfrentar a mesma discussão. Sabia que o marido o achava perfeito da maneira como era, sabia que sua carreira estava seguindo um bom caminho, mas ele ambicionava além.

- E se te mudar mais do que você espera? Fechou os olhos novamente.

- Não precisa de nada disso pra ser um bom cirurgião, Alê. Você já é um! Todo mundo no hospital acha isso.

E se?

Respirou fundo. Não conseguiria escapar. Quando Cléber iniciava uma discussão, apenas dois caminhos 46


20%

movimentos, um por um, nas quatro horas de cirurgia. A certeza nos olhos do médico não o acalmariam por um segundo sequer. Seus olhos se moveriam freneticamente entre o rosto do médico, o rosto coberto de Alexandre e as máquinas que auxiliavam a operação.

A cirurgia foi em casa. O porão foi montado com esmero pela equipe médica, selecionada a dedo por Alexandre, e ele mesmo vistoriou o local antes do procedimento.

Quando, enfim, o desconhecido levantasse a placa de silício com a aparência e tamanho de um microchip de celular, Cléber prenderia a respiração. Voltaria a inspirar apenas quando o chip sumisse do seu campo de visão. Sentiria, então, como se os filhos de um futuro imaginado fossem condenados a não serem mais do que sonho, e choraria baixinho no canto escuro da sala de cirurgia improvisada.

Cléber se recusou a fazer parte daquilo. Na noite anterior, arrumou as malas e Terêncio, o gato do casal, e foi para a casa dos pais no interior do Rio. Alexandre observou a partida do Subaru através da grande janela da sala, coração apertado, e voltou para a mesa, onde assinou um cheque gordo e entregou para um homem de paletó no sofá. Quando os últimos detalhes do acordo foram fechados, Alexandre acompanhou o negociante até a porta e apertou sua mão. Voltou para o quarto e se jogou na cama de casal e chorou por horas a ausência de Cléber. Ele não sabia, mas na manhã seguinte, Cléber voltaria, arrependido. Não chegaria a tempo de lhe dar um beijo na testa e de desejar boa sorte, mas estaria a tempo da primeira incisão. Sentiria o suco gástrico tatear o caminho pelo esôfago e os olhos marejarem, e não sairia mais do lado do marido.

Mas Alexandre, ao menos o Alexandre que Cléber amava, jamais saberia de nada disso. 40% Já se passara um dia inteiro desde que a cirurgia terminara e Cléber não saíra do lado da cama de casal, mas também não ousara invadir o leito do parceiro enquanto ele estivesse adormecido. Arrastara a poltrona e passara a noite ali, relendo trechos de Une saison en enfer, na língua original, pois na segunda-feira discutiria sobre Rimbaud com seus alunos da pós-graduação. Receios, preocupações e a potente

Olharia para o cirurgião, um desconhecido com pouco mais de trinta anos. Cléber acompanharia seus 47


droga literária corriam-lhe pelas veias.

- Desculpe. Não quis te acordar – a voz de Alexandre saiu fraca e um sorriso se formou em sua boca. – Sempre amei ver você dormindo, você fica lindo.

Sonhos se misturavam durante o sono inquieto. Cléber se remexia na poltrona e o pescoço pendia, acordando-o por um milésimo de segundo e lhe permitindo uma visão rápida da cama de casal onde Alexandre repousava, e então era dragado de volta ao mundo onírico.

60% Os meses que se seguiram foram gloriosos para Alexandre. Ele saiu no jornal pelo menos vinte vezes em menos de seis meses devido à cirurgia bem-sucedida que fizera na vice-presidente e por causa dos avanços significativos em sua pesquisa sobre reabilitação sensorial com o uso de células-tronco. Recebeu dezenas de pedidos para que palestrasse em universidades Brasil afora e duas grandes empresas lhe ofereceram patrocínio. O sorriso branco e aberto de Alexandre era figura corrente em sites de fofoca, sempre acompanhado do seu companheiro, como insistiam em chamar o marido legalmente atrelado ao médico.

Era a noite após o casamento, e Alexandre estava em seu colo. Dois tolos apaixonados. Cléber acariciava a cabeça do marido em seu colo, a lua de mel entranhando-se no carinho cansado que trocavam. Alexandre ainda dormia sobre a cama. Puxou Alexandre para sentar em suas coxas e disse que o amava, que o amaria para todo o sempre. Beijou-lhe a bochecha e a boca, mordiscou seu queixo, mas o achou amargo como nunca antes. Levantou-se de supetão, fazendo com que o marido recuasse. O cabelo raspado deixava à mostra os pontos que a cirurgia exigira. Já não era Alexandre em pé no quarto – parecia uma versão feita aos trancos e barrancos, feições frias que o encaravam como se ele não fosse mais do que uma parede. Agora tenho tudo, tudo que sempre quis, exclamou a voz robótica. Alexandre estava sentado na cama, observando-o. Agora não tem mais limites para o que posso fazer, agora. Cléber arregalou os olhos. 48


O sorriso de Cléber era contido, e ser contido não era uma característica que ele dominava ou apreciava. Era o tipo de gente que tinha plena certeza que existir como um excluído era um ato político e que, quanto mais alto gritasse, mais as pessoas lhe ouviriam – reagindo da maneira que reagissem. Mas nunca enfrentara situação como aquela. Os meses de glória de Alexandre lhe levaram em uma viagem passando por emoções que já conhecia até ilhas sentimentais mais distantes, das quais nunca pensara com propriedade. O receio inicial era o barco zarpando, deixando-o na insegurança de que teria chão logo a frente – que já conhecia muito bem, por sinal, pois passara anos se perguntando o que aconteceria se saísse com a calça skinny, com o cabelo pintado, de mãos dadas com o namorado. Nunca sabia se a próxima esquina quebraria uma lâmpada em sua cabeça ou se uma horda de zumbis evangelizados por dois milênios de expressão - opressão? - cultural o cercariam e arrancariam seu fígado. Foi apenas o início. Aos poucos, viu Alexandre afundar no trabalho. Passava as noites acordado lendo artigos científicos, livros, até que uma noite chegou da universidade e encontrou a casa vazia. Chamou o nome do marido por toda a casa e começou a ligar para os telefones que tinha – um barulho o interrompeu. Seguiu os ruídos até o porão, descendo os degraus devagar por temer o que esperava no final da escada. Encontrou Alexandre debruçado sobre a maca abandonada após a cirurgia.

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- Alê, o que você tá fazendo aqui?

tar mais perto dele. Não suportava a ideia de sequer tocá-lo. Mas também não poderia o abandonar.

Aproximou-se e, com horror, viu o marido debruçado sobre um gato com os órgãos expostos e o crânio aberto.

Jogou-se no sofá, enrolando no cobertor velho que salvara da infância e que o escondia dos monstros. O sono não veio fácil – sonhou acordado, variando de estados de vigília a cochilos de menos de cinco minutos.

- Alexandre! Pelo amor de Deus! O que você tá fazendo?! – Puxou o braço do marido com violência, lágrimas surgindo em seus olhos ao mesmo tempo em que o estômago embrulhava.

Iria procurar os homens com quem o marido negociara. Certamente, algo tinha dado absurdamente errado. Porém, tinha que estar vivo para ir atrás do expurgo do chip do cérebro de Alexandre. Imaginou-se em uma jornada atrás de um padre que realizaria um ritual macabro de exorcismo nanotecnológico. Não posso dormir, não posso dormir, não posso dormir.

Alexandre o empurrou, derrubando-o no chão. - Shhh! Preciso colher essa amostra. E voltou a se curvar sobre Terêncio, agora o gato morto do casal. Alexandre ficou estatelado no chão, sem saber o que fazer. Arrastou-se para fora do porão, quase sem forças, até o banheiro, onde afundou o jantar no vaso sanitário.

Afinal, camuflagem poderia bem funcionar para o bicho-papão, mas Alexandre não seria enganado tão facilmente. 80%

Merda. Merda. Merda. O que tá acontecendo? Eu disse que não era pra ele fazer aquilo. Eu disse, eu juro que disse. Repetia para si mesmo, esfregando-se sob o chuveiro por mais de uma hora até que a pele, tomada pela vermelhidão, estivesse ardendo tanto que nem a água gelada servia de unguento. De noite, saiu da cama assim que Alexandre chegou. Não queria dormir na mesma casa que Alexandre. Não queria es-

Sentiu as narinas queimarem e perdeu o ar. Acordou. Alexandre se afastava dele, carregando algo em sua mão. Cléber encheu e desencheu os pulmões freneticamente, tentando recobrar oxigênio e as faculdades mentais. Tentou se levantar, mas cordas apertavam seu pulso e suas pernas. 50


- A-Alexandre, o que tá acontecendo?

- ME TIREM DAQUI! – Esperneou, mas as cordas machucaram sua pele. Heloísa, os cabelos ainda crescendo sobre os pontos da própria cirurgia, manteve o sorriso no rosto.

Era estranho falar amarrado em uma maca, semiconsciente de que logo seguiria por um destino horrível. O sentimento de impotência o tomava, como da primeira vez que ficara tão chapado que não conseguia nem se levantar da grama de trás do Centro Acadêmico, mas mais aterrorizante, porque agora tinha plena ciência da sua fraqueza.

- Semana que vem, você será a estrela do Centro de Letras. Cléber Duarte. Já imaginou? E isso me custou muito caro, querido, então não seja ingrato. Alexandre acenou com a cabeça para os dois companheiros, que se aproximaram de Cléber. Heloísa injetou algo no soro e o sono dos drogados arrastou Cléber em sua direção. Por alguns segundos, ele balbuciou palavras soltas. Solta. Terêncio. Amar.

Cléber levantou a cabeça o quanto pode. O marido mexia em uma bandeja sobre o balcão lateral. Duas pessoas, os mesmos que estavam auxiliando o médico desconhecido na cirurgia de Alexandre, estavam paradas ao lado do balcão. A mulher, Heloísa, sorria debilmente.

Próximo da maca onde faria a cirurgia, Alexandre retirou com cuidado o chip de uma embalagem japonesa e o colocou em um vasilhame com soro. Nele, os circuitos se dispunham como um muro nunca rebocado, carregando informações de milhares de livros, artigos e vídeos, conclusões lógicas e tudo mais o que tornaria Cléber em um gênio da Literatura.

- Eu sei que você foi atrás dele, amor. Sei que você pediu que tirassem o chip de mim, ofereceu nossas economias para que tirassem todas as minhas habilidades, todo o conhecimento que me pertence agora. Sua voz saía monótona, como se ele estivesse jogando papo fora com o ascensorista do hospital onde trabalhava. Bom dia, Carlos, como está?

Dois circuitos paralelos e isolados do centro, traziam informações diferentes especiais. O primeiro, faria com que Cléber fosse o marido ideal e um bom cidadão, adequado para a pesquisa que a empresa vinha executando.

- Amor, por favor, me tira daqui... - Não se preocupe. Vai ficar tudo bem, Cléber. 51


O segundo circuito lhe traria outras habilidades. Afinal, Alexandre sempre quis um parceiro para jogar tĂŞnis. 100%

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Sobre Bruno Eleres Além de biólogo, Bruno Eleres se considera um quase-escritor. Se não por legado, por tentativa. Tem publicado contos em antologias de diversas editoras, entre as quais Andross, Regência, Ornitorrinco e Multifoco. Pelos interesses múltiplos, experimenta um pouco de gêneros, personagens, histórias no seu processo de autodescoberta. Em geral, escreve contos de terror, fantasia, eróticos e intimistas, tendo um portfólio variado. Saiba mais do autor em: bruno-eleres.flavors.me

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O outro se abaixa, coletando com um pouco de dificuldade uma amostra da terra em um pequeno recipiente. Carl continua a avaliar o planeta, e no horizonte o sol laranja reflete-se contra a areia ardente. Se não fosse pelas roupas protetoras, não sobreviveriam ao clima ou mesmo a atmosfera. A areia não é solta, parece mais grossa, quase granulada. Ao fundo, longínquo, pode se ver a lua pequena quase escondida pelo sol.

CAVERNA

O segundo astronauta caminha em frente, afastando-se da nave. O outro o segue silencioso, enquanto caminham pela imensidão desabitada. A terra, após uma camada de areia solta acima, é dura, quase impenetrável.

A porta da nave abre-se em um deslizar silencioso. Os homens saem cuidadosos da mesma, enquanto as pesadas roupas protetoras atrapalham a movimentação. As mesmas contêm dezenas de apetrechos para facilitar a tarefa naquele local. No vidro do capacete o cenário reflete-se. Os olhos humanos e negros se encontram com o mesmo, e pelo comunicador um pode ouvir o arfar do outro. A surpresa carrega curiosidade e agitação.

O vento não existe e o cenário mostra-se estático. Após alguns minutos de caminhada, Neil volta o olhar para nave, que estava longínqua. O astronauta mais velho já havia estado na lua, mas aquele planeta era diferente, difícil de ser mapeado graças a alguma coisa na atmosfera que bloqueava certo tipo de tecnologia. Poucas fotos haviam sido tiradas, mas nenhuma amostra pode ser coletada. O campo magnético acabava com o funcionamento dos robôs.

- Está acreditando nisso, Carl? – o primeiro ri. - Eu pediria para você me beliscar, mas acho que não vai ser possível.

Soube que deveria retornar, entretanto o companheiro apontou para nordeste indicando uma elevação 54


que surgia no meio da planície. A mesma parecia ser de pedra negra, com o teto oval, porém com as paredes que a sustenta tendo ângulos mais retos. Estava escavada pelo tempo, rachaduras se espalhavam.

adentrando-a. O lugar ali é escuro, então o astronauta acende uma pequena luz acoplada em cima da luva de seu uniforme. O facho ilumina um pouco o ambiente ao redor, completamente vazio exceto por um túnel na lateral esquerda.

- Precisamos pegar uma amostra daquilo. – decidiu-se o mais velho.

Neil aproxima-se do ponto iluminado e coleta um pouco da amostra, raspando a rocha. Guarda em um bolso no traje e volta-se para o exterior, aonde a tempestade continua.

O outro concorda com um aceno, e antes de partirem, Carl checa o nível de oxigênio que ainda lhe resta. Havia o suficiente para mais algumas horas. Seguiu o líder da expedição, enquanto ao redor, não havia nada. Um calafrio de excitação percorre o corpo. Tenta controlar, sabendo que o ataque de euforia contribuiria para o aumento do ritmo de sua respiração e também do consumo de oxigênio. Deseja poupar o máximo possível por uma questão de segurança.

- O acha de tudo isso? – questiona Carl, iluminando o teto. O mesmo apresenta pequenas erupções pontiagudas, enquanto algo misturado à rocha faz a mesma brilhar quando o facho de luz a atinge. O brilho tem ondulações prateadas, e dependendo do ângulo, quase brancas.

Os astronautas caminham até a elevação que se assemelha a uma caverna. A alguns poucos metros, sob o sol forte que dificulta a visão, uma tempestade de vento sorrateiramente os atinge. A mesma é fraca, mas traiçoeira. Os passos se apressam enquanto os grãos batem contra o vidro do capacete.

- O que foi? Está com medo de alguns alienígenas? – ri o mais velho. O astronauta resmunga, e ilumina o fundo pouco aparente.

-Vams nos abrigar ali dentro até passar. Não podemos correr risco de nos perdermos. - decide-se Neil. Carl concorda e os dois homens chegam até a caverna,

- Não diga besteira, já visitamos uns três planetas e até agora em nenhum tinha vida. Duvido que 55


nesse deserto vermelho vá haver qualquer coisa.

entretanto aberrações que produziam boa música.

Neil dá de ombros, concordando.

Caminhou até uma mesa no fundo do bar intergaláctico, sentando-se solitária. A mandragoriana aproximou-se com um sorriso cheio de dentes pontudos, pronta para anotar seu pedido em um bloco metálico que emitia uma luz azulada e soltava faíscas de mesma cor hora ou outra.

- Vamos ver o que tem naquele túnel lateral. - Eu não acho uma boa ideia, Neil. - Nós somos exploradores no final das contas, não somos? Eu aposto com você que será mais um pouco de pedras.

- Seja bem vinda, seu crime é a nossa alegria. Gostaria de pedir alguma coisa?

Carl continua hesitante, entretanto o companheiro, tomado pela curiosidade e excitação, segue empolgado sem poder se controlar. Não existe treinamento algum que possa suprimir o que se sente ao desbravar o desconhecido. A ansiedade que nunca vai embora. Resta ao segundo astronauta segui-lo de mau agrado. Uma sensação estranha não o deixa.

- Zhadist? - a voz baixa e rouca soou. A mandragoriana franziu o a testa repleta de pequenas cicatrizes e tentou ver a face da forasteira. A pele negra como carvão absorveu a luz ao redor, impedindo o reconhecimento dos traços mais ocultos pelo chapéu de abas largas, velho e desgastado.

As portas deslizaram com um som enferrujado e ela adentrou o lugar. Alguns olharam rapidamente para a estranha, mas nenhuma atenção prendeu-se por mais de alguns segundos. O som dos passos foi abafado pela banda de ozótonos que tocavam seus clarinetes. As bocas pequenas assopravam os instrumentos e alguns dos braços longos batiam nos tambores. Os corpos eram uma mistura brutal de inseto e felino. Ela os achava pequenas aberrações,

- Desculpe, mas Zhadist não está aqui hoje. Tem algo mais em que poderia ajudá-la? - Um copo de afalmar puro. - pediu, levantando levemente a aba do chapéu e permitindo a outra ver as fendas amarelas no centro de seus olhos. A fêmea sorriu mais uma vez concordando com um aceno e partiu movendo os quadris de um lado para 56


o outro enquanto os dois rabos escamados chicoteavam o ar. Rosnou baixo, praguejando na língua natal, aquilo mudava algumas coisas.

nar, repete o gesto do companheiro, volta-se para o lado oposto ao da abertura. Neil aproxima-se enquanto Carl ilumina a parede. Dentre a rocha existem sulcos fundos, encravados na caverna em ângulos um pouco mais retos.

Encostou-se à cadeira metálica e observou o lugar ao redor por instantes. Sentiu pequenos beliscões por baixo do pesado casaco que chegava até os pés, e bateu de leve nos lugares aonde havia os bolsos internos dos mesmos.

- O que acha que é isso? – questiona Neil. - Não sei, parecem marcações feitas na rocha, mas levando em consideração que eles marcaram esse planeta como morto, eu não sei.

No canto oposto um bando de cargueiros riram batendo a cabeça do mais fraco contra a mesa. O macho no balcão gritou algo em uma língua que ela não pode entender, e os outros resmungaram rindo mais baixo. O mais fraco tinha uma pasta rósea escorrendo pelo nariz, mas pareceu não se importar.

O outro se aproxima e toca de leve um dos sulcos. Instantaneamente um som agudo surge, assemelha-se ao arrastar de algo enferrujado, e a rocha move-se revelando uma entrada. Os olhos encontram-se com o lugar encravado na caverna, e os lábios abrem-se surpresos. A dor aguda atinge o braço esquerdo.

As portas metálicas deslizaram com um som metálico mais poderoso e os olhares desviaram-se para a mesma. Alguns dos alienígenas pararam as falas.

Neil sente o coração acelerar-se, batendo descontrolado. As criaturas dentro do lugar olham-no e ele grita em horror. Sua mente não pode codificar. O medo sobe pela espinha e Carl arfa, tem certeza de que está louco.

Os dois astronautas seguem lentamente pelo interior da caverna, enquanto o corredor torna-se mais estreito e regular. Neil para quando uma abertura na lateral esquerda da rocha joga um pouco da terra dentro da caverna. A mesma acaba alguns metros à frente.

Outro grito estoura em seu comunicador, e o companheiro leva a mão ao peito enquanto a dor rompe poderosa e o coração não é capaz de aguentar o que

Antes que o outro possa ter o desejo de questio57


os olhos veem. O humano cai de joelhos enfartando sem ar. O medo faz com que Carl urine nos trajes, e a injeção de adrenalina o joga longe enquanto ele corre desesperado do ambiente pavoroso, adentrando mais uma vez a tempestade de areia. Ele se perde e abandona o companheiro que morre diante de seus olhos no lugar, à mercê da própria sorte.

Nenhum dos alienígenas pode voltar para suas conversas anteriores. - Está morto! - declarou o macho verde, dramaticamente. A fêmea apontou o pequeno dispositivo encravado no pulso em direção ao outro e apertou um botão atrás da orelha, enquanto o mesmo reconhecia a fala e começava a traduzir a língua. - Assassinado bem diante de nossos olhos! Essa pobre... - ele parou por alguns instantes, voltou-se para os outros. - Alguém sabe que raça é essa?

Ela não soube dizer de que raça eram. As roupas eram grandes e brancas, as cabeças redondas, o corpo parecia estar encoberto por um exoesqueleto e dentro do mesmo, havia rostos frágeis. A pele externa tinha a cor diferente da interna. Uma das criaturas abriu a boca em um grito que ela não ouviu. Um deles levou a mão ao peito caindo de joelhos enquanto o outro arfava recuando, surpreso demais. Ninguém ali entendeu.

Todos continuaram calados, ninguém conhecia. - Enfim, alguém aqui o matou e não poderei aturar um assassino tão bom no meio de nós! Exijo que o criminoso deixe imediatamente a Caverna!

Uma das criaturas começou a correr para longe, desajeitada com o corpo esbranquiçado que parecia não ser seu, e o outro caiu de cara no chão bloqueando a porta que tentava fechar, mas batia contra a carcaça e abria-se mais uma vez.

Todos continuaram calados e a mandragoriana serviu sua bebida, afastando-se. A fêmea bufou desprezando aquele homem. Tomou um gole sentindo o líquido percorrer o corpo frio e forte.

Os alienígenas olharam-se confusos e um deles levantou-se. A mulher bufou enquanto via o policitiano aproximar-se do corpo. O macho chutou algumas vezes a carcaça inerte e a mesmo continuou imóvel. 58


- Tudo bem, já que ninguém se pronunciará eu mesmo desvendarei esse crime!

lhe mostrava a fez torcer o pequeno nariz. Os dedos longos e finos de unhas pontudas, rapidamente escreveram a mensagem de confirmação. Os planos haviam mudado. Um estalo surgiu em sua mente. Sorriu sentindo o fedor da quantia que estava por vir.

O alienígena andou de um lado para o outro, enquanto um dos quatro braços passava a mão pela cicatriz azulada que havia arrancado fora metade do nariz, enquanto outro coçava a barriga recoberta por uma proteção de placas negras que protegiam a pele verde e escamosa. Os braços restantes uniam-se atrás das costas.

- Então eu concluo dizendo que o assassino aqui seria um dos ozótonos! – declarou enérgico. Alguns alienígenas apenas ignoraram o estúpido macho, porém os mais bêbados rugiram batendo suas canecas, eufóricos. Os músicos se entreolharam.

- Essa criatura certamente deveria ter inimigos aqui devido o tamanho de sua estranheza! – o macho olhou com desprezo para carcaça. – Entretanto a Caverna é um campo neutro, ou seja, ninguém aqui poderia ser punido por seus crimes, capturado ou mesmo alguma vingança cometida. Então a questão é quem teria algo tão grande quanto essa criatura a ponto de matá-la aqui! Cometer essa heresia imperdoável no meio de nós, simples criminosos honestos e trabalhadores?!

- Mas ozótonos são assassinos sangrentos! – um dos bêbados gritou. - Exatamente, meu caro! Exatamente! Por isso eu concluo que esse assassinato foi cometido por um assassino aqui famoso pelos seus métodos silenciosos! As raças se entreolharam, cheias de desavenças. A mulher observou mais uma vez a criatura que continuava caída, e a areia que entrava no bar, já muito fraca graças à tempestade que ia embora. As portas metálicas insistiam em fechar, mas a carcaça ainda as bloqueava. A cada instante o cadáver a intrigava mais. Já havia viajado por várias galáxias, mas nunca avistara algo como aquilo.

O comunicador emitiu um bipe baixo no braço da fêmea, e a mesma desviou o olhar, perdendo o longo discurso do macho. A mensagem que o pequeno visor 59


O silêncio instantes.

seguiu-se

dramático

por

alguns

Do outro lado viu um grupo de escaralhitos discutindo em tom baixo. Não pode entender, mas quando uma das criaturas olhou diretamente com os olhos completamente vermelhos para a carcaça morta, ela soube que se não se apressasse não conseguiria aquilo que desejava.

- Como veem essa pobre criatura estava protegida por seu esqueleto, então a única forma capaz de matá-lo, seria de dentro para fora. – concluiu o policitiano. – E o único assassino aqui conhecido por matar com seu veneno, é a mandragoriana!

- O assassino que procuramos tem o poder de se camuflar em meio à multidão. Não ser notado, não ser ouvido e muito menos visto! Tem o poder de se fundir as sombras e assassinar a sangue frio, sem sujar as mãos ou levantar suspeitas. O assassino aqui pertence a uma raça traiçoeira, e se ouso dizer, uma das mais perigosas da galáxia!

- Vá procriar com sua mãe, Zaham! – retrucou a fêmea, chicoteando o ar com mais força, irritada. - Alguém aqui acredita que foi ela?! Todos continuaram calados. A fêmea acusada xingou em sua língua e tomou um gole de asquemar direto da garrafa enquanto seu chefe, de mesma raça, distraía-se por segundos com todo o discurso eloquente do macho.

Os alienígenas bêbados ouviram atentos e a fêmea desviou o olhar para o policitiano, voraz. Reconhecia o ódio por sua raça quando ouvia alguém o declarando abertamente.

- Exatamente! E isso mostra que não estão precipitados e errados!

- Então, eu declaro que o culpado é... – os olhos completamente negros encontraram-se com os seus, acusatórios, rancorosos e famintos pela confusão e atenção. – Eu declaro culpado...

A fêmea desviou a atenção pela segunda vez, puxando um pequeno dispositivo quadrado da manga de seu sobretudo. Digitou uma sequência de números e deu os comandos. O tempo começou a correr e ela tinha que se apressar. Os olhos do macho encontraram a figura solitária no fundo do bar e ele sorriu.

A outra sacou rapidamente a arma, atirando contra a criatura, que com um grito profundo desabou agarrando o ferimento na virilha, fatal, já que era ali 60


onde estavam localizados os principais órgãos vitais da raça. O cérebro, o coração, o órgão genital reprodutor e algumas das cordas vocais.

muito mais divertido. - Eu exijo meu direito à vingança, assassina! – gritou, e virou-se para os outros, continuando seu discurso. – Essa fêmea assassinou meu irmão a sangue frio! Eu exijo meu direito de vingança! Eu exijo que sua cabeça...

O macho ergue uma das mãos cheias da substância azul e pegajosa no ar, e suas últimas palavras soaram em um poema na sua língua natal. O tradutor não conseguiu entender, e nem ninguém mais na Caverna, exceto o companheiro policitiano. Um último gemido de dor se veio e um suspiro final enquanto os olhos se fechavam para todo o sempre.

O som do segundo tiro soou ecoando pelas paredes de metal e pedra e atingiu o companheiro com desejo de vingança, enquanto o mesmo caia morrendo mais rápido e menos teatralmente do que o policitiano anterior. A outra suspirou fundo, entediada.

A fêmea resmungou terminando a bebida em um gole rápido e todos os olhares voltaram-se para a mesma. Deu um meio sorriso voraz e satisfeito.

- Alguém mais quer vingar a morte de alguém? – resmungou.

- Ele já estava enchendo o saco. – declarou, em legítima defesa.

Os alienígenas discordaram e finalmente puderam retornar para suas conversas anteriores, ignorando completamente os cadáveres no meio do caminho. O mandragoriano responsável pelo estabelecimento, que até então residia atrás do bar, apenas resmungou algo sobre a sujeira que teria que limpar.

A maioria dos alienígenas ali concordou, porém antes que pudessem retornar à suas vidas, o companheiro do morto levantou-se, chorando copiosamente em desespero pela morte do amigo. As lágrimas azuis escorriam pelo rosto desfigurado, e cintilavam ao menor toque da luz artificial do local. Reluziam como pedras preciosas. A fêmea desejou que o fossem, seria muito mais fácil ganhar uma boa quantia fazendo apenas um policitiano qualquer chorar, e obviamente

A fêmea observou pela última vez o lugar ao seu redor, deixou algumas moedas sobre a mesa e levantou-se, caminhando lentamente para fora do mesmo enquanto o pesado sobretudo farfalhava ao seu re61


dor. Passou por cima dos corpos dos policitianos, mas antes de sair, observou por segundos a carcaça da raça desconhecida. Agarrou-a e arrastou para fora do bar enquanto a porta finalmente se fechava. Do lado de fora a tempestade de areia já havia terminado. Sentiu a barreira invisível ao passar pela abertura do estabelecimento e acionou um dispositivo preso em sua orelha, enquanto uma pequena proteção de um material que imitava vidro descia sobre seu rosto, protegendo-a de inalar os gases tóxicos do planeta abandonado. Andou alguns metros arrastando o corpo, e voltou-se para o bar de criminosos. Soltou o corpo e abriu o sobretudo, enquanto libertava os escorpiões metálicos e carregados de veneno que mantinha presos dentro dos bolsos da veste. Os animais robóticos rastejaram pela areia correndo em direção a Caverna. Ele a pagaria bem pelo trabalho feito. Virou as costas e carregou a carcaça até sua pequena nave, jogando-a dentro da mesma. Mais tarde levaria o morto até um velho amigo. Talvez conseguisse algum dinheiro com algum colecionador raro após descobrir a que raça a carcaça pertencia. Ouviu os gritos e rugidos altos dentro do bar enquanto sabia que os escorpiões matavam violentamente todos que estavam ali. Adentrou a nave e ativou os controles, enquanto calculava quanto gastaria para construir novos protótipos robóticos como aqueles. Levantou voo e antes que pudesse partir, viu a explosão esverdeada que irrompia pela pedra e devorava tudo. A nave partiu, deixando o planeta e perdendo-se na imensidão negra da galáxia. Sorriu. Aqueles haviam sido seus protótipos mais bem sucedidos.

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Sobre Carol M Carolina Manzano, 18 anos e moro em Assis, uma pequena cidade no interior de São Paulo. Faço graduação em História e desde sempre gostei muito de ler e escrever, arriscando-me já a escrever algumas histórias de gêneros variados. Minhas principais influências de ficção científica são as obras de Douglas Adams que tratam do gênero de forma irônica e bem humorada.

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― Você já viu uma árvore? Nisto, dois soldados chegaram e imobilizaram-no, mas não antes de ele descrever, aos gritos, o objeto do qual falara.

ÁRVORE?

Resolveu pesquisar num velho i-Pad 20. Nenhum registro, porém. Notava que, nas refeições, a família evitava o assunto. E, em certa ocasião, diante das insistentes perguntas que ele fazia ao pai, este foi categórico:

Ninguém sabia ao certo. Os pais, os avós, todos lhe contavam a mesma história. Árvores não existem. E se, algum dia tivessem existido, pelo menos virariam peças de museu. O que não aconteceu. Pois o museu que frequentava, no planeta vermelho, não tinha nada que pudesse parecer com a tal da árvore, conforme a descrição feita por aquele estrangeiro, que o abordara no outro dia. Folhas verdes presas a um tronco? Galhos e frutas? O que ele queria dizer com tudo aquilo? Dia estranho, aquele. Estava prestes a teletransportar-se da escola para a casa, quando aquele indivíduo alto, de pigmentação branca, com pelos no rosto, aproximou-se dele e perguntou:

― Ou você para com essa conversa, Max, ou as viagens ao planeta vermelho estão proibidas a partir de hoje. Resolveu não insistir. As viagens ao planeta vermelho eram um prazer do qual não queria abdicar. Além do 64


mais, aquele estrangeiro devia mesmo estar mentindo. Ora, que ideia: folhas, troco... Se tais coisas fossem reais, os mais velhos saberiam.

Sobre Edweine Loureiro Nasceu em Manaus em 20/09/1975. É advogado, professor e reside no Japão desde 2001. Premiado em concursos literários no Brasil e em Portugal, foi o vencedor do Prêmio Ganymedes José (Literatura Infantil) da União Brasileira de Escritores - RJ, em 2015.

E, dando de ombros, resolveu não pensar mais naquilo e concentrar-se no experimento a que estava, havia meses, dedicando-se: a criação de células a partir de um pigmento fotossintético denominado de clorofila.

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orações, conquanto inúteis possam ser. Já é possível vislumbrar os detalhes da cidade aos meus pés agora, o visor marcando os pontos de interesse, criando um mapa virtual da destruição que causaremos assim que tocarmos o solo. A perspectiva de cumprir meu dever e me aproximar da divindade faz com que a adrenalina jorre pelas minhas veias, sendo imediatamente colhida pelo traje, para ser utilizada em alguma outra ocasião. No momento, preciso ser o frio que há no vácuo entre as estrelas. Continuamos caindo, todos aqueles que restaram, e os nossos alvos já estão ao alcance de nossas armas. Isso é bom, pois chegou a hora de espalhar a Palavra entre as pessoas que nos aguardam na superfície. E a primeira delas é Luz. As bombas que lançamos criam pequenas esferas cintilantes, pouco maiores do que um edifício de quarenta andares, que nulificam tudo aquilo que tocam. Descarregamos todas elas enquanto ainda estamos em queda, criando pequenos e efêmeros sóis que se apagam junto com as vidas daqueles que nos aguardam, incapazes de deter nossa chegada com suas explosões magnéticas e sem a benção divina. A alegria de pregar preenche o meu espírito e autorizo o meu pelotão a divulgar a Palavra seguinte, Dor. Apontamos os morteiros para a população civil que ainda resta, as granadas programadas para atingir um alvo específico da demografia local. A munição viaja muitas

COMO OS PRÓPRIOS DEUSES

A barragem de plasma risca o céu como unhas alaranjadas, descrevendo arcos sinuosos que iluminam as nuvens e criam pequenas estrelas que caem para cima. Para baixo caímos eu e meus companheiros de pelotão, desviando-nos dos ataques com a experiência que cultivamos e as habilidades que nos foram dadas pelos deuses. Falhar seria um insulto a eles, portanto, de forma que redobro os meus esforços em permanecer viva. Há ainda tanta morte a semear no planeta abaixo de nós. Há morte no firmamento também, e lamento a passagem dos meus companheiros, atingidos pelos disparos e queimando tão rapidamente que é como se jamais houvessem existido. Estão além da ajuda dos deuses agora, mas não das minhas 66


vezes mais velozmente do que nós mesmos, e quando se choca contra o solo, libera os nanocaçadores, à procura dos mais jovens entre os inimigos. Em poucos instantes, todas as crianças dali estão mortas, e os uivos de dor dos adultos são a canção que embalam as preces que murmuro aos deuses, pedindo que não se esqueçam daquelas pequenas almas, mesmo sabendo que irão fazê-lo. Não preciso estar entre eles para saber que seu espírito de combate levou um golpe do qual já não pode mais se recuperar. Mas há sempre aqueles que persistem, enlouquecidos pelo sofrimento, combustível de uma resistência fraca, porém inconveniente. Para estes, eu reservo o Medo.

mas muitos ainda não o abraçaram, resistindo inutilmente enquanto mais de nós caem do céu sobre o seu mundo condenado. Isso vai mudar. Entrando em modo de ascensão, realizo o voo curto que o traje me permite, indo até uma das janelas altas e arrancando, com as minhas próprias mãos, um dos defensores, para levá-lo gritando e debatendo-se para o centro do círculo de fogo formado pelos meus comandados. Por um instante infinitesimal, eu hesito, olhando para o meu cativo. É humanoide, como sabíamos que seriam, caminhando ereto sobre um conjunto de quatro membros robustos, coberto com uniforme de combate, assim como os seus companheiros. Os grandes olhos escuros, de pupilas fendidas e horizontais, refletem o terror que ele está sentindo naquele momento. Ele sabe o que o aguarda. Eles ouviram as histórias. Mas agora vão descobrir que nenhuma delas é mais horrenda do que a realidade. Eu pouso uma das mãos sobre a sua cabeça alongada e inicio a Purificação. Da manopla parte o probóscide mecânico que se aferra à sua pele alaranjada. É nesse momento que o fogo passa a correr por suas veias e artérias, e seus olhos vislumbram, em seus momentos finais, as faces dos deuses para os quais eles deveriam ter se curvado há muito tempo. Nesse momento, eu quase desejo estar em seu lugar. A agonia não pode ser descrita, mas todos podem ver enquanto a criatura se desfaz aos

Descemos por entre os estranhos arranha-céus, espirais de formatos estranhos e ângulos absurdos, para finalmente desacelerarmos a nossa queda com um colchão sonoro, uma pequena explosão que nos permite tocar o chão ilesos, apoiando-nos em mãos e joelhos, como convém aos humildes. Eu e meu pelotão estamos em uma das avenidas da capital agora, carcaças de veículos destroçados pontilhando a paisagem, ladeados pelos corpos carbonizados de soldados. Das janelas dos edifícios próximos, os disparos são como chuva tamborilando em nossa couraça, retinindo como sinos de metal enquanto respondemos ao fogo inimigo. O Medo já está em seus corações, 67


poucos, o sangue em ebulição e a pele borbulhando negra, enquanto emprego toda a minha habilidade para que ele permaneça vivo o máximo possível, alongando o seu sofrimento e ampliando-o. Quando seus restos se desfazem sob a minha palma aberta, é a vez dos meus soldados repetirem o meu gesto, arrancando os inimigos de suas trincheiras e imolando-os um a um. Não demora muito para que se rendam. Os sobreviventes serão devidamente catequizados, em tempo. Com os céus livres, as naves começam a descer, trazendo mais e mais soldados, guerreiros de incontáveis raças, entre eles humanos, como eu. É hora de varrer as ruínas e aniquilar qualquer resistência isolada que possa ainda restar.

espasmo final de dor antes da vida deixar o seu corpo. Sorrio ao pensar na boa fortuna daquele pequeno ser em sobreviver a tamanha devastação e ter a chance, ainda tão novo, de conhecer a glória da catequese e o serviço aos verdadeiros deuses. Desativo as minhas armas e estendo uma mão coberta de metal em sua direção. O pequeno olha para cima e retira um objeto do corpo inerte em seus braços. Ele grita antes de acionar a bomba e eu mal tenho tempo de erguer meus braços em proteção antes de tudo se tornar escuridão. *** Nos meus sonhos, os deuses acabaram de chegar à Terra, embora isso tenha acontecido há séculos, na verdade. Suas naves incontáveis, tão imensas que lançam sombras sobre cidades inteiras, pairam nos céus de diversos países diferentes, em uma época na qual conceitos assim ainda fazem sentido. “Alienígenas” e “invasores”, gritam alguns, “mestres” e “salvadores”, sussurram outros, mais sensatos, quando os emissários robóticos se espalham entre as maiores capitais daquele mundo que eu jamais conheci, mas que visito com frequência durante o sono. Há medo, incredulidade e, por fim, um ódio imenso por aqueles enviados cromados, que passam a perambular pelas ruas, espalhando a sua mensagem. “Ouçam a Palavra”, dizem

Mando meu pelotão se espalhar para cobrir o máximo de terreno no menor tempo possível, eu mesma seguindo solitária para uma ruína próxima. Vasculho os cômodos, observando os remanescentes de uma cultura pagã que logo seria extinta, com a graça dos deuses, quando percebo um ruído semelhante a um choro infantil. Talvez a Palavra não houvesse chegado igualmente a todos os jovens, afinal. Prossigo passo a passo pelos móveis destroçados, até deter-me em frente a uma porta, talvez de uma despensa antiquada. Empurro-a devagar e vejo uma criança abraçada à outra, um pouco mais velha, membros retorcidos no 68


eles, tendo aprendido a falar com vozes humanas e em todas as línguas e dialetos existentes naqueles tempos. “Ouçam a palavra de Paz daqueles que nos controlam. Sejam como eles. Sejam deuses”. Em pouco tempo, um entendimento e uma harmonia jamais vista anteriormente naquele planeta se apossa de suas lideranças, que passam a trabalhar juntos por um objetivo secreto. E assim, a tola humanidade se ergue contra os deuses, declarando uma guerra que não duraria mais do que algumas poucas horas. Quando o primeiro emissário é destruído, os deuses decidem por bem castigar o seu rebanho, enviando seus evangelistas para o solo. Das naves caem os soldados, seres tão diferentes dos humanos quanto diversos entre si, centenas de raças distintas, originários de milhares de sistemas estelares que tiveram a graça de ser apaziguados há muito tempo. Como estrelas cadentes eles descem sobre as cidades, arrasando estruturas e matando indiscriminadamente, pois todos são iguais sob os olhos dos deuses. Os exércitos dos homens são dizimados, mas também são os civis, os políticos, os ricos, os pobres, as crianças, os velhos, os descrentes e os fiéis de todas as outras falsas divindades. As montanhas de cadáveres são catedrais erguidas à palavra que se espalha como fogo sobre o capim seco, e a palavra é Purificação. Quando a humanidade se torna apenas uma fração do que um dia havia sido

e todos os seus orgulhosos monumentos são levados ao chão, é hora de se ajoelhar e aceitar a conversão. No momento em que ela acontece, os guerreiros que pouco tempo antes incendiavam nações inteiras e destroçavam recém-nascidos ainda no seio de suas mães passam a acolher os seres humanos como irmãos, abraçando-os com seus trajes metálicos e sussurrando boas-vindas aos que permanecem vivos. “Vocês agora são como nós. E um dia, seremos todos como eles. Como os próprios deuses”, eles afirmam, e há alegria verdadeira em suas vozes, guinchos inarticulados instantaneamente inteligíveis a todos que escutam. E assim, a raça humana torna-se mais uma em um panteão de muitas outras, todas dedicadas a lançarem-se por entre as estrelas, com o intuito de espalhar a palavra e em busca da própria divindade. Eu desperto, uma entre muitos, hóspede em uma das inúmeras enfermarias que velam pelos remanescentes destroçados dos evangelistas que sobreviveram à queda daquele dia. A queda que eu havia liderado. Os iátricos passam entre os corpos alquebrados, salvando os que podem, prestando a misericórdia final para aqueles que se encontram além das suas artes. Sei que vou viver, e se choro é pelos meus comandados, tantos e tantos que caíram sob as minhas ordens, homens e mulheres que, agora, 69


jamais terão a chance de se tornar deuses, como um dia eu serei. Ignoro a dor ao examinar meu próprio corpo, observando as cicatrizes que competem por espaço ao lado dos retalhos de carne enegrecida e carbonizada. Conhecimentos médicos de incontáveis mundos, administrados pelos emissários robóticos, hão de garantir que eu viva para lutar mais um dia. Mas meu olhar foge do espelho.

ra do fundo de cada uma das suas almas. Eu, que possuo apenas uma, cuido para continuar viva até o dia em que seja chamada para me juntar à divindade. Desvio-me das explosões atmosféricas, com seus remoinhos elétricos e azulados, lamentando o desperdício de vidas que aquela resistência acarretaria. Todos resistem, para em seguida cair de joelhos e juntarem-se a nós. Onde há dominação, há resistência, mas que sentido há em combater os mensageiros dos deuses e portadores de suas boas novas? Aeronaves se aproximam agora, com asas circulares e móveis, cabines como bolhas de sabão protegendo seus ocupantes com finas membranas, mais resistentes do que o mais forte metal terrestre. Eu aterrisso sobre uma delas e rasgo o invólucro com as minhas próprias mãos, despedaçando os pilotos enquanto a estranha máquina viva rodopia sem controle até se chocar com uma companheira, ambas caindo com um guinchar quase humano. Salto para outra aeronave e mais outra, destruindo e matando, enquanto meus guerreiros me imitam alegremente, e o céu se torna um

*** Mais um planeta, mais uma queda, e eu sinto o vento passando por entre os meus braços abertos, como se a qualquer momento eles pudessem se transformar em asas e me levar para longe dali. Talvez, quando me tornar uma deusa, eu ganhe apêndices alados, como as antigas figuras da mitologia terrestre, espadas chamejantes em mãos e uma ferocidade serena em seus rostos marmóreos. Porque ninguém jamais viu a face dos deuses, apenas a forma metálica dos seus arautos, não é difícil permitir que a imaginação preencha as lacunas. Meu sargento, cuja raça simbiótica se compõe de seres formados por três ou mais indivíduos em um amálgama de membros, órgãos e mentes, sonha a divindade como um abraço imensurável, unindo seres vivos como células em um corpo infinito. Um êxtase pleno e coletivo, ao qual ele aspi70


mar de fogo e gritos, acalentando meu coração. Quando tocamos o solo, a carnificina se inicia verdadeiramente, e espalhamos as palavras dos deuses com uma fúria que espanta até a mim mesma. Me recordo da explosão, que destroçou o meu corpo e custou-me uma perna e um braço, substituindo-os por cópias mecânicas que mais se assemelham a extensões do traje de batalha. Não importa. Os apêndices falsos me servem bem enquanto eu desmembro meus inimigos, a pele metálica coberta de sangue e vísceras de cores e formatos estranhos. Em pouco tempo, a vitória pertence aos deuses, e me regozijo por trazer a verdade para bilhões e bilhões de criaturas, que em breve serão acolhidas no seio da fé genuína. Mas dentro de mim reside a verdadeira felicidade, por saber que estou mais e mais perto dos deuses, e que compartilharei dos seus mistérios e segredos como uma igual. Mas não hoje. Hoje há um mundo para ser pacificado e mortos a serem enterrados. Entre as crateras empretecidas e esqueletos de edifícios em frangalhos, eu caminho em meio os corpos, ignorando os berros de

agonia e os meus próprios ferimentos, até que as trevas se abatem sobre mim mais uma vez. *** Me chamam Micaela, o anjo da morte, por semeá-la entre os pagãos, sim, mas também por enganá-la, batalha após batalha, fazendo-a perseguir-me inutilmente pelos campos destruídos pelas chamas da guerra. Os sussurros são quase reverentes à minha passagem, e é bom que seja assim, pois a adoração é reservada apenas para os deuses, não para os seus asseclas mortais. Ainda não chegou o momento de se curvarem ante a mim, portanto, que permaneçam de pé ao meu lado em mais uma queda, meus soldados, meus evangelistas, meus irmãos e irmãs de armas, cada um deles soberbo em seus trajes de batalha marcados pelas cicatrizes de incontáveis batalhas. Ali, um novato torcendo e retorcendo nervosamente seus tentáculos fluorescentes. Acolá, nosso enfermeiro de combate curva a sua carapaça quitinosa e espinhenta para erguer as antenas a um céu metafórico e louvar uma última vez antes da luta. Aqui, um soldado humano, como eu, porém íntegro, tão poucas cicatrizes cruzando a pele escura que mais parece uma criança. Ele me olha com um misto de apreensão respeitosa e temor saudável, mas há algo 71


mais. Poderia ele nutrir desejo por esse corpo destroçado que vê diante de si? Hoje, sinto que sou mais traje do que mulher, o metal preenchendo os espaços que foram apagados pelas feridas dos combates. Um braço, uma mão, uma perna, os elos delicados da coluna vertebral, ambos os pulmões, metade do meu rosto. Meu ventre. Agora e até que o fim chegue, a única vida que posso oferecer aos deuses é a minha própria. Se não fosse pecado, eu quase pensaria que é melhor assim. Dentro do corredor de lançamento da nave, os emissários robóticos perambulam para cá e para lá, tudo vigiando e registrando. O rapaz me olha e penso que podemos dar prazer um ao outro, pelo tempo que os deuses desejarem e permitirem. Decido que é o que faremos, se sobrevivermos à próxima queda. A nave rompe a atmosfera e os pilotos iniciam a contagem regressiva. Ponho meus comandados em ordem e observo, através dos monitores, as águas revoltas do infindável oceano sob os nossos pés, repleto de vida, insubmissa, pronta para virar suas armas contra nós e nossas palavras e lutar para preservar sua cultura, sua história, suas próprias verdades. Eu até sentiria pena deles, se não fosse pecado.

Eu tenho Elísio entre as minhas pernas mais uma vez, cavalgando-o até o êxtase que aos mortais é permitido sentir, uma sombra pálida do arrebatamento que os deuses experimentam entre si. Seu corpo tem me consolado nos últimos tempos, mas suas palavras me perturbam cada vez mais. Em duas ocasiões anteriores, comentou abertamente sobre a razão de ser da nossa cruzada, implicando dúvidas sobre a validade dos seus objetivos. “Por que os deuses precisam de nós para lutar e morrer em seu nome, afinal? ”, ele questiona agora, a cabeça apoiada em minha perna verdadeira. Como é possível que ele não compreenda a santidade da missão que nos foi confiada? Os deuses não precisam de nós, mas o contrário. Sem eles, não teríamos propósito ou perspectiva, e seríamos pouco mais do que feras a rondar pelas estrelas, caminhando inutilmente para uma morte sem sentido. Os deuses nos presentearam com o maior de todos os dons, o de almejar. Por isso, agradeço todos os dias pela sua chegada à velha Terra de séculos atrás. Elísio faz menção de contrapor minhas palavras, mas eu o tomo em meus braços, o beijo e o acalmo, passando meus dedos pelos cabelos encaracolados e acariciando-os até que a sua respiração compassada denuncie o seu sono exausto. Nessa mesma noite, denunciei-o pelo crime de blasfêmia. Posso ver o horror em seus olhos quando seus colegas de pelotão, sob minhas ordens,

***

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o entregam aos emissários para que enfrente a punição pelo hediondo crime. Como sua oficial superior, eu levo adiante a sentença, forçando-o a ajoelhar-se perante todos os soldados no púlpito do julgamento. Faço com que o seu delito seja conhecido por todos e percebo as expressões de dor e desapontamento em cada um dos combatentes ao tomarem ciência daquela vergonha. Há uma mancha no batalhão e sua honra precisa ser lavada. Ao fim do processo, pergunto a Elísio se ele se arrepende do terrível pecado de pensar livremente. Aguardo uma explosão de ódio de seus olhos e sua boca, mas ele apenas volta-se em minha direção, estranhamente sereno após o choque inicial do julgamento. “Arrependo-me somente de ter dedicado, por tanto tempo, meu amor a deuses cruéis e frios, sem face e nem coração, quando havia quem precisasse mais dele”. Eu movo a cabeça em assentimento, sem nada falar, e pouso uma mão trêmula sobre a sua cabeça. O probóscide se agarra ao seu rosto e o seu uivo de dor reverbera pela nave e pelo meu coração. O que resta do seu corpo desaba pateticamente aos meus pés e meus comandados comemoram estrondosamente a morte do traidor, sua fé fortalecida pela justiça divina aplicada ante os seus olhos. Digo a mim mesma que ele viu, antes de morrer, a face dos deuses que havia renegado em meus braços. Rogo para que os seus últimos pensamentos

tenham sido um pedido de perdão e me recolho aos meus aposentos, uma única lágrima partindo do meu olho solitário. *** Quantos mundos eu já subjuguei? Quantas espécies de criaturas já se curvaram sob o olhar dos deuses, porém perante as minhas botas, cobertas de lama e sangue? Já não sou, portanto, eu mesma uma deusa? Não é à “Micaela, a destruidora” que os soldados recorrem nos momentos de maior provação? Já não sinto mais que somos irmãos de armas. Antes, é como se eu fosse uma mãe, severa, porém carinhosa, a abarcar as minhas crianças em um abraço protetor, guiando-as pelas mãos, patas e tentáculos de missão em missão. Não todos, mas a maioria retorna do inferno para lutar novamente. O inferno. Hoje eu estou tendo uma amostra dele. Já aconteceu antes, é claro, mas nunca comigo. Afirmar que todos se rendem é uma falácia, desconstruída pelos fatos frios que criam as exceções das regras estatísticas. Há aqueles que jamais se curvam. Encontro-me agora frente a uma criatura muito pequena, de orelhas e olhos enormes, corpo coberto de pelos pretos e brancos e uma expressão serena na face. Nem mesmo os incontáveis

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cadáveres ao seu redor parecem perturbar a sua expressão. Ele fala e um dos onipresentes emissários robóticos traduz as suas palavras, e sinto um aperto no meu coração, ainda vivo sob tantas camadas de metal. Não se curvariam. Não abririam mão dos seus falsos deuses e crenças corrompidas. “Morra”, eu penso, uma aflição incomum crescendo dentro do peito. “Morra uma morte horrível e nos ajude a convencer o seu povo da verdade. Nos ajude a salvá-los”. Ergo a mão e estendo o probóscide, mas os emissários me impedem de continuar. Os deuses haviam conferenciado entre si, e julgado aquela raça inadequada para adentrar o panteão, junto com todas as outras, para lutar futuramente em seu nome. Jamais seriam deuses. Não havia mais futuro para eles. Voltamos para as nossas naves em silêncio e observamos, do alto, o fogo radioativo varrer a superfície daquele mundo, esterilizando-o não apenas de vida, mas da possibilidade de vida. Em pouco tempo, não passava de um imenso pedaço de rocha a flutuar pelo vácuo negro do espaço, uma lápide gigantesca para testemunhar o fim de uma raça que não se curvou. Tantas palavras de sabedoria eu e meus evangelistas espalhamos por aquela gente, sem nenhum efeito. Luz, Dor, Paz, Silêncio, Morte ou qualquer uma das outras que compõe a nossa litania de destruição foram inúteis. Eles não se curvaram e agora universo está menos vivo em consequência

disso. Sozinha, em meus aposentos, os pensamentos revoluteiam pela minha mente. Serei uma deusa de misericórdia, quando a minha hora chegar? Ou continuarei a ser o anjo da morte que sou hoje, aniquilando civilizações inteiras a cada bater de asas? Deitada, corro meus dedos mecânicos pelo lado vazio da cama, onde Elísio estaria. Tudo o que me resta é dormir e sonhar sonhos cheios de sangue, fogo e morte. *** Meus soldados se reúnem à minha volta, formando um anel de aço ao redor do meu corpo destroçado. Há tempos não experimentamos uma resistência tão feroz quanto a dos habitantes deste mundo, e o contra-ataque que suportamos me custou a vida. Sei que custou. Meu sargento segura, com todos os apêndices de que dispõe, o que resta da minha mão em frangalhos, enquanto aguardamos o socorro médico que talvez pudesse me salvar, se chegasse a tempo. Não chegará. No céu sobre as nossas cabeças, mais evangelistas continuam caindo, nossas naves e as dos inimigos se enfrentado na atmosfera e no espaço fora dela, perseguindo-se por entre luas destroçadas. Será que os deuses estão olhando para baixo nesse momento, observando o corpo alquebrado de Micaela? O pouco de carne que ainda me resta queima como 74


que inflamada pela vontade divina, e sei que não me resta muito mais tempo agora. Minhas ordens sem sentido são ignoradas pelos meus comandados, que não se retiram nem se reagrupam, continuando a me proteger, a lutar em meu nome. Em meu nome, não pelos deuses. Sou uma deusa agora. Não importa que não tenha transcendido verdadeiramente para me tornar uma. Sou uma deusa despojada de divindade, e meus seguidores vivem e morrem para atender os meus caprichos. Agora eu sei. Lentamente, o círculo se abre para dar passagem aos emissários, que tomam meu corpo com muito cuidado e o evacuam para uma de nossas naves. Para quê? Preferia morrer junto aos meus irmãos, eles também deuses, gritando as palavras da nossa fé enquanto arrasam aquele mundo com uma fúria redobrada. Sou levada para a sala de cirurgia, sabendo que é inútil. Há tão pouco de mim agora, tão pouco. E então, eles começam. Os emissários trabalham em silêncio, 75


consertando, fixando, soldando, substituindo, criando. Sinto os últimos pedaços de Micela serem arrancados de mim. E agora, escuridão. Quando desperto, ela não existe mais. Posso voar, finalmente, mas não me foram concedidas asas. Não preciso de um espelho para saber o que enxergaria nele. Mais um emissário se junta aos incontáveis outros que pairam silenciosamente naquele lugar. Eles me dão as boas-vindas com vozes frias e membros de metal. “Irmã”, eles sussurram. “Deusa”. Somos todos deuses agora. Não possuo mais garganta para gritar ou lágrimas para derramar. Sou uma deusa agora e há incontáveis mundos para conquistar na vastidão infinita do espaço.

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Sobre Frederico Toscano Frederico Toscano é recifense de nascimento e criação, formado em Gastronomia pela UFRPE e Mestre em História pela UFPE, estando atualmente matriculado no doutorado em História da USP. Escreveu e lançou pela Cepe o livro “À Francesa: a Belle Époque do Comer e do Beber no Recife”, sobre a história da influência francesa nos hábitos alimentares da sociedade recifense de início de século XX, e pelo qual recebeu o terceiro lugar na categoria Gastronomia do Prêmio Jabuti de Literatura. É escritor de ficção fantástica, com contos publicados na Revista Mensch, na Revista Somnium, na Revista Trasgo e no site O Recife Assombrado, além de histórias e roteiros de horror e ficção científica. Faz parte de uma nova geração de autores de ficção fantástica, uma área que conta com cada vez mais leitores e que desperta mais e mais interesse no Brasil e no mundo.

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A mensagem que poderia restituir-lhe o sossego não chegaria mais, apesar de as palavras do Outro terem lhe parecido carregadas de urgência e encantamento: lera o seu livro e havia ficado impressionado. Havia escrito então um breve comentário que, caso ele quisesse, poderia lhe enviar. Ele disse que sim, quase sem raciocinar. O Outro, sondando a origem da sua escrita, do seu delírio, das suas veredas, lançara miúdas pedras sobre as quais ele devia equilibrar-se. Indagações. Anzol arremessado o mais distante da margem. Sua alma, em espasmos de alegria, derramou-se então feito um rio invadido pela tromba d’água.

MEMÓRIA RUIM

A mensagem não chegaria mais. No instante em que apertou a tecla “enviar”, Felipe deu-se conta de que seu espasmo verbal havia fechado as portas para a resposta do Outro. Uma frase, dita daquela maneira, taxativa, querendo desnudar o ser com tanta franqueza, não deixaria vãos por onde o indagar alheio pudesse penetrar. Não havia como desdizer. Não havia como retroceder no tempo e consertar o aleijão. A ferida latejava exposta ao calor das três da tarde.

PARTE 1. O vírus da angústia instalou-se em seu sistema nervoso e deu início ao processo corrosivo de aniquilar a sua paz de espírito. Até uma semana atrás, estava sereno e imerso num lago de águas calmas, resignadas com os limites que as margens lhes impõem. Só uma leve brisa, vez ou outra, ondulava sua superfície. Nada, porém, capaz de agitar furiosamente seu âmago. Lá no fundo, a alma, líquida e intangível, repousava sem sobressaltos.

Sete dias, e só o silêncio abissal entre eles. O presente sufocante e infindável. A opressão da memória remoendo as palavras cobertas de pus.

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PARTE 2.

Não bastassem os satélites fotografando milimetricamente a Terra, as câmeras postadas em cada canto da cidade flagrando todo tipo de gesto, os microchips incrustados na pele delatando a localização do seu portador, os sensores de emoção revelando os desejos mais íntimos, havia Ísis, Ísis e seu poder de ler a mente humana.

A esposa o observava distante e irrequieto. Normalmente, era sossegado e carinhoso. Há dias, no entanto, a fonte secara: nenhum gesto de ternura escapava-lhe das mãos. Mantinha-se afastado e inacessível. Sabia que estava violando um acordo, pondo em risco a segurança deles, contudo, sem conseguir se conter, lia na mente do companheiro o turbilhão de imagens que o esmagava. Esse era o peso daquele dom: saber com absurda clareza tudo o que fervilhava na mente do ser amado. Saber, mas não poder fazer nada. Esse limite, essa fronteira que ela não podia cruzar, era a razão maior da sua angústia. — Espere mais um pouco, meu bem, antes de fazer qualquer coisa. Talvez ele esteja refazendo o texto. Deve ser um crítico meticuloso, e o que você disse o fez repensar o que havia escrito. Só não acho conveniente que você desdiga o que foi dito com franqueza. Aguarde mais um pouco e, caso ele não responda, esqueça tudo isso.

Para que a vida de ambos não se tornasse um inferno e a privacidade dele não fosse invadida inescrupulosamente, combinaram de que ela só acessaria sua mente após emitir um sinal preestabelecido. Mesmo assim, ele teria que concordar e ela jamais poderia agir como um hacker. Felipe sabia que era difícil para a esposa manter-se longe dos seus pensamentos, refreando a vontade de conhecê-los. Para ele, a mente era o refúgio onde podia sentir-se ainda senhor das suas vontades. Manter-se livre dos rastreadores de memória do Estado era uma habilidade que havia desenvolvido com muito esforço. Mas, para se safar do poder de ler a mente, desenvolvido por algumas pessoas, entre elas Ísis, não havia muito recurso. Só se podia contar mesmo com o temor que essas pessoas sentiam de ser descobertas e apagadas pelos agentes do Órgão de Controle das Atividades Mentais. A esposa, no entanto, esquecera-se desse risco no afã de apoiá-lo.

Se assustou ao ouvir as palavras de Ísis. Se não lhe havia falado nada, como tinha chegado à causa da sua inquietude? Só restava uma explicação: ela havia lido a sua mente. Havia rompido o acordado entre eles e entrara em sua mente sem lhe avisar.

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Ísis invadira a sua mente e fizera o download completo dos seus arquivos. — Me perdoe, querido — ela choramingou. — Vi você sofrendo desse jeito e não pude me conter. Felipe, como ela nunca havia visto, retrucou áspero, quase violento: — Sei o que você pensou no início: ah, ele deve estar envolvido com alguma vagabunda! Foi atrás dessa suspeita que você veio, e isso só expõe a sua fraqueza. Como posso confiar em você agora?

O tormento provocado pela espera da mensagem que jamais seria enviada inchara em sua cabeça a ponto de quase levá-lo à loucura. Tentava disfarçar, mostrar-se curado, senhor da sua mente. A verdade, entretanto, é que não tivera mais concentração alguma para sentar-se e escrever uma única linha do romance Os últimos cavalos pastam bem ali. Aridez total. O seu ser se mortificava naquele cenário de vazio e angústia. Era preciso livrar-se, o mais rápido possível, daquele vírus que devastava a sua alma.

Um dos filhos do casal, atraído pelo tom de voz exaltado do pai, apareceu no vão da porta da sala. A mãe mandou que ele voltasse para o quarto, mas a criança, contrariando-a, agarrou-se às pernas do pai e começou a chorar. A imagem, melodramática e pungente, arrefeceu a ira, e ambos abraçaram-se ao filho como náufragos tentando salvar-se na tempestade.

Uma última preocupação o havia assaltado nos últimos dias. E se as palavras do crítico tivessem sido interceptadas pelos agentes da censura? Provavelmente, ele estaria preso agora, pois a atividade crítica só podia ser exercida dentro do rígido controle dos órgãos do Estado. E aquele crítico lhe parecera bastante independente, mostrando-se interessado na descoberta de novas expressões literárias. Manifestara isso em relação a seu texto, vendo nele “uma expressão genuína de repúdio à nova realidade social que nos sufoca”. Com certeza, os agentes viriam à sua procura. E, juntos aos livros liberados pela censura, iriam descobrir os que ele escrevia e publicava clandestinamente, usando pseudônimos. Para complicar ainda mais, poderiam descobrir o poder mental de Ísis também.

PARTE 3. Ísis não podia saber o que ele estava planejando. A única saída era trancar-se durante horas e horas na biblioteca, como se estivesse trabalhando na criação de um novo livro, e traçar uma estratégia para se livrar do mal que lhe roubava o sossego.

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PARTE 4.

para a Zona Morta da cidade, como a haviam denominado nas altas esferas governamentais.

Aproveitou um momento em que a esposa não estava em casa e saiu em busca da cura para a enfermidade que o desassossegava.

Era ali que ele pretendia encontrar a solução para o seu caso, naquele mundo sombrio, entranhado no esquecimento, no abandono. Um mundo onde, quase num estado natural, podia-se desfrutar de uma liberdade absoluta. Ali os lúmpens, a escória, os renegados, os rebeldes, os poetas malditos, os cientistas descartados pelo sistema, os visionários, todos se refugiavam livres da perseguição dos olhos eletrônicos do Estado. Este, como era do conhecimento de todos, não tinha interesse algum de penetrar naquele universo decadente, autônomo, que primava pelo jogo do vale-tudo pela sobrevivência. As autoridades só tinham que se preocupar em manter toda essa gente lá, confinada, dando cabo de si mesma.

Andou mais de uma hora, sem saber aonde ir. Saía de uma avenida larga, movimentada, para se enveredar por ruas estreitas e desertas. Depois retornava à mesma avenida, misturando-se à multidão na calçada, mas, logo em seguida, sentindo-se sufocado, buscava as vielas, os becos, as praças ocupadas por jovens skatistas e alguns desocupados. Por fim, já cansado, resolveu parar e colocar as ideias em ordem. Aquela sua perambulação acabaria despertando a desconfiança dos guardas da ordem pública, o que só lhe traria problemas. Estava se perdendo de vez. A loucura, corrosiva e implacável, levava-o para longe de casa. Compreendeu, enfim, que só havia uma solução. Extrema, sem dúvida, porém a única capaz de restituir-lhe a tranquilidade. Sabia, contudo, que essa tranquilidade poderia significar, também, o vazio infinito, o fim do escritor Felipe Andrade e todos os seus pseudônimos.

Naquela parte podre da cidade, encontrava-se, no entanto, a pessoa capaz de arrancar-lhe da mente o vírus do desassossego, da ansiedade, da angústia causada pela espera infinita. Alguém que, contrariando as diretrizes do Estado totalitário, persistia no uso de algumas técnicas da medicina cuja aplicação devia obedecer às orientações das autoridades. Um amigo lhe falara, há menos de uma semana, da existência de um renegado da medicina oficial com uma habilidade

O seu andar a esmo era só uma forma de protelar essa tomada de decisão. Decidiu, enfim, dirigir-se 81


impressionante para deletar lembranças ruins. Essa técnica da medicina estava terminantemente proibida por uma Lei cuja penalidade era a execução sumária do seu infrator. Só ao aparelho higienizador do Estado cabia fazer uso dela, e todos sabiam muito bem com que finalidade.

Você pode fazer isso, não pode? Alguém me disse.... — Quem disse isso?!, ouviu a voz paranoica perguntar ainda mais rouca e trêmula. — Um amigo. — Nome! — Alberto. — Só isso, Alberto? Ninguém mais tem sobrenome nesse mundo nojento?!, gritou o sujeito, e pareceu prestes a encerrar a conversa. Felipe se apressou a responder. — Que diferença isso faz, meu caro, só os números interessam agora. Quer o número de identificação dele? Ouviu o outro responder que sim, justificando, ao mesmo tempo, que todas aquelas medidas de segurança tinham sua razão de ser, todo cuidado era pouco, pois bandidos e autoridades, mais bandidas ainda, queriam saquear tudo.

Felipe Andrade embrenhou-se nessas trevas sem receio algum. Esgueirou-se para o interior de um edifício decadente. Desceu a escada agarrando-se ao corrimão de tinta gasta e chegou ao subsolo. Uma lâmpada de luz trêmula permitiu-lhe divisar a porta de madeira carcomida e coberta de pichações. Do lado direito havia um vídeo porteiro, aparentemente em bom estado, o que era surpreendente em se tratando daquele submundo. Ali, energia elétrica e tecnologia em funcionamento eram um luxo. Apertou o botão do vídeo porteiro certo de que, ao final, teria que fazer uso do método ancestral de bater à porta com a junta dos dedos. Para sua surpresa, uma voz rouca e temerosa vazou pelos orifícios do aparelho. — O que você deseja?, indagou a voz medrosa. — Preciso do seu serviço... — Felipe balbuciou —, estou com um problema.... — Que tipo de problema?, o outro indagou, cheio de pressa e medo. — Uma ideia infernal me atormenta há dias, preciso arrancá-la.

PARTE 5. Lá dentro, naquilo que o renegado chamaria de consultório médico ou ambiente de trabalho, viu apenas dois sofás detonados pelo uso e uma mesinha de centro, das antigas, em cujo tampo de vidro destacava-se um cinzeiro abarrotado de tocos de cigarro. De nada havia adiantado o esforço das autoridades para 82


banir o tabagismo do nosso mundo, Felipe pensou, enquanto tentava respirar com naturalidade. A necessidade de se ter algo que aplaque a ansiedade e a angústia é mais forte que as Leis. Sempre foi assim, e não mudará nunca. Nem neste submundo, corroído pela decadência, nem no mundo higienizado onde a gente cordata vive sob a tutela do Estado. Prova disso é que, apesar de toda a repressão, de todos os slogans, ei-lo aí, o velho e bom cigarro, impregnando tudo com o cheiro nauseante de nicotina. Para ilustrar as divagações de Felipe, o médico, sentando-se à sua frente, acendeu um cigarro e soltou uma baforada na direção do teto. O forte odor de mofo tornava aquele ambiente mais sinistro e irrespirável. Está de acordo com o que acontece aqui, pensou consigo e olhou para a cara macilenta do médico. Estranho seria encontrar um ambiente de luxo neste buraco. Depois de umas duas baforadas, o médico perguntou a Felipe: — Então é isso que você quer? Você sabe, o processo é irreversível. A pergunta o desconcertou. Por um momento, viu-se diante de uma encruzilhada. Embora tivesse saído de casa com o nítido propósito de esvaziar a mente, já não estava tão seguro agora, mesmo porque 83


aquele ambiente não lhe transmitia segurança. Buscou na extensão da sala algum instrumento que mostrasse com clareza que aquele local era destinado a aliviar a mente das pessoas atacada pelo suplício das más lembranças. Não havia nada: nem computador, nem estufa, nem balão de oxigênio, menos ainda as famosas máquinas rastreadoras de imagens mentais. E onde estava a maca em que deveria se deitar para que a operação fosse realizada?

A voz do outro parecia segura do que estava dizendo. Mostrava-se bem profissional. Mas havia o risco, sempre havia nesse tipo de situação. Há muito tempo as mulheres abortavam assim, em situação precária, sem nenhum conforto, colocando a própria vida em risco. Até que o Estado resolveu, rompendo a aliança com a Igreja, tomar para si a responsabilidade de evitar as gravidezes indesejadas. Claro, queriam ter em mãos mais um instrumento de controle social. Agora ditavam, inclusive, como na velha China comunista, o número de filhos que cada casal poderia ter.

O homem parece ter percebido a insegurança de Felipe e procurou acalmá-lo. — O processo, do ponto de vista técnico, é bastante simples. É claro que me falta o instrumental sofisticado que o sistema possui. As tais máquinas de precisão, os robôs capazes de acertar cem por cento das operações. Meu instrumental é até rudimentar, se pensarmos desse ponto de vista, mas posso lhe garantir que não tem falhado.

Felipe procurou reencontrar a certeza de antes, a mesma que o havia levado até ali. Embora o sujeito sentado à sua frente fosse um renegado, alguém que o sistema cuspira para fora das suas engrenagens, exatamente por ele querer manter uma autonomia impensada naqueles tempos, era, sem dúvida, um especialista em deletar memórias ruins. — Sim, 84


tenho certeza. É isso que eu quero — e comprimiu a cabeça para mostrar que não podia mais conviver com aquela memória doente, opressiva. — Tenho dinheiro suficiente para pagar pelo serviço.

sa: será como se estivesse nascendo a partir de agora. A imagem de Ísis, na companhia dos filhos, Clarice e Gregor, passou diante dos seus olhos. Se tudo se apagasse em sua mente, não os reconheceria mais. Não encontraria, nem mesmo, o caminho de volta para casa. Seria um outro a partir daquele momento. Livre do vírus que arruinava sua memória. Livre das palavras que não deveria ter dito. Livre da esperança de que o Outro, um belo dia, diante do computador, decidiria, enfim, apertar a tecla “enviar”. Livre, mas transformado numa página em branco. Talvez não conseguisse escrever nem mais uma linha sequer. E o romance iniciado há um mês? Os cavalos, no momento, descansavam à sombra de um cinamomo. Sentiu vontade de chorar, copiosamente. O que o especialista lhe propunha era o risco, a aventura, o incerto. Mas era aquilo ou a loucura. — E então, o que decidiu?, perguntou-lhe o médico já impaciente. Felipe fechou os olhos, ficou ainda alguns segundos assim, como se refletisse, como se estivesse tentando reter uma imagem muito querida, de alguém ou de algum lugar, e então disse que sim, que estava pronto.

O especialista fez um gesto de reprovação, querendo deixar claro que sua meta não era o lucro, que fazia aquilo por amor ao próximo, que era por isso que se arriscava a ser preso e condenado ao desterro num planeta fora do nosso sistema solar. Em seguida, porém, sem vacilar, estendeu a mão e pegou o dinheiro que o paciente lhe estendia. — Então, que seja feita a sua vontade, — concluiu em tom falsamente melancólico. — Mas preciso te alertar de uma coisa antes de começar o processo. Assumiu, então, um ar sério de profissional que zela pela integridade do seu trabalho. — O que é?, Felipe lhe perguntou, sem conseguir esconder a preocupação e a ansiedade. O médico deu uma baforada, em seguida esmagou o toco de cigarro no cinzeiro, derramando cinza e guimbas sobre o vidro da mesinha de centro. Curvou-se em direção a ele e tentou lhe explicar com clareza. — Se algo der errado, porque às vezes acontece de dar errado, não sou infalível, sou humano, só esses malditos robôs têm a precisão milimétrica... Bom, é isso, algo pode dar errado, e se der errado, toda a sua memória vai pro beleléu. Entendeu? Tudo será apagado. C’est fini. Pen-

O especialista em deletar memórias ruins abriu uma maleta que estivera o tempo todo ao seu lado, mas que só agora Felipe havia notado, e tirou de lá as 85


ferramentas de trabalho. Fixou dois eletrodos à testa do paciente, conectou-os a uma pequena máquina e clicou duas teclas. Simples assim: dois cliques, e ele sentiu a memória ser sugada para fora, violentamente. Não chegou a sentir dor, apenas o efeito de um clarão tão forte, tão intenso, que era como se um sol tivesse sido aceso no oco da sua cabeça naquele exato instante.

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Sobre Geraldo Lima Geraldo Lima é escritor, dramaturgo e roteirista. Mora em Brasília. Publicou alguns livros, entre eles UM (romance, LGE Editora), BAQUE (contos, LGE Editora) e TESSELÁRIO (minicontos, Selo 3 x 4, Ed. Multifoco). Participou de algumas antologias, como Antologia do conto brasiliense (org. por Ronaldo Cagiano, Projecto Editorial) e Todos os portais: realidades expandidas, (org. por Nelson de Oliveira, Terracota). Tem textos publicados em jornais, revistas e blogs. Publica também no blog: BAQUE.

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Izara espalmou a mão contra a testa, amaldiçoando sua burrice. Tantos anos trabalhando naquele projeto, e ia se esquecer logo do detalhe mais óbvio: baterias eram fontes de energia finitas. Miarana era uma boa amiga. Dizia as coisas certas, calava-se nos momentos ideais. Era criativa, e entendia as piores inquietações de Izara melhor que a própria. Entretanto, não era bem a morte de Miarana que entristecia Izara. Era a morte de seus sonhos, de seu projeto mais importante, de sua possibilidade de viver para ver o mundo chegar ao seu auge tecnológico.

INTANGÍVEL

Naquela manhã, Izara chorou porque, no fim, sua tentativa de ser eterna — e de trazer a eternidade ao mundo — havia falhado.

Foi repentino. Num instante ela estava de pé, sorridente, falando sobre como seu novo invento tinha sido elogiado na Feira de Inovações de Novacidade. No outro estava morta. Simplesmente apagou, como se sua bateria tivesse terminado, e despencou sem vida sobre o piso de madeira da oficina de Izara.

* O bar de Zarima estava lotado e barulhento naquela noite. Não que não o fosse em todas as demais, conforme atestado pelas mesas de madeira polida, as cadeiras estofadas em veludo e o balcão de mogno que separava os clientes embriagados das frágeis garrafas que guardavam as fórmulas coloridas que eram um sucesso tanto entre os moradores de Novacidade quanto entre os forasteiros.

Ela correu até a amiga e ajoelhou-se ao lado de seu corpo inerte. Checou seus sinais vitais: um coração de metal desligado, respiração inexistente. Sem bateria, realmente.

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Mas, naquela noite, estava especialmente cheio, e a multidão, particularmente animada. Composta principalmente de colegas inventores satisfeitos com seu desempenho na Feira de Inventos e empresários que desfilavam em seus ternos e vestidos elegantes em busca de engenhocas que continuassem a bancar suas vidas cheias de luxo.

que normalmente preenchia o elegante bar de Zarima, explicou sobre a falha de seu projeto e da morte de Miarana. Quando pôs fim ao relato, apagando as últimas palavras amarguradas com grandes goles da bebida azul, os olhos de Enyon estavam esbugalhados. — Uma bateria. Precisamos de uma bateria — ele murmurou; parecia ainda mais atordoado que a própria Izara.

Muitos já estavam mais do que bêbados, seguros de que poderiam arcar com uma noite de bebedeira interminável e ainda acordar com os bolsos cheios de dinheiro no dia seguinte, mas vários ergueram suas taças em um cumprimento a Izara.

O silêncio os envolveu, e estava tão pesado que parecia isolá-los de conversas, risos e música. Na mesa ao lado, um grupo de inventores particularmente animados brindava pelo futuro, mas a Izara o som das taças se chocando se parecia com o barulho que seus sonhos fariam se pudessem se estilhaçar como cristal. Ela não viveria para o futuro.

Ela ignorou todos eles, desejando fortemente ter algo que comemorar, e contornou a multidão habilmente, indo se sentar diante de Enyon. Os olhos do médico a analisaram por trás das lentes de aros metálicos.

Terminaram as bebidas em silêncio e o atendente lhes trouxe outra; as novas bebidas já estavam no fim quando Enyon voltou a falar:

— Você está um lixo — foi o veredicto. Izara suspirou e tomou mais um gole de seu drinque.

— Sei de uma pessoa que tem baterias infinitas. Ele não apresentou nada na Feira, mas falou sem parar disso.

— Sou uma fracassada — resmungou.

— Quem?

E, tentando se fazer ouvir em meio à balbúrdia 89


— Emarazzo Azitelli. Não entendi muito bem o que ele falou, era um negócio doido. Tão doido quanto esse seu coração de metal que dá (que deveria dar) vida eterna. Alguma coisa como a própria bateria se recarregar.

Os demais inventos de Izara não eram lá tão ruins. Sua serra delicada de motor silencioso, por exemplo, serviu muito bem para inutilizar as trancas da janela, assim como o anulador, com um único botão, foi eficiente em desarmar todas as engenhocas que protegiam a casa simplesmente cortando o fornecimento elétrico para a região.

— Interessante — disse Izara. No fundo, não acreditava. Conhecia o sujeito: era um maluco. Parte de sua mente, porém, trabalhava em um plano de invasão. A esperança, esta sim parecia nunca morrer.

A lua e o vento noturno testemunharam seu sorriso. O coração metálico de Miarana não funcionava sem energia, mas os inventos do tal Emarazzo também não. Estavam todos no mesmo barco, afinal.

Uma faísca luminosa interrompeu suas divagações e ela largou a taça, assustada. Agitou os dedos, procurando dissipar o calor da pequena queimadura em seu dedo. O refrigerador portátil acoplado à base de sua taça tinha dado um curto.

Isso não tornava a oficina do sujeito menos interessante. Era ampla e arejada, com piso de madeira e paredes claras. Além da janela pela qual Izara havia entrado, havia mais duas, todas altas e estreitas, mas ainda assim eficientes em fornecer a luz na abundância adequada. Mesmo à noite e com todas as luzes elétricas dos arredores apagadas, a luz do luar se derramava sobre as bancadas e prateleiras, revelando uma bagunça organizada que dizia que aquele espaço era usado e amado.

— Céus, que desastre! — exclamou Enyon. Um desastre, mesmo, Izara concordou em silêncio, Não bastasse tudo o que passei, sequer posso mais desfrutar de uma bebida gelada.

Por alguns instantes, ela esqueceu o que viera fazer ali. Esqueceu Miarana e seu coração de metal, esque-

* 90


ceu até mesmo a angústia que apertava seu peito. Emarazzo era louco, sim, mas um louco produtivo — e genial. Tinha os olhos no futuro: isso era evidente na circunferência das engrenagens, nos ângulos das alavancas, na força das roldanas. Todos os ângulos, curvas e quinas pareciam sussurrar progresso.

ali a solução dos seus problemas, o fim dos pesadelos que a assolavam toda noite? — Estive na Feira de Inventos do ano passado — a voz sobressaltou Izara e fez com que ela se virasse para o homem que tão sorrateiramente se pusera atrás dela —, e vi com meus próprios olhos o seu aniquilador. Belíssima ideia, eu pensei. Fiquei até com inveja: queria ter pensado nisso. Na verdade, fiquei tão doído que chorei por três noites seguidas. Depois, segui em frente. Não posso ficar tão dependente desse recurso que ilumina nossas noites e faz nossos inventos girarem. Tinha que encontrar uma coisa que não fosse afetada pelo seu aniquilador.

Talvez por isso Emarazzo estivesse trabalhando em uma bateria capaz de perdurar por toda a eternidade. Talvez o mesmo medo habitasse seu coração feito de células e sangue, o mesmo pesadelo visitasse sua mente nas madrugadas. Ali havia futuro e progresso, mas eram apenas projetos, sombras de um futuro trazidas pela mente de um inventor que nunca chegaria a vivê-lo.

— Ah… — foi tudo o que saiu dos lábios de Izara.

Falando na bateria, lá estava ela. Repousava sobre uma das bancadas em meio a vários outros dispositivos, como se não fosse nada de mais. Não parecia muito diferente de qualquer outra bateria que Izara tivesse visto ou produzido.

O sorriso de Emarazzo parecia querer oferecer conforto. — É, agora você entende o que eu senti, não é? Mas não a culpo: você não tinha como saber. Você é tão hábil como criminosa quanto como inventora, e isto é um senhor elogio, se é que você é do tipo que se orgulha de ser capaz de invadir casas alheias.

Mas o que importava era o que ela representava. E essa ideia, como um imã, fez Izara se aproximar com passos lentos, quase reverentes, e parar diante da bancada, os olhos fixos no objeto de desejo.

O homem fez uma pausa e deu um passo à frente, seus olhos agora sobre a bateria. Ele não parecia um

Diante dele, a dúvida surgiu mais uma vez. Estaria 91


louco. Não falava como um, definitivamente — embora Izara nunca tivesse conversado com um louco. — Também estive na Feira desse ano, e confesso que senti sua falta. Fiquei sabendo que você andou trabalhando em um coração de metal que devia ser capaz de dar vida eterna àqueles que fossem corajosos o suficiente para substituir seu próprio coração por ele. Um projeto intrincado, trabalhoso. Impressionante, de fato. Mas estou decepcionado, Izara. Por que travar uma batalha logo contra ela, que leva a todos sem distinção? Izara franziu o cenho. Ele era louco, sim. — E por que não travar? — Por que ele não via o que era óbvio? Mas ela não podia criticar, tampouco: naquela mesma manhã fora vencida por uma bateria. — Olhe para nós! A eletricidade ilumina nossas noites, os veículos nos levam de um lado a outro sem precisar da força dos animais, podemos 92


gelar nossas bebidas sem deixá-las aguadas com as pedras de gelo. Nunca estivemos tão perto do futuro, mas também nunca estivemos tão longe de torná-lo nosso presente. Somos meros mortais, capazes de construir máquinas impressionantes, mas ainda assim tão fracos a ponto de sucumbirem ao fio de uma faca. E, se morrermos, para onde vão as ideias que não tivermos tempo de concretizar no espaço de uma vida?

o que imagino ser o maior projeto de minha vida. É isso que você devia ter aprendido quando sua amiga caiu morta nesta manhã (sim, soube disto também). — Belas palavras, as suas. Quase tão bonitas quanto tudo isso o que tem aqui. Mas você é um covarde. Emarazzo deu um passo para trás, pela primeira vez naquela noite aparentando insegurança. E devia mesmo. Quem pensava que era para desistir daquela maneira do maior projeto de sua vida? Só podia ser mesmo um louco.

Emarazzo se manteve em silêncio. Era a vez dele de ficar sem palavras. Mas era um homem inteligente (e louco, Izara estava cada vez mais convencida), por isso não tardou a encontrar uma resposta:

Despejou uma série de impropérios sobre o desgraçado e não saiu da oficina antes de lhe gritar que nunca mais ousasse se aproximar dela. Quando chegou à rua, desatou a correr, sem nem mesmo se importar em devolver às luzes ao bairro escurecido, e não parou até que estivesse na segurança familiar de sua própria oficina.

— A eternidade é como uma sombra. Nós entendemos o conceito, podemos explicá-lo a outros, podemos admirá-lo. Mas, tal qual uma sombra, não podemos tocá-la. Conseguimos até mesmo encostar o dedo na superfície em que se projeta, mas tocá-la de fato? Não podemos. — Meneou a cabeça na direção da bateria que deveria fornecer energia eternamente. — Foi isso que aprendi enquanto tentava, sem sucesso, concluir

Ali, de joelhos entre todas as ideias que trouxera ao mundo, tomou sua decisão. Uma bateria roubada não daria ao seu invento o glamour necessário. Ela era boa demais para roubar ideias. Construiria sua própria bateria eterna. E enquanto não fosse capaz de concebê-la, tinha 93


uma solução paliativa para sua invenção funcionar. Tivera o estalo quando as palavras de Emarazzo lhe voltaram à mente: Não posso ficar tão dependente desse recurso que ilumina nossas noites e faz nossos inventos girarem. Não era uma boa ideia, de fato, mas teria de servir. Seria, além disso, constrangedor ter de se plugar a uma tomada em público. Mas pelo menos seria eterna. Ou ao menos tão eterna quanto alguém com coração de metal e bateria recarregável poderia ser. A esperança era a única que nunca morria.

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Sobre Laís Manfrini Comecei a me dedicar à escrita em 2007 e desde então nunca mais parei. Tenho publicados os contos A Ladra que Roubava Ladrões, que concorreu ao Brasil em Prosa, e O que eu faria se tivesse uma máquina do tempo?, disponível na antologia Trópicos Fantásticos, a qual também organizei.

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tros horas para resfriar, ensinava. Márcio chacoalhava com os leves solavancos que os vagões davam, quando avistou ao longe uma bola de fogo, que vinha da linha do horizonte e crescia em tamanho. Não tinha som discernível, apenas aquele objeto que se avolumava e parecia vir em direção ao trem. Olhou para os lados. Ninguém tinha percebido. Olhou novamente e a viu passar sobre o vagão. Se virou rapidamente. Viu a bola cair ao longe e levantar um cogumelo de fumaça branca. Mirou novamente o horizonte. Mais bolas de fogo caiam. O trem seguia seu curso sobre a linha elevada. E a cada bola que caía, novos cogumelos de fumaça e torres de fogo se erguiam. Seu filho Gustavo ainda estava na escola.

CADÊ AS CRIANÇAS?

Márcio estava de pé no vagão de trem lotado. Fitava o horizonte, onde o sol se punha. Todos estavam calados, exaustos depois do dia de trabalho. Cabisbaixos, deveriam estar pensando nos seus problemas, nos seus afazeres. Ele repassava mentalmente as instruções que recebera para a operação da nova máquina de processamento de frutas, cujo desempenho economizava o trabalho de vinte mãos, pelo menos. Era o que dizia orgulhoso o engenheiro que a projetou e estava treinando os funcionários da fábrica. Onde antes trabalhavam vinte, dizia, agora trabalha um. Basta que se alimente a máquina constantemente, se assegure de que ela seja lubrificada, e tenha pausas de trinta minutos a cada vinte e qua-

– Caramba! – uma interjeição sussurrada escapou da sua boca. Todos pareciam anestesiados com o que viam. A sua palavra foi o catalisador. Muitas mulheres começaram a gritar em desespero, pedindo que o trem parasse. Uma voz soou no alto-falante, pedia que todos ficassem calmos, que... não conseguiu terminar o aviso. A luz se acabou e o trem parou. Tudo escureceu. As luzes, que tinham começado a se acender pela cidade toda há alguns minutos, pagaram como se alguém tivesse desligado o contador da cidade. Es96


tavam sobre os trilhos. Abaixo os carros buzinavam. A próxima estação ficava pelo menos três quilômetros dali em cada uma das direções.

obter resposta de ninguém. Gustavo. A escola, o apartamento. Cérebro. Como compraria ração para o hamster do filho? Tinha coisas mais importantes pra pensar agora. As causas era um problema da administração central. Não tinha nada que ele pudesse fazer.

– Vamos abrir a janela de emergência – alguém sugeriu.

Vários helicópteros militares cruzaram o céu. Pelo menos foi o que lhe pareceu. Deviam ser militares: eram de cor verde-oliva e partiam em direção à fumaça. Em seguida as sirenes de viaturas diversas, policiais, bombeiros e ambulâncias, se sobrepuseram aos outros barulhos da noite, agora plena. As buzinas prosseguiam. De dentro dos seus carros, ninguém deve ter ouvido nada, ou visto. As pessoas estavam calmas, apesar da impaciência. Apenas queriam ir para casa. Márcio também queria ir para casa logo. Queria tomar um banho, assistir o jogo de futebol digital, jantar com o filho, colocá-lo na cama e ir dormir. Como fazem toda noite. A vida era tão boa e simples assim, não precisava mudar. Mudar nunca é bom.

Do lado de fora, todos os passageiros contemplavam as torres de fogo e fumaça. As bombas, ou o que quer que tinha sido aquilo, tinham cessado. Quem tinha telefone portátil conferiu o sinal: nulo. Márcio olhou para o horizonte e viu os últimos raios de sol se esconderem. Precisava buscar o Gustavo. Olhou o relógio. Faltavam cinco minutos para as seis horas. A escola ficava a quatro estações de onde ele estava. Era meia-hora de caminhada, pelo menos. Descendo até a avenida, talvez conseguisse pegar um ônibus. Abaixo de si. Os carros continuavam buzinando. “Vamos para a próxima estação”, alguém sugeriu. E todos partiram caminhando. As mulheres soavam mais calmas agora. Muitas ainda choravam. “Meu filho!”, “Meu marido!”, “Minha filha!”, ele ouvia as palavras pipocarem atrás de si, ou à sua frente. “Estamos sendo atacados?”, alguém se perguntou, um pouco atrás. “A Federação Industrial não ousaria”, outro respondeu. “Teriam atingido as torres ou os satélites?”, Márcio ouviu alguém perguntar alto atrás de si sem

Chegavam à estação. Frágeis luzes de emergência indicavam as escadas. Seguranças com lanternas direcionavam os cidadãos, que se aglomeravam. O trem estava lotado naquele horário, e a pequena multidão desceu as escadas formando uma massa humana que se dissipou ao alcançar a rua. Os semáforos estavam 97


apagados e não tinha guardas nas esquinas para organizar o trânsito. Devem estar todos envolvidos com os incêndios, calculou Márcio. Mesmo assim, os guardas municipais deveriam estar pela cidade. Não estavam. A coisa toda devia ser muito grave então, raciocinou o nosso personagem.

rios na avenida, mas não adiantaria também. Pra um taxista ficar preso em um engarrafamento deve ser angustiante, imaginava. As buzinas continuavam soando. E soavam irritantes. Teimosas. Puxa vida! Eles poderiam parar por uns cinco minutos que fosse. Márcio dava passadas largas. Agora sentia o suor escorrendo por dentro da camisa. Era outono. Nessa época os dias eram quentes e as noites frescas, senão frias. O ar gelava a ponta do seu nariz. Precisava andar mais rápido. Sua coxa latejava e logo seu pé começou a doer. De quem tinha sido a ideia de obrigar os funcionários a usarem sapatos? Sapatos, caramba! Sapatos! Em que século estavam? Vinte anos que ninguém mais usava sapatos! Como ele, várias pessoas também caminhavam na mesma direção. Como ele, elas iam do centro para os bairros residenciais. Fazia anos ninguém mais morava no centro ou nos bairros industriais. Depois da Lei Nacional de Zoneamento Urbano Racional as pessoas precisavam se deslocar de um lado a outro da cidade para trabalhar. Devia marcar logo a consulta com um ortopedista ou algo assim. Vinha fazendo os exercícios laborais que o técnico em medicina do trabalho da Fruit Co. recomendara. Duas vezes ao dia, sempre que fa-

Tinha um ponto de ônibus do outro lado da rua. Márcio passou pelo labirinto de carros. De pescoço esticado as pessoas procuravam o letreiro do ônibus ao longe. Devia estar a pelo menos uns cem metros dali. Ele não conseguiu dizer o que estava escrito nele. São vinte minutos de caminhada até a escola. A fila de carros andava e parava. Andava e parava. Não. melhor ir caminhando. Até o ônibus chegar ali ele já estaria muito adiante, quase chegando ao seu destino. Mas vai que poucas quadras depois o trânsito esteja livre? Bom. Não era o que parecia. Não devia estar livre. Devia estar tudo trancado. Foi bom ter vendido o carro pra comprar o apartamento. Gustavo estaria bem? Sim. Claro que tá bem. O colégio é bom. O melhor colégio público da cidade. Como ele, os outros pais também estavam a caminho. E os professores ficavam com os alunos até seis e meia, por segurança, para não deixar os alunos sozinhos com os monitores, estagiários ainda pouco experientes no cuidado de crianças. Podia pegar um táxi, avistou vá98


zia a pausa de dez minutos para ir ao banheiro, tomar um copo de água e esticar os ossos. Resolvera as dores nas costas e nos pulsos, mas apenas amenizara as dores nas pernas. Suas varizes pareciam ter vida própria, como se se mexessem dentro dos músculos e ao redor do seu fêmur. Gustavo queria tanto ver o jogo de hoje à noite. A luz poderia voltar. Mas e se a estação de luz estivesse em chamas? Quanto tempo levaria para ser consertada? Devia correr. Não vai dar, conclui, depois de forçar levemente a perna, como se acertasse a passada.

cano de vôlei. Provavelmente o jogo seria adiado, já que a cidade estava sem luz. Sem falar no campeonato mundial de futebol digital. A maioria das lojas estava já fechada. As últimas, fechando. Padarias e lanchonetes ainda teimavam em continuar abertas. Torciam para que a luz voltasse talvez. Ninguém teria visto as bolas de fogo? Viram, claro. Toda essa gente na rua, como ele, andando de um lugar a outro. Os carros apressados na sua lentidão. A administração central deveria estar resolvendo, alguém disse. Com certeza, respondeu outro. É o que eles fazem, resolvem problemas. Um asteroide. Sim. Chuva de asteroides. Não havia outra explicação racional. As rádios estão fora do ar, um terceiro gritou. Continua tentando aí, um comerciante na porta do seu estabelecimento gritou para dentro. Não é possível! Justo hoje! Justo hoje, concordou mentalmente Márcio. Justo naquela hora...

Não, se começar a correr é bem capaz de todo mundo querer também. Mas foi só ele pensar nisso que notou do outro lado da rua dois jovens correndo, e atrás deles um grupo de três ou quatro pessoas que gritavam pega, pega, ladrão, pega, mata. Escutou um tiro. Um dos guris cai, outro tiro, outro guri cai. Vivas ecoam. Aplausos. As buzinas fizeram coro. Caramba! Anos que não via algo assim, desde que tinham proibido policiais e civis de portarem armas de fogo. Pensou em parar. Melhor não, Gustavo devia estar esperando. Ele estava esperando tanto por aquele jogo - o time da cidade estava nas oitavas-de-final do campeonato sul-ameri-

Pelo menos os carros iluminavam as ruas. Como seria sem eles? Chegou a uma esquina. Os carros se entrelaçaram de uma forma que será muito difícil se organizarem sozinhos, sem a ajuda especializada de algum guarda de trânsito. As buzinas prosseguiam. Mãos de motoristas para fora das janelas gesticulavam. O de trás pedindo que o da frente saísse do 99


caminho, mas o da frente não podia sair porque tinha outro que também estava na sua frente, que estava impedido por outro carro atravessado do seu caminho que ia em sentido contrário, que estava bloqueado por um carro atravessado à sua frente, também impedido de prosseguir porque um carro estava na sua frente e não se movia. No futuro as pessoas não poderão ter carros. Não dará certo cada um com seu automóvel. Se ele fosse presidente do governo era isso que iria propor ao parlamento: chega de carros; vamos investir em ônibus, trens e bicicletas; motos, talvez. Fungou o riso. Quem ele achava que era? Mal conseguia chegar no colégio do filho. Os pés inchados latejavam dentro do sapato. Gustavo devia estar preocupado com pai. A três quadras da escola. Sim. Mais três quadras. Na próxima a rua se tornava secundária, e ficaria distante das buzinas e gritos. Na esquina à frente conseguia visualizar a fila de carros que se formava para entrar na via principal. Alguns conseguiam sair e tomar vias secundárias, mas para apenas voltar a cair depois em uma via principal engarrafada. Não tinha saída, aparentemente. A cidade havia sido projetada para que todas as vias secundárias caíssem em vias principais. Era um labirinto com apenas uma saída e muitas entradas.

Se aproximando da escola as buzinas soavam como um zumbido distante. As sirenes evaporavam, conforme iam ficando distantes, para logo ressurgirem, agudas, ao se aproximarem. Os helicópteros eram pássaros que perderam a direção para o sul e ficavam andando de leste a oeste. As ruas por ali estavam calmas. Um grupo de pais estava no portão principal. Tudo estava às escuras. O grupo discutia. Quebra! Meu filho! Invade! Derruba! Chama a polícia! Sequestraram meu filho! “Sumiram com nossos filhos, pra onde esses putos foram?”, um pai. “Vamos ligar pra polícia!”, outro sugeriu. Os celulares ainda estavam mudos. “Sem sinal de internet” também, um pai com uma tabuleta eletrônica avisou. “Vamos derrubar!”, entoaram em coro. Juntos, um pequeno grupo começou a forçar o portão de ferro cadeado. Logo as barras que o ligavam aos pilares de concreto começaram a trabalhar, trincando o cimento, e em poucos minutos o alto portão verde veio abaixo com um grande estrondo e uma salva de palmas. Entraram. Alguns estavam com lanternas. Procuravam algum aviso na porta principal. Nada. Ela cedeu

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com poucos chutes. Para Márcio era improvável que as crianças estivessem lá dentro, já que tudo parecia deserto. Não tinha sinal de vida ali, e se estivessem mesmo não teria porque estarem trancados pelo lado de dentro. Pra onde teriam ido? Poderiam ter deixado algum aviso. A menos que tivessem levado as crianças justamente com o objetivo de não deixar rastro. Pensando bem, não tinha visto nenhuma criança na rua – desde a Lei Nacional da Infância Produtiva, as crianças passavam o dia todo na escola, dos dois aos dezoito anos. Que horas deveria ter acontecido aquilo? Márcio relutou em entrar. Esperou que a maioria fosse e iluminasse o caminho. A fraca luz dos sinalizadores de emergência proporcionava alguma luz aos corredores. Não tinha ninguém ali. Pais e mães gritavam o nome dos filhos. Pra que faziam aquilo? Vamos olhar no ginásio, sugeriram. No auditório, outro falou. Alguém já viu o pátio, um terceiro quis saber. Márcio viu os pais se espalharem pelos corredores, enquanto ele caminhava devagar. Os pés doíam ainda. A perna latejara tanto que parecia ter parado de doer, anestesiada. De volta à frente do colégio. Os pais conferenciam. Para onde teriam levado as crianças? Poderiam perguntar na vizinhança. Deveriam ter avisado os pais se

estavam planejando levar as crianças para outro lugar, para protegê-las do que quer que estivesse acontecendo. Mesmo depois do fim das liberdades individuais, jamais filhos tinham sido tirados dos seus pais depois que a eles eram designados no primeiro ano de vida, a menos que a criança estivesse sofrendo maus-tratos. Mas casos como esses tinham virado lendas depois do desenvolvimento do implante cerebral tranquilizador. As crianças com tendências violentas eram retiradas dos pais já nos primeiros anos de vida, quando o gene do comportamento destoante era identificado, e enviadas a um centro de cuidados especiais, onde ficariam sob cuidados de especialistas até derem desenvolvido maturidade cerebral para o implante. A delegacia mais próxima, alguém sugeriu. Deveriam ter informações. Uma mulher que morava por ali disse que a delegacia regional tinha sido fechada e que a mais próxima só no bairro novo, pelo menos uns sete quilômetros adiante. Alguns pais estavam de carro e iriam para lá. Os outros afirmaram que iriam para

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casa esperar por notícias. Márcio não sabia o que fazer. Esperar notícias de quem, por onde, já que os telefones estavam mudos? Quem sabe Gustavo já estivesse lá, mas se eles tinham mesmo sido levados por alguém do governo, talvez estivessem em algum abrigo e não em casa. Ele já ia saindo, vendo os pais se dispersando, meio ainda incerto da decisão que tinha acabado de tomar, cogitando pegar a bicicleta e ir até a delegacia, quem sabe lá tivessem mais informações. Deu meia dúzia de passos quando um chiado nos alto-falantes chamou a atenção de todos. Aquelas caixas não eram utilizadas desde as primeiras rebeliões federativas nos anos dois mil e trinta. Uma voz feminina se identificou como falando em nome da administração central. Pediu calma aos moradores da cidade, tudo estava sob controle. As autoridades estavam cuidando do fogo que tinha atingido as estações de energia e comunicação, tudo voltaria a funcionar assim que possível. Todos pararam para ouvir. Carros pararam de circular, e de cabeça para fora, motoristas atentos escutavam a mensagem. – Vocês devem estar preocupados com as crianças. Não fiquem. Elas foram confiscadas para o bem-estar delas e de todos os cidadãos. Serão devolvidas aos cuidadores assim que a situação volte ao normal. Todos devem ir para suas casas e aguardar novas instruções. “Que bom”, Márcio ouviu alguém exclamar. “A administração central sabe o que faz”, a mulher concluiu e segui caminhando. Márcio fez o mesmo. Será que passariam o jogo para as crianças? Gustavo ficaria muito triste se o perdesse.

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Sobre Luisandro Mendes de Souza Natural de São Miguel do Oeste (SC), atualmente mora em Porto Alegre (RS). É doutor em Linguística e professor universitário. Escreve ocasionalmente no blog luisandromendes. wordpress.com sobre o que lhe der na telha. Possui alguns textos publicados no site widbook.com/profile/luisandro. Participou da Oficina de Criação Literária do escritor Luiz Antônio de Assis Brasil e da coletânea de contos Melhor não abrir essa gaveta, organizada por ele e publicada pelo Terceiro Selo em 2014. Em 2016 publicará seu primeiro livro de contos, O primeiro cigarro, que será lançado pela editora e-galáxia em formato digital.

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tra. Banho? De vez em quando, a cada 4 ou 5 dias, geralmente. Até mesmo ao vaso permanece conectado; inclusive, acabara de instalar um roteador extra dentro do lavabo para não ter problemas ao compartilhar momentos únicos e desinteressantes.

PROFECIAS VIRTUAIS

Jovem e dependente. Não consegue se livrar de um vício solitário que consume lentamente o tempo de sua vida; um vício que ele mesmo não reconheceria então como parte íntima de sua rotina diária. Tablet ou celular, na ocasião de estar fora de casa; em domicílio, onde passa a maior parte do tempo, nem são cabíveis maiores descrições acerca de sua fixação. Simplesmente permanece o tempo todo na frente da tela iterativa e reluzente de seu notebook de última geração. Não abre mão da conectividade dos modernos dispositivos eletrônicos nem mesmo durante as refeições; dá um jeito, come com o prato no colo ao mesmo tempo em que clica entre uma garfada e ou-

Seus pais, preocupados, sabem que passa muito tempo ligado à internet, mas nada fazem para mudar aquela situação, já que o jovem se torna extremamente agressivo quando questionado sobre esse assunto em particular. No mais, pensam: “o que poderia acontecer de mal a ele? O futuro chegou. Hoje todos devem navegar e dominar o mundo virtual. Se ele fica muito tempo plugado na internet, bem, se é isso que ele gosta de fazer, talvez possa lhe trazer alguma vantagem na vida, não?”. Talvez… De fato, desenvolve várias atividades na rede de maneira astuta. Interage com pessoas dos mais variados cantos do mundo. Possui noções de diversos idiomas e até certas habilidades de hacker. É aficionado pelas redes sociais. Nunca faz logout. Está conectado ao universo virtual de milhares de pessoas. Todos os dias, segue várias figuras ilustres e também é seguido por um bocado de gente que, vez ou outra, possui determinado grau de semelhança com seu comportamento. Sente êxtase em atuar como um “canal de

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comunicação” na web, isto é, em compartilhar informações independentemente do nível de importância do conteúdo. Pode ser algo interessante, uma manchete da última hora ou simplesmente uma bobagem qualquer; o efeito dos cliques, chats, comentários, curtidas e compartilhamentos, desencadeia descargas sobre seu cérebro, quiçá doentias. Nem mesmo quando submetido à terapia psicológica ele consegue explicar coerentemente o que sente e qual é a importância que a internet tem sobre a sua vida. Um tema polêmico, recheado de conteúdo para teses e dissertações acadêmicas da área. Passam-se anos e mesmo tendo finalmente adquirido a consciência de que o tempo desperdiçado nas redes sociais atrasa sua vida e não lhe proporciona muita coisa verdadeiramente concreta, ele não consegue desligar-se delas, nem por um instante sequer. Hoje, já se foi sua juventude. Beira quase os quarenta e não se relaciona com ninguém; trabalha sozinho, em casa, na frente do computador, numa espécie de consultoria online para serviços de atendimento burocrático entre clientes e empresas; um trabalho chato, que não lhe rende muita remuneração e ainda gera frustração, vazio e apatia em seu espírito. Seu pai agora encontra-se debilitado por uma grave doença degenerativa e sua mãe é uma alcoólatra depressiva.

Infeliz, ele deseja mudar sua vida, mas não consegue se desprender daquela tela e fazer outra coisa; alguma coisa; qualquer coisa; simplesmente romper as amordaças virtuais que se materializaram o suficiente para se tornarem reais e comprometer a sua vida. A situação torna-se crítica após o falecimento de seu pai. Mesmo durante o velório, lá está ele sentado bem em frente ao caixão aberto, de olhos fixos no celular. É nesse momento singelo que um transtorno psíquico agudo toma conta de sua pessoa, quando ele então percebe o quão insubstancial é a sua vida diante daquela situação. Seu pai, gelado, está esticado logo ali no caixão, mas ele não consegue sentir nada, apenas compartilha mecanicamente aquele fato com seus milhares de seguidores na rede, pessoas que não o conhece de verdade e que, além de um breve comentário ou frase vazia de compaixão, nada lhe acrescenta. Num súbito ataque de fúria diante de todos ali em luto, ele se levanta e despedaça o aparelho no chão com um misto de raiva e qualquer outro sentimento frio e degradante, aprisionados por anos a fio. Inicia-se então uma dura fase de reabilitação. Começa a consumir coquetéis pesados de drogas psicotrópicas. Se livra de todos os eletrônicos portáteis, restando apenas seu computador desktop em casa,

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para trabalhar. Com muita dificuldade, passa a controlar minuciosamente o tempo em que permanece conectado à rede, diminuindo-o significativamente ao longo de alguns meses. É difícil ficar longe do mundo virtual, o seu mundo; afinal, tudo o que fizera na vida está lá, não possui nenhuma realização terrena significante e palpável, não tem amigos próximos, apenas virtuais. Agora, pelo pouco tempo em que permanece online, fica anestesiado, tranquilo e sereno. Mas quando se desvencilha das tecnologias, torna-se inquieto, nervoso, impulsivo, repulsivo, tal como qualquer abstinência relacionada às substâncias químicas mais ferrenhas que existem por aí. Foi então que, num certo dia, algo curioso acontece. Conforme navega com um de seus avatares, vê uma notícia nas redes que lhe chama a atenção: a queda de um avião comercial no Mar Mediterrâneo e a morte instantânea de todos os seus ocupantes. Em sua rede, certas pessoas compartilham as notícias daquela tragédia horrível e fazem comentários que lhe parecem um tanto quando bizarros: gente questionando o que havia acontecido, palavras confusas, desesperadas, desnorteadas e desconexas, idiomas estranhos e desconhecidos, comentários incompreensíveis pelo teor publicado. Tempo esgotado. Ele desliga o computador a contragosto e sai de casa para comprar cigarros,

como faz costumeiramente sempre que emerge no mundo real. Talvez a nicotina amenize alguns efeitos da abstinência que sente. No boteco, tudo normal. Sinuca rolando, bebum bebendo e televisão ligada, passando qualquer besteria como de costume. Um dia depois, após exatamente a mesma rotina, as manchetes dos telejornais no boteco anunciam sensacionalmente um terrível desastre ocorrido há poucas horas: a queda de um avião comercial no Mar Mediterrâneo e a morte instantânea de todos os seus ocupantes. “Essa notícia está atrasada… Isso aí aconteceu ontem”. “Claro que não, isso acabou de acontecer. Veja a notícia”. Ele não acredita naquilo. Provavelmente estão lhe zoando no bar; ali são todos uns malditos bêbados mesmo. Chegando em casa, ele liga a TV. Vários canais transmitem notícias sobre a queda que, de acordo com o que dizem, ocorrera algumas horas atrás. “Não é possível”, pensa consigo mesmo. Burlando sua frágil e recém-adquirida disciplina, ele volta às pressas para a internet e acessa

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as famigeradas redes sociais, novamente repletas de comentários sobre a notícia daquele mesmo desastre que havia tomado conhecimento no dia anterior, mas que acabara de acontecer. A princípio, não entende nada. Começa então a buscar o link da mesma notícia de ontem, em vão. Em apenas um dia, seu perfil foi transbordado de conteúdos inúteis publicados pela infinidade de usuários conectados a ele nas últimas 24 horas, o que torna dificilíssima a tarefa de achar qualquer coisa específica do passado. Ele então se esforça para tentar lembrar de alguns dos sinistros comentários sobre a notícia, e também das pessoas que os fizeram. Consegue se recordar de uma garota em especial, cuja foto mostrava um lindo rosto que se destacou dentre os demais; na ocasião, havia acessado seu perfil para ver e salvar as imagens daquela adolescente sensual, Svetlana. Ao acessar novamente o perfil daquela moça, comentários e postagens agora lotavam sua linha do tempo. Todos lamentando profundamente a trágica morte da linda jovem bielo-russa, cuja vida fora despedaçada num trágico e violento acidente aéreo no Mediterrâneo.

No limite da loucura, os misteriosos comentários lidos no dia anterior podiam fazer algum sentido metafísico, mas na realidade não fazem sentido algum. Teriam sido manifestações das pessoas que acabaram de morrer na queda do avião? Ontem, porém, todas ainda estavam vivas… Como explicar aquela notícia no passado que anunciara a tragédia presente? Seria uma falha dimensional atemporal que invadiu a sua rede e lhe permitiu, por um instante, a comunicação com aquelas vítimas no seu perfil? Na sede por uma explicação minimamente racional, ele permanece horas conectado, tal como antigamente, procurando por respostas que nunca poderia encontrar. Aquele surto abala todo o seu tratamento. Está agora obcecado em compreender a sua profecia virtual e esquece completamente do limite de tempo conectado que havia implementado em sua rotina com árduo esforço e muita autoajuda. Dias se passam sem que ele desligue a conexão. Sem se alimentar. Resolve aumentar as doses cavalares das fortes drogas para tentar controlar a euforia e a afobação que tomam conta de seu estado emocional abalado. Passa a se culpar por não ter feito nada perante a profecia que havia recebido; poderia ter verificado a fonte daquela notícia em outros canais; seria capaz de perceber que o avião

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não havia caído ainda e alertaria as companhias aéreas e os passageiros. Evitaria a tragédia?… Ou seria considerado apenas um doente com um boato macabro? Ninguém acreditaria nele. Seria taxado como louco. O avião cairia do mesmo jeito e, caso houvesse comunicado alguma coisa em relação ao desastre antes de sua ocorrência, poderia até mesmo ser considerado como um suspeito terrorista. Sua vida nunca mais seria a mesma. De qualquer maneira, depois desse acontecimento nunca mais será. Não era exatamente isso que tanto almejava: transformar a sua vida? Algum tempo depois, ele desiste de procurar provas ou indícios daquele estranho fato. Fraco e entorpecido, ele não sabe se tudo aquilo foi real ou apenas fruto de sua imaginação. Uma intuição, ou uma inexplicável previsão do futuro. Perguntas sem resposta inundam sua cabeça doentia e atormentada. Fisicamente, também está um lixo. Fedorento e desnutrido. Sua mente está novamente dentro de uma prisão virtual, outra vez amordaçado, esgotado, ao ponto de desistir de tudo.

Colocando fotos dele, postadas no passado. Despedindo-se. Rezando. Vários de seus seguidores começam a lamentar sua triste partida. Ele lê tudo aquilo caquético e não consegue mais desvencilhar a realidade da loucura. Tampouco consegue responder qualquer um daqueles comentários; não há palavras a serem tecladas, não consegue nem anunciar que está vivo e que se trata de um engano por parte de seus fãs. A nova profecia desaba como um enorme peso em suas costas, um que ele não consegue suportar; não há mais forças para continuar. Seria o anúncio da sua desistência, da derrota depressiva na vida para a dominação inconsciente de uma rede de informações em que tudo se acredita e pouco se questiona. Um sistema virtual que o controla contra sua própria vontade. Ele vê sua última e mortal cartela de comprimidos sobre a mesa, ao lado da tela pulsante de seu computador. Sua mão treme ligeiramente. Ele pega a cartela, destaca todos os comprimidos e toma todos de uma só vez.

De repente, ele nota que começam a chegar vários comentários direcionados a ele nas redes sociais em que frequenta. Pessoas elogiando-o. Saudando-o. Dizendo que estão com saudades. Que sentem sua falta. 108


Sobre mÜller J mÜller, J. nasceu em 1984 na cidade de Santo André, SP. Começou a escrever sobre ficção científica e os horrores da realidade em meados de 2013 e tem um conto de horror publicado na Revista Mortal (https:// revistamortal.wordpress.com/), uma publicação que circulou no cenário alternativo de sua cidade na mesma época. Tem ainda um romance de ficção científica a ser publicado, intitulado “Sobre a Praia do Futuro.

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VIOLAND

1 “I watched the beautiful ships arriving filled with hopeful believers. I gazed at the sky as the jets landed in Quelimane, I shook their hands and directed the orchestra as the colonists were showered with rose petals. I saw their cheerful faces and heard their dreams. Was it worth it? I don’t know. I can’t know everything. As a matter of fact, from now on ask me nothing.” Transvaal Private Association general manager Robert Auckland

Dr. Emmanuel Mises is at the forefront of an innovative but also controversial project. As head of the Transvaal Private Association, Dr. Mises, who holds a Ph.D. in liberal economics from the University of Vienna, has been the leading force behind negotiations that led to the purchase of 200km2 from the Republic of Mozambique. Decried as an out-of-control cult leader by his critics, praised as a leading innovator by free-market advocates, Mr. Mises agreed to give a brief interview from his offices in Quelimane, Mozambique. Soon to be renamed Misesland - upon his followers’ requests, he likes to underline - the city is going through an astounding transformation, with whole blocks being razed down to give place for Austrian style apartments and houses. Fifty thousand people from all over the world, and from every race and creed, have signed up to join this astounding experiment. Interviewer: First of all, thank for you talking with us. We understand these are busy times for you. Can you tell us a little bit about how your plans are going? Dr. Mises: Thank you, a pleasure to be here. Our plans are running as scheduled. We have installed the first 3D printers on the industrial zone and construction of the first city is nearly complete. I believe we will

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be able to receive the first neonatives in two months.

seems a bit ironic to many.

Interviewer: Your plans have drawn controversy. Some say you are reinstating colonialism.

Dr. Mises: We are grateful for all the help from the people of Mozambique. The whole transaction, buying the land, establishing borders and resettling the inhabitants who declined to be part of our project, has been conducted with the utmost respect for human rights and the rule of law. We are not creating barbarism, we are creating the next stage of civilization. The logic stage, where free markets and individual enterprise serve as central tenets of a new and more efficient form of civilization. Since Communism was a Utopian endeavor, we believe this nation’s history doesn’t disagree with our plans.

Dr. Mises: Those who say that are just plainly ignorant about our plans. We are the first experiment in society building since Communism. We offer an alternative to the over-regulation of the Western world. In our association, people can be truly free. I am absolutely certain that our results will leave the world in awe. This is not about colonialism. We purchased this land in a fair and transparent way. The funds paid already are benefiting the people of Mozambique in the form of schools, hospitals, new roads. This is not colonialism, it’s anti-colonialism. We are not a new Congo Free State. We will use our advanced technology for cutting edge manufacturing and trade, not to exploit the land’s natural resources or peoples. Interviewer: You have the stated goal of creating a nation-sized private community, governed only by market laws. Choosing a formerly Communist country

Interviewer: One of the most remarkable aspects of your experiment is the absence of courts and regulations, of any kind of rule outside free-market principles. Are you not afraid the association will devolve into barbarism? Dr. Mises: Let me make

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one thing very clear: free market does not mean barbarism. Our critics would like to believe they have created their own utopia. Look at them: negative demographic trends, constant friction between companies and workers, mass shootings, drug addiction. They think that by paying every citizen a minimum wage, regardless of productive activity, is their greatest achievement. Their productivity gains are mainly based on new technology. Yet if you look into the numbers, really look into them, you realize how feeble is the whole idea. The US is experiencing negative demographic growth for the first time in its history. If you give things to people for free, complacency takes hold. We are the opposite of that. We want to keep the torch of freedom and competition alive and save the world from this decrepit state of affairs. Interviewer: Social commentator Alanis Heltron has taken to call the association “Violand”, deriding your plans to offer full freedom to the individual without centralized rules and regulations. How do you respond to that?

3 From the diary of Dr. Mises I had a dream last night. In my feverish sleep, I saw barren hills filled with bodies and packs of men, or beasts, who fired weapons into the air and drank the blood of innocents. The factories were destroyed or taken over. Women and children were raped, properties were stolen, families destroyed. They say chemotherapy can cause vivid dreams of hallucinations, but for the first time, I questioned the wisdom of a land without rules, organized only on market principles. Nobody must know this; I must instruct my associates to burn all of my papers. Those closest to me know I have been plagued by prescient dreams since childhood. Of course, I would never report any of them in public. It doesn’t fit well with the leader of a bold experiment in free-market radicalism. No, I should write a new speech, an inspired speech that will instill hope and resolve into my [left unfinished].

Dr. Mises: I will not dignify their stupidity with an answer. If I spend all my time defending my project, my energies will be wasted. Let them talk. Meanwhile, we act. The association will be victorious. 112

4 My name? Auckland. Robert Auckland. As I was


saying it was a beauty to gaze, yes it was. The platform spread over five square kilometers, a marvel of engineering and human ingenuity. Desalinization equipment provided fresh water to 200 American-style homes. Complete with backyard and barbecue grill. And the trucks, ah, the trucks. Yes, yes. The American colonists had to have their trucks. The Americans, in turn, started arriving in March, about a year after the colony began officially. They mostly were former oil men, some were retired, most had their savings carefully packaged into Roth-IRAs and annuities. Some even had capital to invest. The platform also could extract oil and gas, refine it and liquefy it. The only thing it couldn’t do was selling it, but for that, there were the oil men. Dr. Mises never objected to this parallel colony of sorts. They had the cash; it was a transaction and therefore sanctified by him. They purchased a share of our territory and agreed to share in any oil profits. But when the oil market crashed in 2053, well, that’s when the raids began. Midsized gunships, surrounding by a flotilla of speedboats, would sweep into the coast and attack farms, factories or stores. They would take everything. By then Dr. Mises was deeply ill. The cancer was eating him alive and clouding his

judgment. Pressed by members of the Quelimane Business Partnership, he told them they would have to fend for themselves. “Build your army,” he said. Several people questioned the wisdom of such an endeavor. They were promised peace. Dr. Mises died last week. They built a monument using the 3D printers. Seated on a stately chair in the main square of Misesland, he seemed to offer his wise blessing. But now it is man against man as if they were beasts preying upon each other’s tribe. That’s what we were reduced to, tribes spread out over the Savannah. We had turned into savages, earning the derisive name the press has given us: Violand.

5 Colonists begin abandoning TPA as raids intensify Mark Cahill in Vienna (WP) – Thousands of colonists are arriving in Vienna from the former Quelimane Airport in the Transvaal Private Association as a rival faction of American colonists intensified a series of raids that left hundreds dead. They say the situation deteriorated after the death of colony founder Dr. Emannuel Mises and that lack of an official authority

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in this radical free-market outpost is hindering efforts to fight back. World leaders discussed the crisis in an emergency UN meeting in New York on Tuesday, but an agreement remained elusive as the UK and the US argued that the TPA is private property. Brazil, France and Russia, in turn, warned of a growing humanitarian crisis if no action is taken. A tentative deal to send food and medical supplies was reached, but the meeting devolved into a shouting match when Russia and China declined to finance the effort. “This is a stop-gap solution. We need a permanent solution,” Chinese Foreign Minister Han Tsing told UN delegates. The Mozambican government, in turn, tightened its borders and refused to accept the thousands of refugees trying to cross its borders. President Orlando Machane told reporters in Maputo that sales agreements signed with TPA representatives prevent the country from interfering in the colony’s affairs. “Our hands are tied and we lack the resources to receive the refugees adequately. This is a problem for the rich nations; they should rescue their citizens, not us,” Mr. Machane told the National Assembly on Tuesday.

lence. Hans Frankel, a 34-year old engineer and his wife Melania and four children, said they left behind all of their belongings in the hurry to escape. “The Americans had their guns and trucks, and they told everybody to leave or be killed. Those who tried to resist were killed on the spot,” Mr. Frankel said. “Some people wanted to stay and fight, but we decided against it because we had been promised peace. We thought the TPA would herald a new form of organization, a new way of living, but it turned out to be more of the same,” he said. Originally from Germany, Mr. Frankel says he will try to resettle in Cologne but he faces an additional hurdle: As part of the process of joining the TPA, he burned the family’s passports and renounced any claim to citizenship. “I’m counting on the goodwill of the authorities. We are refugees now,” he said.

Four hundred refugees arrived in Vienna on Wednesday reporting widespread abuses and vio114

6 “When is daddy coming home?” “Soon dear. He will be back soon.” “But we haven’t seen him in a long time. I’m hungry.”


Sophia started to cry, but mother held on tight to her and the tears dried out. “Let’s make some biscuits!” “Yaaaay!” She poured lard on the pan, just a bit to make the biscuits taste like something. They were down to the last kilo of flour, and larding the pan required somewhat of a scraping effort in the nearly empty can. Brian had been away for a week now trying to hunt something. The reassuring ping of his cell phone on her location app as he scoured the land for game offered some respite, but she couldn’t shake off the feeling that maybe he was dead. Perhaps someone was carrying his phone around. Maybe that’s why he will not answer the calls, not because he has bailed out on them. At least the phones still worked, but electricity was getting scarce. Misesland had collapsed into an uneasy truce with the Americans. They were supposed to pay taxes now, but all the 3D-printer factories were idled, awaiting spare parts that would never come. Most people had already left, leaving them as sole occupiers of one of the new buildings created for the colony downtown, near the water. At night, the scent of cooking fires pro115


vided a reminder that civilization and its gas stoves were now a long distance from them. With the little girl fed and asleep, she turned to watch the street. When they arrived there used to be dogs, but they were all euthanized. Later, after the colony collapsed, the reappeared briefly. Now they were all gone, hunted for their meat. She had stopped being impressed at her own emaciation, or the dizzy spells from lacking enough sustenance. Now she knew how to fire an AK, just in case the men came back to ransack the little they had, and maybe take her and the child to God knows where. A pile of coins sat on the kitchen table. Every colonist had to tender any foreign currency brought along into their own coins, at a fixed exchange rate. She caught herself marveling at how prices stayed stable despite the complete lack of monetary controls, as Dr. Mises wanted. Of course, that was before he died. Now they were just child’s toys, and the girl would keep piling them up into small mounds just to destroy them, and begin again.

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About Patrick Brock Patrick Brock (1979) is a writer and translator living in New York who is one of the founders of Edições K, a writers collective that has published 13 books in Brazil. He has published two books of short stories in Brazil and participated of Desordem, a crowdfunded anthology featuring seven new Brazilian writers. Patrick holds a MA in English Literature from CUNY and is an editor for Brazilian business daily Valor Econômico. He is married and has a young son.

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perdoem-me eventuais erros de tradução ou anacronismos. Tentarei ser fiel aos fatos pois, como um filho que não houve, hoje os queria como pais. Os nomes em nossa época não se verbalizam. Todos nós temos um cheiro único, inalterável e os homens de onde falo se reconhecerão apenas por este aroma. Assim, de modo a explicar em texto (para vocês acostumados com palavras em letras maiúsculas definindo quem é Augusto e quem é Moacir), os chamarei apenas de Ele e Ela.

APENAS POR UMA MEMBRANA

Tudo o que direi se passará no Brasil. Não posso especificar o ano, mas saberão claramente que se dará numa época na qual os fatos aqui relatados poderão ser tratados como normais. Os personagens de fato existiram e eu mesmo os conheci. Infelizmente nunca soube que se buscavam, ou teria feito algo para auxilia-los. A dor às vezes separa-se da felicidade apenas por uma membrana. Não sou ninguém que conheçam (sejam vocês quem forem ou onde estiverem). Ainda não nasci, escrevo de um tempo que não chegou e em língua todavia aguardando ser inventada. Por isto mesmo,

Muitas coisas hoje valiosas e intangíveis ganharão valor comercial quando esse tempo chegar e Ele era dono de uma fábrica que vendia sonhos. A estrutura era simples: um monte de tubos, cabos e luzes que misturavam estímulos eletroencefálicos coletados através de eletrodos de hidrogel de alginato e os comprimia em vapores que depois eram vendidos envasados em frascos coloridos. Coisa bastante boba, mas era com isto que conseguia o dinheiro que bastava apenas para vencer o mês. Comprara a fábrica de um velho à beira da morte, mas as vendas iam em baixa e o maquinário estava ultrapassado. Depois das sucessivas crises monetárias pouca gente tinha ainda qualquer dinheiro poupado para investir em invenções fantásticas e a quantidade de sonhos zero quilômetro que se colocavam no mercado era muito

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pequena. Ainda no primeiro ano Ele foi obrigado a demitir funcionários, fechar a sessão REM (sua menina dos olhos), desmontar a máquina de delírios infantis e revender apenas sonhos reciclados ou com pequenos defeitos que eram comprados por gente mais pobre (estas sim agora felizes pois encontravam no mercado sonhos ao seu alcance). Eventualmente alguma reclamação aparecia quando um cliente acordava no meio da madrugada. O problema mais grave foi quando vendeu para uma egocêntrica cantora de rock um longo sonhar que se passava dentro de uma ópera e ela foi à justiça postular que pretendia o estrelato, mas não aquele. No geral este conjunto onírico de segunda mão era o que sustentava sua expectativa de recuperação da indústria decadente. Já para apresenta-los a Ela, talvez caiba uma preparação. O que Ela faz não é essencialmente bom ou mau nesta época em que escrevo. Sei que no passado houve quem condenasse pessoas que eram apenas quem poderiam ser. Parece-me que, para vocês, ser o que se é pode não agradar aos que não o são. Por isto, prefiro adverti-los: nada de julgamentos maniqueístas para com a doce Ela, por favor. Sua espécie era incapaz de gerar energia a partir da queima da glicose como a maior parte dos habitantes do planeta, por isto sugavam emoções humanas que disparavam os

mecanismos certos em seu cérebro, iniciando a metabolização de tudo que precisassem para sobreviver. Não era uma pessoa má, absolutamente. Muitas vezes ela mesma estimulava grandes eventos de paixão e êxtase nos povoados onde se instalava. Assim aumentava a capacidade de produção daquela mina de sensações que usava de comida. Morava em determinada cidade apenas enquanto ali durasse algo que lhe fosse interessante. Depois, secas as reservas, largava o garimpo escasso e migrava em busca de amores, esperanças e novas fronteiras. Não havia nada que amasse mais do que experiências intensas, exóticas. Funcionavam como gasolina aditivada perto da maior parte dos humanos (como eu) que se configuravam apenas por essa coisa medíocre que percebemos sem poder voltar atrás, pausar ou saltar logo para o final. Rumavam para um total desconhecimento mútuo não fosse a feliz coincidência que arrebentou impossibilidades e os ligou. Naquele sábado xoxo de nuvens baixas e bafo quente, foram ao cinema sozinhos, uma dezena de quilômetros de distância separando-os. Escolheram o mesmo filme, com longos diálogos. Frequentemente o protagonista fitava os assentos da sala e dizia alguma frase emblemática, como na cena final:

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- O que você olha, papai?


- Os idiotas, filha. - [garota também se vira para a plateia] mas você sempre me disse para não olhar para eles. - Mas agora cheguei à conclusão de que é importante, pois será a última vez que essa gente irá me ver. - Mas e se eles também vierem ao cinema amanhã? - Daí não serão mais esses. Nunca se é por dois dias a mesma pessoa. Ele e Ela contemplavam vidrados os olhos do protagonista, ouviam aquelas palavras. Houve um longo close final. Congelaram suas pupilas nas dele, unindo-se através do ator como em um vértice improvável. Acho que isto vocês conseguem entender. Imaginem a lua: sendo ela um único objeto, qualquer par que a contemple (um em Porto Alegre, outro em Moscou) estará magicamente unido por um triângulo imaginário, afinal olham para a mesma lua. E foi isto que ocorreu. Passando pela córnea do personagem, Ele e Ela se cruzaram. E se viram. Ela queria saber como

a cena continuava, mas sua visão parecia embaçada, enxergava apenas aquele rapaz que, ainda que estivesse na tela, não parecia fazer parte do filme. Olhou pro lado, ninguém mais notava nada estranho, aparecia apenas para ela. Teve vergonha de gritar. Já Ele não queria voltar para o filme. Depois de ver aquele par de olhos verdes, desistiu de qualquer outra forma de arte. Regressaram pra casa sem saber o que fazer com a novidade. Dia após outro os flashes das lembranças faziam com que uma espécie de paixão nascesse. Depois uma obsessão e, por fim, um amor platônico. Claramente um outro alguém os contemplou por alguns segundos e o que sentiram naquele momento tinha a magia dos fatos inesquecíveis. Passados alguns anos, a fábrica de sonhos faliu, desmontada pelos novos tempos. Ela desistiu de alimentar-se de momentos gigantescos das existências alheias e passou a fotossintetizar tudo que pudesse. No mais, simulava suicídios, términos de namoro, assaltos após os quais devolvia o patrimônio às vítimas, tudo porque, transtornada pela aparição no cinema que se assemelhava a uma possibilidade de felicidade real, não mais encontrava saciedade naquele fast-food vampírico dantes. Insistir na vida regular era

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atormentador. Ambos tinham certeza que, durante o filme, naquela última cena, algo diferente havia acontecido; não importava em qual poltrona estivessem, tampouco a quantas léguas distavam-se, era insuportável fingir que não ocorrera. Ele recomeçou a vida depois da fábrica fazendo em casa, artesanalmente mesmo, pequenos pesadelos para serem vendidos como brincadeiras ou trotes. Até se divertia um pouco quando colocava alguns palhaços macabros ou grandes quedas sem fim nas quais, ao morrer, as “vítimas” acordavam. Ela eventualmente regressava à vida antiga e, mesmo sem gostar dos esportes, ia a finais de campeonatos sugar estádios e arenas lotados de paixões de alegria e derrota. Certo dia, tiveram a ideia excelente e única: obviamente somente se encontrariam uma segunda vez voltando ao cinema, àquela sala retangular de projeções luminosas que originalmente os aproximara. O filme já havia saído de cartaz há anos. Voltaram portanto às sessões dos mesmos horários, no mesmo dia, em outros filmes do mesmo diretor, com os mesmos atores, comprando pipocas nos mesmos lugares mas nada parecia funcionar. Aparentavam-se fadados à desistência. E isto os desesperava: estaria o outro ainda tentando? Porque qualquer olhar concomitante

dependeria disto. Seriam ainda capazes de se enxergar? Uma sensação de luto ocupava-os nestas horas. Atravessada a paixão inicial desta lembrança de terra prometida, o mundo seguiu e eles encarregaram-se de apagar a ilusão do reencontro. Pouco a pouco, a vida embranqueceu. Foi então que os conheci. Aqui, cabe uma nova explicação. Vocês talvez estejam acostumados com as casas que existiam até a Era de Sísifo, onde as pessoas moravam em um espaço delimitado que, ou lhes pertencia, ou lhes estava sob usufruto individual. Neste momento do qual escrevo para vocês, todas as moradas passaram a ter cômodos flutuantes, que se compartilham conforme o uso. Exemplifico: imagine um elevador. O que é o elevador senão um cômodo que se move de andar em andar? Quando se entra num elevador no sétimo andar nada há de diferente quando comparado com a entrada no terceiro ou quarto pavimentos. Trata-se do mesmo cubículo, que apenas se move de acordo com a necessidade dos demais. Com a escassez de recursos naturais e a total extinção da oitava lua de Esférides (de onde por muito tempo se extraiu o que

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precisávamos por aqui) não restou outra opção que não construir moradias menos individuais. Por isto, onde (quando) nossos protagonistas vivem, a mesma lógica dos elevadores aplica-se às cozinhas, banheiros, salas de estar, lavabos, escritórios funcionais e outros cômodos da casa. Aperta-se um botão e espera-se. Dali a pouco, chega a sua cozinha. Por vezes, com algum outro morador que lá estava a projetar seu ultrassom sobre um par de ovos ou a jogar alta frequência na crosta dos pedaços de carne. Daí ambos se olham com cara de paisagem, diz-se “boa noite” ou “que calor hoje, não?” e segue-se a vida normalmente. Com um bom planejamento estatístico da quantidade de cômodos por prédio, tudo isto funciona muito bem. Apenas os quartos são individuais. Porque as noites de sono continuam sendo longas e exigindo silêncio. A questão é que quando uma cozinha ou banheiro destes se locomove por diversos andares, todo um conjunto de tubos necessita se deslocar também. Carregando eletricidade, água, linhas de vácuo. Há toda uma tecnologia. Os cabos de dados impedem, por exemplo, que alguém mova o seu banheiro quando você pressiona o “botão de privacidade”. As fibras óticas permitem que você acesse a sala de estar que estiver mais equipada naquele momento. E quando tudo isso quebra, eu apareço: o rapaz da manutenção.

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Sempre que algo quebrava no condomínio d’Ela, eu era chamado. O mesmo valia para Ele. De tanto frequentar a casa de ambos comecei a ouvir as histórias. E enquanto trocava mangueiras, soldava metais ou impermeabilizava juntas, ia me afeiçoando a cada um de maneira singular. Curiosamente, ambos haviam caminhado para realidades similares: tornaram-se atores. Penso que houve algo de psicologicamente interessante nesta escolha. Aquele amor impossível, por mais que soterrado, dava pontadas. Acho que desejaram muito “entrar na tela do cinema”. E entraram. Durante boa parte do dia encenavam vidas que não eram as deles, alegrias treinadas, gestos ensaiados de amor correspondido, viagens não ocorridas, cenários novos, relações inéditas e passagens de vida asperamente distantes de tudo que experimentavam fora dos palcos ou das telas. Em certo momento a profissão tornou-se a melhor droga a se experimentar. Viraram excelentes profissionais. Talvez porque somente dentro daquelas farsas fossem eles mesmos. Trabalharam em divertir pessoas. Envelheceram sem nunca esquecerem-se. Um dia ela me contou isto tudo. Foi um trabalho longo e notei que lacrimejava sozinha. Perguntei o porquê e fiquei horas ouvindo. Sobre o rapaz amado e nunca visto. Sobre o filme que os juntou por efêmeros segundos. Foi quando pela 123


primeira vez pensei em escrever a história. Quem sabe não os ajudaria a encontrarem-se? Velhos, contemplavam as rugas no espelho de maquiagem da coxia e viam somente a si mesmos. A fantasia que um dia movera ambas as vidas se apagara, borrada pelos anos. Alegraram plateias de todo o país e, parece, até mesmo do exterior. Tiveram filhos e cães. Engordaram, arquearam as costas, perderam altura. Eventualmente, recordavam os tempos vividos. Ele sorria com as memórias dos anos da fábrica de sonhos e até voltava eventualmente à antiga prática, de modo obsoleto, inventando fantasias noturnas apenas para consumo próprio. Ela não teve do que reclamar durante a vida: a cada montagem teatral bem sucedida, repunha suas energias como num banquete gratuito com as emoções da plateia. Os demais atores se encantavam com os aplausos. Ela os comia. Viveram bem. Morreram quase no mesmo minuto. O último pensamento d’Ela voltou-se para as plantas recém-colocadas no parapeito da janela. Temia que ninguém as molhasse em sua ausência. Ele pensou apenas no filho mais novo. Tentou lembrar seu nome, mas foi em vão. Deixou uma carta com sua biografia e seus segredos, sua versão escrita da vida antes que a memória se apagasse. Eu fui o primeiro a encontrar este relato porque cheguei ao seu quarto junto com os filhos. Eles não tinham cópia do cartão de acesso, eu sim. Quando li sobre o cinema, tudo se encaixou. Então... eram eles. Eu conhecia a ambos e nunca soube que o eram. Isto tudo por um motivo simples: Ele nunca chorou em voz alta, guardou para esta carta qualquer possibilidade de confissão. Apresentei os filhos de um aos filhos de outro. E comecei a escrever esta história que agora remeto a vocês, no passado. No entanto, notei que carecia de um desfecho. E quis dividir o final que imagino, o segundo exato após suas mortes. O que aconteceria com cada um deles. Pensei que ouviriam uma voz. No ouvido dele, feminina. No dela, masculina. Diria: abra os olhos. E eles abririam.

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Sobre Pedro Silva Pedro Silva publica no blog www. escrevendopedro.wordpress.com. Admira todas as formas de arte e fica triste sempre que sua vida se afasta deste meio. Já foi publicado em algumas edições da Revista Subversa (dedicada à literatura luso-brasileira contemporânea). Em 2016 sairá em duas coletâneas impressas de contos inéditos, uma delas com seleção do crítico literário José Castello. Escreve desde 2009, mas somente agorinha se convenceu de que poderia dividir isto com o mundo.

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transformou o mundo nesse inferno; e de que nada era por acaso.

Cidade-Estado Superficial de Shisakura, Terra

-... O céu é preto-fosco, com densas camadas de gases espargidos na atmosfera, que se movimentam sem cessar e assustadoramente. Lembram em muito as nuvens das fotografias antigas. O que mais se distingue na paisagem são as Fendas... o novo sol, partido em pedaços pelo homem. As Fendas são como lesões no tecido celeste, que expelem sangue luminoso; isso, a luz vermelha emanada pelas Fendas é sangue em forma de luz... e eu a acho linda. – disse Shinju, enquanto seus olhos rodopiavam lentamente, seguindo as Fendas surgidas intermitentemente no céu, em pontos aleatórios, num padrão de mudança desconhecido.

Shinju observava a paisagem apocalíptica da janela de se quarto, coberta por um plástico transparente e anticontaminante. Graças à rica biblioteca que tinha sobre a história japonesa, a jovem de 11 anos de idade sabia as hipóteses para o planeta Terra ter chegado àquele ponto crítico. Ela tinha centenas de documentos com fotografias e descrições, que apesar de descreverem um passado incrível para ela, eram rigidamente mantidos em suas lembranças sob as ordens de seus pais, para servirem de evidências do que

Shinju estava em paz, observando o firmamento, ora trocando olhares para o oceano pacífico, ora deixando-se levar pela escuridão das coníferas do arquipélago. Isso porque a Cidade-Estado que habitava, Shisakura, ficava na encosta da montanha Kumotori, ponto natural mais alto de Tóquio. Era possível ver os larícios de galhos apodrecidos e desfolhados cobrindo a base da montanha, assim como as aldeias soterradas por rochas e entulhos, e até várias lanchas vagando calmamente pela lâmina d’água do mar tan-

PÉROLA DIGITAL DAS FENDAS NASCENTES Outubro de 2343

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gencial, precariamente rodopiando junto à espuma e borbotões de sangue, que Shinju sabia exatamente de onde vinha. - As marcas dos Monstros Urbanos. Eles devem estar por aqui. Papai me avisou... – disse a menina, logo desviando o olhar do fluido cálido por sumo humano. Dentre os aspectos daquela vista escabrosa para a alma infantil, o mais tentador era olhar o filão urbano, no final do horizonte de estradas ilhadas e pontes sobre o mar. Era uma estrutura famosa no passado; uma cidade em movimento, agora morta pelo mal ancestral. Era uma Tóquio escura, com prédios abandonados, cobertos por plásticos de contenção de perigo biológico, e bairros tomados por construções normais, se não fosse pela imundice sanguinária espalhada por onde as metralhadoras ou os dentes substituíram o pincel. A metrópole erguia-se como uma muralha assombrada, talvez pelos mais mitológicos yureis, talvez não. Shinju sabia da regra de seus pais à restrição de apenas 10 observações de 15 segundos por dia para a cidade abominável, mas o fascínio escondido naquela fortaleza escura a provocava sempre. Só lhe restavam 13 segundos, de uma última olhada. Suas mãos, antes abaixadas, agora seguravam

os beirais da janela. Uma forte pressão cardíaca a invadiu, apesar dos feixes vermelhos continuarem surgindo e desaparecendo. Subitamente, um brilho branco ascendeu o alto de uma famosa torre, em que ela havia estudado num livro de arquitetura: Sky Tree Tower. O brilho permaneceu ocorrendo, numa consonância própria, até formar um significado que ela pôde traduzir pelo estudo de Código Morse que tivera. A frase dizia: “É tudo mentira”. Aquilo a perturbou profundamente, mas desviou os olhos, tentando se focar na cidade; restavam-lhe poucos segundos. Tóquio parecia estar de baixo d’água, com os raios solares advindos da superfície e penetrando nas camadas submarinas, enquanto iam se turvando e se perdendo, até não poderem mais vencer a escuridão abissal. Shinju sentia que aquela metrópole estava se afogando ao longo dos séculos, em desespero eterno. No lugar dos gritos, apenas gemidos abomináveis; no lugar dos corpos lânguidos preenchidos por sal, apenas silhuetas virulentas em catatonia; no lugar da paz após o afogamento, uma amálgama de medo, solidão e psicose invadiam sua mente; no lugar da beleza onírica dos feixes luminosos, apenas as pupilas diabólicas das criaturas lá presentes... Uma porta se abriu e alguém adentrou o recinto.

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X - Takeshi! Rápido! A Shinju está convulsionando novamente! – gritou Yasu para seu marido, pai de Shinju. Takeshi entrou no quarto da filha e deitou-a ao chão. Tirou todo objeto perigoso da proximidade e fez um sinal de calma para a mãe de Shinju, Yasu. A mulher levou os dedos a um painel holográfico-touchscreen projetado em sua têmpora direita e clicou numa opção emergencial, que liberou um pop-up com um teclado alfa-numérico. Yasu digitou rapidamente o código para “Inanição de Preocupação”. O sistema aceitou o código e corrigiu a retina da mulher, girando rodas metálicas nas órbitas e sincronizando os olhos numa posição estável; Yasu esfriara. Takeshi viu aquilo e fez o mesmo. Apenas a filha se debatia, babando espuma e sangue. Após 10 segundos deploráveis, Shinju aos poucos se acalmou, até retomar a consciência. Trocara o brilho de fascino dos olhos pela grossa camada de espuma que embuçava a face. Yasu se retirou do quarto, pois sabia da necessidade atual. - Shinju, de pé em 3 segundos! – gritou o homem impetuosamente. A menina levantou-se, ainda meio tonta, e forçou

estabilidade. Muitas lágrimas ainda escorriam e em seu coração ela apenas gostaria de ser confortada, mas isso não seria possível. - P-papai... me descu... – Shinju levou um tapa na bochecha direita, fazendo voar espuma e sangue no quarto. Ela se pôs indomitamente na mesma posição e segurou as lágrimas. - Yasu. Venha. – disse Takeshi de modo sério e com olhos maníacos, enquanto observava a menina. Yasu adentrou o quarto, pôs-se à frente de Shinju e estapeou sua outra bochecha, com expressão desalmada. - Agora, repita os Deveres do Nuvesuário! – exigiu Takeshi, calmo e assustador. Fingindo a frieza dos pais, Shinju disse: - Número 1: neutralizar sentimentos para o acúmulo de cloud-data. Número 2: jamais sentir a carne, enquanto é a Protonuvem Computada a lógica fundamental da existência. Número 3: jamais manter contato sinestésico com uma Zona do Caos por mais de 2 minutos e meio. - Correto... venha filhinha, para a World Wide Web Dimension, porque o nosso admirável Abuto Quano Sama nos espera. – disse Takeshi.

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- Eu-eu estou a-apta? – perguntou Shinju, olhando para a mãe, amedrontada. Yasu a olhou firme e disse: - Você fará 11 anos hoje e finalmente já tem a instrução correta. Sua Transdigitalização pode ser iniciada agora, mesmo com suas negligências... – falou a mulher, fazendo uma incomum careta de nojo. O pai olhou para ela e recebeu a transmissão da feição usada, reproduzindo-a copiosamente, o que fez Shinju desviar os olhos, devido ao medo que sentia das transmissões semi-emocionais compartilhadas. Takeshi pediu que o seguisse e virou-se na direção da sala. A família atravessou o pórtico do quarto e adentrou a sala nanica, também banheiro e cozinha. Yasu andou até a porta de entrada da habitação e abriu o mecanismo, mas antes se ajoelhou para ficar na altura da filha. A mulher digitou um código diferente na têmpora e uma expressão de “atenção carinhosa” se manifestou em seu rosto. Shinju tremeu com aquele processo biomecânico e novamente desviou os olhos, procurando se acalmar. Aquela falsa face materna a enjoava. - Filha, ouça-me – disse Yasu, meticulosamente – A você será dada a oportunidade da Transdigitalização e, se seu organismo, emoções, mente e espírito reagirem bem, você receberá um corpo feito de pura

informação digital. Só assim poderá viver na Word Wide Web Dimension, onde a harmonia búdica reina entre nós. - Mas, mamãe... a 3WD é uma meta-realidade criada para permitir ao subconsciente desumanizado a coexistência com esta realidade arruinada. Como essa harmonia pode estar lá, se nem aqui ela existe? – perguntou Shinju. Takeshi, de olhos eclipsados, cerrou os punhos, mas Yasu colocou o braço à frente do homem e explicou: - Quando Amaterasu nos abandonou, Tsukuyomi, através dos houshis, nos convidou a um novo mundo. Lá, na 3WD, está Tsukuyomi, nos permitindo a Existência Usuária na realidade virtual. Lá não há nenhuma das chagas ou perturbações existentes nesta realidade. Lá nós vivemos no templo sagrado de Inochisakura, e é só isso que você precisa saber. – terminou Yasu, com sua expressão facial codificada esgotada. A menina assentiu com um aceno da cabeça, tremendo. X Takeshi pôs cada índex seu em uma têmpora da filha e raios azul-prateados atingiram o interior do crânio. Shinju adormeceu, mas pôde obter fragmen-

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tos do trajeto até o local para a Transdigitalização: céu com variações de betume; ar pestilento na atmosfera; medo imanente ao mundo exterior; estradinha envolta por lixo; casebres destruídos com olhares amedrontados vindos da janela... de crianças silenciadas. Em alguns casebres havia um “x” nas portas, feito de fita zebrada. Shinju não sabia o quê era aquilo e procurou olhar as janelas daqueles casebres, buscando por esclarecimento. Um terror a fulminou ao ver silhuetas penduradas no teto, balançando miseravelmente por cordas desfiadas. Ela ficou inconsciente definitivamente. Quando acordou, já estava num laboratório escuro. Seus pais programavam um computador longo e complexo, embutido na parede da porta de entrada, do chão ao teto. Cabos embutidos no chão saíam de suas CPU’s iluminadas por díodos e iam, através de tubos siliconados, até um imenso ecrã no centro do local. Era um painel de cristal líquido, ultrafino, com 2x1 metros e apagado, mas Shinju viu que sobre os tubos de silicone foram acendendo luzes brancas, uma atrás da outra. Em não menos de 5 segundos o painel acendeu uma forte luz e exibiu um redemoinho energético que emanava um campo de força, tanto dentro como fora do aparelho. Shinju ficou apavorada e se esgueirou para trás, mas percebeu que não

havia lugar nenhum para correr: atrás dela só havia uma grossa camada de vidro preto e semitransparente, que dava para o lado de fora do prédio, uma queda de quarenta andares. - Shinju, ponha-se de frente ao painel. – disse Takeshi. Antes de levantar, a menina surrupiou uma máquina, semelhante a um celular, numa mesa próxima. Ela pôs-se a caminhar, mas a frase advinda do código da Sky Tree Tower veio a sua mente: “É tudo mentira”. No mesmo momento Shinju parou, ergueu a cabeça e a abanou negativamente. - Onde estão meus carinhosos pais? ONDE ESTÃO?! - Acalme-se, Shinju. Somos nós... querida. Agora deixe disso e venha. – disse Yasu, pegando uma seringa escondida no bolso de trás de seu traje. - Não. Não estão. – disse a menina, abaixando a cabeça logo depois e acionando um botão da máquina que roubara. Algo no teto se movimentou. - Takeshi, pegue-a! – gritou Yasu. O homem correu na direção da menina, vociferando. Do teto, sobre Shinju, uma placa retangular abriu-se e liberou uma katana. Shinju pegou-a ra-

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pidamente e utilizou-a contra Takeshi, soerguendo a lâmina vermelha da katana ao alto, que foi aparada pelo antebraço do pai sem maior problema, e rapidamente jogando a lâmina em diagonal para baixo, cortando de lado, na altura do peito, com o afiado gume, decepando o tórax do homem; uma finta perfeita. Colérica, Yasu correu e acionou no computador a Transdigitalização. No mesmo instante o corpo de Takeshi se dissolveu e uma energia binária saiu dele, demonstrando que era apenas um simulacro de carne. A energia binária, em forma de nuvem de dados digitais, criou uma face antropomorfa de máscara japonesa e jogou-se, num impacto energético, contra Shinju, que girou sobre os ombros e desviou do golpe, mas foi pega pelos cabelos por Yasu, que a jogou contra o campo de força do painel. A katana caiu longe e a menina foi sugada pela força do painel. Ela segurou nas bordas do ecrã, mas sua moral diminuiu quando viu o corpo de Yasu ser dissolvido em gás, para dar lugar a verdadeira Yasu. - Agora eu entendo o real significado de Nuvesuário. Vocês não são humanos. – disse uma gemente Shinju, segurando com dificuldade. As duas nuvens de informações digitais semi-mate-

riais emitiram ruídos metálicos bizarros e se uniram numa única nuvem de computação materializada, que se jogou contra a menina. O impacto foi tanto para Shinju, que ela soltou a mão direita, permitindo que algumas partes de seu corpo penetrassem na energia cibernética. A dor foi colossal. Vozes podiam ser escutadas de dentro do ecrã. Vozes metalizadas, com teor profano, cantavam uma música diabólica com koto e shamisen, como se a evocassem para dentro. Aquilo só deu mais força para Shinju. Ela tirou forças do resto de seu coração ainda fora da máquina. Com toda a força que restava, puxou-se para fora e virou-se para o outro lado do ecrã, onde ficava o computador e a porta de saída. Segurou nos cabos do chão e rastejou até o fundo do laboratório, onde, numa distância suficiente, ela deixou-se sugar pela energia e jogou o restante do seu corpo na borda do ecrã. O painel se desprendeu do chão e voou contra a parede de vidro do laboratório, caindo do quadragésimo andar, puxando cabos e partes do computador. Tudo finalmente estava acabado. Ela não sabia de toda a verdade por trás daquele evento, mas do suficiente para permiti-la continuar caminhando. Ao observar seu corpo, quase desmaiou ao perceber que todas as partes sugadas para dentro do painel foram dissolvidas: o braço direito e a perna direita inteiras,

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um pedaço das costas e do lado direito da face, junto do olho direito; tudo havia desaparecido, dando lugar a imensas poças de sangue no chão. Ela gritou de horror, em choque. Sua consciência estava se esvaindo e ela sentia a morte a levando para longe daquele mundo arruinado, mas ela queria viver! Num último movimento possível, Shinju se esgueirou até a seringa que Yasu deixou cair ao chão, com um fármaco poderoso dentro. - Mor... fina. – disse ela, enxergando tudo turvo. As dores nas partes feridas eram insuportáveis para uma criança de 10 anos, mas ela já havia feito 11 e superara todo o passado. Com dificuldade, Shinju pegou a seringa e aplicou uma punção venosa na veia cubital mediana, pois era a mais indolor. Rapidamente Shinju sofreu uma queda na pressão arterial e os batimentos cardíacos foram parando. O ar passou a ser pesado dentro do peito e a dificuldade de respiração cresceu. Shinju ativou um código na máquina-celular. Seus dedos suavam e lentamente seus olhos adormeceram. Ela entrou em coma. Na tela da máquina apareceram letras garrafais da ação configurada: Reconstrução Cibernética. Alguns minutos se passaram e quando Shinju acordou, se viu dentro de um tubo criogênico, saído de uma

comporta da parede do laboratório. Com sofreguidão ela acionou uma alavanca e seu pequeno corpo caiu sem amortecimento ao chão gradeado. Sua mente estava desnorteada. Ela ainda viu os andróides médicos antes de voltarem para suas alcovas metálicas, dentro das paredes. Aos poucos começava a entender o quê acontecera. Tudo veio à tona quando observou que suas partes orgânicas destruídas foram substituídas por um tecido cibernético, engatado por máquinas inteligentes, que simulavam a replicação celular. Shinju, retomando as forças, caminhou na direção da vidraça destruída, pegou a katana do chão e vestiu um roupão branco, amarrando o laço frontal. Lá de cima, do quadragésimo andar, Shinju podia observar melhor a tenebrosa Tóquio, com todo seu assustador horizonte urbano, advindo da Zona do Caos. Apesar de saber sobre a nova humanidade e sua impossibilidade em sorrir, ela sentiu que sorrira; era a primeira vez na vida. Shinju ficou ali, olhando para Tóquio, durante 15, 30, 75, 150 segundos... e nada. Nada aconteceu. - “É tudo mentira.” – ela repetiu, agora consciente de tudo. Shinju olhou para a Sky Tree Tower com um olhar de mistério e esperou. Algo iria acontecer; tinha que acontecer. De repente um padrão de brilhos sur-

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giu, formando uma frase; frase esta que já dizia qual seria o seu destino. “Agora você sabe... Lembre-se, Ciborgue... Os Sobreviventes de hoje... serão os Mestres do amanhã... Bem vinda a Era do Caos.”

Rodrick Loneman 133


algum dos dois, mas acabei por ficar com o melhor amigo de Fernand. Agora, Fernand estava na minha sala, esquadrinhando a foto e provavelmente rememorando aqueles bons momentos, como confesso já ter feito tantas outras vezes. “Ele sempre prezou sua amizade, Fernand. Você era seu melhor amigo”, me anunciei, interrompendo-o.

A FLECHA

Ele me encarou demoradamente. Não me via há anos. “Amália...”, notou, em tom grave, mas depois sorrindo, “... continua bela como da última vez”.

A ideia de uma coisa não acompanha o desgaste do tempo, isso é certo. Quando entrei na sala, deparei-me com o menino de tantos anos atrás, os cabelos bagunçados, o pescoço ereto e o nariz adunco. Uma beleza rara, que só veio a se aguçar com os anos que se passaram. Aos poucos, contudo, a realidade veio, em ondas, definindo-se em meio à turvação, quando o menino foi substituído já pela figura do homem, com suas poucas rugas e o ar de maduro. Segurava nas mãos uma fotografia nossa. Ciudad de Simón Bolívar, 2068, creio, não tínhamos mais que vinte e tantos, nós três. Não sabia que me casaria com

Devolvendo o porta-retrato ao lugar, caminhou em minha direção. “Sinto muito não ter comparecido ao funeral. Não me perdoo. Compromissos me tomaram o tempo e isso é imperdoável. Espero consertar esta falta”, desculpou-se, prosseguindo: “nosso afastamento foi um duro golpe para mim. Apreciava a companhia dele”. Abraçou-me. O cheiro, a textura da pele. Igual. Decidi que ele estava sendo honesto.

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“Ele não lidava bem com o afastamento. Traba-


lhei para que se reconciliassem, mas...”, não consegui prosseguir, traída pelo que viria a proferir. “Não se pressione, querida Amália. A fotografia que eu olhava agora mesmo – e apontou para o canto da sala de estar – belos momentos aqueles. Lembra da roda gigante? Do Jockey? Da guerra de travesseiros?”. Não pude conter o riso.

“Trabalho fantástico o que fizeram aqui”. “É um tanto quanto difícil perambular por aqui. Cada cômodo, cada canto, tudo me faz lembrar dele”. “É como eu disse”. “Às vezes me pego esperando ele para o jantar ”.

“Aquele hotel não deve ter se esquecido de nós três!”.

Fernand fixou sua atenção num ponto qualquer do corredor.

“Só o hotel? A cidade inteira deve ter se reunido e proibido nosso retorno, ora! Já consigo imaginar os cartazes de ‘Procurados’ com a imagem de nós três”.

“Surpreendi-me com seu convite, Amália, não imaginei que fosse algum dia precisar de mim e, bem, aqui estou. Ele não concordaria com isso, devo alertá-la”.

O mesmo sorriso. Um longo suspiro me fez arfar. Tive de desviar o olhar.

Seu tom era tranquilo, temeroso até. Por alguma razão fiquei feliz com aquele devotado respeito ao meu marido.

Percebendo a hesitação, ele elucubrou: “Sabe. Algumas memórias se apagam com o tempo, felizmente ou infelizmente, ainda não me decidi. Elas insistem em se esconder em cantos recônditos de nossos cérebros, enquanto outras parecem vívidas, como que ocorridas ontem mesmo. Não concorda?”.

“Estou ciente disso, Fernand. Acredite, já me torturei repetidamente remoendo o assunto. Ele não concordaria, é verdade”. “Então?”. “Não por mim, mas por você”.

Concordei.

“Por mim?”, questionou, surpreso.

“Venha ver a casa”, convidei.

“Sim, não é segredo a desavença que tiveram por 135


causa do projeto... veja, esta era a sala de leitura, ele passou muito tempo aí nos últimos meses”. Fernand encarou a poltrona como se a qualquer instante seu antigo amigo fosse se materializar sentado no estofado. “Não há mentira no que diz, mas não posso dizer que se trata da verdade. Ele era um homem sábio, e não quis levar os créditos por sua contribuição”. “Talvez seja isso mesmo, Fernand. E não é a toa que decidi chamá-lo”. Olhei-o por alguns instantes, sem disfarçar o constrangimento: “você... você aceita um chá?”. “Claro”.

vida a dois. Uma alguém órfã de seu amor. Se sabia ou não, estava ali por convite meu. “Estamos transformando uma era, eu e minha companhia, e digo isso sem ser pretensioso, Amália. Você – e segurou meu braço, terno – não precisa chorar, a não ser pela alegria de ouvir novamente a voz dele. Não precisa varar as noites pensando na falta que a respiração ruidosa dele fazia, deitado ao seu lado. Houve um tempo em que era preciso esquecer. Agora eu pretendo criar um tempo sem essa necessidade. Um tempo de lembrança e de alegria”. Fez uma pausa, não sei dizer se estratégica, enquanto eu vasculhava os bons momentos, fiapo por fiapo. “Contudo...”.

Quando retornei à sala das visitas, ele voltara a se entreter com a fotografia de nós três, sentado ao sofá. “Também sinto a presença dele nesta casa, Amália. E sei de sua dor”. Sei que ele sabia, sei que imaginava a falta que me fazia o homem, seu amigo, levado tão prematuramente. Que imagem Fernand tinha de mim? Posso imaginar que ele tinha a perspectiva de uma mulher chorosa, remoendo os cacos de lembranças de uma

“O que é, Fernand?”. “Pelo respeito que nutria a ele e por tudo o mais... bem, não quero passar a impressão errada. Você confia em mim e me chamou aqui...”. Ele estava visivelmente desconfortável. A ansiedade transbordava, me contagiando Antes que pudesse entendê-lo, ele suspirou e pareceu condoído:

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“Só posso dizer que, embora possua a chave para sua felicidade, tenho o desejo sincero de não usá-la como pretende”. Sentia-me amarga. A voz que saiu de mim era sem vida. “Fernand, vamos prosseguir, é o que quero”. Ele se virou e já ia balbuciando algo, mas desistiu depois de notar que meus olhos miravam o chão. Caminhou contrariado até a porta, abrindo-a vacilante.

daquele modelo. “Boa tarde, senhorita Amália. É um prazer”. “O prazer é meu...”, respondi, incerta. Ela pareceu refletir sobre aquilo e se limitou a olhar para Fernand. “Vamos prosseguir então”, ele se lamuriou. Levei-os para o hub.

Na soleira, uma garota de quinze ou menos aguardava pacientemente, uma palidez algo artificial e o semblante sem dizer coisa alguma.

Sonja andou vagarosamente até o core e fez uma série de conexões neurais com a rede. Seus olhos se fecharam e ela pareceu murchar, pendendo ligeiramente os ombros para baixo. Olhei confusa para Fernand.

“Entre, Sonja”, solicitou Fernand, pontuando um esquisito sotaque ao proferir o nome. Era uma ordem.

“Não é nada demais. Ela se conectou, está buscando as fontes de que precisamos”.

A garota deu alguns passos e atravessou a porta, olhando brevemente para seu derredor. “Ela é...?”. “É sim. Fabricação russa”, respondeu Fernand. Uma robô. Não eram comuns em formas tão humanas, e me senti fascinada pela beleza juvenil

“Não entendo bem como isso funciona”, revelei. “E nem precisa. Veja bem, a Rede é mais complexa do que podemos imaginar. É o refino do tempo e do espaço como o conhecemos. Se em outros tempos o homem já se ocupou perquirindo as ilusões da continuidade do espaço e a relatividade do tempo, hoje podemos afirmar sem problemas que o espaço virtual é infinito, contínuo e ilimitado, um poder de

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armazenamento que transcende o que pensávamos ser possível. Trabalhei anos com o grupo de pesquisa do qual ele fazia parte, você se lembra. Por acidente, descobri a recordação. Quando tive contato com os resultados, não podia acreditar que aquilo era real, por isso a chamo de tecnologia Zenão”. “Zenão?”. “Exato, foi essa ideia que me passou há alguns anos. Sem ele, jamais teria chegado a desenvolver o serviço que agora lhe presto. Foi ideia dele tomar as bases de Zenão para continuar nossa pesquisa”. Fernando vibrou com as memórias. “Zenão foi um pensador nascido muitos anos antes de Cristo. Suas teorias procuravam brincar com a ideia de realidade que temos. Através da formulação de paradoxos ele demonstrou, por exemplo, que o movimento não existe”. “Como isso é possível?”, a ideia me parecia sem sentido. “Encontradas quatro bilhões, vinte e três milhões, cento e quarenta e sete mil referências, senhor, já computadas as referências criptografadas de voz e imagem, as citações cruzadas e o arquivo confidencial 138


e desprezadas as informações dúbias e irrelevantes para a recordação. Preparando catalogação preliminar”. Ele meneou impaciente a cabeça, de cima para baixo. “Sim, sim, prossiga, Sonja”, e então para mim: “Não perca seu tempo, Amália. São ideias loucas. Em seu paradoxo da flecha, por exemplo, ele dizia que a flecha, quando lançada, ocupa um lugar igual às suas próprias dimensões. A cada momento em que ela avança, preenche um lugar no espaço próprio de suas dimensões. Assim, ela sempre está em repouso e nunca em movimento”. E prosseguiu didático: “Outro paradoxo foi o de Aquiles e o da tartaruga. Ele propôs uma corrida hipotética entre os dois, partindo da ideia de que a tartaruga teria uma vantagem na largada. Afirmou que Aquiles jamais alcançaria a tartaruga, pois a cada deslocamento de Aquiles, a tartaruga teria se deslocado em distância equivalente a de sua vantagem inicial”. “Isso tudo me parece bobagem, Fernand”. “E é. Mas ocupou a cabeça dos filósofos por milênios e só ganhou algum alento durante a Modernidade 139


e depois com a Teoria da Relatividade e depois com a Física Quântica. O importante é que a ideia de tempo e movimento irreais me fez encontrar respostas que não esperava no ciberespaço”. Sentia-me feliz por ter dispensado conversas sobre trabalho no relacionamento. “Escaneamento e catalogação completos, senhor”, alertou Sonja. Caminharam juntos até a sala, acompanhados pelo meu olhar, a mão dele guiando as costas dela. “Veja Sonja”, disse Fernand, indicando à robô a fotografia que ele tanto prezava. “Este foi meu grande amigo...”. Ela segurou o porta-retrato nas mãos. Analisou-a friamente. Os olhos emitindo uma radiação opaca. E depois sorriu. “Você era mais jovem. Parecem felizes”.

a você. Eles a matariam pelo segredo” – e piscou. Alcancei-o. Ele me devolveu o porta-retrato e nossas mãos se tocaram. E assim ficamos, até que um de nós se lembrou de separá-las. Vi-os saindo pela porta, a imagem do homem se confundindo de novo com a do menino. ··· Caminhava pelo comércio local quando senti uma presença me observando do outro lado da rua. Era Fernand. Com a mesma mão que segurava um cigarro ele fez sinal para que eu fosse até ele. Entramos em um café. Sem rodeios ele principiou: “Não consigo ir adiante com isso, você precisa desistir, Amália. Pensei muito a respeito. Devolvo seu pagamento e esqueçamos isso”. “Não entendo, Fernand, por que tenta me demover?”.

Então ele se virou para mim: “Querida, Amália. Os resultados demoram algum tempo para serem processados e refinados, dias talvez. O passo seguinte, infelizmente, não posso revelar

“Isso tudo. Envolve riscos, Amália. Eu penso que você tem uma chance de seguir em frente. Você tem a chance de esquecer. É o que desejo a você”.

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Fiquei em silêncio por alguns segundos, tentando


compreender a incongruência de meu amigo. “Eu não quero esquecer, Fernand!” . “Você precisa”, redarguiu, incapaz de sustentar seus olhos nos meus. “Fernand. Você... tem ideia de como sinto falta daquele homem? De sua pele? De seu cheiro? Ele foi tirado de mim sem qualquer razão para que isso acontecesse. Não era para ter acontecido. E agora eu posso tê-lo de volta, nem que seja dessa forma. Nem que seja quase real”, revidei. Ele parecia frustrado e, após alguns instantes, tirou um envelope de seu casaco.

“Coisa dele. Ele tirou e nunca lhe mostrou. Entregou-me tão logo pôde revelar. Disse que era um presente. As pessoas que ele mais amava. Ele fez isso por você. Foi a sutileza dele, sempre ela. Um sinal claro de ‘caia fora!’, com toda a polidez para que ainda fôssemos amigos”. Talvez ele tivesse ido ao banheiro naquele dia, talvez comprar sorvetes, talvez tentasse tirar uma fotografia de uma paisagem qualquer longe de nós. Não me recordo. Quando voltou, encontrou Fernand e eu sob um pôr-do-sol, olhando um para o outro. Rindo. E eternizou isso. Sentia-me confusa. “O que pretende me dizer com isso?”.

“Isso é para você”. Ele me entregou o envelope. “E saiba, é mais real do que imagina”. Tentou disfarçar o tremor de sua mão, sem sucesso. Olhava o relógio repetidamente. “Vamos logo, abra”. Dentro havia uma fotografia. “Eu não conhecia esta, Fernand, ela... quando?”.

Eu já sabia a resposta. Não era novidade para mim ou para ele o que quase aconteceu. O que poderia ter acontecido. O que deixou de acontecer por uma infinidade de escolhas e ações que culminaram com o presente. Ele entrelaçou seus dedos aos meus. A pele ridícula ruborizando, com toda a certeza. Uma lágrima já teimando em escorrer. Ele me sorriu tranquilizador, apertando minha mão. Uma pressão tão leve. Como ele fizera tantos anos atrás. Firme e terno. Não posso

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negar que senti alívio, uma espécie de prelúdio de libertação, uma expectativa. Ele ainda me sorria quando senti a vibração. Uma ligação. Nossos dedos se descolaram e tanto não havia mais sorriso no rosto dele quanto minha lágrima já havia se perdido pela gravidade. Do outro lado da linha, uma respiração pesada, como que despertada de um sono esquecido. Não me lembro de ter dito alô? ou perguntado quem era, mas a respiração se acalmou e uma pequena risada se seguiu, então soube quem era. “Meu amor...”, começou, escolhendo as palavras, igual a um filhote escolhendo bem os passos ao aprender a caminhar. “Meu amor... que saudade...”. Era meu marido.

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Sobre V. H. de A. Barbosa V. H. de A. Barbosa, 27, ĂŠ aspirante a escritor, atualmente escrevendo o primeiro livro de contos e trabalhando em outros projetos literĂĄrios. Editou os blogs Ruinaria e Zaratustra tem que morrer. Assessor jurĂ­dico e estudante.

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SEGUIMENTO DEVIR O que Henry James, Charles Dickens, Machado de Assis – poderia citar muitos outros, clássicos e contemporâneos – teriam em comum, para além de análises estilísticas e comparações que aqui não cabem realizar? Os três, e outros grandes da Literatura, realizavam publicações periódicas em jornais e revistas. Até aqui muito obvio e um pouco redundante, supérfluo. É exatamente este tipo de publicação que A Fluxo – Revista de Criação Literária quer experimentar. Uma publicação periódica, com uma narrativa inédita, de uma autora – ou autor – ainda pouco, ou nada, conhecida.

Quem sabe um grande autor desta geração surja das nossas páginas virtuais. A estreante desta série na Fluxo será a jovem escritora gaúcha Ananda Paradeda; e como anunciamos brevemente no editorial, todo este empreendimento será um desafio, tanto para os editores como para a autora. E para mostrar que estamos apostando neste pequeno formato de apresentação – publicação periódica de um texto inédito – nos comprometemos a ter o mesmo cuidado com que a Fluxo – Revista de Criação Literária é realizada. Quanto tempo irá durar? Quantos capítulos a história terá? Somente com o decorrer e desenvolvimento da narrativa iremos descobrir. Como editores, o que nos resta desejar é apenas uma boa leitura.

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TRANSCENDÊNCIA Ananda Paradeda

Quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Querido diário, Não fique muito animado com o que estou prestes a te contar. Pode ter sido engraçado, mas em mim doeu. Se tu rires da minha cara, vou te transformar em uma horcrux. Hoje, eu e Liam acordamos de madrugada. Tu bem sabes que nós moramos em apartamentos vizinhos, por isso sair de casa e nos encontrarmos foi fácil e seguro. Fizemos pouco barulho para não acordar ninguém, mas deixei uma nota para minha mãe na geladeira informando que tinha saído pra andar de skate. Na escuridão das ruas da nossa cidade, fomos até uma pista na Zona Norte. Lá era mais bonito de sentar e ver o sol nascer, a pista ficava na beira do rio que banhava a cidade, e nossa localização geográfica permi146


tia que víssemos o sol nascer bem acima das águas esverdeadas. Uma visão magnífica do horizonte que eu, pessoalmente, acho que todo ser humano deveria experienciar. Nos sentamos lá, um ao lado do outro, e vimos, com as pernas caídas para o lado de dentro da pista, o sol raiar. Liam brincava com o meu cabelo loiro e comprido, dando-lhe nós, e eu retribuía com leves tapinhas e empurrões em seu ombro direito. Sempre fomos muito brincalhões. Mais do que amigos, somos irmãos. Depois de ocorrido o espetáculo, quando já havia luz o suficiente, fomos andar de skate. Aquela pista é divertida por se tratar de uma das maiores snakes do mundo. Temos que aproveitar as primeiras horas da manhã, porque depois ela lota, e nem sempre com um pessoal legal. Mas aí, decorridos alguns bons minutos fazendo estripulias pela pista, eu alcancei o inevitável e dei de cara no chão. Sim, de cara. A coisa aconteceu tão rápido que nem tive tempo de usar as mãos pra me proteger. Ralei a testa e o joelho. Claro que Liam primeiro parou e riu da minha cara até sentir dor, e depois veio me ajudar. Eu não podia culpá-lo. Eu mesma só não ria porque estava doendo pra caramba.

Ele me ajudou a sentar num dos bancos de praça de cimento que tem ali por perto e deu batidinhas leves pelo meu corpo a fim de limpar a sujeira. Toda vez que ele chegava perto dos machucados, meus olhos marejavam. Uma vez eu li que só sentimos dor quando machucamos a segunda das três principais camadas de pele, porque era ali que se situavam os neurotransmissores. Essa era a única explicação pra um machucado tão furreca arder tanto. E aí eu ouvi a voz que eu mais odeio no mundo. Tu sabes qual é, não é? Aquela Hera maldita. Sempre me tratando com menosprezo, por puro ciúme, por insegurança. Ela fez Liam parar de me ajudar pra pedir um café-da-manhã a dois no McDonald’s. É isso mesmo. Eu ali toda ferrada e ela só pensava em comer. Claro que Liam disse não. Ela brigou, bateu pé, fez beicinho, me chamou de vagabunda e foi embora. Quando o loirinho voltou e sentou do meu lado, soltei umas verdades de uma maneira que agora me arrependo. Contei pra ele sobre como era verdade que ela o traía toda vez que saía com as amigas, sobre como era ela quem roubava e gastava até o último centavo do cartão de crédito dele, como ela tinha afastado dele todos os guris que antes eram nossos amigos.

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Eu fiquei por persistência. Terminei dizendo que não entendia como ele ainda estava com ela se ele merecia alguém muito melhor. Peguei pesado, agora eu sei. Mas ele soube como eu estava certa e não questionou, apenas baixou a cabeça e respondeu:

- Mas eu amo ela...

O amor é uma dádiva e uma droga ao mesmo tempo. Acho que é a única coisa no mundo que pode receber essa definição e fazer jus a ela. Dádiva porque te faz a pessoa mais alegre do mundo, se tu já tens a felicidade dentro de ti e se ele é correspondido; droga porque te transforma em um completo panaca e, se não for correspondido, aí meu amigo, tu sentes a famosa “dor nível 10”, porque não existe dor física pior do que a emocional. Assim que parei de sangrar, fui até o bebedouro e lavei meus machucados. Depois, Liam sugeriu me pagar um café-da-manhã num hipermercado próximo. Fomos até lá e pedimos salada de fruta na lanchonete. Sentamos e começamos a conversar. Liam começou dizendo como Hera o influenciava de uma maneira negativa quando percebeu que eu agradecera a garçonete que trouxera nossos pedidos. Ele havia parado de fazer isso, porque a namorada não fazia e o criticava quando ele fazia.

Depois, houve um momento de distração com uma frase minha, que não lembro bem qual era, então, como se voltasse para a conversa, ele se debruçou novamente sobre a mesa e pegou a colher da sua salada. - Pessoas superficiais só têm influxos superficiais sobre os outros. - E voltou a comer. Ergui minha salada com as duas mãos até a altura dos lábios e apoiei os cotovelos na beirada da mesa. Comecei a bebericar o líquido frutífero enquanto observava o amigo e pensava em tudo. - Um brinde às pessoas superficiais. - E ergui mais a salada. Ele deu um meio sorriso e tirou a colher de dentro do copo, bateu-o levemente contra o meu e terminamos juntos o nosso café. Nos levantamos. Liam pagou a conta e saímos dali. Ele me informou que sentia muito me deixar sozinha, mas precisava ir se encontrar com o seu pai. Já era meio da manhã e ele tinha que chegar na casa do Seu Pedro até as 11h. Nos despedimos e, após assistir ele indo embora, liguei para minha amiga Letícia e marcamos de almoçar juntas num shopping ali perto.

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No caminho, passei pela pista e conversei um pou-


co com algumas das pessoas que estavam ali e que eu me dava bem, depois segui. Chegando lá, a ruivinha já estava sentada à mesa me esperando. Nosso almoço, como sempre, foi muito divertido. Eu e ela somos o tipo de dupla que não pode se encontrar porque tudo vira motivo de riso. Temos algo incomum entre nós e gostamos de preservar nossa amizade (que já tem 7 anos) por esse motivo. Quando voltei para a casa, meus músculos faciais doíam de tanto rir. Era uma sensação gostosa. Tomei um banho, troquei de roupa e, ainda com os cabelos molhados, bati na campainha de Liam. Ninguém respondeu. Pensei que ele poderia não ter voltado ainda, então voltei pro meu quarto e passei a tarde lavando a alma da melhor maneira possível: ouvindo música. No início da noite, voltei a tocar a campainha do menino. Dessa vez a resposta foi quase imediata: o pai dele apareceu com aquela barriguinha de chopp que ele tem. Fiquei surpresa porque o Seu Pedro nunca atende a porta do apartamento dos filhos (Liam mora com a irmã mais velha), mas, de qualquer forma, perguntei pelo garoto. - Ele não te contou? Ele se mudou pro Rio de Janeiro. Apareceu uma oportunidade de trabalho lá e ele foi hoje de manhã. Maysa: meu mundo caiu. Eu acho que fiquei pálida, porque ele perguntou se eu estava bem. Menti que sim e que tinha esquecido daquele detalhe... Só que não se pode esquecer algo quando não se tem conhecimento sobre esse algo. Voltei pra minha casa e comecei a ligar incessantemente para o celular daquele idiota. Não podia – NÃO POSSO – acreditar que ele faria uma coisa daquelas comigo! Só podia ser piada, e não era nem um pouco engraçada. Lá pela 50ª ligação não atendida, meu coração saiu de mim em forma de lágrimas, que eu estava chorando até agora pouco (minha mãe me deu colo e um chá de camomila para dormir). É absurdamente inacreditável.

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