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O tártaro

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Mulheridades

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Mariana Vieira

Mariana Vieira Gregorio nasceu em 13 de novembro de 1990, em Campinas. Formou-se em Audiovisual pela USP e, desde então, vive em São Paulo. Trabalha com edição de som de cinema e TV e está para lançar seu primeiro livro de contos, o Noturna, pela editora Patuá.

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Estava eu na rua à lateral do meu trabalho, donde saí, não sem antes tudo trancar, cada porta com sua respectiva chave, e há meia dúzia de portas que não podem ficar abertas e acionar o alarme e me esquecendo de dar boa-noite ao vigia da rua e colocando uma perna depois da outra arqueada sobre a lombar passiva de lordose, quando o tártaro olhou estranhamente para mim. Minutos antes reparei nos dois corpos masculinos visíveis no escuro da rua: mais distante, um homem com sua mochila (o tártaro, nessa hora, não passava de um vulto qualquer) e um outro tentava levar uma espécie de porta, como essas que se põe na entrada de vistosas casas, com vãos quadrados onde deveria haver vidro. Presumi seu peso, a porta estava apoiada no asfalto, ele parou – descansava? – de frente a ela, quase no meio da rua, se é que pode se chamar de rua está esquina onde parece-se mais como uma viela, inteira escura às oito da noite. Segui com meus devaneios, sem pensar em homem algum, nem o da mochila, nem o da porta e, evidentemente, nem no vigia; avistei-os meramente por uma rápida checagem de sobrevivência, como um pequeno animal que antes de andar, de dormir, caçar, comer, dar de mamar, distrair-se com o formato de uma nuvem, antes de viver, de tomar qualquer ação que envolve qualquer necessidade fisiológica, emocional ou prazerosa, tem de olhar bem se não há predadores, se é seguro avançar, se correr o risco valia a vida, a carregar de forma casual, acidental, fortuita, entre respirações e ovulações incontroláveis.

A rua se encosta na escuridão, não há muitos postes acesos aqui, todo o outro lado é ocupado por um muro baixo de cemitério, e assim é a morada dos mortos, sem lâmpadas entre as copas frondosas de árvores (já as árvores, sombreiam os resquícios de luz); os faróis do carro me permitem ver, mal-ver, onde piso, a luz do farol me deu o vislumbre do olhar estranho do homem de mochila. No punho fechado segurava um cabo de vassoura, a mochila era dessas de viajantes-andarilhos, surrada, por debaixo de seu shorts um outro de lycra, como alguém que pedala ou vive em outro século, o braço esquerdo segurava outra mala, igualmente preta e surrada, o preto encardido das mochilas a caminhar sem descanso por entre oceanos e continentes. Nada disso eu teria reparado se ele não virasse e me olhasse: quando eu o vi, parecia-me que a algum tempo já me olhava. E por quê haveria de ser estranho? Ora, porque não se parecia com nenhum olhar que um homem me dirige na rua, não estava tentando me amedrontar ou intimidar, não havia malícia, como é de costume dos homens ao encontrarem uma mulher sozinha: o estranho foi me olhar com temor, como se fosse eu a ameaça. Balançou nervoso o cabo de vassoura na mão e a boca chegou a repuxar para os cantos, aqui permito-me descrever as feições do rapaz. Tinha um rosto particular por conta de seus olhos puxados, o rosto era todo afilado e a cabeça quase nua, uma barba preta e pontuda caía ao queixo, como um tártaro, sim tinha feições de um tártaro, na hora pensei também em russo, mas russo mal servia para definir seu rosto; brandia o cabo da vassoura como se fosse uma lança, sem ponta afiada era apenas um cajado carregado como se fosse lança. E tinha medo nos olhos. Eu andava com o peso do dia sobre meus ombros, os olhos quase se fechando de exaustão, o enjôo de refazer todo dia o mesmo trajeto e não tinha feição alguma, talvez alguma arrogância no

andar, uma arrogância não planejada, um desinteresse latente pela vida ao redor, e, surpresa, reparei no seu olho trêmulo. Será que eu também deveria sentir medo? Olhei por detrás dos meus ombros e diminuía o homem parado no meio da rua com a porta sem vidros. O tártaro apertou o passo, como se eu estivesse a persegui-lo e olhou para os lados como quem busca abrigo. Àquela hora todo o comércio local fechara: duas mecânicas, uma loja de material de construção, uma barbearia pequena onde o barbeiro, um homem curiosamente mirrado, passa todo o dia na porta. Atravessamos o longo muro do ecoponto. O escuro da noite apaga os grafites, o galpão vazio parece agora um ótimo lugar para matar alguém ou, quem sabe, entre os entulhos, esconder seu corpo. É isso o que ele pensa? Eu, logo eu, seria capaz de arrastar seu pesado corpo pelos pés, a cabeça tártara tremulando ao chão, a boca aberta a escorrer um filete de sangue, e de ali deixá-lo entre os entulhos, junto da mochila surrada, empilhado de tal modo que não se perceba diferença entre um homem e uma mochila; e como, com qual força? Se nem uma arma tenho, se é ele quem anda por aí passando de uma mão a outra um cabo de vassoura de forma ameaçadora. E se tivesse razão, por que eu o perseguiria? Poderia eu, uma mulher, ser capaz de perseguir um homem, de intimidar um homem, de botar medo, como eles o fazem tão facilmente comigo e minhas companheiras de gênero? Mas se não estou o perseguindo, por quê então este olho de horror? E por quê apressa o passo nervoso, e sem mais nem menos, retarda? Para me testar, ver se o alcanço e desvio, revelar minha não-intenção, como eu mesma já fiz quando me senti perseguida por um homem? Estou a menos de dois passos de distância de seu corpo e de sua mochila e a luz do posto de gasolina da esquina desfaz o escuro que estávamos mergulhados, ali a ilha de luz oferecerá um desconcertante desconforto a todos os assassinos, estupradores, ladrões, malfeitores, stalkers, paisanos e paranóicos que desejam ardentemente perseguir alguém no escuro. E não sempre fora tal ilha de luz um oásis para mim? Não quero passar ao seu lado e tomar a frente neste caminho, perto de seu cabo de vassoura vacilante, pois temo que o jogo se inverta e, novamente, serei eu a perseguida, a presa habitual das noites. Ninguém nunca me falou sobre o estranho prazer de perseguir, ser finalmente tigre e não coelho. Mas por quais motivos eu o persigo? Da janela de sua casa, vê uma sombra se mover lá fora, ouve passos que nunca revelam a origem. Neste mundo patriarcal, é o homem que persegue mas, num susto, vê-se perseguido pela própria presa, como se relógio resolvesse andar para trás e a realidade não passasse de um reflexo invertido nas águas de um rio divino. E se a porta emperrada no meio daquela rua me jogou num mundo invertido, a cada passo estou mais próxima do século V, o cemitério se desfaz na árida paisagem do deserto de Gobi e minhas roupas ganham os tons dourados e vermelhos do exército de Gengis Khan. Persigo, pois perco-me na história dos dias dos homens e minha vulva cospe para fora seu onipotente colosso. Mas sou eu, mulher, a perseguida ao longo dos séculos e adiante, desde o primeiro genocídio da pólis matriarcal, amazonas extirpadas, sal na terra onde concebeu-se a deusa da fertilidade. E quando o porteiro da porta mágica cansar de inverter mundos, estarei em apuros, sozinha nova-

mente. Antes do encanto acabar (ou sequer iniciar), preciso me adiantar, como sempre, me precaver.

Na outra viela à esquerda do posto, há uma pequena quadra onde pessoas um pouco excêntricas juntam-se para fazer todo tipo de coisa circense: malabares principalmente, e uma vez ou outra, cuspidores de fogo, palhaços. O tártaro é um cuspidor de fogo, e leva na mochila todo apetrecho necessário para se matar alguém: algum líquido inflamável, isqueiro, garrafas tintilantes de vidro; sua postura é cigana, não tem lar, vive do espetáculo oferecido no bueiro. Quanta coragem é preciso para atear fogo na sua própria garganta? Precisa-se de tanto mais para queimar o corpo de outro ser humano? Numa dessas noites a voltar do trabalho, uma travesti contou-me, com felicidade, que ateou fogo ao corpo de um homem que tinha lhe roubado. Falou-me: minha maior desgraça foi ele não morrer. Como se ateia fogo ao corpo de alguém? Poucos segundos e já não há ninguém ali: o corpo perde sua forma, peso e cor, consomem-se as feições do rosto e até o horror dos olhos, cala-se o grito interditado. Tudo que era próprio some. A substância torna-se outra, já não se é sólido, a carne flameja: desesperado e afônico, a vítima tenta apagar com as mãos em chamas o resto do fogo. Neste momento, nada mais se é além de um fogo vivo. Sou ou não sou eis a questão e outras perguntas consumidas no calor da morte. Um corpo em chamas são apenas chamas sem corpo. E se o corpo não se reduzir a pó e fumaça, nunca repetirá sua mesma imagem: coberto das escamas anfíbias da marca das chamas, das cicatrizes pútridas dos que anteviram a morte, exposta a tragédia. As labaredas que o tártaro engole é a vitória do corpo sobre o fogo irascível. Fico interessada em saber o aspecto tem sua garganta. Mas o que um homem desses teme? A vingança de uma deusa? A vingança curva-se sobre mim, sou eu que todo dia deve carregá-la, como se não doesse, como se não envergasse minha coluna, pouco a pouco, a vingança me toma sem eu perceber. A vingança por si só, sem razão, caótica, serpenteando em todas as esquinas escuras do mundo, aguardando o momento propício para se fazer vidente. Ela clama meu nome. Ouça o sussurro das árvores sobre as lápides do cemitério. O que é matar dentro de um cemitério, eu me perguntei tantas vezes a atravessá-lo, matar alguém dentro de um santuário de corpos petrificados, de ossos desenterrados, cal e mármore, creolina e o perfume selvagem de rosas e cravos, matar um corpo dentro de um lugar onde tão fácil seria desmembrá-lo e distribuir os ossos em diferentes lápides; espantariam-se os mortos com braços, pernas, unhas e globo ocular intrusos, sem sobrenome em comum ou divisão das taxas de manutenção, a lotar um pedaço já tão apertado de terra?

O tártaro me teme pois sabe que a vingança é um incêndio a qual não escolhe sua vítima: ele se espalha por todo o território, mata cachorros, crianças e delicia-se nos móveis de madeira, nos sofás arranhados por gatos coléricos. O cuspidor de fogo me teme porque conhece bem o fogo que come para comprar o pão duro a escorregar garganta adentro. O fogo era seu ato de coragem, mas tornou-se sua covardia seca e triste dos que têm de trabalhar para viver; o fogo mal arde, é murcho e triste feito uma laranja amarga demais, uma banana passada

dos dias, uma maçã apodrecida por dentro. Cuspi-lo aos aplausos dos olhos flamejantes das crianças e das avós gordas é o seu tempo vendido como o meu ao sorrir e servir, servir e sorrir, trancar bem as portas, abrir bem as portas, abrir bem as janelas para arejar, sentar-se e esperar, fingir que não espera, cuspir sorrisos tão perigosos quanto labaredas de mentira. O tártaro me teme e tem razão, a ira sopra junto ao vento, brinca entre as folhas das árvores, busca abrigo nos túmulos vazios e sobe escaldante nos dias de calor, cai como chuva fria nas noites cinzas, a ira não tem forma de tempestade nem se manifesta derrubando árvores no meio-fio, ela está esperando, esperando pacientemente pela próxima mulher que deixe-a entrar qual um desejo irrecusável. O cuspidor de fogo sabe quando vê alguém que não sabe cuspir o fogo; alguém que só o engole, uma estufa cultivadora de incêndios, e está prestes a entrar em combustão sem o menor sinal de antecipação: alguém que não tem mais nada a perder. Consumir as lembranças, os sorrisos, o tempo, consumir o rosto, apagar a si mesmo e qualquer um que cruze seu caminho; e é por isso que ele anda sempre com um cabo de vassoura, é por isso que ele sabe que a guerra não termina, nunca terminou, Irã, Iraque, Mongólia, Coréia, Paraguai, Romênia, Albânia, Alemanha, Japão, Sérvia, Palestina, Congo, Nigéria, Moçambique, Filipinas, Chechênia, China, Timor Leste, Líbia, Sudão, Turquia, Uzbequistão, Cazaquistão, Ucrânia, Turcomenistão, Nicarágua, Equador, as favelas do Rio de Janeiro, os presídios de Natal, São Luís, Altamira, Venezuela, o suicídio dos Guarani-Kaiowá, dezenas de milhares de mortos no mundo todo. Em alguns lugares, há mais mortos que terra para enterrar. Ninguém me falara do prazer no ato de perseguir, queimar e ver morrer alguém tão próximo assim; alguém lúcido o bastante; com dois olhos para poder ver a si mesmo consumindo-se. Ninguém nunca fala disso.

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