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Escritas inacabadas nos horizontes da formação de professores

Yara Cristina Alvim

Universidade de Lisboa/Universidade Federal de Juiz de Fora

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yara.alvim@ufjf.br

Resumo

O presente texto busca compartilhar uma prática pedagógica realizada em torno da escrita na formação inicial de professores, através de minha mediação como professora formadora. São também atores dessa cena pedagógica uma turma de estudantes do curso de Licenciatura em História e alunos da escola básica. Desta cena, sublinho a presença do professor formador como figura de acompanhamento, comprometida com cultivo e fortalecimento de uma relação pedagógica alicerçada no estar-a-ser junto (Ó, 2019). Compõem esse movimento reflexivo mediado pelo professor os exercícios coletivos de ler; o sublinhar e o grifar o texto; a construção de perguntas a partir daquilo que se leu e a escrita de outros textos, que sejam aberturas para novas camadas de significação das experiências educativas. Por fim, procuro situar a escrita como atividade de construção do conhecimento profissional dos professores, que se tece através do domínio crescente do “saber-dizer sobre a essência do ensino” (Nóvoa, 2017), em contextos acadêmicos e profissionais de partilha coletiva.

Palavras-Chave: Escrita acadêmica, Formação de professores, Conhecimento profissional dos professores.

1. Contextualização

Ao pé de um grupo de jovens universitários sentados em círculo, repousa a professora com uma folha de papel ao colo. Alguns grifos e notas escritas à mão contornam as letras digitadas naquele papel. Concentrados e silenciosos, a turma acompanha a leitura em voz alta de Gabriel, autor daquele texto. O estudante narra para a professora e para os colegas de classe sua experiência de prática docente realizada há poucas semanas com alunos de uma escola pública durante uma aula de História. O tema da aula: Revolução Francesa. O relato de um passado histórico conturbado, em que pululam reis, aristocracia e burguesia, é permeado por perguntas vivas, que são vocalizadas pelos estudantes no presente da aula e no presente da escrita de Gabriel. À pergunta do aluno Lucas, “O que acontece com o rei depois?”, sucedem perguntas em Gabriel, que irrompem a textura do seu relato em forma de dúvidas, hesitações, inquietações e incertezas profissionais. Os colegas de Gabriel acompanham sua leitura até o fim. O grupo inicia um diálogo. A professora participa da conversa e destaca daquele texto as inquietações que dali emergem. Procura instigar a classe com novas perguntas para reflexão. O diálogo prossegue e a aula se encerra com um convite da professora para que uma escrita seja elaborada a partir da leitura e da conversação disparada durante a aula. Daquele encontro, um novo texto é criado, outras conversações despontam e novas reflexões emergem.

O cenário “infinito” de (re)elaboração narrativa retratado acima é o palco a partir do qual busco compartilhar e refletir sobre uma prática pedagógica, realizada no contexto da formação inicial de professores, através de minha mediação como professora formadora7 Os atores dessa cena são alunos da escola básica, a professora formadora e sua turma de jovens estudantes de um curso de licenciatura em História da Universidade Federal de Juiz de Fora, situada em Minas Gerais, Brasil8. O cenário pedagógico desta prática ocorreu em contextos de aulas na graduação, dedicadas ao compartilhamento e (re)escrita de relatos de experiências educativas, elaborados pelos licenciandos9 a partir de suas imersões no contexto da prática escolar.

Nos relatos dos estudantes, emergem narrativas vinculadas à experiência do exercício da docência, centrada no planejamento e na realização de uma aula de História com alunos da escola básica. Selecionamos como pano de fundo os textos de autoria de Gabriel, licenciando em História. A pergunta - “O que acontece com o rei depois?” - é um dos episódios que o licenciando narra em seu primeiro texto e foi a partir desta cena narrada que procurei estabelecer uma ponte de diálogo com os jovens estudantes universitários no contexto das aulas.

Desta cena pedagógica, procuro sublinhar a participação do professor formador, ressaltando sua atuação como ator comprometido com o acompanhamento do enredo em que a cena se desenrola e no estímulo ao desenvolvimento de um movimento reflexivo coletivo sobre a experiência narrada. Trata-se, portanto, de destacar a presença do professor como figura de acompanhamento, comprometida com cultivo e fortalecimento de uma relação pedagógica alicerçada no estar-a-ser junto (Ó, 2019). Compõem esse movimento reflexivo mediado pelo professor formador os exercícios coletivos de ler e de escutar; o sublinhar e o grifar o texto; a construção de perguntas a partir daquilo que se leu e a escrita de outros textos, que sejam aberturas para novas camadas de significação sobre a experiência compartilhada entre o grupo.

No horizonte da mediação pedagógica do professor formador está o seu papel de ir ao encontro da pergunta e transformá-la em ferramenta de encontro com o conhecimento.

Trata-se de sublinhar dos cenários pedagógicos relatados a pergunta que antecipa, que interpela e espanta o professor em formação; os fragmentos de pensamento que sinalizam abertura, questionamento, dúvida e hesitações em torno do exercício da docência e, a partir destes tópicos de pensamento, instaurar um ambiente pedagógico aberto à reflexão e à elaboração de sentido sobre a profissão. Procuro situar os gestos de elaboração e de partilha das narrativas como atividade de construção do conhecimento profissional docente, conhecimento este que se tece através do domínio crescente do “saber-dizer sobre a essência do ensino” (Nóvoa, 2017), em contextos acadêmicos e profissionais coletivos de partilha. Trata-se, portanto, de sublinhar a centralidade da pedagogia no ensino superior enquanto uma Pedagogia do Encontro (Nóvoa, 2020), onde professor formador e sujeitos em formação se encontram na pergunta, em uma situação pedagógica de escuta atenta, de compartilhamento, de inquirição da experiência e de reelaboração de novos sentidos sobre a docência. Nesse movimento de acolher e acompanhar, situamos a potência da escrita narrativa como tecido de ressignificação do vivido, através de um exercício “infinito” de elaboração de sentidos sobre a docência situada no tripé escrita, leitura e conversação (Contreras et al, 2019).

7 Longe de qualquer pretensão de construir um texto autocentrado e referendado na ideia de compartilhamento de uma prática individual “bem sucedida”, procuro inscrever essa experiência no âmbito de uma pedagogia do Ensino Superior, o que supõe reconhecer a centralidade da docência universitária e do compartilhamento de práticas pedagógicas enquanto ferramenta que movimenta o pensar e o fazer coletivos na cultura universitária (Zabalza, 2020).

8 No Brasil, a formação de professores da educação básica se realiza pela formação universitária, através de cursos de Licenciatura. O curso de Licenciatura em História habilita o profissional para atuar como professor de História no segundo segmento do ensino fundamental e no ensino médio.

9 Designação dos estudantes universitários matriculados no curso de Licenciatura.

2. Descrição da prática pedagógica

A prática pedagógica foi realizada com uma turma de estudantes do curso de Licenciatura em História que, naquela altura, dedicavam parte substantiva de seu percurso formativo às atividades de imersão na escola. Durante dois semestres consecutivos, os licenciandos deram início a uma reflexão teórico e prática sobre a escola, a partir de atividades que buscavam centrar a reflexão sobre a docência em contextos escolares. A escola e a universidade converteram-se em campos a partir dos quais os licenciandos puderam refletir sobre o exercício da docência, alternando momentos de integração com os alunos da escola básica e momentos de organização e reflexão de suas experiências através da composição de relatos orais e escritos, de seu compartilhamento entre os pares e da composição de novas narrativas escritas.

2.1. Objetivos e público-alvo

Nesses momentos de encontro e de partilha entre a turma e a professora formadora, os licenciandos foram provocados a narrar cenários mais marcantes e os colegas eram estimulados a se colocarem numa posição de escuta ativa. O objetivo era tornar a narrativa subjetiva e pessoal um dispositivo coletivo, de modo que os colegas pudessem se perceber na relação com a narrativa alheia. Quais ressonâncias aquela experiência escolar provocava nos colegas? Em que medida as experiências individuais poderiam ser amplificadas e enriquecidas pelo olhar alheio?

Tendo como recorte a narrativa de Gabriel, minha mediação se fez no sentido de sublinhar trechos e fragmentos que julgava pertinentes para o aprofundamento da reflexão sobre o exercício da docência. Interessava-me destacar as relações pedagógicas que eram firmadas entre o licenciando, os alunos e o conhecimento histórico escolar, sublinhando os encontros e os desencontros dessa relação, de modo a transformá-los em objeto de investigação e de reflexão coletiva sobre os processos de construção da relação docente. Interessava-me também grifar daquele relato os fragmentos que sinalizavam aberturas, questionamentos, dúvidas e hesitações em torno do exercício da docência; assim como os movimentos de escrita que indicavam uma busca de sentido em torno do eu profissional.

2.2. Metodologia

“O que acontece com o rei depois?” é a pergunta que compõe uma das cenas pedagógicas narradas no primeiro texto de Gabriel, produzido em formato de relatório. A pergunta teria sido dirigida ao licenciando pelo aluno Lucas, durante uma aula sobre a Revolução Francesa. Em seu texto, tal pergunta é significada como um encontro inesparado, já que Gabriel não imaginara que sua aula planejada pudesse reverberar entre os alunos. Menos ainda esperava que um aluno tímido verbalizasse alguma reação diante do enredo histórico construído naquela aula. Em meio aos personagens narrados na trama da aula - reis, aristocracia, burguesia - Gabriel deixa entrever um esboço de escrita autorreflexiva. Seus anseios, hesitações, encontros e tentativas de estabelecimento de elos pedagógicos com os alunos aparecem no texto, em meio às cenas que orientam grande parte do seu relato. É nesse tecido-texto, que a pergunta de Lucas ganha lugar em seu relato. A despeito da força daquela pergunta, o autor passa por ela rapidamente, já que sua preocupação parecia estar voltada para a descrição de um relato do que se passou na aula. Gabriel aponta uma reflexão ligeira sobre seu espanto diante da pergunta e segue retratando outras cenas pedagógicas.

O espanto de Gabriel diante da pergunta rapidamente me chamou a atenção. Percebia ali naquela surpresa a brecha para continuar pensando com os estudantes sobre o modo como os sujeitos, em contextos educativos, vão significando o exercício da docência e se pensando professores. Após ter realizado a leitura individual daquele texto e ter percebido a potência daquela pergunta como dispositivo reflexivo, selecionei o texto de Gabriel para ser compartilhado com os colegas de curso. A metodologia foi se fazendo na interação com a turma, ainda que eu procurasse não perder de vista minha intenção de provocar uma reflexão sobre o movimento de construção de sentidos sobre a docência a partir daquela pergunta inquietante.

Gabriel fez sua leitura em voz alta para os licenciandos. Na sequência, os colegas compartilham suas impressões e o diálogo foi fluindo. Enquanto isso, eu procurava destacar os pontos que os estudantes sinalizam, sem perder de vista a pergunta que havia me chamado a atenção. Num determinado momento da aula, repito a pergunta para o grucpo, em voz alta – “O que acontece com o rei depois?” – e a desdobro numa nova pergunta: “O que lhes acontece a partir da pergunta feita pelo aluno tímido?”. No grifar da pergunta exposta no texto e no desdobrar de outra, esteve envolvida a intenção pedagógica de dar atenção ao elo pedagógico que ali se estabeleceu entre Gabriel e o aluno que pergunta e ao espanto que aquela interação gerou em Gabriel. Daquela provocação feita por mim, Gabriel foi incitado a relocalizar aquela cena. Foi convidado a compor uma nova escrita, que pudesse situar aquele cenário de espanto e de surpresa como objeto de reflexão sobre o modo como aquela pergunta lhe atravessou.

2.3. Avaliação

A avaliação foi processual e integrou os diferentes movimentos de (re)elaboração da experiência educativa: a leitura, a escuta, a conversação e a (re)escrita. Perceber a disponibilidade dos licenciandos à escuta, ao acompanhamento à (re)integração da experiência partilhada esteve no horizonte de uma avaliação atenta a prescrutar o movimento de inserção dos licenciandos a um modelo de formação pautado no estar-a-ser junto, no aprendizado coletivo sobre a docência. Nos momentos de integração com a turma, busquei me atentar às dificuldades, às resistências e às disponibilidade do grupo, compreendendo seus modos de estar em coletivo como parte integrante de um aprendizado sobre a formação e sobre a profissão assentado na partilha coletiva.

A avaliação também envolveu minha percepção quanto ao grau de integração e reintegração das experiências educativas vividas e partilhadas. A partir do acompanhamento dos diálogos e da leitura dos textos (re)escritos pelos licenciandos, busquei perceber em que medida havia ali movimentos de reposicionamento das experiências e suas tranformações em objeto de inquirição, que pudessem se expressar num movimento de autorreflexão sobre seus próprios processos de formação. A capacidade gradual de dar presença à hesitação, à dúvida, à procura, aos encontros e desencontros que emergem das experiências educativas próprias e alheias e transformá-las em objeto de reflexão sobre a docência esteve presente como instrumento de avaliação da aprendizagem sobre a docência.

A avaliação esteve presente também na percepção do exercício da própria escrita dos estudantes. Busquei observar em que medida os textos reescritos revelavam um deslocamento da descrição pretensamente neutra e distanciada e passassem a assumiremse como escrita autoral e autorreflexiva, despojada das amarras estilísticas de um relatório de estágio. É o que se verifica na escrita de Gabriel. A partir do relatório descritivo da prática escolar, o licenciando elabora um novo texto, tecido num movimento de escrita que integra um exercício mais claro de autorreflexão a partir da cenas pedagógicas narradas. Não à toa, seu novo texto é intitulado de “O Conto”

Ali Gabriel traz a pergunta em cena e a expande. A pergunta relocalizada (“O que acontece com o rei depois?” ) tranforma-se em disparador de uma reflexão do autor sobre os modos como o encontro pedagógico o atravessou. Em seu novo texto, o licenciando exercita uma autorreflexão, que se delineia por uma escrita que é uma procura de entendimento sobre os modos como suas escolhas didáticas vão sendo elaboradas e uma procura de entendimento de sua posição como professor. As cenas pedagógicas, que no primeiro texto adquiriam centralidade, tornam-se, no segundo texto, pano de fundo de uma reflexão situada sobre a docência.

3. Resultados, implicações e recomendações

O movimento verificado a partir dessa experiência pedagógica sinaliza o efeito positivo da construção de conhecimento em contextos de partilha e a importância da escrita como dispositivo de formação. No caso em tela, é nítido o deslocamento operado por Gabriel, as ressonâncias que o movimento coletivo de leitura, escuta e indagação provocaram em sua escrita. Entre o seu primeiro texto, o diálogo com os pares, o destaque da pergunta, “O que acontece com o rei depois?” e sua reescrita, percebemos um movimento intenso de reposicionamento.

Gabriel acolhe a pergunta, a coloca em cena e a expande a partir de um texto autoral. Aquela pergunta relocalizada passa a se tornar disparador de uma reflexão sobre os modos como o encontro pedagógico atravessou Gabriel. Em seu novo texto, o licenciando exercita uma autorreflexão, que se delineia por uma escrita que é uma procura de entendimento sobre os sujeitos e as cenas que lhes chamam a atenção e sobre os modos como suas escolhas didáticas vão sendo elaboradas. Nessa procura de sentidos sobre o exercício docente, Gabriel vai encontrando uma explicação narrativa, que tem como elo sua própria experiência como estudante tímido que considera ter sido. Gabriel significa sua “experiência de jovem professor em formação” como “um espelho” de sua experiência passada como aluno.

Escreve ele: “via meu eu adolescente aparecer de relance em algumas atitudes bem próprias dos alunos, e que, sem relação alguma a não ser a da idade e do local, também já me pertenceram”. Dentre tais atitudes, destaca a presença de Lucas: “Eu também me via um pouco em Lucas, por sua timidez e aparente solidão. Por isso, sempre fiz questão de notálo, nem que fosse com uma simples balançada de cabeça apressada, ao passar por ele pelo corredor”. Percebemos que é, em grande medida, a partir do sentido que atribui à sua experiência escolar passada que a atenção pedagógica de Gabriel, agora na condição de professor em formação, vai sendo construída pela escrita.

Neste novo texto, Gabriel abre também uma potente reflexão sobre os desdobramentos daquele encontro sobre o modo como vai se percebendo professor. Em meio às dúvidas e exitações de produzir uma aula, a pergunta do aluno tímido permite a Gabriel encontrar-se, pela primeira vez, com um outro em si mesmo, ou seja, com o eu professor: “a pergunta dele [de Lucas] era fácil de responder, mas fiquei sem palavras. (...) Além de bobo, senti que tinha feito algo certo. Pela primeira vez me senti orgulhoso como um professor”. O seguinte trecho dá o desfecho ao “O Conto”: “Dos tantos questionamentos, inseguranças, conflitos e medos que tive naquela época, aquela pergunta feita por Lucas me fez sentir pela primeira vez que eu estava indo no caminho certo”.

4. Conclusões

A experiência pedagógica relatada demonstra a importância da partilha na formação de professores e o papel do professor formador no acompanhamento desse movimento. Reposicionar a experiência, abri-la para indagação envolve um processo gradual e coletivo, atravessado pela intencionalidade docente e pela abertura dos licenciandos a se questionarem e a posicionarem suas experiências educativas como objeto de interrogação sobre seus próprios percursos formativos. Trata-se, portanto, de uma relação pedagógica que toma a escrita como tecido aberto à (re)significação da experiência educativa, terreno em que a dúvida, a hesitação e a inquietação ganham contornos efetivos e tornam-se matéria que movimenta a construção do conhecimento profissional docente.

5. Referências Bibliográficas

Contreras, D. J., Quiles-Fernández, E., & Santín, A. P. (2019). Una pedagogía narrativa para la formacíon del professorado. Márgenes. Revista de Educación de la Universidade de Málaga, 0, 58-75.

Nóvoa, A. (2020). Pedagogia do encontro. In M. G. Alves (Ed.), Pedagogia no Ensino Superior: A (in) visibilidade do trabalho docente (pp. 29-48). Instituto de Educação.

Nóvoa, A. (2017). Firmar a posição como professor, afirmar a profissão docente. Cadernos de Pesquisa, 47(166), 1106-1133.

Ó, J. R. do. (2019). Fazer a mão: Por uma escrita inventiva na universidade. Edições do Saguão.

Zabalza, M. A. (2020). Redefinindo a pedagogia universitária: A difícil passagem do singular para o coletivo. In M. G. Alves (Ed.), Pedagogia no Ensino Superior: A (in)visibilidade do trabalho docente (pp. 10-28). Instituto de Educação.

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