8 minute read

Recurso a projetos com utilidade pública no primeiro ano do ensino superior: percepções sobre uma unidade curricular da área da saúde

Ana Rita Vieira Pinheiro‡ Mário Alexandre Gonçalves Lopes‡

‡ Instituto de Biomedicina (iBiMED), Escola Superior de Saúde da Universidade de Aveiro (ESSUA), Portugal anaritapinheiro@ua.pt mariolopes77@ua.pt Resumo

Advertisement

A adaptação das metodologias de ensino-aprendizagem e de avaliação às exigências sociais atuais é um desafio constante na academia. Este estudo pretende reportar a percepção de estudantes e docentes relativamente à utilização de projetos de utilidade pública numa unidade curricular do primeiro ano da licenciatura em fisioterapia pela Universidade de Aveiro. Realizaram-se dois focus groups com os estudantes representantes de todos os anos (primeiro ano, alvo da mudança pedagógica; segundoquarto anos, alvo de metodologia pedagógica tradicional). Entre outros assuntos, discutiram-se as metodologias utilizadas. Os estudantes do primeiro ano preencheram ainda um questionário sobre os tópicos abordados nos focus groups. A perceção dos docentes obteve-se pelo regente, a partir dos resultados e feedbacks dos estudantes e do feedback dos docentes. De 62 estudantes que frequentaram a UC, 39 responderam ao questionário (62,9%). A maioria reportou concordância com as mudanças implementadas (84,6%). Nos focus groups, todos os representantes manifestaram preferência pelo desenvolvimento de projetos, comparativamente ao modelo de ensino tradicional. Na perspetiva dos docentes, apesar de alguns estudantes aparentemente permanecerem pouco colaborantes, as mudanças implementadas aparentam ser mais desafiantes e motivantes para a maioria. Concluindo, o recurso a projetos de utilidade pública aparenta ser uma metodologia adequada e apreciada pelos estudantes.

Palavras-Chave: Projetos de utilidade pública; Avaliação; Motivação.

1. Contextualização

As metodologias tradicionais de ensino-aprendizagem centradas no docente aparentam ser menos eficazes na aprendizagem dos estudantes (Moresi et al., 2017) comparativamente a ambientes de aprendizagem ativa e colaborativa, considerados como a melhor estratégia pedagógica (Fields et al., 2021). Em linha com a evidência científica, a educação deve fomentar o recurso de metodologias eficazes. Particularmente no ensino superior, em que é esperado que os estudantes desenvolvam as competências necessárias para um exercício profissional de excelência adaptado às necessidades societais do momento, é fundamental que o estudante assuma a responsabilidade do seu processo de aprendizagem. Contudo, o sistema de ensino básico e secundário é essencialmente centrado no docente, promovendo nos estudantes a expectativa de aquisição de conhecimento pela transmissão de informação pelo docente, o que pode constituir um desafio adicional na transição para o ensino superior, quer para os estudantes quer para os docentes (Hassel & Ridout, 2018). Assim, promover uma atitude de proatividade no estudante em relação ao seu processo de aprendizagem, logo desde o seu ingresso no ensino superior, é fundamental para o seu sucesso (Bosh et al., 2021).

A aprendizagem baseada em projetos (PjBL), considerada uma abordagem promissora para o ensino superior, consiste numa metodologia que assenta na realização de projetos significativos para dar resposta ao mundo real. Este processo de criação requer que os estudantes trabalhem em conjunto para encontrar soluções para problemas autênticos, o que muitas vezes envolve membros da comunidade, normalmente considerados facilitadores que fornecem feedback útil para o seu processo de aprendizagem (revisto por Guo et al., 2020). Segundo Chen & Yang (2019), a PjBL parece promover um maior empenho e um impacto mais positivo na realização académica dos estudantes, comparativamente à metodologia tradicional de transmissão de informação.

Na área da saúde, desafiar e mobilizar os estudantes como agentes educativos na sociedade, promovendo ações colaborativas de literacia em saúde, pode fomentar o desenvolvimento de competências em contexto, sobre temáticas atuais. Estas ações colaborativas assumem especial importância nos estudantes do primeiro ano, na medida em que poderá agilizar a sua integração académica.

Assim, na Unidade Curricular (UC) Introdução à Fisioterapia, do primeiro ano e primeiro semestre do ciclo de estudos Licenciatura em Fisioterapia da Universidade de Aveiro, no ano letivo 2020-2021, procedeu-se a uma transformação nas metodologias de ensinoaprendizagem e, especialmente, das metodologias de avaliação, através da realização de projetos de utilidade pública. Com esta mudança, foi objetivo deste estudo analisar a perceção dos estudantes e dos docentes acerca da transformação.

2. Descrição da prática pedagógica

A PjBL é uma abordagem pedagógica que centra a aprendizagem na conceção, desenvolvimento e implementação de projetos pelos estudantes. Estas são consideradas tarefas relativamente complexas, exigindo ao estudante que tenha capacidade de síntese, de avaliação e de resolução de problemas em torno de questões ou problemas desafiantes. Desta forma, é o estudante que está no centro da tomada de decisão da criação de um produto ou solução tangível (Forbes & Martin, 2020).

Segundo Forbes & Martin, 2020, a PjBL contempla os seguintes passos principais: 1) uma questão ou problema a ser resolvido é exposto; 2) os estudantes exploram a questão, participando no contexto; 3) os estudantes interagem uns com os outros em actividades colaborativas para encontrar soluções para a questão (resolução de problemas); e 4) os estudantes criam um conjunto de produtos/soluções tangíveis para responder à questão, que devem ser apresentados publicamente à comunidade. As tarefas subjacentes a estes passos possibilitam, não só, o desenvolvimento de competências de natureza técnico-científica, como competências transversais, relacionadas, por exemplo, com a gestão, cooperação e liderança. Ao serem realizadas em/para o contexto, permitem uma compreensão mais ampla das necessidades das várias partes interessadas (Forbes & Martin, 2020).

2.1. Objetivos e público-alvo

Foram objetivos desta transformação pedagógica: 1) promover a motivação e empenho dos estudantes para a autogestão do processo de aprendizagem; 2) fomentar o desenvolvimento de competências de análise crítica para dar resposta às necessidades de uma comunidade/ população; 3) promover a apropriação das competências profissionais do fisioterapeuta, nos seus vários perfis; 4) recorrer a ferramentas de avaliação representativas da aquisição de competências, 5) recorrer a ferramentas de avaliação também elas promotoras da aprendizagem dos estudantes; e 6) atualizar a prática pedagógica, em linha com a literatura. Esta transformação dirigiu-se a estudantes do ciclo de estudos Licenciatura em Fisioterapia, nomeadamente os estudantes do primeiro ano, no ano letivo 2020-2021, a frequentar a UC Introdução à Fisioterapia.

2.2. Metodologia

Com o propósito de inovar as suas abordagens pedagógicas, os três docentes envolvidos na UC frequentaram a formação pedagógica Docência+, antes do início do ano letivo. Esta formação incluiu quatro módulos, nos quais foram abordadas as seguintes temáticas: 1) b-learning; 2) metodologias e tecnologias; 3) avaliação na aprendizagem; e 4) avaliação na transformação de uma UC. Foi objetivo da formação que os formandos planeassem a transformação de uma UC e apresentassem publicamente a sua proposta. Após a formação, os docentes realizaram várias reuniões preparatórias para discussão do planeamento da UC Introdução à Fisioterapia, onde foram discutidos os conteúdos, metodologias de ensino-aprendizagem e metodologias de avaliação, tendo resultado uma apresentação e um manual da UC, para disponibilizar aos estudantes. Para agilizar a monitorização da UC e resolução rápida de eventuais imprevistos, criou-se um grupo de WhatsApp entre os docentes.

No início da UC os estudantes tiveram uma sessão sobre metodologias de ensinoaprendizagem centradas no docente vs. no estudante. Foi reforçado que a UC decorreria num modelo preferencialmente centrado no estudante. Para a avaliação do estudante, procedeu-se à substituição de provas escritas individuais presenciais pela realização de projetos com utilidade para públicos específicos, sobre as temáticas referidas na figura 1. Estes projetos, a realizar em equipas, deveriam ser compilados em formato de e-Portfólio disponível num Padlet criado para o efeito.

LI TER ACI A EM FI SI OTER API A E SAÚDE

Público-alvo: o cidadão

ANÁLISE DE ARTIGOS CIENTÍFICOS

Público-alvo: estudantes ( UA)

PRÁTICA BASEADA NA EVIDÊNCIA

Público-alvo: estudantes da área da saúde ( ESSUA)

Para um melhor acompanhamento dos projetos ao longo da UC, foram realizados pelo menos dois momentos intermédios formais de feedback qualitativo (feedback oral e escrito). No final da UC, os estudantes fizeram uma apresentação pública dos seus projetos, via Zoom, na presença de convidados externos à UC, com reconhecido mérito a nível nacional na área da fisioterapia. A classificação dos projetos foi atribuída pelos docentes envolvidos e sujeita a fator de ponderação resultante de auto e hetero-avaliação pelos pares.

2.3. Avaliação

A perceção dos estudantes acerca do modo de funcionamento da UC foi obtida a partir de 2 focus groups, um a meio e outro no final da UC, via Zoom, com representantes dos quatro anos do ciclo de estudos. Para que os estudantes do segundo, terceiro e quarto anos, ficassem a par das mudanças implementadas, disponibilizou-se o manual e o Padlet da UC, para consulta, tendo-se dado oportunidade para esclarecimento de dúvidas. Foram discutidos os conteúdos, metodologias de ensino-aprendizagem e metodologias de avaliação, sendo dada a oportunidade aos estudantes de explorarem outros assuntos.

Os estudantes do primeiro ano tiveram ainda acesso a um questionário de autopreenchimento sobre os tópicos referidos acima, através do Google Forms.

A perceção do docente regente foi obtida a partir da discussão ao longo da UC com os outros docentes, via reuniões e partilha de informação no WhatsApp, assim como pelos resultados e feedbacks obtidos pelos estudantes.

3. Resultados, implicações e recomendações

De um total de 66 inscritos à UC, dos quais apenas 62 frequentaram a UC, responderam ao questionário 39 estudantes (62,9%). Os resultados obtidos no questionário encontramse sumariados na tabela 1, sendo de destacar que a maioria dos estudantes reportou uma concordância com as mudanças implementadas.

Relativamente à perceção transmitida pelos representantes dos vários anos do ciclo de estudos, na generalidade os estudantes manifestaram que preferiam a realização de projetos com utilidade pública do que provas escritas. Referiram, no entanto, ter tido dúvidas sobre o tipo de produto que se pretendia que desenvolvessem com os projetos, uma vez que havia liberdade para pensar em diferentes formatos e os estudantes estavam habituados a indicações concretas. Os estudantes referiram ainda que equipas com 10 elementos eram difíceis de gerir, sugerindo a criação de equipas com um número inferior. Na perspetiva dos docentes, os projetos com utilidade pública aparentam ser muito motivantes para grande parte dos estudantes, persistindo, no entanto, estudantes aparentemente pouco motivados e colaborantes. Um momento importante para a aceleração das tarefas parece ter sido o momento de apresentação intermédia, em que os estudantes se confrontaram com o potencial das equipas “concorrentes” e agilizaram os meios para desenvolverem os seus próprios projetos. Um aspeto negativo identificado foi o facto de os feedbacks detalhados consumirem muito tempo e, nem sempre, serem maximizados pelos estudantes. Por outro lado, a presença de uma pessoa/instituição externa, de reconhecido mérito, no momento de apresentação dos projetos, aparenta promover a motivação em alguns estudantes.

4. Conclusões

Concluindo, quer os estudantes quer os docentes percecionaram que o recurso a projetos de utilidade pública, realizados em equipa, apresentados publicamente, parecem constituir uma estratégia adequada para estudantes de fisioterapia do primeiro ano, sendo uma abordagem recomendável para repetir nos anos futuros. Não obstante, e apesar de terem participado estudantes de quatro anos letivos distintos, estes dados referem-se à mudança em apenas um ano letivo, sendo necessário adequar as metodologias todos os anos, em função das necessidades dos novos estudantes.

5. Referências Bibliográficas

Bosch, E., Seifried, E., & Spinath, B. (2021). What successful students do: Evidence-based learning activities matter for students’ performance in higher education beyond prior knowledge, motivation, and prior achievement. Learning and Individual Differences, 91, Article 102056. https://doi.org/10.1016/j.lindif.2021.102056

Chen, C. H., & Yang, Y, C. (2019). Revisiting the effects of project-based learning on students’ academic achievement: A meta-analysis investigating moderators. Educational Research Review, 26, 7181. https://doi.org/10.1016/j.edurev.2018.11.001.

Fields, L., Trostian, B., Moroney, T., & Dean, B. A. (2021). Active learning pedagogy transformation: A whole-of-school approach to person-centred teaching and nursing graduates Lorraine. Nurse Education in Practice, 53, Article 103051. https://doi.org/10.1016/j.nepr.2021.103051.

Forbes, R., & Martin, R. (2020). Project-based learning for physiotherapy clinical education quality and capacity. OpenPhysio, 1-5. https://doi.org/10.14426/art/1310.

Guo, P., Saab, N., Post, L. S., & Admiraal, W. (2020). A review of project-based learning in higher education: Student outcomes and measures. International Journal of Educational Research, 102, Article 101586. https://doi.org/10.1016/j.ijer.2020.101586.

Hassel, S., & Ridout, N. (2018). An Investigation of First-Year Students’ and Lecturers’ Expectations of University Education. Frontiers in Psychology, 8, Article 2218. https://doi.org/10.3389/ fpsyg.2017.02218.

Moresi, E. A. D., Braga Filho, M. de O., Barbosa, J. A., Lopes, M. C., Morais, M. A. A. T. de, Santos, J. C. A. dos, Borges, M. P., & Osmala, W. A. (2017). O emprego do aprendizado baseado em desafios no desenvolvimento de aplicativos móveis. In 12th Iberian Conference on Information Systems and Technologies, CISTI 2017 (pp. 1-6). https://doi.org/10.23919/CISTI.2017.7975800.

This article is from: