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Este é o seu gabinete; boa sorte!
Ricardo Gonçalo ‡
‡ Laboratório de Instrumentação e Física Experimental de Partículas, Departamento de Física, Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra jgoncalo@uc.pt http://lisboa.lip.pt/~jgoncalo/ Resumo
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“Este é o seu gabinete; boa sorte!” Esta é a piada que se conta entre alguns colegas sobre o início da sua carreira letiva e a formação pedagógica que receberam (ou não). Apesar de anedótica, a situação não é fora do comum em instituições académicas. Nesta reflexão apresenta-se um brevíssimo estudo das práticas de formação pedagógica de docentes do ensino superior em algumas instituições, nacionais e estrangeiras, bem como a perceção da utilidade desta formação. As experiências relatadas foram obtidas de forma totalmente informal em entrevistas com colegas de várias proveniências. Não foi tentado um levantamento sistemático nem uma análise profunda do sistema de ensino que enquadra cada caso. Em vez disso, este estudo centra-se nas experiências de colaboradores diretos que lecionam variadas disciplinas da área da física ao nível de licenciatura e pós-graduação. Os dados assim recolhidos evidenciam uma grande variedade de práticas de formação pedagógica inicial de docentes. Estas vão desde a total ausência de formação até à frequência de cursos formais, sendo o último caso prevalente nas instituições mais bem cotadas internacionalmente. Tais formações constituem mesmo, em alguns casos, requerimentos para a nomeação definitiva de docentes. Como benefícios dos processos estruturados de formação pedagógica surgem não só a melhoria da qualidade letiva, mas também o desenvolvimento de contactos entre membros do corpo académico ou a obtenção de informação de índole legal ou institucional. Finalmente, é evidenciada a necessidade de formação específica, dirigida a cada área científica, e mencionada a necessidade de evitar a sobrecarga dos docentes em início de carreira.
Palavras-Chave: Formação pedagógica, Pedagogia das ciências, Início da carreira docente.
1. Contextualização
Qual seria a sua reação se, ao entrar num avião, fosse cumprimentado por um piloto entusiástico com as palavras: “Sejam bem-vindos ao meu primeiro voo! Nunca pilotei um avião a sério, mas obtive o doutoramento em aeronáutica com distinção e louvor”? Apesar do aparente absurdo desta situação, há um paralelo claro com o início da atividade letiva de muitos de nós, docentes do ensino superior universitário e politécnico. Numa analogia ilustrativa da situação, ainda demasiado frequente, Felder e Brent (2016) comparam o início da carreira académica a conduzir um automóvel sem antes ter aulas de condução. O resultado, afirmam, é que mesmo docentes com experiência guiam por vezes em primeira velocidade, com o travão de mão acionado, ignorando olimpicamente o fumo negro que sai do tubo de escape.
É claramente impensável que profissionais especializados exerçam a sua atividade sem uma séria formação, especialmente se erros nessa atividade puderem causar danos a outros. Pilotos, médicos, cozinheiros, engenheiros ou contabilistas, todos seguem programas de formação teórica e prática, e meses ou anos de estágios profissionais. Por outro lado, na sua forma mais básica, a formação profissional para a docência de uma área científica a nível superior consiste frequentemente em seguir cursos de licenciatura e mestrado nessa área, e desenvolver depois um trabalho de investigação num assunto em geral muito especializado e restrito, que leve à obtenção do doutoramento. A expectativa é que a experiência como discentes dos vários níveis de ensino preparem os futuros docentes para o ensino superior. Mas, como apontam Felder e Brent (2016), todos tivemos ao longo do nosso percurso académico professores que nos demonstraram como esta expectativa é falsa. Os danos potenciais decorrentes da falta de preparação pedagógica são certamente mais subtis do que no caso de outras profissões como a de piloto ou médico, mas nem por isso menos prejudiciais ao bom desenvolvimento de uma sociedade como a nossa, baseada no conhecimento e na tecnologia, onde a preparação de bons profissionais é crucial.
O pequeno estudo aqui descrito nasceu da curiosidade e de preocupações pessoais. Tendo iniciado há poucos anos a docência no ensino superior, depois de mais de uma década dedicada exclusivamente à investigação na área da física, preocupou-me a minha própria falta de preparação pedagógica: que métodos funcionam, e sobretudo que erros devo evitar na preparação e lecionação de unidades curriculares?
A minha premissa, aqui explicitamente assumida, foi que a formação pedagógica deve fazer parte integrante do percurso académico de docentes do ensino superior em início de carreira. Mas em que formato e sob que condições? As oportunidades de formação oferecidas pelas instituições em que ensinei eram suficientes, eficientes e apropriadas? Quem usufruía delas? Contribuíam efetivamente para o melhoramento do ensino? Quais são as práticas comuns a nível nacional e internacional? Como posso contribuir para inovar da forma mais profícua a formação pedagógica de docentes na minha própria instituição?
Com o presente estudo gostaria de começar a responder a estas perguntas. Pretendo dar uma visão, necessariamente muito parcial e abreviada, da variedade de práticas encontradas nos casos analisados, e também da perceção da utilidade dessas práticas.
2. Inquérito sobre práticas de formação de docentes
Para obter uma visão da formação pedagógica de docentes, foram contactados colegas e colaboradores com atividade docente em diferentes instituições portuguesas e estrangeiras, colocando-lhes algumas questões de forma totalmente informal. Não foi tentado um levantamento sistemático, nem uma análise profunda do sistema de ensino que enquadra cada caso. Tal análise seria indispensável num estudo aprofundado, mas ultrapassaria o âmbito deste pequeno estudo.
Procurou-se construir um grupo com diversidade geográfica, mas de áreas científicas semelhantes colocando o foco nas ciências naturais e exatas. Foram escolhidos docentes jovens ou com poucos anos de atividade letiva. Responderam ao apelo doze colegas entre os 35 e os 52 anos, incluindo quatro mulheres e oito homens. Esteve representando um leque variado de postos académicos: dois professores auxiliares, oito professores associados e dois professores catedráticos.
A experiência de ensino dos entrevistados variou entre os 3 e os 10 anos de lecionação de cursos em áreas científicas e tecnológicas, que incluíram física, biologia, medicina e engenharia. Geograficamente, os membros do grupo distribuem-se por universidades portuguesas (Minho, Lisboa), europeias (Uppsala, Copenhaga, Liverpool, Birmingham, Londres, Genebra, e Santiago de Compostela) e norte-americanas (Yale, Northern Illinois, New York).
As perguntas dirigidas a este grupo foram centradas na formação pedagógica inicial de cada um, com foco no período probatório até à obtenção de posições académicas permanentes. As perguntas de base foram (em tradução livre):
• Recebeu alguma formação pedagógica no início da sua atividade letiva?
• Em caso positivo caracterize essa formação:
◦ Consistiu em cursos formais ou atividades/seminários informais?
◦ Qual foi a sua duração?
◦ Seguiu algum tipo de foco em particular?
◦ No caso de formação informal, tratou-se de auto-aprendizagem?
◦ Que benefícios ou problemas encontrou na formação ou auto-aprendizagem que seguiu?
No entanto, foi pedido a cada um que respondesse de forma totalmente livre, por forma a permitir uma análise mais qualitativa das experiências individuais, sem restrições impostas pela lista de perguntas feitas.
3. Análise das respostas obtidas
A impressão inicial das respostas recebidas foi de uma diversidade substancial, apesar do pequeno tamanho do grupo. Dividiram-se as respostas obtidas em dois temas: a prevalência e tipo de formação, e a perceção dos benefícios da formação pedagógica bem como de erros a evitar. Dividiu-se ainda a formação pedagógica em duas categorias: programas formais, consistindo em qualquer tipo de ações de formação regulares com ou sem avaliação, e formação informal, baseada em estudo próprio a partir de bibliografia, ajuda informal de colegas, grupos de apoio ou formações ocasionais (ainda que organizadas institucionalmente).
3.1. Prevalência e tipo de formação pedagógica
Das respostas obtidas podem identificar-se os seguintes pontos:
• 9 em 12 entrevistados seguiu algum tipo de programa de formação pedagógica.
◦ Dos restantes 3 entrevistados, 2 referem ter lido publicações sobre pedagogia no ensino superior e terem sido auxiliados nesta área por colegas mais experientes.
◦ O restante colega declarou não estar a par desse tipo de formação ser oferecido pela sua universidade, exceto na forma de iniciativas ocasionais sobre temas muito específicos.
• 7 entrevistados seguiram programas de formação com cursos formais.
◦ Estes variaram na forma, entre um programa de workshops regulares até cursos estruturados com durações de um ano e com reconhecimento ao nível do mestrado.
◦ Em vários casos foi referida a inclusão de observações do desempenho dos entrevistados durante as suas aulas, por colegas ou por especialistas em pedagogia
◦ Em 4 casos foi referido que a frequência do programa de formação era um requerimento da universidade para a conclusão do período probatório.
▪ Num destes casos a avaliação do programa incluía a publicação de um artigo sobre pedagogia numa revista da especialidade.
• 2 entrevistados usufruíram de iniciativas de informais organizadas pelas suas instituições, consistindo em encontros temáticos (por exemplo “almoços pedagógicos”) ou grupos de apoio.
Dado a pequena amostra estatística, é difícil retirar conclusões quantitativas. Mesmo assim, atribuindo um valor numérico ao tipo de formação inicial (0: sem formação; 1: treino informal; 2: programa formal) observou-se uma correlação positiva (coeficiente de correlação de 0.6) entre o tipo de formação seguido e a classificação da respetiva universidade no índice do Times Higher Education (2022). Entrevistados provenientes de instituições com classificações mais altas seguiram em geral programas formais de treino pedagógico.
3.2. Perceção de benefícios e de erros a evitar
A perceção do interesse de um programa de formação pedagógica (formal ou informal) de docentes em início de carreira é prevalente: 8 dos 9 entrevistados que tiveram algum tipo de formação pedagógica relevam a sua utilidade, afirmando que esta formação lhes permitiu responder a dúvidas próprias e melhorar significativamente o nível de ensino que ministram. A opinião generalizada é de que este tipo de formação é útil ou essencial para os novos docentes. Num caso é expressa a opinião de que deveria ser obrigatória para todos os docentes, surgindo também uma observação (num caso de treino informal voluntário) de que as iniciativas de formação eram frequentadas essencialmente por mulheres, levando ao enviesamento de género. Noutro caso é referido que o nível pedagógico médio no respetivo país é baixo, e que aumentaria com o fomento deste tipo de formação.
Entrevistados que seguiram programas de formação formais mencionam ainda especificamente que estes foram úteis ou muito úteis para:
• Compreender e eliminar erros através da observação ou filmagem de aulas.
• Criar uma rede muito útil de contactos em diferentes departamentos.
• Aprender a lidar com problemas dos alunos, incluindo de saúde mental.
• Aprender a evitar enviesamentos na avaliação.
Em quatro casos, o programa de formação juntou a pedagogia com a comunicação/formação institucional interna durante o acolhimento de novos docentes, sendo referidos aspetos como:
• Compreensão da função docente e do que é esperado pela instituição em termos de papeis de liderança ou coordenação, de acompanhamento dos alunos ou de atividades de investigação.
• Obtenção de informação importante sobre os aspetos legais da profissão, incluindo assuntos como discriminação, igualdade de género ou comportamentos violentos.
Sobre os programas de formação formais são também referidos dois aspetos negativos a evitar:
• A opinião mais frequentemente expressa é de que parte da formação recebida foi demasiado geral e pouco útil, levando à perceção de perda de tempo. Vários entrevistados referiram a necessidade de formação que sentiram em assuntos específicos ao ensino da sua área (ciências naturais e exatas).
• Colegas que seguiram programas mais longos (tipicamente com um ano de formação incluindo aulas teóricas, produção de trabalhos escritos, observação de aulas, e avaliação final) referem a dificuldade em conciliar o tempo despendido com a preparação de novas disciplinas, ainda que com horários reduzidos durante o período probatório, e o desenvolvimento de atividade de investigação.
3.3. Caso português
O grupo de entrevistados inclui apenas três colegas a lecionar em universidades portuguesas, pelo que é difícil retirar conclusões. Cada um destes colegas, pertencentes a duas instituições da Universidade de Lisboa e à Universidade do Minho, reportou percursos diferentes no que toca à sua formação pedagógica. Apenas num caso a formação inicial recebida cai na categoria de programa formal, incluindo também aspetos de comunicação institucional durante o acolhimento de novos docentes.
4. Conclusões
As conclusões que se podem retirar deste brevíssimo estudo reforçam a premissa expressa acima de que a formação inicial de docentes é um fator importante no seu desempenho. Mais do que isso, permitem obter a impressão de que este tipo de formação é, com algumas exceções, a norma na Europa e Estados Unidos, com cursos formais prevalentes nas universidades mais bem cotadas no ranking do Times Higher Education de 2022.
São indicados benefícios de programas de formação formais que incluem (e que ultrapassam) o melhoramento do nível pedagógico dos docentes, como a criação de uma rede de contactos entre docentes de diferentes departamentos, ou a obtenção de informação de índole legal e institucional. São também indicados fatores a evitar, como a sobrecarga dos docentes em início de carreira. Foi também frequentemente indicada a necessidade de formação específica dirigida à área científica do docente.
Apesar das limitações patentes deste estudo, espera-se que a sua diversidade geográfica possa contribuir para uma visão mais alargada das práticas de formação pedagógica inicial de docentes.
5. Referências Bibliográficas
Felder, R. M., & Brent, R. (2016). Teaching and Learning STEM: A practical guide. Jossey-Bass.
Times Higher Education. (2022). World University Rankings 2022. https://www.timeshighereducation.com/ world university rankings/2022