Projeto Memória 2020

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CAPA

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A coletânea de textos é o resultadodo trabalho dos professores Caroline, Dudu, Helena, José Eduardo, Tahís e Tatiana.

Este caderno é uma produção exclusiva da Escola Nossa Senhora das Graças.

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Sumário A linguagem, a escrita e a memória.................................................................... 7 Memórias – Linhas e Entrelinhas........................................................................ 8 Projeto Memória ................................................................................................... 10 A memória do projeto........................................................................................... 10 Avaliação................................................................................................................. 11 Minha infância na Escola..................................................................................... 12 Quando eu era pequena........................................................................................ 13 Não tenho saudade de nada................................................................................. 14 Retrato de Antepassados....................................................................................... 16 Relato autobiográfico............................................................................................ 18 As Cidades e a Memória 4.................................................................................... 21 No caminho de Swann.......................................................................................... 22 A Avó e o Avô......................................................................................................... 25 Elogio do Esquecimento....................................................................................... 26 Micróbios na Cruz ................................................................................................ 27 Poesias de Álvaro de Campos.............................................................................. 31 Páginas Íntimas e Auto-interpretação................................................................. 32 Tabacaria................................................................................................................. 33 O Tejo é mais Belo................................................................................................. 38 Poemas de um manual para habitantes das cidades......................................... 39 Funes, o Memorioso.............................................................................................. 40 Biso.......................................................................................................................... 46 Memórias inventadas............................................................................................ 47 XXII......................................................................................................................... 48 A dança das memórias.......................................................................................... 51 Eveline..................................................................................................................... 56 Depoimento Autobiográfico................................................................................ 59 O Velho................................................................................................................... 60 Filhos da América.................................................................................................. 61 Saudade................................................................................................................... 62 Istambul: Memória e Cidade................................................................................ 63 Um, nenhum e cem mil........................................................................................ 66 3


A irrecusável busca de sentido............................................................................. 68 O Africano.............................................................................................................. 74 Caderno de um ausente........................................................................................ 76 Coplas por la muerte de su padre........................................................................ 79 O elefante................................................................................................................ 82 Minhas primeiras recordações............................................................................. 85 Orgulho de família................................................................................................ 85 Poema Memos........................................................................................................ 88 Referência das imagens......................................................................................... 89

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ILUSTRAÇÃO

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Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente, a minha própria vida. Clarice Lispector A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la. Gabriel García Márquez

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A linguagem, a escrita e a memória

Denise Manzi Frayze Pereira

A linguagem determina, delimita e amplia nossa imaginação no mundo. As histórias que contamos nos ajudam a perceber nós mesmos e os outros. Alfred Döblin, escritor alemão, afirma que “a linguagem é um ser vivo que não reconta, mas representa o nosso passado”. A linguagem “força a realidade a se manifestar, escava suas profundezas e traz, à tona, as situações fundamentais da condição humana, grandiosas ou mesquinhas”. Ela nos explica porque, afinal, vivemos juntos. Funções como respirar, andar, comer, dormir são solitárias, contar precisa do outro para que ele devolva o que dissemos. A linguagem, diz Döblin, é um modo de amar os outros. A linguagem surgiu há 50.000 anos e é uma forma de comunicação baseada na representação convencional do mundo, capaz de garantir aos homens pontos de referência para se reconhecerem como homens, nos ensina Albert Manguel. A escrita, por sua vez, surgiu há 5.000 anos, e decifrar os signos escritos leva à percepção auditiva do texto, pois as palavras lidas tornam-se presenças físicas. Portanto, continua Manguel, a linguagem vai além de nomear coisas, pois ela confere existência à realidade. Ele evoca, pelas palavras, versões dos acontecimentos, que chamamos histórias. História são nossas memórias. A escrita e a leitura recriam nossa memória, atualizam nossas próprias experiências. Se saber que existimos implica o reconhecimento dos outros que percebemos e nos percebem, a narração de histórias é o melhor caminho.

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Memórias – Linhas e Entrelinhas Denise Manzi Frayze Pereira

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Segundo Jorge Luis Borges, “memória é a busca da identidade”. E é esse processo que nos torna humanos, sensíveis às pequenas coisas que, reunidas, revelam para nós o nosso lugar no mundo. Porém, não é tão somente a memória, tanto a pessoal quanto a coletiva, que integra a construção da identidade, pois desta também participam a ficção, a narrativa e a própria história da sociedade. Cada autor cria a sua narrativa como um historiador que consulta diversos documentos, registros, imagens, cartas, escuta histórias diferentes sobre um mesmo episódio ou situação, analisa e interpreta todo o material coletado. No entanto, como narrador, ele representa, com imaginação e sentimentos, a história de si mesmo. A narrativa sintetiza e dá sentido ao trabalho da alma, do olho e da mão. A matéria do narrador é a própria vida humana vivida por ele na companhia dos outros, matéria que se expressa na forma de um discurso. Mas, o que constitui esse discurso? O discurso narrativo é composto de palavras em uma sequência lógica para quem escreve e para quem lê. Entretanto, a narrativa não é tão simples. As linhas narrativas feitas com palavras criam entrelinhas. Ou seja, o espaço entre as frases, ou mesmo entre as palavras, pode levar a outros significados que não estão expressos, como se o narrador quisesse dizer algo com outros propósitos, podendo sugerir imagens e novas associações mentais. Assim, as linhas e entrelinhas unem e distanciam representações e intenções do autor da narrativa. Ao mesmo tempo, as linhas e entrelinhas formam um texto que tem a espessura de uma trama, como se fosse um tecido com um lado que se mostra, apresentando um bordado, desenhos e figuras, e um avesso necessário para que a trama possa aparecer. É como a união íntima das partes de um corpo, com ligações, arranjos, segundo uma certa lógica. É como a “pele” desse corpo que o envolve, permitindo o surgimento de sensações visuais, mas também tácteis que se deixam tocar com os olhos de quem lê. Dessa forma, as palavras são como fios que se entrelaçam, para criar uma malha, uma teia, sentida pelo tato e pela visão: o narrador ou o escritor trabalha como se fosse um tecelão. As figuras, os desenhos, o tecido são inventados pela ação de narrar, acompanhada da própria memória. Segundo Paul Valéry, o narrador é um artesão que torna visível o que está dentro das coisas, de modo que o “avesso” do tecido narrativo pode revelar a textura composta no outro lado, o “direito”, da mesma forma que as entrelinhas expressam segredos do narrador que o trabalho da leitura pode alcançar. Nessa medida, toda narrativa é autobiográfica. Assim, narrar, tecer e lembrar são operações que andam juntas como já reconheciam nossos antepassados mais longínquos. Para os antigos gregos, Mnemosyne, deusa da memória e do esquecimento, mãe das musas, responsáveis pela inspiração poética, preza o conhecimento do passado, do tempo antigo. Em outro contexto, as histórias contadas por Sherazade ao ressentido sultão Shariar, ao longo de mil e uma noites, salvaram a própria vida da narradora, assim como a de todas as mulheres do reino. Essa lenda fala da vitória da narrativa e da memória sobre a morte, isto é, sobre


o esquecimento. Um outro exemplo pode ser encontrado no poema épico de Homero – Odisseia. Nela, a rainha Penélope, esposa de Ulisses, rei de Ítaca, aguarda o retorno do herói, engajado na guerra de Troia, por dez anos durante os quais ela tece um manto ao longo do dia e o desfaz à noite, estratégia que lhe serviu para adiar um novo matrimônio que, na ausência prolongada do rei, ela seria obrigada a contrair. O tecido pronto seria o sinal de que a rainha estaria disponível para o novo casamento. Mas, o manto interminável também serviu a Penélope manter-se fiel ao esposo com o qual se encontra no fim do poema. Cabe observar que Penélope [do grego pene = fio, fibra, trama; ops = rosto, olho] faz um exercício de reflexão, com os olhos nos fios, mantendo-se fiel aos seus princípios, expressos na tecelagem. Em suma, o exercício do autoconhecimento envolve um mergulho em si mesmo, como diz a própria palavra reflexão, isto é, uma flexão, um dobrar-se sobre si. Para tanto, lembrar e narrar são operações fundamentais. Sem elas, não é possível construirmos a nossa própria humanidade. A artista Chiharu Shiota, trabalhando com fios de lã e papel, escreve sobre sua obra: “quero que o espectador reflita sobre sua vida, seu propósito, suas conexões e sua memória”. Não é diferente a intenção do nosso Projeto Memória.

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Projeto Memória

Denise Manzi Frayze Pereira

O propósito do trabalho é orientar uma reflexão pessoal em que a experiência individual e coletiva estejam presentes. Ao tentar recuperar a memória do passado, há um exercício em diferentes tempos: o passado como origem do presente que gera o futuro. Os historiadores franceses chamam esse movimento de “ego-história”. A memória familiar quando se destina a um pequeno grupo (esfera privada) não precisa de justificativas. Nesse caso, a micro-história valorizando pequenos fatos e lembranças, torna-os mais significativos do que os mais abrangentes, os que compõem a chamada macro-história. Dessa forma, a ego-história assume uma nova dimensão quando abrange as esferas pública e privada, pois a narrativa é inserida em um universo coletivo mais amplo como etnia, nacionalidade e classe social, ou diz respeito a um quadro de relações familiares/culturais. O que se pretende não é a elaboração de um singular modelo de vida. Também está descartada uma história objetiva pois muitas lacunas não serão preenchidas e alguns relatos ficarão fragmentados. Se a narrativa é fruto da memória, ao tentar reconstruir o passado a partir da perspectiva do presente, de certa forma reinventamos as lembranças, já que elas também se originaram de outras lembranças mais remotas, impregnadas de outros valores e de outras concepções de mundo. Se a memória é uma lembrança afetiva, mágica, sempre atual de uma experiência vivida, o momento da representação do passado é um mecanismo intelectual sempre problemático daquilo que já não é mais. Portanto, diferenças separam história vivida/percepção e construção histórica do vivido. O material a ser utilizado nessa proposta é de uma riqueza ímpar: testemunhos, cartas, filmes, músicas, lugares, álbuns de família, fotografias, objetos e relíquias, transformado pela memória. Essas fontes de pesquisa, verdadeiros documentos históricos, permitem desvendar a esfera individual, privada, com as emoções, alegrias, angústias, frustrações, ligações com lugares de origem, trajes, atitudes, casas, mobiliários, relações familiares; como também a esfera social, pública, por meio dos momentos ritualísticos na escola, no trabalho, na igreja e na cidade.

A memória do projeto

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A autobiografia nasceu em 1995 como herança dos alunos dos 3ºs. anos para a escola. De lá para cá, passou por várias mudanças, adequando-se aos diferentes interesses dos alunos e dos professores envolvidos. Começou de forma tímida, um simples texto elaborado pelos alunos, no qual os principais acontecimentos de suas vidas deveriam ser contextualizados historicamente. A ênfase sempre é no texto reflexivo e, nesse ano de 2020, a leitura da cidade de São Paulo continua em destaque.


Avaliação Os critérios foram desenvolvidos para avaliar os textos. Os elementos exteriores ao texto serão avaliados pela coerência e pela pertinência temática. 1. Narrativa e reflexão (25%) Digressões; Criticidade. 2. Coerência com a proposta (25%) Adesão ao tema; Adesão ao tipo de texto. 3. Qualidade das frases e períodos (25%) Vocabulário; Ortografia; Sintaxe. 4. Textualidade verbo-visual (25%) Forma; Organização; Criatividade e originalidade.

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Minha infância na Escola Eliane C. de L. Lacerda*

Eu comecei a estudar com nove ou dez anos de idade no interior, município de Catarina, estado do Ceará, só tinha a minha casa e mais uma casa. A escola ficava muito longe, no povoado de São Gonçalo, tinha que andar uma hora a pé e depois mais dez minutos de canoa... Mas a felicidade era tão grande que eu fazia o caminho quase todo correndo, eu e meu irmão com oito anos. Às vezes a gente andava tudo isso e quando chegava na escola, não tinha aula. Quando meu irmão ia para a roça mais meu pai, eu ficava muito triste porque eu não podia ir para a escola porque não conseguia remar a canoa sozinha. Nesta escola tinha duas classes, uma conhecendo as letras e outra com cartilhinha. Entrei nessa classe para conhecer as letras, estudava pela manhã. Fiquei nela um ano; tinha muitas crianças, os maiores da turma éramos eu e meu irmão. A professora não era formada e faltava muito, ela morava ao lado do colégio. A classe era pequena e tinha que sentar de dois na mesma carteira. Às vezes tinha merenda, uma duas semanas tinha, e quando tinha era a maior alegria; quando tinha bolacha eu levava para minhas irmãs menores. Depois a gente mudou para esse povoado onde ficava a escola. Continuei a estudar mais dois anos e fui para a cidade chamada Catarina. Fiquei dois anos na casa de meu tio estudando, fiz a segunda e a terceira séries. Parei de estudar e comecei a trabalhar em casa de família para ajudar meus pais. Trabalhei três anos sem estudar. Fui para Fortaleza e continuei a estudar, fiz a quarta série, comecei a quinta, mas não terminei. Vim para São Paulo com vinte anos para a casa da minha irmã. Casei com vinte e dois, sempre tive vontade de voltar a estudar, continuei insistindo e eu e meu marido voltamos a estudar. *Estudante da EJA da ENSG, 2002

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Quando eu era pequena Maria José da Conceição Santana*

Eu comecei a estudar com sete anos, parei aos treze para trabalhar. Eu faltava muito porque não podia ir à escola todos os dias da semana. Eu chorava muito para ir estudar mas não podia, tinha que trabalhar para ajudar os meus pais porque se eu não trabalhasse não comia. A escola em que eu estudei era muito longe de minha casa, eu andava uma hora para chegar. Tinha apenas uma escola para todas as idades e só tinha uma professora para dar aula aos alunos da primeira à quinta série. Mas ela ensinava muito bem e quem prestava atenção e ia todos os dias, aprendia. Eu, como não podia ir todos os dias, não conseguia passar da quarta série. Eu comecei a trabalhar com treze, eu não tinha pai para me ajudar, a minha mãe não tinha condição para eu continuar na escola. Sou de Conde, Bahia, e fui para Salvador. Comecei a trabalhar e um tempo depois voltei a estudar, comecei a primeira série mas logo passei para a segunda e em seguida saí do trabalho porque era muito puxado e parei de estudar. Voltei a estudar aqui em São Paulo. Quando cheguei perguntei ao meu patrão se eu podia voltar a estudar. Ele falou que podia e indicou a Escola Nossa Senhora das Graças que dava aulas à noite. Eu acho a Escola Nossa Senhora das Graças muito boa e as professoras ensinam muito bem. Mas acho muito pouco tempo de aula que temos, precisamos de mais tempo para estudar. * Estudante da EJA da ENSG, 2002

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Não tenho saudade de nada Marilene Rodrigues de Oliveira *

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Eu nasci em um sítio isolado em Itambé, Pernambuco, não tinha vizinhos e nem cidade perto. Não havia serviços públicos perto do sítio, quando precisava tinha que andar mais ou menos quatro horas para chegar na cidade. A casa era de barro, tinha quarto, cozinha e sala. A energia era candeeiro a gás, para cozinhar era no fogão a lenha. A água era de poço e não tinha esgoto. Perto do sítio tinha casa de farinha e eu e minha irmã tirávamos goma e fazíamos tapioca. No sítio tinha pato, galinha, galo, peru, coelho, cabritos, porco, cachorro e gato. A vegetação era muito verde, tinha pés de caju, manga, laranja, limão, pitomba, graviola, açafrão. O meu pai plantava milho, feijão, abóbora, quiabo, maxixe, coentro, cebola, mandioca, batata, cará, pepino. Era da terra que ele tirava nosso sustento. Eu morei no sítio até os onze anos e fui trabalhar na cidade. O meu pai e meus irmãos continuaram morando no sítio, só bem mais tarde que eles foram morar na cidade. Nós ficamos juntos muito pouco tempo porque eu tive que trabalhar muito cedo. Os vizinhos eram bem distantes uns dos outros porque era sítio então era longe uns dos outros. Mas nós tínhamos amizade com os filhos dos vizinhos e a gente se juntava nos finais de ano para ir para as festas na cidade, era o maior barato, a gente corria de balanço, de roda-gigante, carrossel e voltava para casa só quando o sol nascia. Era nosso divertimento. O meu pai era uma pessoa maravilhosa. Ele gostava de levar as crianças nos finais de semana para a cidade para a gente comer pão, pois então morávamos no sítio. Da minha mãe eu me lembro muito pouco porque ela morreu quando eu tinha sete anos, mas me lembro que ela comprava pano e fazia lindos vestidos para mim e para minha irmã. Os meus irmãos eram três e eram menores que eu, então eu e minha irmã criamos eles pois não morava mais ninguém na casa. Morava perto a minha madrinha que sempre ia lá em casa para olhar as crianças. O trabalho dos adultos era trabalhar na roça e cortar cana para nos sustentar. Meu pai gostava de fazer farinha de mandioca. Meu pai nos educava sempre muito bem. Nos dias de semana, trabalhava muito e nos finais de semana íamos para a missa. Não tinha outros adultos influenciando na nossa educação e o comportamento das crianças era normal. Eu e minha irmã íamos buscar água de pote na cabeça bem longe e pegávamos lenha para fazer fogo, lavávamos roupa no rio. Tudo foi muito difícil. Eu comecei a estudar com oito anos, mas com onze fui trabalhar em casa de família na cidade, pois até então eu morava no sítio. Estudei pouco porque tinha que trabalhar muito.


Com dezesseis anos conheci um rapaz e me casei. Vim para São Paulo, comecei estudar na escola São Norberto e estudei até a terceira série. Tinha a professora Nair que dava aula na primeira série e tinha a professora Lázara, elas eram muito pacientes com os alunos, mas tive que sair da escola porque tinha que cuidar dos meus filhos. Sinto saudade da minha primeira escola lá no Nordeste que se chamava Escola Maria José. Eu era bem pequena, mas me lembro das colegas da escola. Agora eu tinha ficado afastada da escola mais ou menos uns onze anos, um belo dia, passando em frente desta escola parei e perguntei para a recepcionista. Ela me disse pra deixar meu nome e vir fazer uma prova em junho. Então vim e estou aqui e muito feliz por ter voltado para a escola. Eu vim para São Paulo com dezesseis anos. Eu trabalhava em uma casa lá no Norte e conheci um rapaz, me casei com ele. Ele veio para São Paulo e depois ia mandar o dinheiro para eu vir. Mas vinha uma amiga minha então eu não esperei o meu marido mandar o dinheiro, pedi emprestado para o meu patrão. Ele disse que não tinha e eu pedi a outro senhor que me emprestou. Eu comprei a passagem e vim sem o meu marido saber. Quando cheguei, ele ficou muito bravo porque eu não tinha onde ficar, ele morava em uma pensão onde só moravam homens. Eu fiquei em um quartinho bem pequeno com a minha amiga até o meu marido alugar um quartinho para nós. No quartinho da minha amiga eu tinha que dormir no chão porque não tinha cama e tinha de ficar bem calada para a dona da pensão não descobrir. No final do mês, o meu marido alugou um quartinho para nós, comecei com uma caminha de solteiro, um fogão velho e as malas. Depois aluguei uma quitinete e a vida foi melhorando. O meu marido arrumou serviço de zelador e paramos de pagar aluguel e a vida foi melhorando. Graças a Deus, hoje me sinto muito feliz, foi tudo muito difícil, mas hoje eu tenho a minha chácara, tenho um carrinho para passear com minha família. * Estudante da EJA da ENSG, 2004

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Retrato de Antepassados fragmento José Saramago

Nunca fui afecto a essa vaidade necrófila que leva tanta gente a pesquisar o passado e os que passaram, buscando os ramos e os enxertos da árvore que nenhuma botânica menciona - a genealógica. Entendo que cada um de nós é, acima de tudo, filho das suas obras, daquilo que vai fazendo durante o tempo que cá anda. Saber donde vimos e quem nos gerou, apenas nos dá um pouco mais de firmeza civil, apenas concede uma espécie de alforria para a qual em nada contribuímos, mas que poupa respostas embaraçosas e olhares mais curiosos do que a boa educação haveria de permitir. Ser filho de alguém bastante conhecido para que não fiquem em branco as linhas do cartão de identidade, é como vir ao mundo carimbado e com salvo-conduto. Por mim, nada me incomoda saber que para lá da terceira geração reinam as trevas completas. E como se os meus avós houvessem nascido por geração espontânea num mundo já todo formado, do qual não tinham qualquer responsabilidade: o mal e o bem eram obra alheia que a eles só competia tomar nas mãos inocentes. Apraz-me pensar assim, principalmente quando evoco um bisavô materno, que não cheguei a conhecer, oriundo da África do Norte, a respeito de quem me contavam histórias fabulosas. Descreviam-no como um homem alto, magríssimo e escuro, de rosto de pedra, onde um sorriso, de tão raro, era uma festa. Disseram-me que matou um homem em duvidosas circunstâncias, a frio, como quem arranca uma silva. E também me disseram que a vítima é que tinha razão: mas não tinha espingarda. Apesar de tão espessa nódoa de sangue na família, gosto de pensar neste homem, que veio de longe, misteriosamente de longe, de uma África de albornozes e areia, de montanhas frias e ardentes, pastor talvez, talvez salteador - e que ali fora iniciar-se na velha ciência agrícola, de que logo se afastou para ir guardar lezírias, de espingarda debaixo do braço, caminhando num passo elástico e balançado, infatigável. Depressa descobriu os segredos dos dias e das noites, e depressa descobriu também a negra fascinação que exercia nas mulheres o seu mistério de homem do outro lado do mundo. Por isso mesmo houve aquele crime de que falei. Nunca foi preso. Vivia longe da aldeia, numa barraca entre salgueiros, e tinha dois cães que olhavam os estranhos fixamente, sem ladrar, e não deixavam de olhar até que os visitantes se afastavam, a tremer. Este meu antepassado fascina-me como uma história de ladrões mouros. A um ponto tal que se fosse possível viajar no tempo, antes o queria ver a ele do que ao imperador Carlos Magno. Mais perto de mim (tão perto que estendo a mão e toco a sua lembrança carnal, a cara seca e a barba crescida, os ombros magros que em mim se repetiram), aquele avô guardador de porcos, de cujos pais nada se sabia, posto na roda da Misericórdia, homem toda a vida secreta, de mínimas falas, também delgado e alto como uma vara. Este homem teve contra si o rancor de toda a aldeia, porque viera de fora, porque era filho das trevas, e, não obstante, dele se enamorara minha avó materna, a rapariga mais bela do tempo. Por isso meu avô teve de passar a sua noite de núpcias 16


sentado à porta da casa, ao relento, de pau ferrado sobre os joelhos, à espera dos rivais ciosos que tinham jurado apedrejar-lhe o telhado. Ninguém apareceu, afinal, e a lua viajou toda a noite pelo céu, enquanto minha avó, de olhos abertos, aguardava o seu marido. E foi já madrugada clara que ambos se abraçaram um no outro. E agora meus pais nesta fotografia com mais de cinquenta anos, tirada quando meu pai já voltara da guerra - a que para sempre ficou sendo a Grande Guerra – e minha mãe estava grávida de meu irmão, morto menino, de garrotilho. Estão os dois de pé, belos e jovens, de frente para o fotógrafo, com um ar de gravidade solene, que é talvez temor diante da máquina que fixa a imagem impossível de reter sobre os rostos assim preservados. Minha mãe tem o cotovelo direito assente numa alta coluna e segura na mão esquerda, caída ao longo do corpo, uma flor. Meu pai passa o braço por trás das costas de minha mãe e a sua mão calosa aparece sobre o ombro dela como se fosse uma asa. Ambos pisam acanhados um tapete de ramagens. Ao fundo, a tela mostra vagas arquitecturas neoclássicas. Um dia tinha de chegar em que contaria estas coisas. Nada disto tem importância, a não ser para mim. Um avô berbere, um outro avô posto na roda (filho oculto de uma duquesa, quem sabe?), uma avó maravilhosamente bela, uns pais graves e formosos, uma flor num retrato - que mais genealogia me importa? a que melhor árvore poderei encostar-me? SARAMAGO, José. A Bagagem do viajante. São Paulo. Cia. Das Letras, 1996.

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Relato autobiográfico fragmento Akira Kurosawa

(...) Eu estava nu na bacia. O local em volta era vagamente iluminado e enquanto eu me encharcava de água quente, balançava a bacia segurando-me nas bordas. Na parte mais baixa, a bacia balançava entre duas tábuas inclinadas. Eu ouvia o barulho da água que se espalhava enquanto a bacia se movia de um lado a outro. Aquilo devia estar muito interessante para mim. Balancei a bacia com toda a força. De repente, ela virou. Tenho uma lembrança viva do estranho sentimento de insegurança e surpresa que experimentei naquele instante, da sensação na pele causada pelas tábuas molhadas e escorregadias. Lembro-me de alguma coisa que brilhava intensamente quando olhei para cima. Após atingir uma idade consciente, algumas vezes lembrei-me desse fato. Parecia-me uma coisa trivial, por isso não o mencionei até me tornar adulto. Deveria estar pelos 20 anos quando, por alguma razão, relatei a minha mãe a lembrança dessas sensações. Por um instante, ela apenas se fixou em mim, surpresa; depois me disse que isso deveria ter ocorrido quando nós fomos à terra natal de meu pai, em Akita, norte de Tóquio, durante uma cerimônia religiosa em memória de meu avô. Na época, eu deveria ter um ano de idade. O local precariamente iluminado no qual eu me encontrava, sentado entre as duas tábuas da tina, era o cômodo que servia tanto de banheiro como de cozinha na casa em que meu pai nasceu. Minha mãe preparava-se para dar um banho em mim, mas antes me colocou numa bacia com água quente e dirigiu-se ao quarto próximo para tirar seu quimono. De repente, me ouviu chorando a plenos pulmões. Correu de volta e me encontrou caído no chão, berrando. A coisa de brilho intenso que se encontrava suspensa sobre minha cabeça provavelmente era uma lamparina, do tipo ainda usado quando eu era um bebê. Este incidente, a um ano de idade, com a bacia, é a primeira lembrança que tenho de mim. Naturalmente, não me lembro do meu nascimento. Entretanto, minha irmã mais velha, hoje falecida, costumava dizer: “Você era um bebê estranho.” Aparentemente, saí do útero de minha mãe sem emitir um único som, mas com as mãos firmemente apertadas uma contra a outra. Quando finalmente foi possível separá-las, encontraram manchas nas duas palmas. Acho que essa história deve ser uma mentira. Provavelmente foi forjada para que zombassem de mim, o filho mais novo. Além disso, se eu tivesse nascido uma pessoa assim tão avara, a esta altura seria um milionário e certamente não estaria conduzindo outro carro que não um Rolls Royce. Após o incidente com a bacia em meu primeiro ano de vida, posso lembrar-me de apenas alguns poucos eventos de minha infância, como trechos desfocados de um pedaço de filme. Todas essas lembranças são imagens observadas sob o ponto de vista de uma criança que enxergava o mundo apoiada nos ombros de sua babá. Uma dessas imagens retrata algo através de uma tela de arame. Pessoas vestidas de branco correm em direção a uma bola que flutua no ar, pegam-na e a atiram de 18


novo. Posteriormente, compreendi que esta era a visão de quem se encontrava atrás da rede do campo de beisebol da escola de educação física em que meu pai dava aula. Devo dizer, portanto, que meu interesse pelo beisebol tem raízes profundas; tenho assistido a ele desde os primeiros dias de minha vida. Uma outra lembrança desse período, também uma visão pelas costas de minha babá, vem à mente: uma cena de incêndio a uma grande distância. Entre nós e as labaredas de fogo, uma extensão de água escura. Minha casa ficava em Omori, distrito situado na capital do Japão. O incidente provavelmente se deu na enseada de Omori, na baía de Tóquio. Pela distância, deve ter ocorrido em algum local próximo a Haneda (atualmente o terreno de um dos aeroportos da cidade). Eu estava aterrorizado com o que via, e chorava. Ainda hoje tenho uma forte aversão a fogo, e especialmente quando vejo o céu noturno avermelhado pelas chamas, sou acometido pelo pavor. Uma última lembrança que permanece dos meus tempos iniciais de vida: neste caso, também, estou nas costas de minha babá e, de tempos em tempos, penetramos num quarto pequeno e escuro. Anos mais tarde, eu me recordaria desse fato frequentemente e, um certo dia, decifrei seu significado como um Sherlock Holmes. Era a minha babá que costumava dirigir-se ao banheiro comigo ainda às costas. Que babá irreverente! Anos mais tarde, ela veio me visitar. Ergueu os olhos para esta pessoa que beirava 1,80m de altura e pesava mais de 75 quilos e disse apenas “meu querido, como você cresceu”, enquanto se agarrava a meus joelhos e caía em prantos. Eu havia me preparado para repreendê-la por toda a indignidade que me fizera sofrer no passado, mas logo me dei conta de sua velha figura que eu não mais reconhecia, e tudo o que consegui fazer foi olhar vagamente para baixo, em direção a seu rosto. (...) Olhando para trás e refletindo sobre o que houve, penso que a atitude de meu pai em relação ao cinema reforçou minhas inclinações e me encorajou a ser o que sou hoje. Ele era um homem severo, com formação militar, mas numa época em que a ideia de assistir a filmes não era bem recebida pelos círculos educacionais, ele levava toda a sua família ao cinema, de forma regular. Posteriormente, também ele manteve imperturbável sua convicção de que assistir a filmes tinha um valor educacional; nunca mudou de opinião a esse respeito. KUROSAWA, Akira. Relato autobiográfico. São Paulo. Estação liberdade, 1990.

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As Cidades e a Memória 4 fragmento Ítalo Calvino

Ao se transporem seis rios e três cadeias de montanhas, surge Zora, cidade que quem viu uma vez nunca mais consegue esquecer. Mas não porque deixe, como outras cidades memoráveis, uma imagem extraordinária nas recordações. Zora tem a propriedade de permanecer na memória ponto por ponto, na sucessão das ruas e das casas ao longo das ruas e das portas e janelas das casas, apesar de não demonstrar particular beleza ou raridade. O seu segredo é o modo pelo qual o olhar percorre as figuras que se sucedem como uma partitura musical da qual não se pode modificar ou deslocar nenhuma nota. Quem sabe de cor como é feita Zora, à noite, quando não consegue dormir, imagina caminhar por suas ruas e recorda a sequência em que se sucedem o relógio de ramos, a tenda listrada do barbeiro, o esguicho de nove borrifos, a torre de vidro do astrônomo, o quiosque do vendedor de melancias, a estátua do eremita e do leão, o banho turco, o café da esquina, a travessa que leva ao porto. Essa cidade que não se elimina da cabeça é como uma armadura ou um retículo em cujos espaços cada um pode colocar as coisas que deseja recordar: nomes de homens ilustres, virtudes, números, classificações vegetais e minerais, datas de batalhas, constelações, partes do discurso. Entre cada noção e cada ponto do itinerário pode-se estabelecer uma relação de afinidades ou de contrastes que sirva de evocação à memória. De modo que os homens mais sábios do mundo são os que conhecem Zora de cor. Mas foi inútil a minha viagem para visitar a cidade: obrigada a permanecer imóvel e imutável para facilitar a memorização, Zora definhou, desfez-se e sumiu. Foi esquecida pelo mundo.

CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo. Companhia das Letras, 1990.

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No caminho de Swann fragmento Marcel Proust

(...) Assim, por muito tempo, quando despertava de noite e me vinha a recordação de Combray, nunca pude ver mais que aquela espécie de lanço luminoso, recortado no meio de trevas indistintas, semelhante aos que o acender de um fogo de artifício ou alguma projeção elétrica alumiam e secionam em um edifício cujas partes restantes permanecem mergulhadas dentro da noite: na base, bastante larga, o pequeno salão, a sala de jantar, o trilho da alameda escura por onde chegaria o sr. Swann, inconsciente autor das minhas tristezas, o vestíbulo de onde me encaminhava para o primeiro degrau da escada, tão cruel de subir, que constituía por si só o tronco, muito estreito, daquela pirâmide irregular; e, no cimo, o meu quarto, pequeno corredor de porta envidraçada por onde entrava mamãe; em suma, sempre visto à mesma hora, isolado de tudo o que pudesse haver em torno, destacando-se sozinho na escuridão, o cenário estritamente necessário (como esses que se veem indicados no princípio das antigas peças, para as representações na província), ao drama do meu deitar; como se Combray consistisse apenas em dois andares ligados por uma estreita escada, e como se nunca fosse mais que sete horas da noite. Na verdade, poderia responder, a quem me perguntasse, que Combray compreendia outras coisas mais e existia em outras horas. Mas como o que eu então recordasse me seria fornecido unicamente pela memória voluntária, a memória da inteligência, e como as informações que ela nos dá sobre o passado não conservam nada deste, nunca me teria lembrado de pensar no restante de Combray. Na verdade, tudo isso estava morto para mim. Morto para sempre? Era possível. Há muito de acaso em tudo isso, e um segundo acaso, o de nossa morte, não nos permite muitas vezes esperar por muito tempo os favores do primeiro. Acho muito razoável a crença céltica de que as almas daqueles a quem perdemos se acham cativas nalgum ser inferior, num animal, um vegetal, uma coisa inanimada, efetivamente perdidas para nós até o dia, que para muitos nunca chega, em que nos sucede passar por perto da árvore, entrar na posse do objeto que lhe serve de prisão. Então elas palpitam, nos chamam, e, logo que as reconhecemos, está quebrado o encanto. Libertadas por nós, venceram a morte e voltam a viver conosco. É assim com o nosso passado. Trabalho perdido procurar evocá-lo, todos os esforços da nossa inteligência permanecem inúteis. Está ele oculto, fora do seu domínio e do seu alcance, nalgum objeto material (na sensação que nos daria esse objeto material) que nós nem suspeitamos. Esse objeto, só do acaso depende que o encontremos antes de morrer, ou que não o encontremos nunca. Muitos anos fazia que, de Combray, tudo quanto não fosse o teatro e o drama do meu deitar não mais existia para mim, quando, por um dia de inverno, ao voltar para casa, vendo minha mãe que eu tinha frio, ofereceu-me chá, coisa que era contra os meus hábitos. A princípio recusei, mas, não sei por quê, terminei aceitando. Ela mandou buscar um desses bolinhos pequenos e cheios chamados madalenas e que 22


parecem moldados na valva estriada de uma concha de S. Tiago. Em breve, maquinalmente, acabrunhado com aquele triste dia e a perspectiva de mais um dia tão sombrio como o primeiro, levei aos lábios uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço de madalena. Mas no mesmo instante em que aquele gole, envolto com as migalhas do bolo, tocou o meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem noção da sua causa. Esse prazer logo me tornara indiferente às vicissitudes da vida, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade, tal como o faz o amor, enchendo-me de uma preciosa essência: ou antes, essa essência não estava em mim; era eu mesmo. Cessava de me sentir medíocre, contingente, mortal. De onde me teria vindo aquela poderosa alegria: Senti que estava ligada ao gosto do chá e do bolo, mas que o ultrapassava infinitamente e não devia ser da mesma natureza. De onde vinha? Que significava? Onde apreendê-la? Bebo um segundo gole em que não encontro nada de mais que no primeiro, um terceiro que me traz um pouco menos que o segundo. É tempo de parar, parece que está diminuindo a virtude da bebida. É claro que a verdade que procuro não está nela, mas em mim. A bebida a despertou, mas não a conhece, e só o que pode fazer é repetir indefinidamente, cada vez com menos força, esse mesmo testemunho que não sei interpretar e que quero tornar a solicitar-lhe daqui a um instante e encontrar intacto à minha disposição, para um esclarecimento decisivo. Deponho a taça e volto-me para o meu espírito. É a ele que compete achar a verdade. Mas como? Grave incerteza todas as vezes em que o espírito se sente ultrapassado por si mesmo, quando ele, o explorador, é ao mesmo tempo o país obscuro a explorar e onde todo o seu equipamento de nada lhe servirá. Explorar? Não apenas explorar; criar. Está em face de qualquer coisa que ainda não existe e a que só ele pode dar realidade e fazer entrar na sua luz. E recomeço a me perguntar qual poderia ser esse estado desconhecido, que não trazia nenhuma prova lógica, mas a evidência da sua felicidade, da sua realidade ante a qual as outras se desvaneciam. Quero tentar fazê-lo reaparecer. Retrocedo pelo pensamento ao instante em que tomei a primeira colherada de chá. Encontro o mesmo estado, sem nenhuma luz nova. Peço a meu espírito um esforço mais, que me traga outra vez a sensação fugitiva. E para que nada quebre o impulso com que ele vai procurar captá-la, afasto todo obstáculo, toda ideia estranha, abrigo meus ouvidos e minha atenção contra os rumores da peça vizinha. Mas sentindo que meu espírito se fatiga sem resultado, forço-o, pelo contrário, a aceitar essa distração que eu lhe recusava, a pensar em outra coisa, a refazer-se antes de uma tentativa suprema. Depois, por segunda vez, faço o vácuo diante dele, torno a apresentar-lhe o sabor ainda recente daquele primeiro gole e sinto estremecer em mim qualquer coisa que se desloca, que desejaria elevar-se, qualquer coisa que teriam desancorado, a uma grande profundeza; não sei o que seja, mas aquilo sobe lentamente; sinto a resistência e ouço o rumor das distâncias atravessadas. Por certo, o que assim palpita no fundo de mim deve ser a imagem, a recordação visível que, ligada a esse sabor, tenta segui-lo até chegar a mim. Mas debate-se demasiado longe, demasiado confusamente; mal e mal percebo o reflexo neutro em que se confunde o ininteligível turbilhão das cores agitadas; mas não posso distinguir a forma, pedir-lhe, como ao único intérprete possível, que me traduza o testemunho de seu contemporâneo, de seu inseparável companheiro, o sabor, pedir-lhe que me

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indique de que circunstância particular, de que época do passado é que se trata. Chegará até a superfície de minha clara consciência essa recordação, esse instante antigo que a atração de um instante idêntico veio de tão longe solicitar, remover, levantar no mais profundo de mim mesmo? Não sei. Agora não sinto mais nada, parou, tornou a descer talvez; quem sabe se jamais voltará a subir do fundo da sua noite? Dez vezes tenho de recomeçar, inclinar-me em sua busca. E, de cada vez, a covardia que nos afasta de todo trabalho difícil, de toda obra importante, aconselhou-me a deixar daquilo, a tomar meu chá pensando simplesmente em meus cuidados de hoje, em meus desejos de amanhã, que se deixam ruminar sem esforço. E de súbito a lembrança me apareceu. Aquele gosto era o do pedaço de madalena que nos domingos de manhã em Combray (pois nos domingos eu não saía antes da hora da missa) minha tia Leôncia me oferecia, depois de o ter mergulhado no seu chá da Índia ou de tília, quando ia cumprimentá-la em seu quarto. O simples fato de ver a madalena não me havia evocado coisa alguma antes de que a provasse; talvez porque, como depois tinha visto muitas, sem as comer, nas confeitarias, a sua imagem deixara aqueles dias de Combray para se ligar a outros mais recentes; talvez porque, daquelas lembranças abandonadas por tanto tempo fora da memória, nada sobrevivia, tudo se desagregara; as formas - e também a daquela conchinha de pastelaria, tão generosamente sensual sob a sua plissagem severa e devota - se haviam anulado ou então, adormecidas, tenham perdido a força de expansão que lhes permitiria alcançarem a consciência. Mas quando mais nada subsistisse de um passado remoto, após a morte das criaturas e a destruição das coisas - sozinhos, mais frágeis porém mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis - o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, lembrando, aguardando, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, e suportando sem ceder, em sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação. E mal reconheci o gosto do pedaço de madalena molhado em chá que minha tia me dava (embora ainda não soubesse, e tivesse de deixar para muito mais tarde tal averiguação, por que motivo aquela lembrança me tornava tão feliz), eis que a velha casa cinzenta, de fachada para a rua, onde estava o seu quarto, veio aplicar-se, como um cenário de teatro, ao pequeno pavilhão que dava para o jardim e que fora construído para meus pais aos fundos da mesma (esse truncado trecho da casa que era só o que eu recordava até então); e, com a casa, a cidade toda, desde a manhã à noite, por qualquer tempo, a praça para onde me mandavam antes do almoço, as ruas por onde eu passava e as estradas que seguíamos quando fazia bom tempo. E, como nesse divertimento japonês de mergulhar numa bacia de porcelana cheia de água pedacinhos de papel, até então indistintos e que, depois de molhados, se estiram, se delineiam, se colorem, se diferenciam, tornam-se flores, casas, personagens consistentes e reconhecíveis, assim agora todas as flores do nosso jardim e as do parque do sr. Swann, e as ninféias do Vivonne, e a boa gente da aldeia e suas pequenas moradias e a igreja e toda Combray e seus arredores, tudo isso que toma forma e solidez saiu, cidade e jardins, da minha taça de chá. PROUST, Marcel. No caminho de Swann. S.P. Abril Cultural, 1979.

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A Avó fragmento Roseana Murray

A avó tem cabelos muito brancos, curtos e lisos. Pouco cabelo. A pele é toda enrugada. Parece que já está virando árvore. O corpo também é pequeno. Ela toda parece um pássaro. Usa um chale de renda na cabeça e nas mãos carrega sempre um livro sagrado e cheiro de cebola. Tem passos miúdos. Às vezes parece orvalho. Já está quase desaparecendo, dá pra notar. Os olhos pousados em coisas distantes, invisíveis navios, alguma terra do lado de lá?

O Avô fragmento Roseana Murray

O avô não tem a doçura da avó. É sério, grande, pesado. Talvez pareça um urso. Come a comida que a avó prepara e sente um grande sono. E dorme e sonha que é jovem, ardente, apaixonado. Como um jovem urso. Ronca. A avó olha para ele com ternura. Ele é o seu rude e velho urso. A avó sabe que o avô também tem mel, disfarçadamente. Às vezes ela se deita ao seu lado e dorme também. A louça suja fica para depois. A casa dorme junto. Depois os dois acordam e tomam chá e jogam dominó. Tudo muito ao jeito de antigamente.

MURRAY, Roseana K. Retratos. Belo Horizonte. Ed. Miguilim, 1990.

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Elogio do Esquecimento Bertold Brecht

Bom é o esquecimento! Senão como se afastaria o filho Da mãe que o amamentou? Da mãe que lhe deu a força dos membros E o impede de experimentá-la. Ou como deixaria o aluno O professor que lhe deu o saber? Quando o saber está dado O aluno tem que se pôr a caminho. Para a velha casa Mudam-se os novos moradores. Se os que a construíram ainda lá vivessem A casa seria pequena demais. O forno esquenta. Já não se sabe Quem foi o oleiro. O plantador Não reconhece o pão. Como se levantaria pela manhã o homem Sem o deslembrar da noite que desfaz o rastro? Como se ergueria pela sétima vez Aquele derrubado seis vezes Para lavrar o chão pedroso, voar O céu perigoso? A fraqueza da memória Dá forças ao homem.

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BRECHT, Bertold. Poemas. 1913-1956. São Paulo. Ed. 34, 2000


Micróbios na Cruz fragmento Márcia Camargos

Fecho o livro em estado de choque, as letras remoem na minha cabeça e caem na corrente sanguínea como veneno que causa morte lenta e dolorosa, certa estava minha mãe em proibir muitos deles, li escondido, agora é tarde, nunca mais serei a mesma, bem feito por ter desobedecido, nem adianta chorar sobre o leite derramado, as paredes que continham minha alma arrebentam e fico à deriva na imensidão do oceano, se mergulho na água turva posso jamais retornar à superfície, se fico onde estou, afogo no desencontro dos meus pensamentos. Em desespero tento reter algumas certezas entre os dedos, mas elas escorrem como a amizade das meninas que são a nata da nata da nata, nesse labirinto me perco e me acho, nem o Pai nem meu pai carregam a Verdade, essa coisa duvidosa que procuro como se dela dependesse minha vida, encontro apenas o vazio de uma sala de espera com mais perguntas do que respostas, o pior é que o médico não vai solucionar o caso, nos momentos mais importantes e aflitivos descobrimos como estamos realmente sós. Se ninguém tem razão, nem meu pai nem o Pai, quem sabe Ele nem existe, não meu pai, bem entendido, que é bem real, tremelica o bigode quando está furioso mas aparece no meio da madrugada para acabar com os pernilongos e acender o espiral Boa-Noite, destranca a porta de mansinho, acende a luz depois de por os travesseiros sobre nossos olhos, meus e da minha irmã, para não atrapalhar o sono e acordarmos enfezadas, noite mal dormida deixa criança pior do que fome, acabamos ranzinzas, apesar de mau humor em menino ser falta de couro, mas falo de Deus Todo-Poderoso, nos textos sagrados. Ele foi criado pela imaginação dos homens para explicar fenômenos naturais, os índios tinham deuses da Chuva, do Trovão, da Terra e da Lua, uma simples aula de ciências destruía meia dúzia deles em cinquenta minutos, difícil mesmo é matar Jesus Cristo dentro da gente, na vida real Ele foi crucificado e morreu de tétano ou hemorragia, isso a Bíblia não revela e talvez nunca descobriremos, pois aí Ele não seria Ele e sim ele, um pobre mortal com o organismo sujeito a micróbios, fosse mesmo o Filho e não o filho, nem precisava de tanto sofrimento, a não ser que no fundo quisesse que passássemos o resto da eternidade nos culpando por ter assassinado quem se dizia Salvador, o que morreu para pagar por nossos pecados, que nem existiriam se Deus nos tivesse feito com mais capricho, se é que Ele existe mesmo, agora acho que não passa de uma teoria que um dia será desvendada pelos cientistas Americanos, que já nasceram com o cérebro superdesenvolvido para compreender como o universo pode estar dentro de outro maior, vão explicar como tudo sempre existiu sem ter havido um início, onde estavam todas as coisas antes delas começarem a ser criadas. A ausência de Deus complica o entendimento de um montão de ideias, algumas os livros ensinam, outras não, aquele monte de animais, por exemplo, nunca caberiam na arca de Noé, o casal de elefantes sozinho ocuparia um barco inteiro, necessitava de uma frota de caravelas, não aceito explicações fáceis só porque não tenho respostas, bom seria se na prova de matemática pudesse escrever não sei, os 27


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desígnios de Deus são insondáveis, a solução deve existir, por enquanto apenas afirmo que a equação se resolverá no futuro, quando eu morrer terei respostas para tudo, é claro que tirava um zero, se a professora não é boba por que eu tenho que ser? Olho meu reflexo no espelho surpresa, apenas de mudar tanto por dentro continuo a mesmíssima por fora, os olhos castanhos e o cabelo escuro que, de tão liso, não prende o elástico do rabo-de-cavalo, que não faço mais porque, bem lavado e escovado, ele brilha e todo mundo elogia, inclusive as filhas da minha prima que estragou a vida casando supernova por causa do neném na barriga, elas passam horas me penteando, permaneço imóvel, de olhos fechados percebo os dedos comprimindo meu couro cabeludo, deve ser isso que os Filhos-Únicos sentem quando as mães beijam e abraçam apertado, uma felicidade tonta e preguiçosa que não é pecado e pode, perto do pixaim que tentam corrigir com touca, tratamentos e cremes que nem adianta, meu cabelo até parece loiro, emoldura o rosto de que agora começo a gostar, quem sabe o próprio Jesus era moreno e os arqueólogos não confessam para não ter que mudar todas as imagens das igrejas, dos missais e das pinturas antigas, já pensou a mão-de-obra que seria sair mundo afora trocando a cor dos olhos e dos cabelos de Cristo, é mais barato deixar do jeito que está, mesmo porque nem sei mesmo se ele existe, uma mentira compensa a outra, ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão. De tudo, o mais terrível foi descobrir que nem os próprios americanos são os anjos da guarda da humanidade, depois de dar cabo de todos os índios do Velho Oeste, incluindo o último dos moicanos, que para fazer o filme usaram um ator mesmo, obrigaram os pretos, que lá são negros e não pretos como aqui, a sentar no fundo dos ônibus e proibir de casar com loiro mesmo se estiver apaixonado que o amor é cego, saem invadindo outros países para bombardear mulheres e crianças de olhos puxados nas aldeias onde jogam do helicóptero um Detefon de exterminar plantas e gente em vez de barata, ele queima pior que as chamas do circo que pegou fogo, e depois nem se dão ao trabalho de mandar os bombeiros juntar aquelas montanhas de sapatos, mesmo porque os camponeses andavam descalços, nem sapatos tinham, coitados. Apesar de vazio, do buraco num lugar que não sei direito, das certezas transformadas em dúvidas, sinto também uma espécie de leveza, de tão grande deve ser pecado, mas nem ligo, se não tem Deus não tem Inferno, o ruim é que as delícias do Paraíso desaparecem, tanto faz ser mau ou bom, do pó viemos, ao pó voltaremos, ainda assim não consigo ser malvada, talvez por não ter alma loira e ficar com pena dos pretinhos, que existem por aí aos milhões, não só na fazenda da minha tia, se não têm entrada garantida no reino dos Céus nem precisam aceitar virar mendigo, carroceiro ou varredor e fazer filhos nas mulheres que, apesar da alma e da pele escura, podiam virar médicas e advogadas em vez de passar a vida limpando a privada da casa dos outros, coitadas. Diante de mim tenho o abismo, deve ser isso que chamam liberdade, o medo se confunde com um sentimento esquisito, pela primeira vez sou um pouco dona de mim, o negócio é pior e melhor ao mesmo tempo, tudo se mistura enquanto tentar encontrar o chão, toco o fundo e sinto apenas areia movediça, não dá para gritar por socorro, tenho que dar conta sozinha, não posso pedir para meu pai espantar os pernilongos que me azucrinam, agora sobro eu e mais ninguém para ordenar as ideias


que se embaralharam feito se tivessem batido meu cérebro no liquidificador, talvez nem consiga refazer o quebra-cabeça, o enjoo desta vez não tem a ver com vontade de vomitar, é só uma dor tremenda, talvez de pura alegria, diferente do que jamais experimentei, quase insuportável de tão profunda, igual comer doce gostoso demais, sentir entre as pernas um gemido depois do sonho molhado de sem-vergonhice, ler um trecho que fica vibrando na memória, as palavras certas no ritmo exato feito música, como existe gente que escreve assim perfeito, tão bonito que na certa também é pecado, mas nem me importo, a partir de agora não rezo nem peço perdão, se não há Inferno, sorte minha, se no final ficar provado que existe, vou para lá sem chance de uma estadia no Purgatório, não é um risco calculado, é o que tenho diante de mim, pegar ou largar, ver o outro lado da moeda, não acreditar em tudo o que falam, a verdade não passa de uma grande mentira, o essencial é invisível aos olhos. CAMARGOS, Márcia. Micróbios na Cruz. São Paulo. Cia das Letras, 2005.

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Poesias de Álvaro de Campos

fragmento Fernando Pessoa

Chega através do dia de névoa alguma coisa do esquecimento, Vem brandamente com a tarde a oportunidade da perda. Adormeço sem dormir, ao relento da vida. É inútil dizer-me que as acções têm consequências. É inútil eu saber que as acções usam consequências. É inútil tudo, é inútil, é inútil tudo. Através do dia de névoa não chega coisa nenhuma. Tinha agora vontade De ir esperar ao comboio da Europa o viajante anunciado, De ir ao cais ver entrar o navio e ter pena de tudo. Não vem com a tarde oportunidade nenhuma. Fernando Pessoa. Poesias de Álvaro de Campos. Lisboa. Ática, 1944 (imp. 1993).

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Páginas Íntimas e Auto-interpretação fragmento Fernando Pessoa

Tive sempre, desde criança, a necessidade de aumentar o mundo com personalidades fictícias, sonhos meus rigorosamente construídos, visionados com clareza fotográfica, compreendidos por dentro das suas almas. Não tinha eu mais que cinco anos, e, criança isolada e não desejando senão assim estar, já me acompanham algumas figuras de meu sonho - um capitão Thibeaut, um Chevalier de Pas - e outros que já me esqueceram, e cujo esquecimento, como a imperfeita lembrança daqueles, é uma das grandes saudades da minha vida.

Carta a Adolfo C. Monteiro - 13 jan. 1935 in Páginas Íntimas e de AutoInterpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa. Ática, 1966.

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Tabacaria Álvaro de Campos

Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. Janelas do meu quarto, Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é (E se soubessem quem é, o que saberiam?), Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente, Para uma rua inacessível a todos os pensamentos, Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa, Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres, Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens, Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada. Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade. Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer, E não tivesse mais irmandade com as coisas Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada De dentro da minha cabeça, E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida. Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu. Estou hoje dividido entre a lealdade que devo À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora, E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro. Falhei em tudo. Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada. A aprendizagem que me deram, Desci dela pela janela das traseiras da casa. Fui até ao campo com grandes propósitos. Mas lá encontrei só ervas e árvores, E quando havia gente era igual à outra. Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar? Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou? Ser o que penso? Mas penso tanta coisa! E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos! Gênio? Neste momento

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Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu, E a história não marcará, quem sabe?, nem um, Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras. Não, não creio em mim. Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas! Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo? Não, nem em mim... Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando? Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -, E quem sabe se realizáveis, Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente? O mundo é para quem nasce para o conquistar E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão. Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez. Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo, Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu. Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda, Ainda que não more nela; Serei sempre o que não nasceu para isso; Serei sempre só o que tinha qualidades; Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta, E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira, E ouviu a voz de Deus num poço tapado. Crer em mim? Não, nem em nada. Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo, E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha. Escravos cardíacos das estrelas, Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama; Mas acordamos e ele é opaco, Levantamo-nos e ele é alheio, Saímos de casa e ele é a terra inteira, Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido. (Come chocolates, pequena; Come chocolates! Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria. Come, pequena suja, come! Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes! Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho, Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.) 34


Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei A caligrafia rápida destes versos, Pórtico partido para o Impossível. Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas, Nobre ao menos no gesto largo com que atiro A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas, E fico em casa sem camisa. (Tu que consolas, que não existes e por isso consolas, Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva, Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta, Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida, Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua, Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais, Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire! Meu coração é um balde despejado. Como os que invocam espíritos invoco A mim mesmo e não encontro nada. Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta. Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam, Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam, Vejo os cães que também existem, E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo, E tudo isto é estrangeiro, como tudo.) Vivi, estudei, amei e até cri, E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu. Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira, E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses (Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso); Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente Fiz de mim o que não soube E o que podia fazer de mim não o fiz. O dominó que vesti era errado. Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me. Quando quis tirar a máscara, Estava pegada à cara. Quando a tirei e me vi ao espelho, Já tinha envelhecido. Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado. Deitei fora a máscara e dormi no vestiário Como um cão tolerado pela gerência Por ser inofensivo

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E vou escrever esta história para provar que sou sublime. Essência musical dos meus versos inúteis, Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse, E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte, Calcando aos pés a consciência de estar existindo, Como um tapete em que um bêbado tropeça Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada. Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta. Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada E com o desconforto da alma mal-entendendo. Ele morrerá e eu morrerei. Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos. A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também. Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta, E a língua em que foram escritos os versos. Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu. Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas, Sempre uma coisa defronte da outra, Sempre uma coisa tão inútil como a outra, Sempre o impossível tão estúpido como o real, Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície, Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra. Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?) E a realidade plausível cai de repente em cima de mim. Semiergo-me enérgico, convencido, humano, E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário. Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos. Sigo o fumo como uma rota própria, E gozo, num momento sensitivo e competente, A libertação de todas as especulações E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto. Depois deito-me para trás na cadeira E continuo fumando. Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

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(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira Talvez fosse feliz.)


Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela. O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?). Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica. (O Dono da Tabacaria chegou à porta.) Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me. Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu. Fernando Pessoa. Poesia Completa de Álvaro de Campos. São Paulo. Companhia de Bolso, 2007

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O Tejo é mais Belo Alberto Caeiro

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia. O Tejo tem grandes navios E navega nele ainda, Para aqueles que veem em tudo o que lá não está, A memória das naus. O Tejo desce de Espanha E o Tejo entra no mar em Portugal. Toda a gente sabe isso. Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia E para onde ele vai E donde ele vem. E por isso porque pertence a menos gente, É mais livre e maior o rio da minha aldeia. Pelo Tejo vai-se para o Mundo. Para além do Tejo há a América E a fortuna daqueles que a encontram. Ninguém nunca pensou no que há para além Do rio da minha aldeia. O rio da minha aldeia não faz pensar em nada. Quem está ao pé dele está só ao pé dele. Fernando Pessoa. Poesia completa de Alberto Caeiro. SP. Companhia de Bolso, 2007

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Poemas de um manual para habitantes das cidades Bertold Brecht

1. APAGUE AS PEGADAS Separe-se de seus amigos na estação De manhã vá à cidade com o casaco abotoado Procure alojamento, e quando seu camarada bater: Não, oh, não abra a porta Mas sim Apague as pegadas! Se encontrar seus pais na cidade de Hamburgo ou em outro lugar Passe por eles como um estranho, vire na esquina, não os reconheça Abaixe sobre o rosto o chapéu que eles lhe deram Não, oh, não mostre seu rosto Mas sim Apague as pegadas! Coma a carne que aí está. Não poupe. Entre em qualquer casa quando chover, sente em qualquer cadeira Mas não permaneça sentado. E não esqueça seu chapéu. Estou lhe dizendo: Apague as pegadas! O que você disser, não diga duas vezes. Encontrando o seu pensamento em outra pessoa: negue-o. Quem não escreveu sua assinatura, quem não deixou retrato Quem estava presente, quem nada falou Como poderão apanhá-lo? Apague as pegadas! Cuide, quando pensar em morrer Para que não haja sepultura revelando onde jaz Com uma clara inscrição a lhe denunciar E o ano de sua morte a lhe entregar Mais uma vez: Apague as pegadas! (Assim me foi ensinado.)

BRECHT, Bertold. Poemas. 1913-1933, São Paulo. Ed. 34 – p. 57-58.

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Funes, o Memorioso Jorge Luis Borges

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Recordo-o (não tenho o direito de pronunciar esse verbo sagrado, apenas um homem na terra teve o direito e tal homem está morto) com uma obscura passiflórea na mão, vendo-a como ninguém jamais a vira, ainda que a contemplasse do crepúsculo do dia até o da noite, uma vida inteira. Recordo-o, o rosto taciturno e indianizado e singularmente remoto, por trás do cigarro. Recordo (creio) suas mãos delicadas de trançador. Recordo próximo dessas mãos um mate, com as armas da Banda Oriental, recordo na janela da casa uma esteira amarela, com uma vaga paisagem lacustre. Recordo claramente a sua voz; a voz pausada, ressentida e nasal de orillero antigo, sem os assobios italianos de agora. Mais de três vezes não o vi; a última, em 1887... Parece-me muito feliz o projeto de que todos aqueles que o conheceram escrevam sobre ele; meu testemunho será por certo o mais breve e sem dúvida o mais pobre, porém não o menos imparcial do volume que vós editareis. A minha deplorável condição de argentino impedir-me-á de incorrer no ditirambo - gênero obrigatório no Uruguai; quando o tema é um uruguaio. Literato, cajetilla, porteño. Funes não disse essas palavras injuriosas, mas de um modo suficiente me consta que eu representava para ele tais desventuras. Pedro Leandro Ipuche escreveu que Funes era um precursor dos super-homens; “Um Zaratustra cimarrón e vernáculo”; não o discuto, mas não se deve esquecer que era também natural de Fray Bentos, com certas limitações incuráveis. A minha primeira lembrança de Funes é muito clara. Vejo-o em um entardecer de Março ou Fevereiro do ano de 1884. Meu pai, nesse ano, levara-me a veranear em Fray Bentos. Voltava com meu primo Bernardo Haedo da estância de San Francisco. Voltávamos cantando, a cavalo, e essa não era a única circunstância da minha felicidade. Após um dia abafado, uma enorme tempestade cor cinza escura havia escondido o céu. Alentava-me o vento Sul, já enlouqueciam-se as árvores; eu tinha o temor (a esperança) de que nos surpreenderia em um descampado a água elemental. Apostamos uma espécie de corrida com a tempestade. Entramos em um desfiladeiro que se aprofundava entre duas veredas altíssimas de tijolo. Escurecera repentinamente; ouvi passos rápidos e quase secretos no alto; levantei os olhos e vi um rapaz que corria pela vereda estreita e esburacada como que por uma parede estreita e esburacada. Recordo a bombacha, as alpargatas, recordo o cigarro no rosto duro, contra a densa nuvem já sem limites. Bernardo gritou-lhe imprevisivelmente: Que horas são, Ireneo? Sem consultar o céu, sem deter-se, o outro respondeu: Faltam quatro minutos para as oito, jovem Bernardo Juan Francisco. A voz era aguda, zombeteira. Sou tão distraído que o diálogo a que acabo de me referir não teria chamado a minha atenção se não o tivesse enfatizado o meu primo, a quem estimulavam (creio) certo orgulho local, e o desejo de mostrar-se indiferente à réplica tripartite do outro. Disse-me que o rapaz do desfiladeiro era um tal Ireneo Funes, conhecido por algumas peculiaridades como a de não se dar com ninguém e a de saber sempre a hora, como um relógio. Complementou dizendo que era filho de uma passadeira do povo, Maria Clementina Funes, e que alguns diziam que seu pai era um médico de


saladeiro, um inglês O’Connor, e outros um domador ou rastreador do departamento de Salto. Vivia com a sua mãe, na curva da quinta dos Laureles. Nos anos de 1885 e 1886 veraneamos na cidade de Montevideo. Em 1887 voltei a Fray Bentos. Perguntei, como é natural, por todos os conhecidos e, finalmente, pelo “cronométrico Funes”. Responderam-me que um redomão o havia derrubado na estância de San Francisco, e que havia se tornado paralítico, sem esperança. Recordo a sensação de incômoda magia que a notícia despertou-me: a única vez que eu o vi, vínhamos a cavalo de San Francisco e ele andava em um lugar alto; o fato, na boca do meu primo Bernardo, tinha muito de sonho elaborado com elementos anteriores. Disseram-me que não se movia da cama, os olhos repousados na figueira do fundo ou em uma teia de aranha. Ao entardecer, permitia que o levassem para perto da janela. Levava a arrogância ao ponto de simular que era benéfico o golpe que o havia fulminado... Duas vezes o vi atrás da relha, que toscamente enfatizava a sua condição de eterno prisioneiro; uma, imóvel, com os olhos cerrados; outra, imóvel também, absorto na contemplação de um aromático galho de santonina. Não sem um certo orgulho havia iniciado naquele tempo o estudo metódico do latim. A minha mala incluía o De viris illustribus de Lhamond, o Thesaurus de Quicherat, os comentários de Júlio César e um volume ímpar da Naturalis historia de Plínio, que excedia (e continua excedendo) as minhas modestas virtudes de latinista. Tudo se propaga em um povoado; Ireneo, em seu rancho das orillas, não tardou em inteirar-se da chegada desses livros anômalos. Dirigiu-me uma carta florida e cerimoniosa, na qual recordava no encontro, desditosamente fugaz, “do dia 7 de Fevereiro de 1884”, ponderava os gloriosos serviços que Don Gregorio Haedo, meu tio, falecido nesse mesmo ano, “havia prestado às duas pátrias na valorosa jornada de Ituzaingó”, e me solicitava o empréstimo de qualquer dos volumes, acompanhado de um dicionário “para a boa intelecção do texto original, pois todavia ignoro o latim”. Prometia devolvê-los em bom estado, quase imediatamente. A letra era perfeita, muito perfilada; a ortografia, do tipo que Andrés Bello preconizou: i por y, j por g. A princípio, suspeitei naturalmente tratar-se de uma zombaria. Meus primos asseguraram que não, que eram coisas de Ireneo. Não sabia se atribuía ao atrevimento, à ignorância ou à estupidez a ideia de que o árduo latim não requeresse mais instrumento do que um dicionário; para desencorajá-lo completamente enviei-lhe o Gradus ad parnassu de Quicherat e a obra de Plínio. No dia 14 de Fevereiro telegrafaram-me de Buenos Aires que voltasse imediatamente, pois meu pai não estava “nada bem”. Deus me perdoe; o prestígio de ser o destinatário de um telegrama urgente, o desejo de comunicar a toda Fray Bentos a contradição entre a forma negativa da notícia e o peremptório advérbio, a tentação de dramatizar a minha dor, fingindo um estoicismo viril, talvez distraíram-me de toda a possibilidade de dor. Ao fazer a mala, notei que me faltavam o Gradus e o primeiro tomo da Naturalis historia. O “Saturno” zarpava no dia seguinte, pela manhã; nessa noite, depois da janta, dirigi-me à casa de Funes. Assombrou-me que a noite fora não menos pesada que o dia. No humilde rancho, a mãe de Funes recebeu-me. Disse-me que Ireneo estava no quarto dos fundos e que não me estranhasse encontrá-lo às escuras, pois Ireneo preferia passar as horas mortas sem acender a vela. Atravessei o pátio de lajota, o pequeno corredor; cheguei ao segundo pátio. Ha-

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via uma parreira; a escuridão pareceu-me total. Ouvi prontamente a voz alta e zombeteira de Ireneo. Essa voz falava em latim; essa voz (que vinha das trevas) articulava com moroso deleite um discurso, ou prece, ou encantamento. Ressoavam as sílabas romanas no pátio de terra; o meu temor as tomava por indecifráveis, intermináveis; depois, no enorme diálogo dessa noite, soube que formavam o primeiro parágrafo do 24o capítulo do 7o livro da Naturalis historia. O tema desse capítulo é a memória: as últimas palavras foram ut nihil non iisdem verbis redderetur auditum. Sem a menor mudança de voz, Ireneo disse-me o que se passara. Estava na cama, fumando. Parece-me que não vi o seu rosto até a aurora; creio lembrar-me da brasa momentânea do cigarro. O quarto exalava um vago odor de umidade. Sentei-me, repeti a estória do telegrama e da enfermidade de meu pai. Chego, agora, ao ponto mais difícil do meu relato. Este (é bem verdade que já o sabe o leitor) não tem outro argumento senão esse diálogo de há já meio século. Não tratarei de reproduzir as suas palavras, irrecuperáveis agora. Prefiro resumir com veracidade as muitas coisas que me disse Ireneo. O estilo indireto é remoto e débil; eu sei que sacrifico a eficácia do meu relato; que os meus leitores imaginem os períodos entrecortados que me abrumaram essa noite. Ireneo começou por enumerar, em latim e espanhol, os casos de memória prodigiosa registrados pela Naturalis historia: Ciro, rei dos persas, que sabia chamar pelo nome todos os soldados de seus exércitos; Metríadates e Eupator, que administrava a justiça dos 22 idiomas de seu império; Simónides, inventor da mnemotecnia; Metrodoro, que professava a arte de repetir com fidelidade o escutado de uma só vez. Com evidente boa fé maravilhou-se de que tais casos maravilharam. Disse-me que antes daquela tarde chuvosa em que o azulego o derrubou, ele havia sido o que são todos os cristãos; um cego, um surdo, um tolo, um desmemoriado. (Tratei de recordar-lhe a percepção exata do tempo, a sua memória de nomes próprios; não me fez caso.) Dezenove anos havia vivido como quem sonha: olhava sem ver, ouvia sem ouvir, esquecia-se de tudo, de quase tudo. Ao cair, perdeu o conhecimento; quando recobrou, o presente era quase intolerável de tão rico e tão nítido, e também as memórias mais antigas e mais triviais. Pouco depois averiguou que estava paralítico. Fato pouco o interessou. Pensou (sentiu) que a imobilidade era um preço mínimo. Agora a sua percepção e sua memória eram infalíveis. Num rápido olhar, nós percebemos três taças em uma mesa; Funes, todos os brotos e cachos e frutas que se encontravam em uma parreira. Sabia as formas das nuvens austrais do amanhecer de trinta de abril de 1882 e podia compará-los na lembrança às dobras de um livro em pasta espanhola que só havia olhado uma vez e às linhas da espuma que um remo levantou no Rio Negro na véspera da ação de Quebrado. Essas lembranças não eram simples; cada imagem visual estava ligada a sensações musculares, térmicas, etc. Podia reconstruir todos os sonhos, todos os entre sonhos. Duas ou três vezes havia reconstruído um dia inteiro, não havia jamais duvidado, mas cada reconstrução havia requerido um dia inteiro. Disse-me: Mais lembranças tenho eu do que todos os homens tiveram desde que o mundo é mundo. E também: Meus sonhos são como a vossa vigília. E também, até a aurora; Minha memória, senhor, é como depósito de lixo. Uma circunferência em um quadro-negro, um triângulo retângulo; um losango, são formas que podemos intuir plenamente; o mesmo se passava a Ireneo com as tempestuosas crinas de um potro, com uma ponta de


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gado em um coxilha, com o fogo mutante e com a cinza inumerável, com as muitas faces de um morto em um grande velório. Não sei quantas estrelas via no céu. Essas coisas me disse; nem então nem depois coloquei-as em dúvida. Naquele tempo não havia cinematógrafos nem fonógrafos; é, no entanto, verossímil e até incrível que ninguém fizera um experimento com Funes. O certo é que vivemos postergando todo o postergável; talvez todos saibamos profundamente que somos imortais e que mais cedo ou mais tarde, todo homem fará todas as coisas e saberá tudo. A voz de Funes, vinda da escuridão, seguia falando. Disse-me que em 1886 havia elaborado um sistema original de numeração e que em muito poucos dias havia ultrapassado vinte e quatro mil. Não o havia escrito, porque o pensado uma só vez já não podia desvanecer-lhe. Seu primeiro estímulo, creio, foi o descontentamento de que os trinta e três uruguaios requeressem dois signos e três palavras, em lugar de uma só palavra e um só signo. Aplicou logo esse disparatado princípio aos outros números. Em lugar de sete mil e treze, dizia (por exemplo) Máximo Pérez; em lugar de sete mil e catorze, A Ferrovia; outros números eram Luis Melián Lafinur, Olivar, enxofre, os rústicos, a baleia, o gás, a caldeira, Napoleão, Agustín de Vedia. Em lugar de quinhentos, dizia nove. Cada palavra tinha um signo particular, uma espécie de marca; as últimas eram muito complicadas... Eu tratei de explicar-lhe que essa rapsódia de vozes desconexas era precisamente o contrário de um sistema de numeração. Eu lhe observei que dizer 365 era dizer três centenas, seis dezenas, cinco unidades; análise que não existe nos “números”. O Negro Timóteo a manta de carne. Funes não me entendeu ou não quis me entender. Locke, no século XVII, postulou (ou reprovou) um idioma impossível no qual cada coisa individual, cada pedra, cada pássaro e cada ramo tivesse um nome próprio; Funes projetou alguma vez um idioma análogo, mas o rejeitou por parecer-lhe demasiado geral, demasiado ambíguo. De fato, Funes não apenas recordava cada folha de cada árvore de cada monte, mas também cada uma das vezes que a havia percebido ou imaginado. Resolveu reduzir cada uma de suas jornadas pretéritas a umas setenta mil lembranças, que definiria logo por cifras. Dissuadiram-no duas considerações: a consciência de que a tarefa era interminável, a consciência de que era inútil. Pensou que na hora da morte não havia acabo ainda de classificar todas as lembranças da infância. Os dois projetos que foram indicados (um vocabulário infinito para a série natural dos números, um inútil catálogo mental de todas as imagens da lembrança) são insensatos, mas revelam certa balbuciante grandeza. Nos deixam vislumbrar ou inferir o vertiginoso mundo de Funes. Este, não o esqueçamos, era quase incapaz de ideias gerais, platônicas. Não apenas lhe custava compreender que o símbolo genérico cão abarcava tantos indivíduos díspares de diversos tamanhos e diversas formas; perturbava-lhe que o cão das três e catorze (visto de perfil) tivesse o mesmo nome que o cão das três e quatro (visto de frente). Sua própria face no espelho, suas próprias mãos, surpreendiam-no cada vez. Comenta Swift que o imperador de Lilliput discernia o movimento do ponteiro dos minutos; Funes discernia continuamente os avanços tranquilos da corrupção, das cáries, da fatiga. Notava os progressos da morte, da umidade. Era o solitário e lúcido espectador de um mundo multiforme, instantâneo e quase intolerantemente preciso. Babilônia, Londres e Nova York têm preenchido com feroz esplendor a imaginação dos homens; ninguém, em suas torres


populosas ou em suas avenidas urgentes, sentira o calor e a pressão de uma realidade tão infatigável como a que dia e noite convergia sobre o infeliz Ireneo, em seu pobre subúrbio sulamericano. Era-lhe muito difícil dormir. Dormir é distrair-se do mundo; Funes, de costas na cama, na sombra, figurava a si mesmo cada rachadura e cada moldura das casas distintas que o rodeavam. (Repito que o menos importante das suas lembranças era mais minucioso e mais vivo que nossa percepção de um gozo físico ou de um tormento físico). Em direção ao leste, em um trecho não pavimentado, havia casas novas, desconhecidas. Funes as imaginava negras, compactas, feitas de treva homogênea; nessa direção virava o rosto para dormir. Também era seu costume imaginar-se no fundo do rio, mexido e anulado pela corrente. Havia aprendido sem esforço o inglês, o francês, o português, o latim. Suspeito, contudo, que não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No mundo abarrotado de Funes não havia senão detalhes, quase imediatos. A receosa claridade da madrugada entrou pelo pátio de terra. Então vi a face da voz que toda a noite havia falado. Ireneo tinha dezenove anos; havia nascido em 1868; pareceu-me tão monumental como o bronze, mais antigo que o Egito, anterior às profecias e às pirâmides. Pensei que cada uma das minhas palavras (que cada um dos meus gestos) perduraria em sua implacável memória; entorpeceu-me o temor de multiplicar trejeitos inúteis. Ireneo Funes morreu em 1889, de uma congestão pulmonar. BORGES, Jorge Luis. Prosa Completa. Ed. Bruguera, vol. 1. Barcelona, 1979.

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Biso Paula Montes*

Nas manhãzinhas de domingo, Eu entrava correndo naquele quarto, Irradiado dourado Que tinha cheiro de sol e jasmim, Vindo da varanda, Dar bom dia pro Biso, que assistia à missa do galo. Bisavô era Quirino, Que eu sempre chamei de Biso. Para ele, eu era rosa, E minha irmã era margarida. Biso que balançava Na sua cadeira de balanço. Tomava “Pílulas do Senhor Reitor”. Que não tinha dentes na boca, Mas muitas histórias para contar. No quarto dourado, que cheirava Jasmim, Tinha um Cristo na Cruz, Que eu achava estranho Só usar cueca. Agosto Biso caiu da cama. Não tem mais Cristo Naquele quarto, E o pé de jasmim na varanda secou. Mas ainda bate o mesmo sol Onde Biso se alongava de tardinha.

Paula Montes Setembro/2006

* Ex-aluna da ENSG, 2006

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Memórias inventadas fragmentos Manoel de Barros

Escova Eu tinha vontade de fazer como os dois homens que vi sentados na terra escovando osso. No começo achei que aqueles homens não batiam bem. Porque ficavam sentados na terra o dia inteiro escovando osso. Depois aprendi que aqueles homens eram arqueólogos. E que eles faziam o serviço de escovar osso por amor. E que eles queriam encontrar nos ossos vestígios de antigas civilizações que estariam enterrados por séculos naquele chão. Logo pensei de escovar palavras. Porque eu havia lido em algum lugar que as palavras eram conchas de clamores antigos. Eu queria ir atrás dos clamores antigos que estariam guardados dentro das palavras. Eu já sabia também que as palavras possuem no corpo muitas oralidades remontadas e muitas significâncias remontadas. Eu queria então escovar as palavras para escutar o primeiro esgar de cada uma. Para escutar os primeiros sons, mesmo que ainda bígrafos. Comecei a fazer isso sentado em minha escrivaninha. Passava horas inteiras, dias inteiros fechado no quarto, trancado, a escovar palavras. Logo a turma perguntou: o que eu fazia o dia inteiro trancado naquele quarto? Eu respondi a eles, meio entresonhado, que eu estava escovando palavras. Eles acharam que eu não batia bem. Então eu joguei a escova fora. Cabeludinho Quando a Vó me recebeu nas férias, ela me apresentou aos amigos: Este é meu neto. Ele foi estudar no Rio e voltou de ateu. Ela disse que eu voltei de ateu. Aquela preposição deslocada me fantasiava de ateu. Como quem dissesse no Carnaval: aquele menino está fantasiado de palhaço. Minha vó entendia de regências verbais. Ela falava de sério. Mas todo-mundo riu. Porque aquela preposição deslocada podia fazer de uma informação um chiste. E fez. E mais: eu acho que buscar a beleza nas palavras é uma solenidade de amor. E pode ser instrumento de rir. De outra feita, no meio da pelada um menino gritou: Disilimina esse, Cabeludinho. Eu não disiliminei ninguém. Mas aquele verbo novo trouxe um perfume de poesia à nossa quadra. Aprendi nessas férias a brincar de palavras mais do que trabalhar com elas. Comecei a não gostar de palavra engavetada. Aquele que não pode mudar de lugar. Aprendi a gostar mais das palavras pelo que elas entoam do que pelo que elas informam. Por depois ouvi um vaqueiro a cantar com saudade: Ai morena, não me escreve – que eu não sei a ler. Aquele a preposto ao verbo ler, ao meu ouvir, ampliava a solidão do vaqueiro. BARROS, Manuel de. Memórias inventadas. São Paulo. Ed. Planeta, 2003.

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XXII fragmento Mário de Andrade

A manhã roda macia a meu lado Entre arranha-céus de luz Construídos pelo melhor engenheiro da terra Como ele deixou longe as renascenças do sr. dr. Ramos [de Azevedo! De que calem as escolas Norma o Théâtrê Municipal [de l’Opera E o sinuoso edifício dos Correios-e-Telégrafos Com aquele relógio-diadema made inexpressively? Na Pauliceia desvairada das minhas sensações O Sol é o sr. Engenheiro oficial.

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ANDRADE, Mário de. Losango Cáqui.


A dança das memórias Complicada essa história de investigar o passado. Tristeza, alegria, mágoa e emoção em encharcam ao abrir um álbum de fotos. Não preciso estar nas fotos, não preciso de citação relativa à minha futura existência para me emocionar com elas. Ao abrir um álbum vejo meus avós jovens, meus pais ainda casados, adolescentes com os rostos de meus tios e suas inúmeras companhias. Reconheço a infinidade de histórias que se escrevem indiferentes à minha existência e o tempo vem se esfregar em minha cara, me dizendo que um dia alguém olhará fotos antigas e verá um rosto jovem, de cabelos loiros e um olhar que pode ou não dizer muito, e que esse alguém pode ou não se perguntar quem é essa menina da foto, qual é a história ou para onde ela foi. Ou pode passar reto, escondendo uma história dentro da outra, e de outra, e de outra, conforme vira as páginas de um álbum. Incrível a infinidade de histórias que se cruzam, ou não, no nosso caminho. A verdade é que estou com medo. Medo de escrever, escancarar minha alma, mergulhar na minha história, na dos meus pais, na dos meus avós. Medo de encarar o tempo que passou, e de tentar imaginar tudo aquilo que virá. O tempo é cruel com o ser humano. Faz com que saudemos o passado, e temamos o futuro. Victória Gruber, ex-aluna, 2015

Descobri recentemente que nasci num domingo, ao meio dia. Fiquei extasiado diante da notícia: sou domingueiro desde que olhei o mundo pela primeira vez. Talvez por coincidência, é num domingo que escrevo. Não: veio a calhar d’eu nascer no mesmo dia que escrevo, mas a recíproca não é verdadeira. Escrevo num Domingo porque é o único ia em que posso fazê-lo. Durante a semana, eu vivo; e no domingo, escrevo. Porque hoje não é (mas houve) sábado. Há, no entanto, certos sentimentos que ainda quero manter em mim e, portanto, não grafo no papel. É preciso certa resignação para escrever.

Fernando Falbel, ex-aluno, 2015

Pelada. Nos braços de um desconhecido. Nascida. Exposta a tudo, a qualquer tipo de influência. Abro a boca para receber as suas opiniões. Desembrulho as mãos para te entregar as novas responsabilidades. Escute bem, para que sua fala entre por um ouvido e saia pelo outro. Abro o olho, não! Não abro o olho, ainda não estou pronta. Acabo de sair de um mondo onde todos eram cegos. Agora, adaptarei-me ao mundo de vocês. Mas, cala. Darei tempo ao tempo, dê também.

Nicole Singer, ex-aluna, 2015

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Querido pé esquerdo, Acho que começamos muito mal. Prazer, sou aquela que na teoria você devia sustentar, lembra? Desde pequena já diziam que você seria um problema na escolinha de esportes. Os professores já alegavam que corria estranho, o que gerou anos inúteis de fisioterapia. Vamos conversar e resolver a situação? Cara, na boa, não sei o que fiz pra você, mas era muito chato ter que limitar a fazer as coisas pela sua fraqueza. Poxa né, vai lá! Toma uma iniciativa, fica forte, resiste! Já e quebrei tantas vezes, tantos ligamentos rompidos, com qual propósito? Tendões distendidos e inflamações. Por quê? Para quem? Sei que pelo fato de não conseguir correr, aprendi a esperar, a realmente caminhar para o que eu quero e não ir correndo com sede ao pote. Tudo bem que me fez ser alvo de piadinhas dos meus amigos “ela não corre” ou “ela anda estranho”, mas validou eu ser mais eu. Pé, se você está fraco, diga. Você sabe que existe muita gente que pode te ajudar. Os músculos da batata da perna ou da coxa, atém mesmo o pé direito, todos à sua disposição. Não entendi porque você esperou até um caco e gritar a sua dor para que fizéssemos alguma coisa. O Dr. Marcelo implementou agora dois enfermeiros que vão morar aí com você, pra ver se você entra em colapso de novo. Os nomes são pinos. Ele também deu uma raspada no que estava inflamado e uma reconstruída nos tendões, ou seja, deu uma pimpada na casa.

Valentina Kalcenik, ex-aluna, 2015

São Paulo. A metrópole paulista e seus nítidos contrastes. Sempre no embate do bem com o mal, do que deveria ser igual pra igual. Como caleidoscópio, a cidade com suas diferenças se separa, mas no fundo tudo se encaixa. Impossível retirar. Impossível esconder. Impossível escolher o que sentir de você. Tudo aqui coexiste, convive, conversa. Em discurso direto, te amo e odeio, meu berço no sudeste brasileiro. Entre o céu e o inferno, os paulistanos trafegam. É rico com o pobre, Morumbi e Paraisópolis, desigual por ser diferente. É a violência e a poesia, da Polícia na Paulista, negros morrem, fardados matam sob aplausos dos ricaços. Na avenida, manifesto contra abusos, atrasos, outros só no panelaço. Poesia a mente cria em busca da calmaria. É a lotação e o conforto, do público atrás do blindado, afinal o coletivo é sempre menor que o privado. O trânsito e a poluição, me deixam sem tempo, sem pulmão. No entanto, é colcha de retalhos que me acolhe. Em seu reflexo especulo sobre o futuro e todos os porquês do mundo. Um pouco de tudo que está aqui está em mim e vice-versa. As ruas são minhas obras e arte, as pessoas as amizades. Quando viajo sinto saudade da sua diversidade. O Ibirapuera é meu jardim, a Liberdade minha cozinha e pro MASP dou uma fugida. Encontro onde ir quando quero chorar. É a metrópole dos paradoxos. São Paulo me tornou quem sou, sua ambiguidade me hipnotizou.

Bruna Quiroga, ex-aluna, 2015

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Gostaria de deixar claro que fui obrigada a escrever essa autobiografia. E não gosto da ideia. Sou aberta e falo o que sinto. Mas, não sinto muito. Tão fria que me resfrio semana sim, semana não. Às vezes, infelizmente, chego a sentir. Me obrigo. E, então, peço cafuné alheio. Gosto de cafuné. Sou expressão-clichê, um livro aberto até a página 2. Nasci na escola e lá cresci também. Não tinha nome; era só “escola”. Mas devia se chamar casa. Procurei no dicionário e me assustei – casa e escola não são sinônimos. Sempre achei que o chão do pátio azul era o oceano Pacífico. Os bancos e lixos eram as rochas altas. E eu, era a sereia, golfinho, tubarão. Eu era o 95% desconhecido de toda a água do planeta. Criei meu próprio dicionário e fiz de casa e escola sinônimos. Porque era no lar que eu podia chorar à vontade – um vale de lágrimas – e rir mais ainda. Flávia Pereira, ex-aluna, 2016

Aqui eu abro as portas dessa casa, com paredes descascadas que é minha mente, em constante reforma, qualquer um pode fazer uma modificação aqui, ela se molda por todos, embora seja só minha e ninguém tenha acesso. Essas memórias aqui grafadas não são as melhores nem as piores, mas as que tenho. Bernardo Riatto, ex-aluno, 2016

A ideia dessa autobiografia é atribuir sentido ao que não parece ter nenhum; mostrar como o mundo interage, mesmo quando tento não interagir com o mundo; e encontrar um pequeno lugar no frio e impessoal universo. Prepare-se, então, leitor, para desvendar um pedaço do meu ser; e descobrir os defeitos pelos quais a sociedade não me deixa sentir orgulho. Eduardo Badaoui, ex-aluno, 2016

Essa é uma homenagem à minha memória: adaptável, amorfa, afetiva e acolhedora como a água. Como eu. Uma viagem na percepção de que a vida está na infindável possibilidade de abrir as portas, para fora e para dentro de nós. Helena Breyton, ex-aluna, 2016

A memória é composta por retratos. Não me refiro àqueles retratos estáticos e estagnados das fotos ou pinturas. Refiro-me àqueles retratos fluidos, mutáveis, voláteis e abstratos que variam conforme as ficções, os sentimentos, as ilusões e o esquecimento. Confesso que sou um ser inconstante: revejo meus retratos dia sim e dia não. Ora choro e sinto saudades, ora grito e esperneio, ora gargalho e me aconchego. Em minutos, embaralho passado com presente, fatos com suposições e ideias com utopias. Carolina Godoy, ex-aluna, 2016

Escrever um livro é ganhar consciência. É buscar fios condutores, sentidos e estar suscetível ao choque da reflexão. Refletir traz verdades, machucados e não é 52


qualquer um que consegue se render à legitimidade da palavra. Tenho a impressão que isso represente, no final das contas, uma espécie de bússola. Porque devo admitir que no meio de todos os meus episódios, mesmo que inconscientemente, há o desejo genuíno de encontrar um rumo para mim. Luiza Anderáos, ex-aluna, 2016

É preciso muita bravura para se deixar tomar pelo País das Maravilhas. Ainda mais eu, que era tão cética e cabeça dura antes de conhecer o lugar. Não é qualquer um que consegue nadar nas próprias lágrimas, conversar com flores e lagartas e não ter um troço! (...) Eu não trocaria por nada neste mundo a experiência que tive. As criaturas fascinantes que conheci... todas elas eram como sonhos na minha frente, sonhos materializados, que andavam, pensavam, conversavam. Mas não se pode tratá-los como sonhos, e aí que jaz o verdadeiro desafio... Alice Arbex, ex-aluna, 2017

Eu cresci junto com o Gracinha... O Gracinha foi palco de 11 anos inteiros da minha vida, passei mais tempo na escola do que dentro do meu próprio quarto, por isso digo que essa escola é e sempre será minha casa. Não falo isso apenas pelo tempo que eu passei aqui, mas pela maneira que esse tempo foi gasto e pelas memórias que todos esses anos carregam. Foi onde eu me senti acolhida, me apaixonei pela primeira vez, encontrei minha segunda família, me refugiei quando quis ficar sozinha, ganhei carinho e aprendi muito mais do que matemática e português, eu aprendi a crescer sozinha. O Gracinha é testemunha de todas as minhas lágrimas e também de todos os meus maiores sorrisos. Mariana Cunha, ex-aluna, 2017

Aprendi a apreciar mais a minha educação para poder transmiti-la para outros... Comecei a dar mais valor ao conhecimento e a vê-lo como uma arma poderosa capaz de melhorar a vida das pessoas... Laura Moraes, ex-aluna, 2017

A cidade de São Paulo pode ser considerada outra protagonista da minha existência. Diante de todas as possibilidades, estas pessoas pararam na cidade das misturas. Seus filhos, meus pais, se juntaram num forró na Lapa e agora eu tenho a árdua tarefa de carregar um pouquinho de todo esse passado comigo. Meus traços são fusões daquilo que herdei de diferentes cantos. O tempo já começa a deixar algumas marcas em meu corpo que ainda saltita. Minhas origens permitem que estas linhas se formem de maneira meio confusa, refletindo o início da mistura em que me torno. Maria Isabel Guedes, ex-aluna, 2017

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Eveline James Joyce

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SHE sat at the window watching the evening invade the avenue. Her head was leaned against the window curtains and in her nostrils was the odour of dusty cretonne. She was tired. Few people passed. The man out of the last house passed on his way home; she heard his footsteps clacking along the concrete pavement and afterwards crunching on the cinder path before the new red houses. One time there used to be a field there in which they used to play every evening with other people’s children. Then a man from Belfast bought the field and built houses in it -- not like their little brown houses but bright brick houses with shining roofs. The children of the avenue used to play together in that field -- the Devines, the Waters, the Dunns, little Keogh the cripple, she and her brothers and sisters. Ernest, however, never played: he was too grown up. Her father used often to hunt them in out of the field with his blackthorn stick; but usually little Keogh used to keep nix and call out when he saw her father coming. Still they seemed to have been rather happy then. Her father was not so bad then; and besides, her mother was alive. That was a long time ago; she and her brothers and sisters were all grown up her mother was dead. Tizzie Dunn was dead, too, and the Waters had gone back to England. Everything changes. Now she was going to go away like the others, to leave her home. Home! She looked round the room, reviewing all its familiar objects which she had dusted once a week for so many years, wondering where on earth all the dust came from. Perhaps she would never see again those familiar objects from which she had never dreamed of being divided. And yet during all those years she had never found out the name of the priest whose yellowing photograph hung on the wall above the broken harmonium beside the coloured print of the promises made to Blessed Margaret Mary Alacoque. He had been a school friend of her father. Whenever he showed the photograph to a visitor her father used to pass it with a casual word: “He is in Melbourne now.” She had consented to go away, to leave her home. Was that wise? She tried to weigh each side of the question. In her home anyway she had shelter and food; she had those whom she had known all her life about her. Of course she had to work hard, both in the house and at business. What would they say of her in the Stores when they found out that she had run away with a fellow? Say she was a fool, perhaps; and her place would be filled up by advertisement. Miss Gavan would be glad. She had always had an edge on her, especially whenever there were people listening. “Miss Hill, don’t you see these ladies are waiting?” “Look lively, Miss Hill, please.” She would not cry many tears at leaving the Stores. But in her new home, in a distant unknown country, it would not be like that. Then she would be married -- she, Eveline. People would treat her with respect then. She would not be treated as her mother had been. Even now, though she was over nineteen, she sometimes felt herself in danger of her father’s violence. She knew it was


that that had given her the palpitations. When they were growing up he had never gone for her like he used to go for Harry and Ernest, because she was a girl but latterly he had begun to threaten her and say what he would do to her only for her dead mother’s sake. And no she had nobody to protect her. Ernest was dead and Harry, who was in the church decorating business, was nearly always down somewhere in the country. Besides, the invariable squabble for money on Saturday nights had begun to weary her unspeakably. She always gave her entire wages -- seven shillings -- and Harry always sent up what he could but the trouble was to get any money from her father. He said she used to squander the money, that she had no head, that he wasn’t going to give her his hard-earned money to throw about the streets, and much more, for he was usually fairly bad on Saturday night. In the end he would give her the money and ask her had she any intention of buying Sunday’s dinner. Then she had to rush out as quickly as she could and do her marketing, holding her black leather purse tightly in her hand as she elbowed her way through the crowds and returning home late under her load of provisions. She had hard work to keep the house together and to see that the two young children who had been left to her charge went to school regularly and got their meals regularly. It was hard work -- a hard life -- but now that she was about to leave it she did not find it a wholly undesirable life. She was about to explore another life with Frank. Frank was very kind, manly, open-hearted. She was to go away with him by the night-boat to be his wife and to live with him in Buenos Ayres where he had a home waiting for her. How well she remembered the first time she had seen him; he was lodging in a house on the main road where she used to visit. It seemed a few weeks ago. He was standing at the gate, his peaked cap pushed back on his head and his hair tumbled forward over a face of bronze. Then they had come to know each other. He used to meet her outside the Stores every evening and see her home. He took her to see The Bohemian Girl and she felt elated as she sat in an unaccustomed part of the theatre with him. He was awfully fond of music and sang a little. People knew that they were courting and, when he sang about the lass that loves a sailor, she always felt pleasantly confused. He used to call her Poppens out of fun. First of all it had been an excitement for her to have a fellow and then she had begun to like him. He had tales of distant countries. He had started as a deck boy at a pound a month on a ship of the Allan Line going out to Canada. He told her the names of the ships he had been on and the names of the different services. He had sailed through the Straits of Magellan and he told her stories of the terrible Patagonians. He had fallen on his feet in Buenos Ayres, he said, and had come over to the old country just for a holiday. Of course, her father had found out the affair and had forbidden her to have anything to say to him. “I know these sailor chaps,” he said. One day he had quarrelled with Frank and after that she had to meet her lover secretly. The evening deepened in the avenue. The white of two letters in her lap grew indistinct. One was to Harry; the other was to her father. Ernest had been her favourite but she liked Harry too. Her father was becoming old lately, she noticed; he would miss her. Sometimes he could be very nice. Not long before, when she had been laid up for a day, he had read her out a ghost story and made toast for her at the fire. Another day, when their mother was alive, they had all gone for a picnic to the

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Hill of Howth. She remembered her father putting on her mother’s bonnet to make the children laugh. Her time was running out but she continued to sit by the window, leaning her head against the window curtain, inhaling the odour of dusty cretonne. Down far in the avenue she could hear a street organ playing. She knew the air Strange that it should come that very night to remind her of the promise to her mother, her promise to keep the home together as long as she could. She remembered the last night of her mother’s illness; she was again in the close dark room at the other side of the hall and outside she heard a melancholy air of Italy. The organ-player had been ordered to go away and given sixpence. She remembered her father strutting back into the sickroom saying: “Damned Italians! Coming over here!” As she mused the pitiful vision of her mother’s life laid its spell on the very quick of her being -- that life of commonplace sacrifices closing in final craziness. She trembled as she heard again her mother’s voice saying constantly with foolish insistence: “Derevaun Seraun! Derevaun Seraun!” She stood up in a sudden impulse of terror. Escape! She must escape! Frank would save her. He would give her life, perhaps love, too. But she wanted to live. Why should she be unhappy? She had a right to happiness. Frank would take her in his arms, fold her in his arms. He would save her. She stood among the swaying crowd in the station at the North Wall. He held her hand and she knew that he was speaking to her, saying something about the passage over and over again. The station was full of soldiers with brown baggages. Through the wide doors of the sheds she caught a glimpse of the black mass of the boat, lying in beside the quay wall, with illumined portholes. She answered nothing. She felt her cheek pale and cold and, out of a maze of distress, she prayed to God to direct her, to show her what was her duty. The boat blew a long mournful whistle into the mist. If she went, tomorrow she would be on the sea with Frank, steaming towards Buenos Ayres. Their passage had been booked. Could she still draw back after all he had done for her? Her distress awoke a nausea in her body and she kept moving her lips in silent fervent prayer. A bell clanged upon her heart. She felt him seize her hand: “Come!” All the seas of the world tumbled about her heart. He was drawing her into them: he would drown her. She gripped with both hands at the iron railing. “Come!” No! No! No! It was impossible. Her hands clutched the iron in frenzy. Amid the seas she sent a cry of anguish. “Eveline! Evvy!” He rushed beyond the barrier and called to her to follow. He was shouted at to go on but he still called to her. She set her white face to him, passive, like a helpless animal. Her eyes gave him no sign of love or farewell or recognition. http://www.readprint.com/work-880/James-Joyce Dubliners

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Depoimento Autobiográfico José Craveirinha

Nasci a primeira vez em 28 de Maio de 1922. Isto num domingo. Chamaram-me Sontinho, diminutivo de Sonto. Isto por parte da minha mãe, claro. Por parte do meu pai, fiquei José. Aonde? Na Av. Do Zihlahla, entre o Alto Maé e como quem vai para o Xipamanine. Bairros de quem? Bairros de pobres. Nasci a segunda vez quando me fizeram descobrir que era mulato… A seguir, fui nascendo à medida das circunstâncias impostas pelos outros. Quando o meu pai foi de vez, tive outro pai: seu irmão. E a partir de cada nascimento, eu tinha a felicidade de ver um problema a menos e um dilema a mais. Por isso, muito cedo, a terra natal em termos de Pátria e de opção. Quando a minha mãe foi de vez, outra mãe: Moçambique. A opção por causa do meu pai branco e da minha mãe preta. Nasci ainda outra vez no jornal O Brado Africano. No mesmo em que também nasceram Rui de Noronha e Noémia de Sousa. Muito desporto marcou-me o corpo e o espírito. Esforço, competição, vitória e derrota, sacrifício até à exaustão. Temperado por tudo isso. Talvez por causa do meu pai, mais agnóstico do que ateu. Talvez por causa do meu pai, encontrando no Amor a sublimação de tudo. Mesmo da Pátria. Ou antes: principalmente da Pátria. Por parte de minha mãe, só resignação. Uma luta incessante comigo próprio. Autodidacta. Minha grande aventura: ser pai. Depois, eu casado. Mas casado quando quis. E como quis. Escrever poemas, o meu refúgio, o meu País também. Uma necessidade angustiosa e urgente de ser cidadão desse País, muitas vezes, altas horas a noite. Janeiro de 1977. (CRAVEIRINHA, José. In: MENDONÇA, Fátima & SAÚTE, Nelson. Antologia da nova poesia moçambicana. AEMO,1989.)

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O Velho Rui Knopfli

Não envelheço. Torno-me antigo. O velho sempre viveu em mim, sempre o pressenti no olhar magoado demorando-se nas coisas, em certa lentidão não premeditada dos gestos e nas lembranças confusas de uma outra recuada idade. Sempre aflorou na mão e na estima triste que se estende aos amigos, na aresta de desconsolo que espreita as minhas horas de amor. O velho sempre viveu em mim. Eis que, enfim, o reboco se lhe começa a assemelhar. KNOPFLI, Rui. Mangas verdes com sal. 1969.

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Filhos da América Fragmento Nélida Piñon

A memória está em cada esquina. Conquanto falhe, se distraia, ela está viva, respira. Nada do humano jaz soterrado nos seus escaninhos. O detalhe mínimo apresenta-se de repente e aviva o que ficou atrás. Emoções, estilhaços amorosos, instantâneos envergonhados, as dores do degredo. Tudo que é matéria ficcional. Memória e invenção são assim inseparáveis, uma não vive sem a outra. Conjugadas, restauram a história do mundo. Ensejam que a arte narrativa esplende. Expressam as turbulências do pensamento e do coração. Fazem a collage dos fatos, o retoque dos rostos, os pedaços da vida acaso despedaçados e esquecidos. Insinuam que a existência é melancolicamente narrada. Nasci em Vila Isabel, terra de sambistas. (...) De família espanhola, da Galícia, uma região fecundada por lendas, narrativas, superstições, crendices, apostas no sobrenatural. Santiago de Compostela é sua capital, onde se concentram fé e cultura. Guardo estas terras galegas no ninho da memória. Ali, menina, passei quase dois anos. E ao retornar ao Brasil, falando português com sotaque galego, trouxe de volta um saber que alargou meus horizontes. (...) O núcleo mítico da minha escritura vem das vertentes do mundo. Em especial de um enclave galego constituído das 13 aldeias que amei, de onde saiu o meu sangue. Do Conselho de Cotobade, do qual fui declarada, em dia festivo, Hija Adoptiva. (...) Enquanto o Brasil é minha língua, residência de minha alma, Galícia é o reduto de um imaginário que me intriga e que não traduzo. (...) Na casa dos avôs, eu observava o pai e demais imigrantes radicados no Rio de Janeiro. Pousava neles meu olhar comovido e solidário. Menina, contudo, não tinha como me antecipar aos fatos. O que haviam eles feitos para eu me beneficiar da mesa farta, cercada de travessas. A realidade vivida em Vila Isabel, e em Copacabana, para onde os pais e eu nos mudáramos, provinha dessa gente que afugentava dúvidas, me iludia com certezas. Não exibiam de modo algum seus pesares. Os suspiros da avó Amada, sempre elegante, de trajes de seda e saltos altos, pareciam afirmar o quanto lhe custara adaptar-se ao Brasil. (...) Às vezes choro ao recordar o que meu povo heroico sofreu para que eu fosse feliz, estudasse no colégio de beneditinas alemãs, frequentasse assiduamente o Teatro Municipal, viajasse, dilatasse o imaginário com revelações que só a cultura despeja em mim. E o que fizeram para eu vir a ser uma escritora brasileira que hoje desfruta de extrema liberdade de inventar o mundo para acertar no alvo da realidade.

(PIÑON, Nélida. Filhos da América. Rio de Janeiro, Record, 2016, p. 16-20.)

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Saudade Guimarães Rosa

Saudade de tudo!... Saudade, essencial e orgânica, de horas passadas que eu podia viver e não vivi!... Saudade de gente que não conheço, de amigos nascidos noutras terras, de almas órfas e irmãs, de minha gente dispersa, que talvez até hoje ainda espere por mim... Saudade triste do passado, saudade gloriosa do futuro, saudade de todos os presentes vividos fora de mim!... Pressa!... Ânsia voraz de me fazer em muitos, fome angustiosa da fusão de tudo, sede da volta final da grande experiência: uma só alma em um só corpo, uma só alma-corpo, um só, um!... Como quem fecha numa gota o Oceano, afogado no fundo de si mesmo... ROSA, Guimarães. Magma. RJ. ed. Nova Fronteira, 1997.

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Istambul: Memória e Cidade fragmento Orhan Pamuk

A beleza de uma paisagem reside em sua melancolia.

Ahmet Rasim

Desde uma idade muito tenra desconfiei que havia mais coisas no meu mundo para além do que eu enxergava: em algum lugar das ruas de Istambul. Aos cinco anos, tive de morar por um período curto em outra casa. Depois de muitas separações tempestuosas, meus pais combinaram um encontro em Paris, e resolveram que meu irmão mais velho e eu ficaríamos em Istambul, mas em casas separadas. E aqui chegamos ao cerne da questão: nunca deixei Istambul, nunca deixei as ruas, as casas, e os bairros da minha infância. Embora tenha vivido em áreas diferentes de tempos em tempos, cinquenta anos depois vejo-me de volta ao mesmo Edifício Pamuk onde as minhas primeiras fotografias foram tiradas e onde minha mãe me pegou pela primeira vez no colo para mostrar-me o mundo. [...] E ouço novamente a voz de minha mãe: Por que você não sai um pouco? Por que não experimenta mudar de ares, viajar...? Conrad, Nabokov, Naipaul – eis três escritores conhecidos por terem conseguido migrar entre línguas, culturas, países, continentes, até mesmo civilizações. Suas imaginações se alimentavam do exílio, um alimento que tragavam não através das raízes, mas da falta delas. Minha imaginação, porém, exige que eu permaneça na mesma cidade, na mesma rua, na mesma casa, contemplando o mesmo panorama. O destino de Istambul é o meu destino. Estou ligado a esta cidade porque foi ela quem fez de mim quem eu sou. Gustave Flaubert, que esteve em Istambul 102 anos antes do meu nascimento, ficou impressionado com a variedade da vida de suas ruas fervilhantes; numa de suas cartas, profetizava que dali a um século a cidade seria a capital do mundo. E aconteceu o inverso: depois do colapso do Império Otomano, o mundo quase chegou a esquecer-se da existência de Istambul. A cidade em que eu nasci era mais pobre, mas acanhada e mais isolada do que jamais tinha sido nos dois mil anos da sua história. Para mim, ela sempre foi uma cidade dominada pelas ruínas e pela melancolia de fim de Império. Nasci no meio da noite de 7 de junho de 1952 num pequeno hospital particular de Moda. Naquela noite, pelo que me contaram, seus corredores estavam tranquilos, bem como o resto do mundo. Além do fato de o vulcão Strambolini ter repentinamente começado a cuspir chamas e cinzas dois dias antes, era relativamente pouco o que parecia acontecer no nosso planeta. 63


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Enquanto acompanhava pelo jornal os últimos desdobramentos desse drama, minha mãe estava sozinha em seu quarto, ou pelo menos foi o que me contou com uma mistura de remorso e ressentimento muitos anos depois. Depois de levá-la para o hospital, meu pai tinha ficado inquieto e, visto que o trabalho de parto da minha mãe não avançava, saíra para encontrar alguns amigos. A única pessoa ao lado dela na sala de parto era minha tia, que conseguira pular o muro do hospital no meio da noite. Quando minha mãe pôs os olhos em mim pela primeira vez, achou que eu era mais magro e frágil do que meu irmão tinha sido. Sinto-me compelido a acrescentar ou pelo menos foi o que me disseram. Em turco, temos um tempo verbal específico que nos permite distinguir o que ouvimos dizer daquilo que vimos com os próprios olhos; quando relatamos sonhos, contos de fadas ou fatos do passado que não podemos ter testemunhado, é esse o tempo que usamos. É uma distinção muito útil quando “rememoramos” as nossas primeiras experiências de vida, o berço em que dormíamos, o carrinho de bebê em que éramos empurrados, nossos primeiros passos, tudo da maneira como nos foi contado pelos pais, história que ouvimos com a mesma atenção arrebatada que poderíamos dar a algum relato brilhante de outra pessoa. É uma sensação tão agradável quanto a de nos ver a nós mesmos em sonho, mas pagamos por ela um preço elevado. Depois que se gravam em nossos espíritos, os relatos alheios sobre o que fizemos passam a contar mais do que as coisas de que nós mesmos nos lembramos. E da mesma forma que ficamos sabendo das nossas vidas por intermédio de outros, também deixamos que os outros acabem dando forma a nossa compreensão da cidade em que vivemos. A minha mãe, o meu pai, o meu irmão mais velho, a minha avó e os meus tios e tias — morávamos todos em diferentes andares de um mesmo prédio de apartamentos de cinco andares. [...] De acordo com o costume da época, afixaram orgulhosos uma placa que dizia Ed. Pamuk. Morávamos no quarto andar, mas eu percorria livremente o prédio todo desde o momento em que tive idade suficiente para deixar o colo da minha mãe, e lembro que em cada andar havia pelo menos um piano [...] ninguém jamais tocava [...] mas não eram só os pianos que não eram tocados por ninguém; em cada apartamento também havia uma cristaleira trancada exibindo porcelanas chinesas, xícaras de chá, baixelas de prata, açucareiros, caixas de rapé taças de cristal, ânforas para água de rosas, travessas e incensários que ninguém jamais tocara, embora no meio deles eu, às vezes, encontrasse esconderijos para os meus carrinhos em miniatura; [...] E depois que esgotava a minha energia para o devaneio, eu me refugiava nas fotografias que se espalhavam por todas as mesas, escrivaninhas e paredes. Nunca os tendo visto ser utilizados de outra forma, eu achava que os pianos fossem apoios para exposição de fotografias. Não havia uma única superfície na sala da minha avó que não estivesse coberta de porta-retratos de todos os tamanhos. Os mais importantes eram dois retratos imensos pendurados acima da lareira nunca usada. Um era uma fotografia retocada da minha avó, outra do meu avô, que morreu em 1934. Pela posição das fotos na parede e pelo jeito como os meus avós tinha posado (ligeiramente virados um para o outro, da maneira ainda preferida pelos reis e rainhas da Europa nos selos de correio), qualquer pessoa que entrasse naquela sala de museu e se depa-


rasse com seu olhar altaneiro saberia no mesmo instante que toda a história começara com eles dois. Os dois eram de uma cidade perto de Manisa, chamada Gordes; sua família era conhecida como Pamuk (algodão) por causa da pele clara e dos cabelos brancos. Minha avó paterna era circassiana (as moças circassianas, famosas pela altura e a beleza, erma muito populares nos haréns otomanos. O pai da minha avó tinha imigrado para a Anatólia durante a guerra russo–otomana (1877-78). A única pessoa que parecia perceber a existência do meu mundo secreto de fantasia era meu pai. Eu pensava no meu urso — cujo único olho eu tinha arrancado em um momento de exaltação raivosa e que emagrecia sempre à medida que eu arrancava mais e mais recheio do seu peito — ou então pensava no jogador de futebol do tamanho de um dedo que chutava quando se apertava um botão na sua cabeça; era meu terceiro jogador — eu quebrava os dois primeiros em ímpetos de excitação — e, agora quebrava também o novo, e me perguntava se o meu brinquedo ferido poderia estar morrendo em seu esconderijo. Ou então eu me perdia em fantasias assustadoras sobre as martas que a nossa empregada Esma Hanim alegava ter visto no telhado da vizinha [...] Quando de repente ouvia meu pai dizer: “O que estará acontecendo dentro da sua cabeça? Se você me contar, eu lhe dou 25 kurus” Nunca sabendo ao certo se devia contar-lhe toda a verdade, modificá-la um pouco ou contar uma mentira descarada, eu ficava em silêncio; depois de algum tempo, ele sorria e dizia: “agora é tarde demais — você devia ter me contado na hora”. Será que meu pai também tinha passado muito tempo num outro mundo? Anos transcorreriam até eu descobrir que o meu estranho passatempo era comumente conhecido como sonhar acordado. De modo que a pergunta do meu pai sempre me induzia ao pânico; ansioso, como sempre de evitar pensamentos perturbadores, eu me esquivava de sua pergunta e depois a afastava do meu espírito. Manter o segundo mundo em segredo tornava mais fácil para mim o trânsito de um para o outro. Quando eu me sentava em frente a minha avó e um raio de luz atravessava suas cortinas — como os holofotes dos navios que cruzavam o Bósforo à noite —, se eu olhasse diretamente para ele e piscasse os olhos, era capaz de induzir-me a ver uma frota de naves espaciais vermelhas flutuando à minha frente. Depois disso, passava a poder convocar a mesma armada toda vez que eu quisesse, voltando em seguida para o mundo real como alguém que simplesmente saísse de um quarto e apagasse a luz. PAMUK, Orhan. Istambul: memória e cidade. S.P. Cia das Letras, 2007.

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Um, nenhum e cem mil fragmento Luigi Pirandello

1 - Minha mulher e meu nariz – O que você está fazendo? – perguntou minha mulher ao me ver demorar estranhamente diante do espelho. – Nada, – respondi – só estou olhando aqui, dentro do meu nariz, esta narina. Quando aperto, sinto uma dorzinha. Minha mulher sorriu e disse: – Pensei que estivesse olhando para que lado ele cai. Virei-me para ela como um cachorro a quem tivessem pisado no rabo. – Cai? O meu nariz? E minha mulher respondeu, placidamente: – Claro, querido. Repare bem: ele cai para a direita. Eu tinha 28 anos e sempre, até então, havia considerado o meu nariz, se não propriamente belo, pelo menos bastante decente assim como todas as outras partes da minha pessoa. Por isso era fácil admitir e sustentar o que normalmente admitem e sustentam todos os que não tiveram a desgraça de nascer num corpo disforme: que é uma idiotice se preocupar com as próprias feições. A descoberta repentina e inesperada daquele defeito me irritou como um castigo imerecido. Talvez minha mulher tenha percebido muito melhor do que eu a minha irritação, pois acrescentou logo em seguida que, se eu estava tranquilo na certeza de não ter defeitos, podia ir desfazendo minhas ilusões, porque meu nariz caía para a direita, assim... – E o que mais? Ah, mais, bem mais! As minhas sobrancelhas pareciam dois acentos circunflexos, ^^, sobre os olhos, e minhas orelhas eram mal grudadas, uma mais saliente que a outra; e outras imperfeições... – Mais ainda? Ah, mais: nas mãos, o dedo mindinho; e nas pernas (não, tortas, não!), a direita, um pouquinho mais arqueada que a esquerda: na altura do joelho, só um pouquinho. Depois de um exame atento, tive de reconhecer todos esses defeitos. E só então, depois que minha irritação foi substituída por espanto e, logo em seguida, por dor e abatimento, minha mulher tentou consolar-me dizendo que eu não precisava me preocupar tanto com isso, porque, apesar de tudo, eu continuava sendo um belo homem. Difícil não se irritar quando recebemos como generosa concessão o que antes nos foi negado por direito. Lancei um venenosíssimo “obrigado” e, seguro de não ter motivos para sofrer ou me depreciar, não dei nenhuma importância àqueles leves defeitos. Mas dei um peso extraordinário ao fato de ter vivido por tantos anos sem nunca ter trocado de nariz, sempre com aquele, e com aquelas sobrancelhas e aquelas orelhas, aquelas mãos e aquelas pernas. E dizer que precisei ter uma mulher para me 66


dar conta de que eram defeituosos. – Oh, mas que maravilha! E não é que as mulheres foram feitas justamente para descobrir os defeitos dos maridos? Pois é, as mulheres... não nego. Mas também eu, se me permitem, naqueles tempos vivia pronto a afundar, a cada palavra que me fosse dita ou mosca que voasse, em abismos de reflexões e considerações que me cavavam por dentro e roíam o espírito a torto e a direito, como a toca de uma marmota, sem que de fora se percebesse coisa nenhuma. – Vê-se – vocês dirão – que eu tinha muito tempo a perder. Que nada. Era por causa do estado em que eu estava. E também por ócio, não vou negar, Era rico e tinha dois amigos fiéis, Sebastiano Quantorzo e Stefano Firbo, que cuidavam dos meus negócios desde a morte de meu pai – o qual, por mais que houvesse tentado de tudo, jamais conseguiu fazer com que eu concluísse nada. Exceto me casar, isso sim, muito jovem, talvez com a esperança de que ao menos eu lhe desse logo um neto que não se parecesse comigo. Mas nem isso o coitado pôde conseguir de mim. Não que eu, bem entendido, me opusesse às orientações e às vontades de meu pai. Ao contrário, acatava todas elas. Mas não fazia progressos. Parava a cada passo, primeiro a distância, depois girando em torno de cada pedrinha que eu encontrava no caminho, espantando-me de que os outros pudessem passar adiante sem dar a mínima atenção àquela pedrinha que, entretanto, para mim, havia assumido as proporções de uma montanha intransponível, aliás, de um mundo em que eu teria podido morar tranquilamente. Tinha ficado ali, parado nos primeiros passos de tantos caminhos, com o espírito cheio de mundos – ou pedrinhas, o que dá no mesmo. Mas não me parecia de modo nenhum que aqueles que passavam adiante e percorriam toda a estrada soubessem substancialmente mais do que eu. Passaram à minha frente, quanto a isso não há dúvida, e todos velozes como cavalinhos. Mas depois, no fim da estrada, todos encontraram uma carroça, a sua carroça. Todos se atrelaram a ela com muita paciência e, agora a estão puxando nas costas. Já eu não puxava nada; e por isso não tinha rédeas nem antolhos. Certamente eu via mais longe do que eles, mas não sabia aonde ir. Agora, voltando à descoberta daqueles pequenos defeitos, mergulhei por inteiro, direto, na ideia de que, então – mas seria possível? –, eu não conhecia bem nem mesmo meu próprio corpo, as coisas que mais intimamente me pertenciam: o nariz, as orelhas, as mãos as pernas. E voltava a observá-las, refazendo o exame. Assim começou o meu mal. Aquele mal que em breve me reduziria a condições de espírito e de corpo tão miseráveis e desesperadoras que certamente me teriam matado ou enlouquecido – caso não encontrasse nele mesmo (como direi em seguida) o remédio para a minha cura. PIRANDELLO, Luigi. Um, nenhum e cem mil. São Paulo. Cosac e Naify, 2001.

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A irrecusável busca de sentido fragmento Scarlett Marton

Mais do que reflexivo, este é um texto impressionista. Um tom nostálgico pode soar nestas páginas. Ou um tom indignado. Um tom combativo ou desesperançado. Não tenho como avaliar; sou “parte interessada, e até mesmo objeto de litígio, e não juiz”. É através de justaposições, contrastes, jogos de luz e sombra, que o pensamento se faz. Nas imagens que assim se formam, surgem percepções de uma existência, colhidas de forma aleatória, determinada. Menos como dados de realidade do que como o que vem dar ao quadro a sua moldura entram as notas de rodapé. Como nas telas dos impressionistas, aqui, há que se levar em conta a posição do cavalete e a luz do dia. No percurso, tanto uma quanto a outra podem alterar-se, de maneira imperceptível ou flagrante, esporádica ou frequente, pouco importa. De maneira inevitável. *** Por volta dos doze anos, já “decidira” estudar filosofia. Não sabia muito bem no que consistia, mas sabia que cabia perfeitamente no universo imaginário que então criara para mim mesma. Nesse universo alimentado pela leitura de livros infanto-juvenis, O Picapau Amarelo e O Minotauro haviam sido determinantes. De um lado, personagens dos contos de fada; de outro, figuras mitológicas e históricas. Graças ao pó de pirlimpimpim, estivera em Atenas com Narizinho e Pedrinho. Ceara na casa de Péricles, fora recebida por Aspásia. Sentara-me à mesa com Heródoto, discutira com Sócrates. Visitara o Partenon guiada por Fídias, conversara com Policleto sobre arte grega. Assistira a uma peça de Eurípides, entretivera-me com Sófocles sobre a tragédia. [...] Com quinze anos, encontrei a minha questão: por que existe o mal no mundo? E a formulação foi bem essa, sabendo hoje – é claro – que não há por que confiar na memória. Mas imagino que não se tratasse nem da pergunta acerca da maldade nem daquela outra acerca da maledicência. A minha questão era de ordem metafísico-religiosa talvez, senão cosmológica. Passados apenas quatro anos, num momento da vida em que os anos são eternidades, caiu-me nas mãos A Genealogia da Moral. Como não identificar-me com este autor que no prólogo ao livro escrevia: De fato, já quando rapaz de treze anos, o problema da origem do mal me perseguia: foi a ele que, em uma idade em que se tem “metade brinquedos de criança, metade Deus no coração”, dediquei meu primeiro brinquedo literário, meu primeiro exercício filosófico de escrita – e, no tocante à minha “solução” do problema daquela vez, dei a Deus, como é justo, a honra, e fiz dele o pai do mal!. Pergunta e resposta, para a menina de quinze, foram as mesmas; questão e solução, para mim, foram idênticas. Só que a Deus eu imputava também o mais rigoroso senso de justiça, que o levava a distribuir com equanimidade o mal pelo mundo, dando a cada um o lote que fizera por merecer. E assim, de uma forma ou de outra, exemplificava o que depois descobri com a leitura de Nietzsche tratar-se do fenôme68


no do ressentimento. Para o filósofo, o que fora inquietação de adolescência convertera-se em objeto de exame. A questão da existência do mal no mundo, com o procedimento genealógico, via-se atualizada; ela encontrava agora nova formulação. Para mim, com a Genealogia da Moral, o apelo nietzschiano chegava também por outra via. Tratava-se, na verdade, de uma análise minuciosa, de um exame perspicaz do sentimento de culpa, sentimento esse presente já nos meus primeiros anos, registrado nas primeiras linhas dos meus deveres de escola. Aos doze anos, tive um primeiro impulso; aos quinze, encontrei uma primeira questão. Aos dezessete, prestei vestibular para o curso de filosofia da Universidade de São Paulo; passei em primeiro lugar. [...] Nesse tempo, passei a frequentar a Biblioteca Mário de Andrade. Desnecessário dizer que, para a menina que eu era, o universo dos livros transmitia uma magia, que por vezes ainda retorna; irradiava uma beleza, que nunca se perdeu. Ganhar o Minotauro de Monteiro Lobato foi uma alegria; outra maior ainda, ser presenteada com as Obras Completas de Machado de Assis. Os caminhos pela cidade se diversificavam e enriqueciam. Foi então que descobri o centro de São Paulo. O marco da praça da Sé apontava para lugares longínquos, Mato Grosso, Goiás; na infância, palavras. Apontava, também, para Santos, porta de entrada das praias do litoral, onde, adolescente, o mar suscitou em mim a ideia de infinito. Dizia-se que era o coração da cidade; bem depois, a MPB o transferiu para a esquina da Ipiranga com a São João. Mas, para mim, o coração de São Paulo não se achava nem no centro, que foi uma vez o geográfico, nem no centro, que resultou da inspiração poética. Ele sempre esteve e continua a estar no Viaduto do Chá. Como ignorar as perspectivas que oferece! Como desprezar os horizontes que dele se vislumbram, as sombras do vazio à sua frente e a sólida construção da Light! Como esquecer que lá suspeitei um dos temas centrais da minha vida! Porque não se tratava apenas de passear pela cidade ou de notar o que nela havia de inesperado. Aprendera a ver traços únicos, formas singulares; incorporara um olhar interessado que até hoje mantenho. Sinto prazer em apropriar-me das riquezas de outra cidade, o mesmo prazer em oferecer a um estrangeiro os tesouros da minha. É que, nesses percursos, fora conduzida por mão segura; pedreiro e construtor, meu pai trabalhara no Martinelli e no prédio da Light. Aliás, dizia-se, a Light havia ocupado, de forma irregular, uma parte da esquina da Rua Xavier de Toledo. E causava-me indignação o fato de o poder público nada fazer para reaver esse espaço que era seu, que era nosso. Com respeito e admiração, eu andava pelas ruas de São Paulo. Elas me traziam o tempo, a história. Traziam uma história humana, a dos homens e mulheres que haviam construído a cidade. E essa densidade histórica me remetia ao que a cidade tinha sido e àquilo que ela poderia vir a ser. Assim é que, deslumbrada, ouvia relatos sobre prédios que já não existiam, o Teatro Santana, o Teatro São José. Por vezes, encontrava vestígios seus em outros prédios, como na casa da Rua Martiniano de Carvalho, que, hoje em franca decadência, ainda exibe vitrais e esculturas de antigas construções. Na época, não sabia que minha atitude e itinerário já estavam marcados pela minha proveniência. O itinerário incluía a Praça da Sé, que um dia abrigou ateliês de

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artistas como Volpi, Pennacchi, Bonadei, Graciano, Zanini. A atitude era um misto de reverência e orgulho: a quase reverência do imigrante ao ver-se acolhido pela cidade, uma espécie de orgulho por nela encontrar o seu lugar. Lugar certamente distinto daquele ocupado, por nascença, pelas elites. Isso aprendi nos anos da graduação no Departamento de Filosofia da USP; só então compreendi quão complexa era a relação entre centro e periferia e quão profunda a diferença entre a Semana de Arte Moderna de 22 e o Movimento Santa Helena. Na década de 20, foi Higienópolis que num clima intelectual realizou a Semana no suntuoso foyer do Teatro Municipal; na década de 30, será o Cambuci, junto com o Brás e a Moóca, que numa atmosfera profissional fundará a Família Artística Paulista numa sala do Edifício Santa Helena na Praça da Sé, onde se localizava a maior parte dos novos sindicatos de operários. De caráter “essencialmente destruidor”, a Semana pretendia destruir aquilo que se convencionou chamar de passadismo; queria combater uma literatura e uma arte importadas, que traziam o ranço de uma civilização cada vez mais superada no tempo e no espaço. Distanciando-se dos debates políticos e das controvérsias estéticas entre “modernos” e “acadêmicos”, a Família irá concentrar-se nas questões de métier, de ofício, refletindo a mentalidade artesanal da maioria de seus membros. Não foi por acaso que sempre tive o trabalho por valor inquestionável. Para os pais e avós, ele representou meio de subsistência em terra talvez inóspitas, para mim forma de sobrevivência em circunstâncias adversas. Aos doze anos, dava aulas particulares de português e matemática. Aos dezenove, comecei a lecionar em cursos preparatórios para o vestibular. Foi assim que custeei a minha graduação. Porque, meio de subsistência, o trabalho também era – e isso aprendi muito cedo – motivo de autonomia e independência. Lembro de minhas redações ainda no curso primário. Dentre os temas banais que nos propunham – minhas férias, a visita à casa da vovó, o primeiro dia de aula -, havia este, bem corriqueiro: o que quero ser quando crescer. A resposta veio sem hesitar: professora. Uma imagem feita, sem dúvida alguma. Através da figura da professora, cuja forma de existir deveria consistir em devotamento para com o outro, a menina revelava sua maior necessidade, a necessidade de cuidado e zelo. Não gozei a infância; fui submetida a ela. De todas as maneiras, dela queria libertar-me. Prisioneira, inventava outras identidades, fabulava outras histórias; em suma, fantasiava outras vidas mais plenas de sentido, outras existências com maior densidade ontológica. Nutria a ilusão, que eu sabia justamente ser ilusória, de, ao prender o cabelo com um laço de fita, tornar-me outra pessoa. Porque nessa época, de fato, eu ocupava o lugar de um eletrodoméstico, de uma enceradeira que era esquecida, junto com vassouras e rodos, num quartinho de despejo. Essa era a minha insignificância. Durante anos, odiei a infância, odiei a mim mesma. A escola foi uma espécie de salvação, não porque me permitisse brincar com outras crianças ou me proporcionasse conviver com seres da minha estatura – longe disso! Não porque tivesse um efeito libertador – seria mesmo um contrassenso. Mas justamente por seu caráter disciplinar. Caso ímpar, eu detestava as férias; era um tempo em que não sabia o que fazer de mim mesma. Na escola, as regras estavam claras; não havia como equivocar-me. Bastava cumpri-las para ter existência. Foi assim que passei a existir; primeira aluna – sempre. E sempre detestada pelas cole-


gas, que não viam como aproximar-se de mim, tamanhos eram os empecilhos em comunicar-me, os entraves para relacionar-me. Hoje chego a surpreender-me com o percurso que fiz. Por isso, digo, com certo espanto: sobrevivi. E as questões existenciais se faziam presentes. Certa tarde, quando voltava da escola, caminhava pelo Viaduto do Chá. Um homem aproximou-se do parapeito, subiu na mureta, atirou-se no vazio. Atônitos, os passantes à minha volta aglomeraram-se; queriam, ali do alto, ver o que se passava. Uma estupefação mesclada a medo e angústia me fez suspeitar que algo grave ocorrera. Meu olhar acompanhou a queda, o paletó e as calças inflados de ar; o homem caiu sobre a capota de um carro em movimento, o corpo ricocheteou e foi ao chão. Na ocasião, entendi o que significava a palavra suicídio. Mas algo eu não havia compreendido, apenas farejara. Todo o meu percurso consistiu numa, por vezes desesperada, busca do sentido da vida. (...) Uma timidez congênita, que tratava a minha memória e me paralisava por inteiro, não facilitava a comunicação. A timidez provinha, sem dúvida, do fato de jamais me ter sido atribuído espaço num meio de adultos. Adolescente, quase menina, eu tinha a fantasia de ser paraplégica; de uma certa maneira, por largo período, permaneci com focos de paralisia interna, que bloqueavam o meu estar viva, marcavam a minha forma de estar no mundo. Assim como, à noite, pequenos pontos de luz indicam que o caos não predominou de todo e infundem a esperança de que a ordem voltará a manifestar-se, eu lutava para pôr-me em pé. Tudo se passa como se sempre tivesse me debatido contra uma não-existência colada à minha própria existência. E as dificuldades de relacionar-me com o mundo eram de tal ordem que encontrei na docência uma forma de lidar com elas. Porque, se, de modo geral, não me davam a palavra, na sala de aula, ela me era de direito, era um dever até. Ainda hoje, percebo um “ar professoral”, que, de alguma forma, se manifesta quando falo. Curioso paradoxo esse, pois tomavam por arrogância e presunção justamente o que se devia a paralisias. Esses jogos de imagens e contra-imagens, ao que parece inevitáveis no estar no mundo, turvavam a minha visão do entorno e a minha percepção de mim mesma. Dentre as “faculdades do espírito”, como se diz na língua tradicional da filosofia, foi sempre a razão que predominou sobre a memória – e também sobre a imaginação. Quando na graduação no Departamento de Filosofia, eu insistia em ressaltar o caráter lúdico do texto – tema bastante em voga na época -, a insistência escondia uma intenção. De igual modo, quando me obstinava, anos mais tarde, em salientar os movimentos do pensar, a obstinação revelava um desejo. Por muito tempo, as minhas intervenções em público, desde as aulas até as conferências, seguiram à risca textos preparados previamente; mais ainda, obedeceram a um script. Tal proceder contemplava a exigência de rigor, aprendida e incorporada durante o curso de filosofia: denunciava, também, uma crônica falta de imaginação. Como desenvolver a imaginação na infância sem o contato com outras crianças? Como pô-la em prática sem as brincadeiras, sem os jogos, sem a experiência do fortuito. Como exercitá-la entre adultos, para quem, até o lúdico tinha de obedecer a regras determinadas e precisas? E como manter viva a memória se ela só fazia registrar a repetição de experiências negativas? Por encontrar-me num mundo, em que me via obrigada a decifrar códigos que desconhecia, sempre me empenhei em compreender cada palavra, gesto ou atitude dos que me rodeavam. A cada momen-

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to, precisava assegurar-me de bem captar tudo o que se passava; alimentava, a cada momento, a esperança de que tudo se passasse de outra maneira. Compreender o outro ou alienar-me foram as formas que encontrei de estar ali. Compreender era a maneira pela qual eu me punha naquele mundo; alienar-me, o modo pelo qual criava outro. Mas a este outro, que era só meu, ninguém tinha acesso; ele existia às escondidas e, nele, eu mesma. E, quando, vez ou outra, era flagrada existindo, encabulava; era como se tivesse feito uma travessura. MARTON, Scarlett. A irrecusável busca de sentido. Cotia/Ijuí Ed. Ateliê/ Unijuí, 2004.

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O Africano fragmento Le Clézio

Todo ser humano é um resultado de pai e mãe. Pode-se não reconhecê-los não amá-los, pode-se duvidar deles. Mas eles aí estão: seu rosto, suas atitudes, suas maneiras e manias, suas ilusões e esperanças, a forma de suas mãos e de seus dedos do pé, a cor dos olhos e dos cabelos, seu modo de falar, suas ideias, provavelmente a idade de sua morte, tudo isso passou para nós. Por muito tempo sonhei que minha mãe era negra. Inventei-me uma história, um passado, para escapar da realidade em meu retorno da África, neste país, nesta cidade onde eu não conhecia ninguém, onde me tornara um estrangeiro. Depois descobri, quando meu pai, na idade da aposentadoria, retornou para viver conosco na França, que o Africano era ele. Foi difícil admitir isso. Tive de voltar atrás, de recomeçar, de tentar compreender. Em memória disso escrevi este pequeno livro.

Corpo Tenho coisas a dizer deste rosto que recebi em meu nascimento. Primeiro, foi preciso aceitá-lo. Afirmar que não me agradava seria dar-lhe uma importância que ele não tinha quando eu era criança. Eu não o odiava: ignorava-o, evitava-o. Não o olhava nos espelhos. Durante anos, creio que nunca o vi. Desviava os olhos das fotos, como se alguma outra pessoa tivesse se posto em meu lugar. Aos oito anos de idade, mais ou menos, vivi na África ocidental, na Nigéria, numa região muito isolada onde não havia europeus, à exceção de meu pai e minha mãe, e onde a humanidade, para a criança que eu era, se constituía unicamente de iorubás e ibos. Na choupana em que nós morávamos (a palavra choupana tem algo de colonial que hoje em dia pode chocar, mas que descreve bem a residência funcional prevista pelo governo inglês para os médicos militares, uma laje de cimento por piso, quatro paredes de blocos sem emboço, um telhado de chapas onduladas recoberto de folhas, nenhuma decoração, redes penduradas nas paredes para servir de camas e, única concessão ao luxo, um chuveiro ligado por canos de ferro a uma caixa d’água no telhado, que esquentava ao sol), nessa choupana portanto não havia espelhos, nem quadros, nada que pudesse lembrar-nos do mundo em que tínhamos até então vivido. Um crucifixo que meu pai pendurara na parede, mas sem representação humana. Foi aí que eu aprendi a esquecer. Parece-me que da entrada nessa choupana, em Ogoja, é que data o apagamento de meu rosto e dos rostos daqueles, todos eles, que me rodeavam. Desse tempo, por assim dizer consecutivamente, data o aparecimento dos corpos. Meu corpo, o corpo de minha mãe, o corpo de meu irmão, o corpo dos garotos da vizinhança com os quais eu brincava, o corpo das mulheres africanas nos caminhos, ao redor da casa, ou então no mercado, perto do rio.[...] 74


Não usamos palavras (e as palavras não se gastam) quando somos crianças. Eu nasci naquele tempo distante, muito longe dos adjetivos, dos substantivos. Eu não posso dizer, nem sequer pensar: admirável, imenso, poderio. Mas sou capaz de o sentir. A que ponto as árvores de troncos retilíneos se lançam para a abóbada noturna fechada acima de mim, encerrando como num túnel a brecha sangrenta da estrada de laterita que vai de Ogoja a Obudu, a que ponto nas clareiras das aldeias sinto os corpos nus, brilhantes de suor, as silhuetas largas das mulheres, as crianças que as agarram pelos quadris, tudo isso que forma um conjunto coerente, destituído de mentira. Da entrada em Obudu, lembro-me bem: a estrada sai da sombra da floresta e penetra diretamente na aldeia, em pleno sol. Meu pai parou seu automóvel e, com minha mãe, tem de ir falar com os funcionários. Sozinho no meio do ajuntamento, não tenho medo. As mãos me tocam, passam pelos meus braços, por meu cabelo, em volta da beira do meu chapéu. Entre tantos que em torno de mim se espremem, há uma mulher idosa que afinal nem sei se é velha. Acho que sua idade é o que primeiro chama minha atenção, porque ela é diferente das crianças peladas e dos homens e mulheres vestidos mais ou menos à ocidental que em Ogoja eu vejo. Quando minha mãe volta (talvez um pouco inquieta com aquele amontoado de gente), mostro-lhe a tal mulher: “Que é que ela tem? Ela está doente?” Lembro-me dessa pergunta que fiz à minha mãe. O corpo nu dessa mulher, feito de dobras, de rugas, sua pele como um odre vazio, seus seios longos e flácidos, caindo sobre a barriga, sua pele rachada e desbotada, meio cinzenta, tudo isso me pareceu estranho e, ao mesmo tempo, verdadeiro. Como eu teria podido imaginar que essa mulher fosse minha avó? O que eu sentia não era horror nem pena, mas sim, ao contrário, esse amor e o interesse suscitados pela visão da verdade, da realidade vivida. Lembro-me apenas da pergunta – “Ela está doente?” – que ainda hoje me abrasa estranhamente, como se o tempo não tivesse passado. E o não da resposta, por certo tranquilizadora, talvez um pouco sem jeito, de minha mãe: “Não, não está doente, ela é velha, só isso”. A velhice, sem dúvida mais chocante para um menino no corpo de uma mulher porque ainda, porque sempre, na França, na Europa, nos países das anáguas e cintas, das combinações e sutiãs, as mulheres normalmente estão imunes à doença da idade. O abrasamento que ainda sinto nas faces, que acompanha a pergunta ingênua e a resposta brutal de minha mãe, como uma bofetada. Isso ficou em mim sem resposta. Claro que a pergunta não era: Por que essa mulher acabou assim, gasta e deformada pela velhice?, mas: Por que mentiram para mim? Por que me esconderam essa verdade?” Le Clézio, J.M.G. O Africano. São Paulo. Cosac Naify Portátil, 2012

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Caderno de um ausente Fragmento João Anzanello Carrascoza

Filha, acabas de nascer, mal eu te peguei no colo, e pronto, já chega, disse a enfermeira, e te recolheu de mim, foi apenas pra gravarmos uma cena, agora os pais assistem ao parto, e tudo é filmado, antes não havia nada disso, eu nasci das mãos de uma parteira, já na época do teu irmão – um meio-irmão, de quinze anos, é bom que logo saibas –, a moda era o registro fotográfico, outro dia ele se viu numa foto comigo, logo que veio à luz, e sorriu, e, em seguida, silenciou, e então eu imagino o que ele, como um rio rumo à foz, leu nas águas daquele momento inicial, e, agora, eu também só concordei com a filmagem pelo mesmo motivo, pra que te vejas, no futuro, junto de mim, eu te recebendo nesta hora, dando-te as boas-vindas, se assim se pode dizer, vais descobrir por ti mesma que este é um mundo de expiação, embora haja ocasionalmente umas alegrias, não há como negar – as verdadeiras vêm travestidas, é preciso abrir os olhos dos teus olhos pra percebê-las. Acabas de nascer e eu tenho de te explicar, como se já pudesses entender, e, da mesma forma, estou dizendo a mim, que não vamos passar muito tempo juntos, que deves te preparar pra viver mais longe de mim do que perto – eu farei arte, pra sempre, só do início de tua história; não há outro jeito, mesmo com a maior das esperanças, de te ver crescer como vi o teu irmão e continuarei a vê-lo até se tornar adulto, ele à beira de ser o homem que será, talvez até dê tempo pra que eu o veja se casar e me dar, quem sabe, um ou dois netos. Mas tu, não. Vens com esta marca, de minha ausência, a envolver inteiramente a tua vida, e este é um dos primeiros sustos que temos nesta existência, somos o que somos, não há como alterar a nossa história, sobretudo se ela já começa no meio, ou mais próxima ao fim – esta porta do hospital, de vaivém, foi a tua porta de entrada, talvez seja a minha de saída. [...] A tua história, Bia, é o bem mais precioso que tens, ainda que não venha a ser grandiosa, é a tua história que te dará a medida de estar no mundo, ela é que exorbita ou reduz o teu valor perante ti mesma e perante a misteriosa avaliação dos outros não há como te esterilizar do passado (que veio de mim e de tua mãe e já se aderiu ao teu espírito feito solda), qualquer história, enquanto se desdobra, é um reino de possibilidades, uma história, quando a escrevemos, delineia aquilo que poderia ser, nunca o que foi nem o que é, porque a memória (o passado) só se revigora se a formulamos de novo (presente), retocando a luz de sua trama como o grafite das trevas, a tua história, Bia, há de ser mais uma cicatriz que se somará a outras nas páginas de rosto do nossa família, e eu te louvo, filha, por aqui estar, fio de água, no broto de tua nascente, pra cumprir o teu curso, e eu te peço perdão, outra vez, por não poder te poupar das chagas que te esperam lá na frente, nem ter o unguento que amenizará a ausência, seja a minha, seja a de quem um dia te abandonar, eu não posso te dizer o contrário, que é possível a gente se curar dos outros – eu, nem de mim, até hoje, me curei –, e é justo, embora seja precoce pra teu entendimento, deixar claro, que é um erro qualquer tentativa de esconder a verdade, ninguém sabe, filha, se o que bebe é 76


água ou vinho, se só um deles provou, e, mesmo assim, há quem soube (e continuará sabendo) transformar um em outro, há quem consiga andar displicente sobre as ondas em fúria, há quem consiga serenar a plateia com relatos desesperados; o limão, Bia, nunca brotará em laranjeira, a árvore sabe quanta doçura, quanto amargor, doa a cada um de seus frutos; eu sou o pai que a vida te deu, e esta, que te toma nos braços agora, que tenta, sem jeito, te dar o mamilo pra sugares o teu primeiro alimento do lado de cá, é a mãe que a vida te reservou. [...] Mas, por enquanto, aqui estamos, Bia, e é com essa certeza de existir que seguimos sob a ordem dos dias, e, assim, logo iremos pra casa e, já que tu entraste num certo ponto do mundo, trecho talvez final da minha jornada, vais ouvir falar de gente que te antecedeu, e com quem nunca poderás conviver, uns nomes bonitos e sonoros, Mateus, André, João, Sara, Luíza, Tiago, Marisa, e, então, eu vou te apresentar a eles, porque haverá, certamente, algo de um e de outro na cor de teus cabelos, no teu jeito de sentir a pele das horas, na constituição de tuas glândulas e no enredo de teus sonhos. Eu não sou de cultivar imagens, mas eis aqui, nesta caixa de papelão, umas fotografias – as da família de tua mãe, veja a diferença, estão em pequenos álbuns, organizadas por data, com legenda e comentários –, e também há uns vídeos, poucos, sim, eu nunca fui de arquivar momentos em estantes, estão todos aqui, na memória, à espera do imprevisível para retornarem, e, mal acabo de abrir a caixa, eis a primeira delas, vês?, este é o teu avô comigo, eu ainda menino, o teu avô André, homem maior, pena que nunca verás os olhos verdes dele – doía a gente mirar, tão bonitas eram aquelas esmeraldas vivas! –, e aquelas mãos vincadas de histórias, que muitas terras lavoradas deveriam agradecer, o teu avô sabia aprumar as sementes, nutrir as plantas com a justa medida de água e sol, recolher, sempre zeloso, os frutos sadios das árvores, as mãos dele viviam cheias de entrega, não cabia mais nelas tanta oferenda, uma pena que não podes ver, atrás desse tom sépia, a intensidade da vida vinda do chão onde ele pisava, humilde, veja que, entre tantas fotos, foi esta, de teu avô André, que saltou primeiro à nossa vista, embora não importe a sequência de cartas para o destino de um baralho, aqui, Bia, nesta caixa, jaz um tanto do que tu és e outro tanto do que serás.[...] [...] e, então, eu me lembro do dia que conheci a tua mãe, Bia, uma das professoras substitutas, eu não vi nada do que hoje vejo nela, eu fui fisgado por outros olhares, e ela não ficou lá senão umas semanas, para que entendas, Bia, o desejo tem o seu próprio curso, enquanto a vida vai à deriva, nós só nos encontramos anos depois, para sermos os teus pais, e, até, chegarmos aqui, eu e tua mãe chovemos muitos e muitos dias, quem sabe, tu ainda possas nos ver à mesa, e reconhecer quem é quem pelo manejo dos talheres; são mil madeleines que só servem à fome de minha memória, e vão recompondo a história rasurada que eu sou, Bia – ninguém pode passar a vida a limpo, é inerente à sua escrita os rabiscos, as emendas – mas, em meio a elas, me vem uma, eu estou chegando do trabalho, cheio de sujeira em meus olhos (toda a beleza que não vi durante o dia), cacos de conversas nos ouvidos (os ecos do mundo em mim), os braços presos ao tronco como asas recolhidas (voar também entedia), e, mal abro a tramela do portão, te vejo, à luz ocre do entardecer, no colo de tua mãe, na varanda, ela sentada em quietude, ambas à minha espera, é verão, e no verão é bom desabotoar os cuidados e sair à porta da casa pra receber um afago da

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brisa, o céu já grávido da noite escurece lentamente, e eis que eu me acerco, beijo uma e, depois, outra, e me sento em frente às duas, e aí ficamos a nos contemplar, mudos, o silêncio é tão forte que nos toma o corpo inteiro, e, assim, permanecemos, pra que o quadro se pinte por si mesmo, formando, finalmente, a santíssima finitude, nós três ali, tornando-se, aos poucos, uns para os outros, lembranças. [...] [...] foi através do silêncio que eu soube de tua vinda, eu cheguei em casa exausto aquela noite e, mal abri a porta a tua mãe, que me esperava cochilando no sofá, ergue-se lentamente, e eu soube que ela estava grávida, porque tudo o mais era quietude, não era preciso dizer o que nela já estava dito – em silêncio, Bia, pode-se ver claramente se uma mulher carrega um filho, mesmo que o seu ventre não o diga; pode-se inclusive ver se esse filho terá cabelos lisos ou não, pode-se até ver o quanto de tempo sua vida, ainda em fabricação, suportará; em silêncio, pode-se ouvir, na zona fronteiriça, entre o ontem e o hoje, o motor do acaso movendo a manhã, também foi assim, num momento sem som, que, entrando no quarto de tua avó, anos atrás, eu soube que teu avô André estava morrendo; é no silêncio que um corpo clama pelo outro; só a máxima quietude em nós e na natureza nos permite decifrar o texto que está sendo escrito, Bia, [...] E o que tenho a te dizer, filha, é que ao mirar cada coisa por duas vezes, agora, no rol das pessoas, pra quais tu deves dedicar teu segundo olhar, há mais uma, tão minha e tua conhecida, justo seria se fosse eu – que comecei este caderno convicto de que não te veria crescer –, mas é a tua mãe, filha, é a tua mãe que agora lá está. Se nós a perdemos, ela ganhou o silêncio do mundo inteiro. Daqui em diante, nesta casa, e a caminhar na rota escaldante da vida, seremos apenas Tu, Beatriz, e eu. Tu e eu – e toda a ausência dela, pra sempre

em nós

Carrascoza, João Anzanello. Caderno de um ausente. São Paulo. Cosac Naify, 2014

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Coplas por la muerte de su padre Recuerde el alma dormida, avive el seso y despierte contemplando cómo se pasa la vida, cómo se viene la muerte tan callando, cuán presto se va el placer, cómo, después de acordado, da dolor; cómo, a nuestro parecer, cualquiera tiempo pasado fue mejor. … Nuestras vidas son los ríos que van a dar en la mar, que es el morir; allí van los señoríos … llegados, son iguales los que viven por sus manos y los ricos. … Partimos cuando nacemos, andamos mientras vivimos, ...

Jorge Manrique (1476) –adap.

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O elefante Carlos Drummond de Andrade

Fabrico um elefante de meus poucos recursos. Um tanto de madeira tirado a velhos móveis talvez lhe dê apoio. E o encho de algodão, de paina, de doçura. A cola vai fixar suas orelhas pensas. A tromba se enovela, é a parte mais feliz de sua arquitetura. Mas há também as presas, dessa matéria pura que não sei figurar. Tão alva essa riqueza a espojar-se nos circos sem perda ou corrupção. E há por fim os olhos, onde se deposita a parte do elefante mais fluida e permanente, alheia a toda fraude. Eis o meu pobre elefante pronto para sair à procura de amigos num mundo enfastiado que já não crê em bichos e duvida das coisas. Ei-lo, massa imponente e frágil, que se abana e move lentamente a pele costurada onde há flores de pano e nuvens, alusões a um mundo mais poético onde o amor reagrupa as formas naturais. 82


Vai o meu elefante pela rua povoada, mas não o querem ver nem mesmo para rir da cauda que ameaça deixá-lo ir sozinho. É todo graça, embora as pernas não ajudem e seu ventre balofo se arrisque a desabar ao mais leve empurrão. Mostra com elegância sua mínima vida, e não há cidade alma que se disponha a recolher em si desse corpo sensível a fugitiva imagem, o passo desastrado mas faminto e tocante. Mas faminto de seres e situações patéticas, de encontros ao luar no mais profundo oceano, sob a raiz das árvores ou no seio das conchas, de luzes que não cegam e brilham através dos troncos mais espessos. Esse passo que vai sem esmagar as plantas no campo de batalha, à procura de sítios, segredos, episódios não contados em livro, de que apenas o vento, as folhas, a formiga reconhecem o talhe, mas que os homens ignoram, pois só ousam mostrar-se sob a paz das cortinas à pálpebra cerrada. E já tarde da noite volta meu elefante,

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mas volta fatigado, as patas vacilantes se desmancham no pó. Ele não encontrou o de que carecia, o de que carecemos, eu e meu elefante, em que amo disfarçar-me. Exausto de pesquisa, caiu-lhe o vasto engenho como simples papel. A cola se dissolve e todo o seu conteúdo de perdão, de carícia, de pluma, de algodão, jorra sobre o tapete, qual mito desmontado. Amanhã recomeço. ANDRADE, Carlos Drummond de. O elefante in A Rosa do Povo. R.J. Ed. Record, 1991

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Minhas primeiras recordações Fragmento Elias Canetti

Minhas primeiras recordações estão imersas no vermelho. Saio por uma porta nos braços de uma menina, o chão à minha frente é vermelho e à minha esquerda desce uma escada igualmente vermelha. À nossa frente, à mesma altura, abre-se uma porta e aparece um homem sorridente que, alegre, vem em minha direção. Ele se aproxima bem, para e me diz: “Mostre a língua!”. Mostro a língua e ele leva a mão ao bolso, tira um canivete, abre-o e põe a lâmina bem perto de minha língua. Ele diz: “Agora lhe cortaremos a língua”. Não ouso recolher a língua; ele se aproxima cada vez mais, até quase tocá-la com a lâmina. No último momento ele recolhe a faca e diz: “Hoje ainda não, amanhã”. Ele dobra o canivete e o guarda no bolso. Todas as manhãs saímos pela porta para o pátio vermelho, a porta se abre e o homem sorridente aparece. Sei o que ele dirá e aguardo sua ordem de mostrar a língua. Sei que ele a cortará, e cada vez tenho mais medo. Assim começa o dia e a história se repete muitas vezes. Guardo-o para mim, e só muito mais tarde pergunto a minha mãe sobre isso. Ela reconhece, pela cor vermelha, a pensão em Karlsbad onde passou o verão de 1907 com meu pai e comigo. Ela havia trazido da Bulgária, para o menino de dois anos, uma ama que, ela própria, ainda não fizera quinze anos. De manhã cedo ela costumava sair com a criança nos braços, só falava búlgaro mas se orientava bem na movimentada Karlsbad, e sempre regressava pontualmente com a criança. Certa vez ela foi vista na rua com um homem jovem; nada sabe acerca dele, conhecera-o por acaso. Após algumas semanas descobre-se que o jovem mora no quarto logo a nossa frente, do outro lado do corredor. A menina, à noite, às vezes lhe faz uma rápida visita. Os pais se sentem responsáveis e a mandam de volta para a Bulgária. Ambos, a menina e o moço, costumavam sair muito cedo de casa, e assim deve ter acontecido o primeiro encontro, assim deve ter começado tudo. A ameaça com a faca produzira seu efeito, a criança silenciara sobre isso durante dez anos.

Orgulho de família Ruschuk, no Danúbio inferior, de onde cheguei ao mundo, era uma cidade maravilhosa para uma criança, e se eu disser que fica na Bulgária darei uma imagem incompleta dela, pois lá viviam pessoas das mais diferentes origens, e num dia só podiam-se ouvir sete ou oito idiomas. Além dos búlgaros, frequentemente vindos do campo, havia muitos turcos, que viviamem seu próprio bairro, e limitando-se com este havia o bairro dos sefardins, o nosso. Havia gregos, albaneses, armênios, ciganos. Da outra margem do Danúbio vinham os romenos; minha ama, da qual não me lembro, era romena. Havia ainda alguns russos. Quando criança eu não tinha uma visão geral dessa multiplicidade, mas constantemente sentia os seus efeitos. Algumas figuras só me ficaram na memória porque

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pertenciam a um grupo nacional diferente e se distinguiam por seus trajes. Entre os criados que, ao longo de seis anos, tivemos em nossa casa, houve certa vez um tcherquesse e, mais tarde, um armênio. A melhor amiga de minha mãe era Olga, uma russa. Uma vez por semana os ciganos invadiam nosso pátio; eram tantos que me parecia um povo inteiro, e ainda falarei do medo que me infundiam. Ruschuk era um velho porto do Danúbio, e, como tal, tivera certa importância. O porto havia atraído gente de toda a parte, e o Danúbio sempre era tema de conversa. Havia histórias sobre aqueles anos em que o Danúbio congelou; sobre as viagens de trenó pelo gelo, até a Romênia; sobre os lobos famintos que assediavam os cavalos dos trenós. Os lobos foram os primeiros animais selvagens de que ouvi falar. Nas histórias que as filhas dos camponeses búlgaros me contavam havia lobisomens, e certa noite meu pai me assustou com uma máscara de lobo no rosto. Dificilmente conseguirei dar uma ideia do colorido daqueles primeiros anos em Ruschuk, de suas paixões e de seus terrores. Tudo o que me aconteceu mais tarde já havia acontecido alguma vez em Ruschuk. Lá, o resto do mundo se chamava Europa, e quando alguém viajava para Viena, subindo o Danúbio, dizia-se que viajava para a Europa; lá, a Europa começava onde outrora terminara o Império Otomano. Entre os sefardins, quase todos eram cidadãos turcos. Haviam sido mais bem tratados sob os turcos do que os eslavos cristãos dos Bálcãs. Mas como muitos sefardins eram prósperos negociantes, o novo regime búlgaro mantinha boas relações com eles, e Fernando, o rei que governou por muito tempo, era considerado amigo dos judeus.

CANETTI, Elias. A língua absolvida. S.P. Cia de bolso, 2010.

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Poema Memos Augusto de Campos

CAMPOS, Augusto. de. Poemas. Cia das Letras

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Referência das imagens Capa: Foto: Edifício Copan / Cristiano Mascaro - www.cristianomascaro.com.br Diagramação: Ruy Kitagawa Ilustração (pág. 5) Foto: LUXARDO/ACERVO INSTITUTO MOREIRA SALLES Diagramação: Ruy Kitagawa Ilustração (página 20) Persistência da Memória. Salvador Dali - Foto: Reprodução Diagramação : Ruy Kitagawa Ilustração (página 30) Foto: www.freepik.com Diagramação : Ruy Kitagawa Ilustração (página 43) Foto: https://www.gqportugal.pt/historia-de-uma-obra-de-arte-o-pensador Diagramação: Ruy Kitagawa Ilustração (página 50) Foto: Sunhi Mang / Obra: “Key in hand”, Chiharu Shiota - Bienal de Veneza/2015 Ilustração (páginas 54 e 55) Foto: Cidade de São Paulo / Cristiano Mascaro - www.cristianomascaro.com.br Diagramação : Ruy Kitagawa Ilustração (página 73) Chiharu Shiota - Sem título Foto: Ruy Kitagawa Página 80 e 81 Obras de Frida Kahlo Ilustração (página 86) Vítimas da ditadura militar no Brasil. Foto: Reprodução Diagramação: Ruy Kitagawa Poema Memos, Augusto de Campos (página 88)

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