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Revista eletrônica quadrimestral vinculada ao Observatório de Economia e Comunicação (OBSCOM) e ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Sergipe Volume 15, número 3, set.-dez. 2013. ISSN 1518-2487 OBSCOM - UFS Coordenação Prof. Dr. César Ricardo Siqueira Bolaño Profa. Dra. Verlane Aragão Santos PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO - UFS Coordenação Prof. Dr. Carlos Eduardo Franciscato Prof. Dr. César Ricardo Siqueira Bolaño REVISTA EPTIC ONLINE Diretor Prof. Dr. César Ricardo Siqueira Bolaño (UFS - Brasil) Editor Geral Prof. Dr. Ruy Sardinha Lopes (USP-Brasil) Editores Adjuntos Profª Drª Anita Simis (UNESP-Brasil) Prof. Dr. Francisco Sierra (Un. Sevilla – España) Prof. Dr. Luis A. Albornoz (Un. Carlos III - Espanha Projeto Gráfico Rachel Ferrari e Ruy Sardinha Normalização: Rosemeire Zambini - CRB 5018 Apoio Técnico Joanne Mota (UFS – Brasil) Elizabeth Azevedo Souza (UFS – Brasil) Conselho Editorial Prof. Dr. Abraham Benzaquen Sicso, FUNDAJ, Brasil Prof. Dr. Alain Rallet, Université Paris-Dauphine, França Prof. Dr. Alain Herscovici, UFES, Brasil Prof. Dr. Césare Galvan, FUNDAJ, Brasil Profª. Drª Delia Crovi Druetta, UNAM, México Prof. Dr. Dênis Moraes, UFF, Brasil Prof. Dr. Diego Portales, Universidade del Chile, Chile Prof. Dr. Domenique Leroy, Université Picardie, França Prof. Dr. Edgard Rebouças, UFP, Brasil Prof. Dr. Enrique Bustamante, UCM, Espanha Prof. Dr. Enrique Sánchez, Universidad de Guanajuato, México Prof. Dr. Francisco Rui Cádima, UNL, Portugal

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Apresentação

É com grande satisfação e agradecimento aos nossos colaboradores que encerramos o ano de 2013 com mais uma conquista, a classificação como B1 no periódico Qualis/ Capes para a área de Ciências Sociais Aplicadas. Zelosa de seu compromisso acadêmico e de ser o principal veículo de divulgação da produção em economia política da comunicação e da cultura na América Latina, a Revista EPTIC Online vem, assim, conquistando o reconhecimento da comunidade científica e acadêmica e espera poder, nos próximos anos, continuar a brindar os seus leitores com a excelência do que aqui se publica. Como vimos afirmando em edições anteriores, somos cônscios de que a construção de um pensamento comunicacional crítico e a luta por políticas públicas mais democráticas e inclusivas se fazem a partir da somatória de vozes e do diálogo com os diversos agentes envolvidos. É nesse sentido que nossa Revista ratifica-se também como um espaço privilegiado não só para tratar – por meio dos nossos Dossiês Temáticos – de questões prioritárias à agenda comunicacional, como a da comunicação pública ou, agora, a do direito à comunicação e diversidade, mas também para evidenciar o quanto a reflexão e pesquisas desenvolvidas no âmbito acadêmico respondem, de maneira significativa, às demandas sociais. A proposição do Dossiê Temático desta edição teve início no ano de 2012 quando o então editor desta Revista e coordenador do GP de Economia Política da INTERCOM, Valério Brittos, juntamente com Ruy Sardinha, propuseram à Claudia Lahni, então coordenadora do GP de Comunicação para a Cidadania da INTERCOM, a realização de uma mesa conjunta, por ocasião do Congresso da entidade a ser realizado no ano seguinte, com esse tema. Movia-os a convicção de que a aproximação dos dois campos de investigação traria bons fruto e enriquecimento mútuo e poderia proporcionar futuros encontros e parcerias. Quis o destino, com o prematuro falecimento de Valério, que o projeto não se realizasse no ano previsto. Entretanto, a espera rendeu-nos mais um fruto, a proposição, prontamente aceita por Claudia Lahni, da organização de um Dossiê Temático. Se para tanto pudemos contar com a presença de reconhecidos nomes da área, como a entrevista concedida por Denise Cogo ou ainda os artigos de Catarina Farias de Oliveira e Denise Teresinha da Silva e Maria Luisa Martins de Mendonça e Janaína Vieira de Paula Jordão; além, é claro, do artigo da própria organizadora do dossiê

Revista Eptic Online Vol.15 n.3 p.2-3 set.-dez. 2013


Apresentação

escrito em parceria com Daniela Auad; o acolhimento que a chamada pública do dossiê teve, recebendo contribuições de variadas instituições de ensino e pesquisa do nosso país, demonstra a relevância e atualidade do tema. A variedade das abordagens teóricas e do escopo das pesquisas – das empíricas às mais teóricas – fornece, assim, um bom panorama, ainda que reduzido, das pesquisas nessa área. Tal diversidade pode também ser traduzida pelo respeito às diversas vozes e contribuições que compõem o meio acadêmico. A transdisciplinaridade se apresenta, desta forma, como um recurso epistemológico mais adequado a uma realidade fenomênica também diversa e plural. O que não implica a defesa do ecletismo teórico ou a do discurso que nega qualquer tentativa de recompor a totalidade. Essa é uma das tarefas que a produção acadêmica não pode se furtar, sob pena de abrir mão de sua função social. Nesse sentido, muito nos honra o fato de diversos pesquisadores e estudiosos, das mais variadas instituições de ensino do Brasil, terem aceito o desafio para aqui virem debater suas inquietações e esforços analíticos e com isso demonstrar o quanto também a academia tem muito a contribuir para a construção de uma sociedade mais democrática e inclusiva. Na entrevista, concedida por Denise Cogo, e nos nove artigos que compõe tal seção, diversos matizes teóricos, procedimentos metodológicos e recortes, empíricos ou teóricos, são aqui acionados na tentativa de fornecer ao leitor algumas pistas para uma melhor apreensão desta realidade necessariamente multifacetada. A convicção de que o exercício do conhecimento, enquanto práxis, apresenta-se como um grande desafio em um momento onde a realidade não se deixa mais apreender a partir de antigas categorias constitui uma espécie de solo comum sobre o qual esses pesquisadores constroem o seu discurso. Desafio este também presente nas demais seções que compõem esta edição. Em Artigos e Ensaios e Investigação alguns resultados de pesquisas do subcampo da EPC são apresentados. Marco Schneider (UFF-Brasil), Bernadette Califano (UBA-Argentina) e Anderson Gomes dos Santos (UNISINOS) trazem importantes contribuições para se pensar a contribuição da EPC no diálogo com os Estudos Culturais, para o estabelecimento de mecanismos de regulação das redes e para a análise crítica de um setor ainda pouco explorado por esse subcampo, os esportes. Essas seções contam ainda com as contribuições de Luciana Almeida Chagas (UFPI), que analisou a Revista Caros Amigos e Ana Paula Machado Velho e Isabella Quaglia, ambas vinculadas ao Centro Universitário CESUMAR Maringá, cujo artigo analisa a importante relação entre saúde, educação e comunicação. A todos uma boa leitura!

Cesar Bolaño Diretor

Ruy Sardinha Lopes Editor

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Apresentação

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COMUNICAÇÃO, CLASSES SOCIAIS E CIDADANIA: CRÍTICA DA ECONOMIA POLÍTICA DOS ESTUDOS CULTURAIS COMUNICACIÓN, CLASES SOCIALES Y CIUDADANÍA: CRÍTICA DE LA ECONOMÍA POLÍTICA DE LOS ESTUDIOS CULTURALES COMMUNICATION, SOCIAL CLASSES AND CITIZENSHIP: CRITIQUE OF THE POLITICAL ECONOMY OF CULTURAL STUDIES

Marco SCHNEIDER Doutor em Comunicação (ECA-USP). Pós-doutor em Estudos Culturais (PACC-UFRJ). Pesquisador do IBICT. Professor do PPGCI-IBICT-ECO-UFRJ. Professor do Departamento de Comunicação e do PPGMC-UFF. Pesquisador Associado do PACC-UFRJ.- Brasil E-mail: marcoschneider@ibict.br

Revista Eptic Online Vol.15 n.3 p.4-18 set.-dez. 2013 Recebido em 13/05/2013 Publicado em 02/09/2013


Comunicação, Classes Sociais e Cidadania - Marco Schneider

RESUMO O objetivo deste artigo é postular a possibilidade de uma reaproximação entre os Estudos Culturais e a Crítica da Economia Política, como um caminho promissor para se pensar as relações entre comunicação, classes sociais e cidadania. O argumento central é que Gramsci, um ícone dos Estudos Culturais, jamais abandonou a crítica da economia política de inspiração marxiana em suas análises da cultura; tampouco Raymond Williams, um dos maiores expoentes dos Estudos Culturais; e que este abandono por parte dos Estudos Culturais enfraquece seu gume crítico. Além disso, cotejando as noções de cultura dominante, emergente e residual, de Williams, com as reflexões de Gramsci sobre extratos mais retrógrados ou progressistas da cultura popular, pretende-se também atualizar o debate em torno da relação entre comunicação, ideologia e cultura.

Palavras-chave Comunicação. Classes sociais. Cidadania. Cultura. Ideologia.

RESUMEN El propósito de este artículo es plantear la posibilidad de un acercamiento entre los estudios culturales y la crítica de la economía política, como una manera útil de pensar acerca de la relación entre comunicación, clases sociales y ciudadanía. El argumento central es que Gramsci, un icono de los Estudios Culturales, nunca abandonó la crítica de la economía política de inspiración política en su análisis de la cultura, ni Raymond Williams, uno de los máximos exponentes de los Estudios Culturales, y que este abandono de los Estudios Culturales debilita su filo crítico. Por otra parte, comparando las nociones de cultura dominante, emergente y residual, de Williams, con reflexiones de Gramsci sobre extractos más retrógrados o progresistas de la cultura popular, se pretende también actualizar el debate sobre la relación entre la comunicación, la cultura y la ideología. Palabras clave Comunicación. Las clases sociales. La ciudadanía. La cultura. La ideología.

ABSTRACT The aim of this paper is to posit the possibility of a rapprochement between Cultural Studies and the Critique of Political Economy, as a useful way to think about the relationship between communication, social classes and citizenship. The central argument is that Gramsci, an icon of cultural studies, never abandoned the Marxian inspired critique of political economy in his analysis of culture, nor Raymond Williams, one of the greatest exponents of cultural studies, and that this abandonment from Cultural Studies weakens its critical edge. Furthermore, comparing the notions of the dominant, emerging and residual culture, quoted by Williams, with reflections on Gramsci about most retrograde or progressive extracts of popular culture, it also intends to update the debate on the relationship between communication, culture and ideology. Keywords Communication. Social classes. Citizenship. Culture. Ideology.

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INTRODUÇÃO

[...] do fim da década de 1970 até essa data, a importância da dimensão da economia política foi diminuindo em todo o campo dos estudos culturais, e preconizamos a sua revivescência. (KELLNER, 2001, p. 62).

Os Estudos Culturais, desde o seu surgimento, têm como uma de suas marcas a articulação entre pesquisa teórica e militância política, ainda que heterodoxa, por assim dizer, na medida em que incorpora à luta contra a opressão de classe pautas relacionadas à defesa dos direitos de grupos sociais entendidos como oprimidos ou minoritários, num recorte não classista, mas étnico, racial, sexual, de gênero. Com o tempo, o elemento classista foi sendo gradualmente retirado da agenda, que passou a incorporar os mais variados assuntos, do grafite de rua ao software livre. Paralelamente, o rico debate em torno da problemática da ideologia foi sendo deixado de lado, substituído por uma visão toda abrangente, hipostasiada, de “cultura”, “[...] que trata a ‘cultura’ não apenas como um forte aspecto de organização e comunicação social, mas como uma instância determinante.” (AHMAD, 2002, p. 9, grifo do autor). 1- Hall (2003a, p. 155-156, grifo do autor) reconhece essa possibilidade de reaproximação, mas não se mostra muito simpático a ela, argumentando que “[...] com o retorno a esse terreno mais ‘clássico’, muitos problemas que o cercavam também reaparecem. A especificidade do efeito da dimensão cultural e ideológica mais uma vez tende a desaparecer. Tende a conceber o nível econômico não apenas como uma explicação ‘necessária’, mas ‘suficiente’, dos efeitos culturais e ideológicos”. Pretendemos demonstrar a partir de agora que essas tendências corretamente identificadas por Hall (2003) em sua negatividade, não necessariamente precisam se realizar.

Argumentamos aqui que essa hipertrofia da “cultura”, associada a este duplo abandono – que no fundo é um só – da preocupação com a luta de classes e com o problema da ideologia, enfraquece o campo dos Estudos Culturais, além de estar em franca contradição com uma das motivações centrais de seu projeto original, a aspiração de elaborar “uma teoria realmente materialista da cultura” (HALL, 2003a, p. 158), para além da dicotomia “alto” e “baixo”, para além também das limitações do economicismo característico do marxismo vulgar, contudo profundamente comprometida com o fim da exploração do trabalho pelo capital, o que exigiria que a cultura fosse pensada em articulação com a questão da ideologia e da luta de classes, isto é, com a crítica da economia política.1 O abandono dessa articulação é um problema teórico importante, mas também é um problema prático: sintoma da crise das esquerdas, que começa com os relatórios de Kruschev no XX Congresso do PCUS, em 1956, e atinge seu ponto culminante com o esfacelamento da União Soviética, acompanhado da vitória de Pirro do neoliberalismo na década seguinte, o desencanto de boa parte da intelligentsia com a possibilidade do fim da sociedade de classes fez com que muitos daqueles que simplesmente não se baldearam para o campo conservador deslocassem seus interesses para causas mais setoriais, certamente merecedoras de atenção, e em meio às quais talvez fosse possível fazer alguma coisa concreta a curto prazo: imigrantes, mulheres, negros etc. A pergunta que nos colocamos hoje é: diante das evidências do fracasso do modelo neoliberal, será que não seria bem vindo retomar a articulação original dos Estudos Culturais entre questões de gênero, étnicas etc. com aquelas de classe, o que envolve, como vimos, o problema da ideologia? Seria o caso de lembrarmos, com Wallerstein (2001, p. 69 e 66), que “[...] o racismo foi um pilar cultural do capitalismo histórico”, tendo sua raiz, assim como a xenofobia, na “etnização da força de trabalho.” É também notório que a emancipação feminina possui vínculos profundos com o movimento operário. Por essas razões, conforme sustenta Kellner (2001), a

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fragmentação das diversas causas e lutas de cunho social, a despeito das boas intenções de seus militantes e teóricos, se mostra mais como a resultante da estratégia do capital de dividir para governar do que como uma tática eficaz.

GRAMSCI E A CRÍTICA DA ECONOMIA POLÍTICA

O afastamento do marxismo gera ainda um efeito colateral particularmente perverso para os Estudos Culturais: faz com que o autor marxista mais apreciado por este campo, Antonio Gramsci, perca seu ferrão, na medida em que os vínculos profundos que o ligam com a crítica da economia política, que engloba o problema da luta de classes e da ideologia, são sumariamente ignorados, ou retirados do centro das atenções e tratados como vestígios datados de tempos mortos, quando muito. Por isso, é importante lembrar a veemente crítica de Ahmad (2002, p. 13), que se opõe a certa leitura de Gramsci, que o reinventa “como um teórico não da revolução socialista, mas de cultura.” A primeira coisa a ser dita sobre Antonio Gramsci é que ele foi um comunista militante e um líder do maior levante proletário que ocorreu na Europa no período que se segue à Primeira Guerra Mundial e à Revolução Bolchevique. Nem um único de seus escritos entre 1918 e 1936 […] faz qualquer sentido se não lembrarmos que todo o seu projeto tinha o único propósito de reconstituir um leninismo que seria apropriado às condições de uma sociedade atrasada, em grande parte camponesa [...] em face do fascismo. (AHMAD, 2002, p. 255-256).

Logo adiante, na mesma obra, Ahmad (2002, p. 263, grifo do autor) acrescenta: [...] ele [Gramsci] é representado como o teórico das superestruturas culturais de modo tão extremo que qualquer ideia de estrutura [no sentido marxista] como a condição de possibilidade e o horizonte limitador daquela superestrutura simplesmente desaparece; o culturalismo esquerdizante pode então ser postulado como um domínio autônomo sem nenhuma relação necessária com a política de classe. Essa certamente não foi a intenção daqueles que pretenderam elaborar uma teoria materialista da cultura, sobretudo aqueles que incorporaram como uma referência fundamental a obra de Gramsci, como Williams e Hall. Iremos aqui investigar o alcance dessas considerações, buscando, se possível, aparar arestas no diálogo entre os Estudos Culturais e a crítica da economia política, a partir de estudos de Williams (1979, 2000), de Paula (1998), Jameson (1994), Hall (1980, 2003a, 2003b), Eagleton (2005), Kellner (2001) e Mattelart (2011). O ponto de partida de nossa investigação é a posição dos Estudos Culturais na história das teorias da comunicação: pode-se dizer, de modo sumário, que, em comunicação,

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outrora, investigava-se principalmente as causas, a forma, a intensidade, a extensão e as consequências da influência dos meios de comunicação de massa sobre as pessoas; hoje, discute-se bastante de que forma e até que ponto essa influência dos meios de comunicação, incluindo as novas tecnologias digitais, é mediada por fatores culturais de matriz não midiática, fatores estes que favorecem leituras diferenciadas de um mesmo discurso, abalando assim as velhas teses sobre o poder manipulador uniformizante da indústria cultural em escala massiva. A mudança, promovida pelos Estudos Culturais, foi muito importante, entre outras razões por sua contribuição no sentido de equilibrar os exageros daqueles que, à esquerda e à direita, viam nos meios de comunicação um poder independente e total, praticamente negando inteligência às massas. Seu corolário é a noção de recepção ativa. Por outro lado, essa noção tem dado margem, nos últimos anos, a inúmeras críticas (DOWNING, 2001; KELLNER, 2001; MATTELART, 2011; PAULA, 1998, entre outros), direcionadas a um exagero oposto ao acima referido, a saber, a tendência a minimizar excessivamente a propriedade desses meios de exercer qualquer influência sobre as pessoas, diante de uma incrível capacidade destas últimas de múltiplas, criativas e mui eficazes formas de resistência. Sobre esse exagero, Kellner (2001, p. 59, grifo do autor) nos recorda que nem toda e qualquer leitura “resistente” da mídia desafia “[...] as estruturas existentes de poder, não altera as condições materiais e não melhora as estruturas de opressão daqueles que ‘resistem’ produzindo significados e prazeres no domínio da ‘cultura popular’.” Ele também denuncia um certo “populismo cultural”, “[...] que muitas vezes celebra de modo acrítico a cultura da mídia e de consumo.”(KELLNER, 2001, p. 51). Por isso: [...] focalizar apenas textos e públicos, excluindo a análise das relações e instituições sociais nas quais os textos são produzidos e consumidos, trunca os estudos culturais tanto quanto a análise da recepção que deixe de indicar o modo como o público é produzido por meio de suas relações sociais e como, até certo grau, a própria cultura ajuda a produzir os públicos e a recepção destes ao texto. Na verdade, há o perigo do fetichismo da recepção e construção de significados por parte do público [...] Além do mais, tem havido um fetichismo da resistência em algumas versões dos estudos culturais. [...] Há uma tendência nos estudos culturais há louvar a resistência per se sem fazer distinção entre tipos e formas de resistência. (KELLNER, 2001, p. 56-57). “Populismo cultural”, “fetichismo da recepção”, “fetichismo da resistência”: disfarces pseudo esquerdistas para a louvação acrítica e conservadora da aparente liberdade de escolha na superfície do mercado, aparência que oculta o caráter nada livre das relações de produção e da distribuição extremamente desigual do patrimônio coletivo, que acabam constituindo aquilo que Heller (2004) define como o grau mais alto de alienação, correspondente ao imenso abismo que separa os recursos (materiais e simbólicos) disponíveis do acesso da maioria das pessoas a esses recursos. Assim, se pretendemos entender melhor a relação entre comunicação, classes sociais e cidadania na atualidade, seria bem vindo recalibrar o olhar crítico, identificando com mais realismo não só a potência relativa das forças envolvidas em uma dada situação comunicacional, mas também o posicionamento

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ideológico de cada uma dessas forças, em meio a uma disputa que, certamente, pretende a hegemonia cultural, mas também outras coisas além da cultura, como, por exemplo, e certamente não em último lugar, o controle coletivo dos meios de produção e a apropriação do necessário e do excedente, material e simbólico, o que envolve a direção dos aparelhos privados de hegemonia e o domínio da sociedade política, para empregarmos a terminologia gramsciana. Nos termos do próprio Gramsci (1968b, p. 55): [...] a observação mais importante a ser feita a propósito de qualquer análise concreta das relações de força, é esta: tais análises não se encerram em si mesmas (a menos que não se escreva algum capítulo da história do passado), mas só adquirem um significado se servem para justificar uma atividade prática, uma iniciativa de vontade. Elas indicam quais são os pontos débeis de resistência onde a força da vontade pode ser aplicada mais frutiferamente, sugerem as operações táticas imediatas, indicam a melhor maneira de empreender uma campanha de agitação política, a linguagem que será melhor compreendida pelas multidões etc.

E se nos dispuséssemos a estudar a dialética entre comunicação, classes sociais e cidadania nessa chave analítica e com esse mesmo compromisso? Para tanto, antes mais nada, há de se esclarecer, de uma vez por todas, que, em nenhum momento, no que pese a atenção especial que dedicou à cultura, Gramsci perdeu de vista a crítica da economia política, a ponto de afirmar: 2-Aqui Gramsci menciona, de memória, um trecho do “Prefácio de 1859” a “Introdução à crítica da economia política”, de Marx. (Sobre a imprecisão da citação, ver Bianchi (2008)). Mais adiante, na página 75, tratando da questão da “revolução passiva”, e na página 90, ao refletir sobre a formação da vontade coletiva, Gramsci também se refere a essa mesma passagem do “Prefácio”.

É o problema das relações entre estrutura e superestrutura que deve ser situado com exatidão e resolvido para assim se chegar a uma justa análise das forças que atuam na história de um determinado período e à definição da relação entre elas. É necessário movimentar-se no âmbito de dois princípios: 1) o de que nenhuma sociedade assume encargos para cuja solução ainda não existam as condições necessárias e suficientes, ou que pelo menos não estejam em vias de aparecer e se desenvolver; 2) o de que nenhuma sociedade se dissolve e pode ser substituída antes de desenvolver e completar todas as formas de vida implícitas em suas relações. (GRAMSCI, 1968b, p. 45).2 Trata-se, portanto, longe de um preciosismo metodológico, da defesa de uma compreensão adequada do método empregado pelo próprio Gramsci, sem o qual sua contribuição para os estudos de cultura e comunicação contemporâneos fica muito enfraquecida. Porque a necessária análise da correlação de forças em um dado momento – que envolve a questão dos valores, dos afetos, dos preconceitos, da comunicação, da cultura, enfim, como elementos centrais na disputa pela hegemonia – não pode ser levada a cabo de modo satisfatório se o conjunto desses elementos não for integrado de modo articulado em uma análise mais ampla, calcada na crítica da economia política. Bianchi (2008) nos ajuda a entender melhor o modo como Gramsci efetuava essa articulação entre análise cultural e econômica, ou, para empregar uma terminologia mais ortodoxa, entre superestrutura e estrutura, tomando como exemplo precisamente essa mesma e importante passagem do “Maquiavel” citada acima:3

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3- Ver sequência do trecho, até a página 54.

O “Prefácio de 1859” assumia uma posição-chave no âmbito de uma pesquisa sobre as relações de forças políticas entre as classes sociais. [...] a questão aparentemente insolúvel com a qual Gramsci vinha se debatendo – as relações entre estrutura e superestrutura – assumia um significado efetivo […] os cânones do “Prefácio” permitiam separar aquilo que era ocasional e resultado da ação dos grupos e personalidades políticas e dava lugar à “crítica política miúda” daquilo que era permanente e resultado da ação das classes sociais e dava lugar à crítica histórico social [...]. (BIANCHI, 2008, p. 158, grifo do autor).

Independente do mérito das conclusões gramscianas sobre essas questões, importa aqui destacar, antes de mais nada, sua centralidade em meio ao conjunto de suas preocupações. Ou seja, a questão das relações entre base e superestrutura não somente esteve sempre presente em suas análises mais propriamente políticas ou culturais, mas ocupou uma posição metodologicamente fundamental nessas análises, e com base no “Prefácio de 1859”. Por isso, Hall, Lumley e McLennan (1980, p. 62) estão errados quando afirmam, temerariamente: “As análises de Gramsci da relação entre estrutura e superestrutura pouco devem à economia política marxista. Seu débito é para com o Marx, o historiador do 18 Brumário, e não ao Marx de O Capital.” Embora, de fato, Gramsci também tenha se inspirado nas obras mais “históricas” de Marx, o ponto de partida para sua reflexão sobre estrutura e superestrutura, se não deriva exatamente do Capital, encontra-se, como acabamos de ver, em um dos estudos preparatórios de Marx para a elaboração do Capital, mais precisamente no célebre “Prefácio de 1959” a Crítica da economia política. Bianchi, mais uma vez, desvela a importância metodológica decisiva deste ponto para o desenvolvimento do pensamento gramsciano4: 4- Sobre esse tópico e outros correlatos, ver também Coutinho (2007, 2011).

Com base no texto de Marx [o “Prefácio de 1859”] era possível uma distinção entre movimentos orgânicos e fatos conjunturais aplicável a “todo tipo de situação”. [...] A reconstrução dessas complexas relações era um dos pilares de sustentação do edifício teórico gramsciano. Encontrar na aparente contingência da conjuntura as formas estruturadas e estruturantes que configuram o campo do possível era um antídoto contra o imediatismo. Perceber a conjuntura como o momento no qual a síntese das múltiplas contradições existentes na estrutura assumia a condição de atualidade por meio do conflito presente constituindo uma particularidade histórica era um antídoto contra o fatalismo. Uma fina sensibilidade para a multiplicidade dos tempos da política e do social permitia Gramsci navegar arriscadamente entre Cila e Carídbis. […]. (BIANCHI, 2008, p. 164-166, grifo do autor).

Não se trata, portanto, de um detalhe, mas de uma pedra angular do pensamento gramsciano, cuja retirada coloca toda a construção em risco. Feitas essas considerações, retomemos o problema da ideologia.

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IDEOLOGIA

5-Para um aprofundamento do debate mais recente em torno do problema da ideologia, ver Eagleton (1997), Zizek (1999) e Meszáros (2004).

Logo nas primeiras páginas de um de seus últimos livros, Cultura, após traçar uma breve panorâmica dos diferentes sentidos nos quais o termo “ideologia” tem sido pensado5, Williams (2000, p. 28) aponta o risco de, “em seus usos mais amplos e generalizados”, o conceito vir a expressar a mesma “falsa generalidade” que o termo “cultura”, como “modo de vida global”, eventualmente expressa. Por outro lado, em seus usos mais específicos, a noção de “ideologia” pode “demolir o que é muitas vezes a falsa generalidade de um ‘modo de vida global’ para distinguir atribuições a classes específicas [...]”. Essa distinção entre “falsa generalidade” e “usos mais específicos” do termo ideologia, relacionados a classes específicas é, a nosso ver, fundamental. E nossa proposta aqui é, exatamente, precisar um desses usos possíveis. Em outras ocasiões (SCHNEIDER, 2006 e 2010), trabalhamos com a distinção proposta por Larrain (1996) entre uma acepção negativa e uma acepção neutra de “ideologia”, que atravessaria o debate marxista ao longo do século XX. A primeira, de inspiração diretamente marxiana, diz respeito exclusivamente àquelas ideias que, de um modo ou de outro, defendem ou justificam a exploração do trabalho pelo capital. Nesse caso, por um lado, falar em “ideologia burguesa” seria redundante; por outro, a expressão “ideologia comunista” não passaria de uma contradictio in terminis. Já na acepção neutra, de inspiração leninista e gramsciana, o termo ideologia refere-se a visões de mundo, seja num sentido mais amplo, seja em outro politicamente mais específico: neste caso, caberia falarmos em uma “ideologia socialista”. Partindo dessa distinção, buscamos, na ocasião, construir um modelo analítico que permitisse diferenciar, em meio a discursos conservadores ou reacionários que mobilizam as massas, a imbricação dos elementos que correspondiam efetivamente aos seus interesses, e por isso faziam sentido e granjeavam sua adesão, com elementos antagônicos a esses interesses, obscurecidos pelos primeiros (por exemplo, o velho argumento contra o aumento do salário mínimo, sob a justificativa de que fatalmente iria gerar desemprego). Essa distinção, porém, embora nos parecesse importante, por apresentar diferenças a nosso ver fundamentais e nem sempre evidenciadas nos usos correntes, e naqueles academicamente consagrados do termo ideologia, ao mesmo tempo que conservava esses sentidos, permanecia ainda um tanto confusa, precisamente em função do peso dos usos consagrados, o qual, por assim dizer, podia enfraquecer a distinção proposta. Por isso, sugerimos, agora, na esteira de Williams (2000), uma solução mais simples e, nos parece, mais produtiva: que se delimite o campo semântico do conceito ideologia ao conjunto exclusivo das crenças e ideias (sejam elas mais espontâneas ou sistematicamente elaboradas, simples ou complexas, provenientes do senso comum ou “científicas”) estrita e diretamente referentes às diversas concepções de como deve ser a ordem social, o sistema político-econômico, em termos globais – capitalista, socialista ou anarquista, considerando-se as variáveis históricas e conceituais de cada uma dessas noções (especificando-se, evidentemente, o que se entende por cada uma delas, dado que

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são todas polissêmicas) –, e de como se pode implementá-lo – através do livre mercado, da socialdemocracia, do modelo soviético, da revolução permanente trotskista, da “guerra de posições” gramsciana, das ações de inspiração anarquista que pregam mudar o mundo sem tomar o poder, de formas mistas etc. Um segundo recorte, dentro da delimitação proposta, consiste em restringir o emprego do termo ideologia às ideias, dentre aquelas indicadas acima ou de natureza equivalente, que obtém adesão considerável das massas – retendo, assim, a distinção de Gramsci (1978) entre ideologias orgânicas (que expressam a visão de uma classe ou fração de classe) ou arbitrárias (devaneios individuais), e a noção de Lukács (1979), conforme a qual o que autoriza que determinado conjunto de ideias seja denominado “ideologia” não é a sua maior ou menor falsidade, mas a sua capacidade de mobilizar (ou imobilizar) ações coletivas de vulto. Teríamos então que ideologia, no recorte proposto, diria respeito tão somente àquelas ideias de natureza política e que obtém adesão de amplos setores das diversas classes e frações de classe. É algo próximo da definição de Mészáros (2004, p. 68), para quem a ideologia deve ser pensada como “consciência prática necessária em uma sociedade dividida em classes antagônicas”, portanto como consciência prática de classe. Para todas as demais ideias, crenças, concepções etc. que não se enquadram na definição acima, que se fale em visão de mundo, imaginário social, representações, cultura, religião, opinião etc. O sentido proposto sugere que pode haver, e quase sempre há, embora de modos mais diretos ou altamente mediados, elementos ideológicos em qualquer visão de mundo, imaginário social etc., mas é importante que a distinção seja feita, para evitar confusões e para conservar a potência heurística do conceito. Assim, por exemplo, numa disputa entre ambientalistas e desenvolvimentistas, como as que ocorreram recentemente na Bolívia e no Brasil, não teria havido, necessariamente, em linhas gerais, uma disputa propriamente ideológica, dado que tanto ambientalistas quanto desenvolvimentistas podem ser, ambos, ideologicamente comprometidos com o socialismo, ou com o capitalismo etc. Nesse caso, a disputa deve ser caracterizada em outros termos, técnicos, por exemplo, quando se discute a ordem da prioridade desta ou daquela ação para que se atinja o fim comum almejado, no caso de a disputa ocorrer dentro de um mesmo e homogêneo campo ideológico, ou simplesmente entre visões de mundo de natureza não especificamente ideológica (você pode tanto ser um socialista ou um liberal, que acredita em alguma espécie de equilíbrio natural, a ser a qualquer custo conservado; no caso, a crença nesse equilíbrio não seria propriamente ideológica), ou mesmo entre motivações pessoais egoístas (o sujeito pode simplesmente estar querendo enriquecer ou obter votos, ou alguma forma de prestígio etc.). Por outro lado, se for demonstrado que esta ou aquela alternativa pode ser concretamente identificada com uma estratégia socialista, capitalista, anarquista etc., por exemplo, ou ainda que há elementos ideológicos de um ou de outro tipo em ambos os discursos, ou em só um deles, parece importante que esses elementos sejam destacados – mas isto só é possível precisamente se não generalizarmos o emprego do conceito ideologia para, por exemplo, desenvolvimentismo ou ambientalismo, ou para demais posicionamentos,

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positivos (afirmativos) ou negativos (críticos) de cunho ético cultural, como feminismo, pacifismo, ateísmo, racismo, machismo etc. Ideologias, em suma, seriam quaisquer concepções e ideias referentes a ordens sociais alternativas, existentes ou potenciais, e aos modos (ou à impossibilidade) de conservá-las, aperfeiçoá-las, combatê-las, implementá-las, e que possuam considerável adesão em termos classistas. E só.

CULTURA POPULAR E LUTA DE CLASSES

Partindo da distinção proposta, pode-se então discutir o que, na cultura popular, é em si mesmo conservador, reacionário ou progressista, bem como o que reproduz, recusa ou transforma os elementos conservadores, reacionários ou progressistas da cultura dominante, e como. Williams (2000), mais uma vez, nos auxilia nesta tarefa, ao distinguir as práticas culturais enquanto dominantes, residuais ou emergentes (conforme veremos mais detidamente a seguir). Ou seja, o recorte metodológico que nos interessa aqui preconiza a investigação, em meio à dialética comunicação / cultura popular / cultura dominante, do que podemos identificar aí como ideológico.

6- Na trilha de Ahmad (2002), diríamos que embora todas as práticas sociais envolvam significação, nem todas são estritamente ou principalmente significação.

Neste enfoque, as diversas formas como atuam as mais variadas mediações culturais na recepção midiática, com seus complexos processos de significação, não constituem, em si, a questão principal, mas o modo e o grau com que essas mediações e semioses6 colaboram ou não para o desenvolvimento da cidadania, resistindo ou combatendo os elementos ideologicamente conservadores da cultura midiática, reproduzindo ou transformando aqueles mais progressistas. Temos então que o estudo das mediações culturais presentes no consumo midiático em geral é importante sobretudo na medida em que pode fornecer dados relevantes para que se compreenda concretamente como se dá a produção e recepção de sentido, enquanto reprodução ou resistência ideológica, em estratos definidos da população. Porém, se deixarmos de lado a análise crítica do conteúdo ideológico dessas semioses, que é dinâmico, escorregadio, cheio de sutilezas e não se deixa capturar tão facilmente, corremos o risco de, inadvertidamente, perder de vista a questão da cidadania e contribuir para a conversão dos estudos culturais em um campo contemplativo, cegando seu gume crítico e sua dimensão politicamente atuante. Este risco pode ser evitado, mediante o esforço de rearticular os Estudos Culturais e a Crítica da Economia Política. Tal movimento pode ser útil também para fundamentar as referências necessárias para, como propõe Hall (2003a), desenvolvermos a indicação fundamental de Williams, mencionada acima, sobre práticas culturais dominantes, emergentes e residuais. Para esse desenvolvimento, propomos que essas noções sejam cotejadas com as reflexões de Gramsci sobre senso comum, folclore e cultura popular, principalmente aquelas nas quais ele discute a existência de fragmentos de estratos pré-históricos desordenadamente misturados a outros mais progressistas nesse território. Afinal, conforme nos

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lembram Kellner (2001) e Downing (2002), as culturas populares, assim como as formas alternativas de comunicação, não são necessariamente progressistas, podendo mesmo ser o contrário disso, assim como haverá elementos progressistas (e seu oposto) na “cultura dominante”, na “alta cultura” e mesmo na cultura de massa. Esta constatação nos remete a uma afirmação fundamental de Larrain (1996), segundo a qual, para Marx, nem todas as ideias dominantes seriam ideológicas – na acepção negativa do termo –, portanto nem todas deveriam ser colocadas em um campo oposto ao “popular”. Podemos igualmente afirmar que nem todos os elementos “emergentes” ou “residuais” da cultura popular são necessariamente progressistas ou retrógrados, em termos ideológicos, assim como nem todos os elementos da cultura dominante, compartilhados (ou não) pela cultura popular, são conservadores ou reacionários. Retomemos então o desafio de Hall sobre a importância de se desenvolver a distinção proposta por Williams (2000, p. 202) entre práticas culturais dominantes, emergentes ou residuais: A reprodução cultural [...] ocorre essencialmente no nível (em mudança) do dominante [...] O residual, ao contrário, embora seus processos imediatos sejam reprodutivos, é muitas vezes uma forma de alternativa cultural ao dominante em suas mais recentes formas reprodutivas [...]. No extremo oposto, o emergente é correlato mas não idêntico a inovador. Alguns tipos de inovação [...] são ajustamentos dentro do dominante e tornam-se suas novas formas. Mas em geral há tensão e conflito nessa área. Algumas inovações – tipos de arte e de pensamento que emergem e persistem como perturbadores – tenderiam a destruir o dominante em algumas de suas formas, do mesmo modo que algumas forças sociais tenderiam a destruir a ordem social e não a reproduzi-la ou modificá-la.

7- Ver Boito Jr. (2009) e Schneider (2012).

Essa distinção de Williams (2000), embora não toque diretamente no problema da ideologia, fornece boas pistas para fazê-lo: e se dividíssemos as ideologias em dominantes / conservadoras, emergentes / progressistas e residuais / reacionárias? E se buscássemos, principalmente, analisar as imbricações, apropriações e substituições entre as bandeiras, slogans, termos-chave de cada conjunto discursivo? “Socialismo”, por exemplo. Já foi emergente, tornou-se dominante, hoje é residual, poderia reconverter-se em emergente? Que conjunto de fatores, discursivos e extra discursivos, seriam necessários para uma transformação desse tipo? Para achar essas respostas, nos parece útil que as distinções acima sejam cotejadas com algumas reflexões de Gramsci a respeito dos estratos que compõem as culturas populares, dos pré-históricos aos mais progressistas. Antes, porém, recordemos que nem todas as ideias dominantes são reacionárias, e que esquecer isso pode conduzir a um populismo desarmante e, no limite, proto fascista, ao reverberar o que há de mais retrógrado na cultura popular, assim como a atitude oposta – negar o potencial criativo e emancipatório da cultura popular – conduz ao niilismo

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aristocrático – a não ser que se pense a voz de Deus, como essencialmente complexa e contraditória. É o que faz Gramsci: “[...] o próprio povo não é uma coletividade homogênea de cultura, mas apresenta numerosas estratificações que, em sua pureza, nem sempre podem ser identificadas em determinadas coletividades populares históricas.” (GRAMSCI, 1968a, p. 190). Dessa constatação simples, Gramsci traça as linhas gerais de um vasto projeto de investigação do folclore – que é outro modo de dizer cultura popular: Pode-se dizer que, até hoje, o folclore foi preponderantemente estudado como elemento “pitoresco” [...] Dever-se-ia estudá-lo, pelo contrário, como “concepção do mundo e da vida”, em grande medida implícita, de determinados estratos […] da sociedade […] Concepção do mundo não somente não elaborada e assistemática [...], como também múltipla; não apenas no sentido de diverso, de justaposto, mas no sentido de estratificado, indo do mais grosseiro ao menos grosseiro, se é que não se deve mesmo falar de um aglomerado indigesto de fragmentos de todas as concepções do mundo e da vida que se sucederam na história [...]. (GRAMSCI, 1968a, 183-185, grifo do autor).

Na sequência desse raciocínio, Gramsci (1968a) toca no ponto que, para nós, é decisivo no debate que propusemos aqui em torno da relação entre comunicação, classes sociais e cidadania, pela homologia que traz implícita com as noções de dominante, emergente e residual, de Williams: […] deve-se distinguir diversos estratos: os fossilizados, que refletem condições de vida passada e que são, portanto, conservadores e reacionários; e os que são uma série de inovações, frequentemente criadoras e progressistas, espontaneamente determinadas por formas e condições de vida em processo de desenvolvimento e que estão em contradição (ou são apenas diferentes) com a moral dos estratos dirigentes. (GRAMSCI, 1968a, 183-185).

Pouco depois, e é isso que realmente importa para nós, Gramsci (1968a) revela a razão de ser de todo o projeto, voltado, no fundo, não para uma arqueologia desses estratos como fim em si mesma, mas para a produção de subsídios necessários a uma nova educação, a uma nova cultura: Conhecer o folclore significa [...] conhecer quais são as outras concepções do mundo e da vida que trabalham de fato para a formação intelectual e moral das gerações mais jovens, a fim de extirpá-las e substituí-las por concepções consideradas superiores. [...] É certo que, para alcançar esse objetivo, dever-se-ia modificar o espírito das pesquisas folclóricas, bem como aprofundá-las e ampliá-las. O folclore não deve ser concebido como algo bizarro, mas como algo muito sério e que deve ser levado a sério. Somente assim o ensino será mais eficiente e determinará realmente o nascimento de uma nova cultura entre as grandes massas populares, isto é, desaparecerá a separação entre cultura moderna e cultura popular no folclore. Uma atividade deste gênero, feita em profundidade, corresponderia no plano intelectual ao que foi a Reforma nos países protestantes. (GRAMSCI, 1968a, p. 186-187).

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Stuart Hall (2003b) – embora opondo cultura popular e “cultura dos poderosos” de um modo com o qual discordamos, pelas razões expostas acima – em dado momento, aproxima-se dessa perspectiva: A cultura popular é um dos locais onde a luta a favor ou contra a cultura dos poderosos é engajada; é também o prêmio a ser conquistado ou perdido nessa luta. É a arena do consentimento e da resistência. Não é a esfera onde o socialismo ou uma cultura socialista – já formada – pode simplesmente ser “expressa”. Mas é um dos locais onde o socialismo pode ser constituído. É por isso que a cultura popular importa. No mais, para falar a verdade, eu não ligo a mínima para ela. (HALL, 2003b, p. 262, grifo do autor). Vale esclarecer que, neste artigo, Hall (2003b) não discute a cultura popular em termos de juízo estético. Ou seja, “eu não ligo a mínima para ela” é uma indicação sobre a importância de se estudar o popular, no âmbito dos Estudos Culturais, estar (ou ao menos ter estado) relacionada necessariamente ao objetivo da construção do socialismo. Nesta perspectiva, os Estudos Culturais não podem se limitar a produzir etnografia de consumo midiático, por ativo e produtor de sentidos que este consumo seja: devem, além disso, desdobrar os resultados da pesquisa etnográfica (ou de que orientação metodológica for) da recepção midiática no sentido da elaboração de análises críticas e de estratégias de intervenção transformadora no campo da cultura popular, visando a incrementação da cidadania ampliada,7 ou, para empregarmos um termo mais ousado, do próprio Hall, a constituição do socialismo. Para tanto, há que se efetuar a distinção entre os elementos conservadores, reacionários e progressistas da cultura como um todo. Apresentar em detalhe a que conteúdos concretos os termos “progressista”, “conservador” e “reacionário” remetem é tarefa que transcende os limites deste artigo. Acreditamos, porém, ter indicado algumas pistas.

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POLÍTICAS DE INTERNET: LA NEUTRALIDAD DE LA RED Y LOS DESAFÍOS PARA SU REGULACIÓN POLÍTICAS DE INTERNET: A NEUTRALIDADE DA REDE E OS DESAFIOS PARA SUA REGULAÇÃO INTERNET POLICIES: NET NEUTRALITY AND REGULATORY CHALLENGES

Bernadette CALIFANO Docente e investigadora de Políticas de Comunicación en la Universidad de Buenos Aires (UBA). Doctoranda en Ciencias Sociales (UBA / CONICET / UNQ) y Licenciada en Ciencias de la Comunicación (UBA)- Argentina. Email: bernacali@gmail.com

Revista Eptic Online Vol.15 n.3 p.19-37 set.-dez. 2013 Recebido em 04/05/2013 Publicado em 02/09/2013


Políticas de Internet: la neutralidad de la red y los desafíos para su regulación - Bernadette Califano

RESUMO A neutralidade da rede é uma das principais questões em discussão em qualquer debate sobre políticas de Internet. Este artigo propõe-se a descrever as posturas contrárias ao tema e os avanços regulatórios implementados em diversos países, a partir de análise bibliográfica e legislativa. No desenvolvimento, consideram-se as dificuldades atuais na gestão do tráfego web. Conclui-se com uma série de princípios, problemas e desafios que enfrentam os países para regular este tema.

Palavras-chave Políticas. Internet. Neutralidade da rede. Redes de comunicação. Regulação.

RESUMEN La neutralidad de la red es una de las principales cuestiones en discusión en cualquier debate sobre políticas de Internet. Este artículo se propone describir las posturas en contraposición encontradas en torno del tema y los avances regulatorios implementados en diversos países, a partir del análisis bibliográfico y legislativo. En el desarrollo se plantean las dificultades actuales en la gestión del tráfico web. Se concluye con una serie de principios, problemas y desafíos que enfrentan los países para regular sobre este tema. Palabras clave Políticas. Internet. Neutralidad de la red. Redes de comunicación. Regulación.

ABSTRACT Net neutrality is one of the main issues under discussion in any debate about Internet policies. The aim of this paper is to describe the conflicting stances around this matter and the regulatory progresses found in several countries, by analysing literature and legislative sources. Furthermore, in the development of the article the present difficulties regarding Internet traffic management are described. The conclusion presents some principles, problems and challenges faced by countries when regulating this subject. Keywords Policies. Internet. Net neutrality. Communication networks. Regulation.

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Políticas de Internet: la neutralidad de la red y los desafíos para su regulación - Bernadette Califano

INTRODUCCIÓN

El tema de la neutralidad de la red es uno de los principales en discusión en cualquier debate que involucre a Internet, su expansión y regulación. Si bien no existe una definición unívoca acerca del significado de este concepto – el que posee matices según la óptica desde la cual se lo observe – podemos decir que la idea básica que subyace a esta noción es que las redes de telecomunicaciones deberían ser vehículos neutrales en la transmisión de datos, sin que se produzca ningún tipo de discriminación con respecto a los contenidos, usos o aplicaciones a los que los usuarios deseen acceder. El debate en torno de este tema comprende distintas posturas y actores sociales con intereses en contraposición. Por un lado, están quienes sostienen que la neutralidad de la red debería regularse para que los usuarios no vean vulnerado su derecho a la libertad de expresión, ni se restrinja su acceso a determinados contenidos o sitios sin su consentimiento. Por el otro, se encuentran quienes argumentan que cualquier regulación jugaría en contra de la inversión empresarial y de las innovaciones. El objetivo de este artículo es analizar cuáles son los debates actuales en torno de la neutralidad de la red, describir los avances legales y leyes nacionales dictadas en diversos países sobre esta cuestión, y determinar cuáles son los desafíos que este principio plantea para la regulación de políticas en Internet. Para ello, en primer lugar se explican las posiciones encontradas desde los orígenes del debate sobre este tema, y el eje actual de la discusión en torno del rol de los proveedores de servicios de red. A continuación, se describen las prácticas de gestión del tráfico en Internet y el problema que se presenta hoy ligado a los desarrollos tecnológicos. Luego, se desarrollan los avances regulatorios específicos producidos en algunos países de América y Europa sobre este tema. Finalmente, se plantean una serie principios, problemas y desafíos regulatorios que se presentan para las políticas, tanto a nivel local como global.

EL DEBATE EN TORNO DEL PRINCIPIO DE NEUTRALIDAD DE LA RED

En líneas generales podemos decir que la neutralidad de la red es un principio que establece que todos los contenidos que circulan por Internet deben recibir el mismo trato y no ser discriminados por su origen, uso o aplicación. La expresión net neutrality (neutralidad de la red) se usó por primera vez en el ensayo de Tim Wu (2003) titulado Network neutrality, broadband discrimination, cuando se comenzó a debatir en torno de las prácticas de la gestión del tráfico y de la calidad del servicio (Quality of Service, QoS) en Internet. Si bien Wu (2003) no brinda una definición precisa del término, señala una serie de elementos que lo componen, tales como la promoción de

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la innovación en manos de los usuarios y su regulación como una norma de no discriminación, en lugar de una prohibición que podría causar efectos contraproducentes para el desarrollo de la industria (CLUNES, 2009). Existen dos grandes posturas en torno de este tema. Por un lado, la que sostiene que es necesario consagrar este principio de manera legal, puesto que las restricciones en el acceso a contenidos representan una amenaza para el derecho a la libertad de expresión de los usuarios; y, por el otro, quienes se oponen a cualquier tipo de regulación con el argumento de que esto detendría la expansión de Internet, ya que los proveedores de banda ancha se verían inhibidos de capitalizar sus inversiones y reinvertir en nuevos servicios e innovaciones. La primera postura, denominada openists (WU, 2004), reivindica el paradigma end to end (extremo a extremo, e2e) como el antecedente inmediato del concepto de neutralidad. Este diseño, en el que se basó la red en sus orígenes, postula un sistema de redes simples y fáciles que, si bien no carece de errores, los reduce substancialmente al permitir que estos se corrijan en los extremos (SALTZER; CLARK; REED, 1984). Lessig (2001), en su trabajo The future of ideas, explica que es el principio clave en el que se funda Internet. Este paradigma, que representa un avance en la forma de transportar datos independientemente del contenido de aquellos, rechaza el principio de una innovación centralizada y planificada, puesto que delega la autoridad decisoria hacia los extremos de la red. Además, la teoría de los openists se funda en otros dos principios: la infraestructura y la neutralidad. Sostienen que el mayor potencial de Internet se alcanzará no gracias a los propietarios de las redes sino debido a los logros e innovaciones de desarrolladores y usuarios creativos que cuenten con una conexión veloz y confiable entre todos los seres humanos del planeta, para lo cual se precisa que la infraestructura comunicacional no discrimine entre usos, usuarios o contenidos. La segunda postura, conocida como deregulationists (WU, 2004), critica la justificación anterior en torno de la innovación que permitiría el paradigma e2e, puesto que argumenta que las redes de comunicaciones representan inversiones costosas y que las empresas sólo invertirán en ellas con la expectativa de asegurarse rendimientos razonables. Esta posición, sostenida en general por los operadores de redes y algunos ingenieros y académicos conservadores, postula que el establecimiento de cualquier tipo de regulación –que no sean derechos de propiedad- puede ser la base para una mayor intromisión por parte de los estados, lo que desaceleraría las inversiones. Detrás de esta idea se halla cierto determinismo tecnológico que sostiene que el factor principal para el éxito de Internet ha sido el que los organismos reguladores se mantuvieran al margen. Pese a las diferencias visibles entre las dos posturas, lo que subyace en ambas es el objetivo de una mayor innovación tecnológica en un mercado de libre acceso y competencia. Como señala Barata Mir (2012), resulta difícil encontrar una red o plataforma de distribución que sea “estrictamente neutral”, ya que sobre cualquier sistema de estas características inciden elementos estructurales, tecnológicos o económicos que otorgan una mayor

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capacidad de intervención a unos operadores sobre otros. Esta visión estrictamente igualitaria, propia de los inicios del debate en torno de la neutralidad de la red, ha sido dejada de lado en las discusiones actuales. Lo que se discute hoy en torno de este tema es el posible control de contenidos que los proveedores de acceso a Internet (Internet Service Providers, en adelante ISP) podrían efectuar si, por ejemplo, además de eliminar el correo no deseado y otros elementos considerados peligrosos para los usuarios, también eliminasen otros por motivos vinculados al interés de ciertos gobiernos o a intereses comerciales. Así, el debate gira en torno del modo en el cual debería regularse la gestión de los ISP en su papel de intermediarios entre usuarios y operadores, para que dichos intercambios no se vean indebidamente obstaculizados, pues lo que está en juego y riesgo detrás de la regulación de la neutralidad de la red es el control de contenidos y la consiguiente incidencia sobre el derecho de los usuarios a la libertad de expresión y a la comunicación.

LA GESTIÓN DEL TRÁFICO EN INTERNET

Una característica de Internet, desde sus inicios, ha sido la congestión de la red en determinados momentos en los que el tráfico aumenta, situación que se ha tornado problemática con el desarrollo nuevos servicios, tales como la televisión sobre el protocolo de Internet (IPTV) o el intercambio de archivos entre pares. El paradigma end-to-end en el que se basó el diseño de la red ofrece, por un lado, las ventajas de una red abierta, pero, por el otro, “[…] las desventajas de la congestión, de la fluctuación y, en último término, una tasa decreciente de progreso para las aplicaciones finales de gama alta como el vídeo de alta definición” (MARSDEN, 2012, p. 27). Por este motivo, la gestión del tráfico es necesaria para conseguir garantizar el correcto funcionamiento de la Red, retrasando ciertos paquetes de datos respecto de otros. La administración del tráfico que se ocupa de la entrada de paquetes en una red se conoce como “estrangulación del ancho de banda” (bandwidth throttling), mientras que la que regula la salida se denomina “limitación de la tasa” (rate limiting). El problema actual, ligado a los desarrollos tecnológicos, es que existen nuevas tecnologías tales como la llamada “inspección profunda de paquetes” (deep packet inspection, DPI) que permiten a los ISP ver el contenido de un paquete de datos al transmitirlo, algo que no sucedía con los routers antiguos. Esto les permite a los ISP actuales saber, por ejemplo, si un paquete de datos precisa de un transporte de alta velocidad (como una transmisión de VoIP o de televisión digital) o si requiere de una velocidad menor. Pero así como pueden priorizar estos contenidos por motivos vinculados al ancho de banda requerido para cierto transporte de datos, también pueden hacerlo para quienes paguen por estos servicios, o con el objetivo de degradar activamente la calidad del tráfico de una serie de proveedores de contenidos.

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De esta forma, la posición de los proveedores de servicios de conectividad podría devenir en situaciones de abuso a través de posibles acuerdos entre los ISP y ciertos suministradores de contenidos a fin de favorecer a estos en su acceso por parte de usuarios finales, o simplemente como parte de decisiones directamente adoptadas por los ISP para priorizar aquellos servicios respecto de los cuales tienen un determinado interés económico, sobre todo en casos de concentración vertical (BATATA MIR, 2012). Lo que pretenden quienes defienden la neutralidad de red es impedir la existencia de prácticas anticompetitivas por parte del operador de red a través del uso de su cuello de botella (el acceso a los usuarios finales), con el fin de frenar la competencia en la generación de contenidos (CASTAÑEDA SABIDO, 2009). Esto crea necesariamente desigualdad en el tráfico, que afecta a todos los que utilizan las redes en determinado momento. Y requiere de supervisión o regulación porque, de lo contrario, la decisión de bloquear algún contenido o de otorgarle mayor o menor velocidad en el tráfico queda en manos de los ISP.

REGULACIÓN POR PAÍSES En varios países se han producido foros, debates y discusiones legislativas, con mayor o menor participación de la sociedad civil, con el fin de que no se produzcan bloqueos de contenidos, servicios o aplicaciones en Internet. Sin embargo, hasta el año 2013 sólo Chile y los Países Bajos han promulgado leyes nacionales para regular sobre la neutralidad de la red. En varios países los organismos reguladores nacionales han establecido una serie de principios a raíz de controversias puntuales surgidas con algunas empresas proveedoras de servicios de Internet. En algunos casos, estas discusiones han tenido como principal referencia los debates producidos en los Estados Unidos.

Estados Unidos El debate sobre neutralidad de la red se inicia en los Estados Unidos, donde los operadores de radiodifusión y de telecomunicaciones se encuentran sujetos a regulaciones distintas. En este país rigen dos leyes principales: la Ley de Comunicaciones de 1934 y la Ley de Telecomunicaciones de 1996 (con sus modificaciones posteriores). La primera es la que creó a la Comisión Federal de Comunicaciones (Federal Communications Commission, FCC), como el organismo encargado de regular las comunicaciones nacionales e internacionales que se producen a través de la radio, la televisión, la telefonía celular, los satélites y cables. La FCC se ha limitado a intervenir en casos aislados de discriminación sobre el tema de neutralidad de la red, entre los que se destacan dos procesos emblemáticos: “Madison” y “Comcast”. Con relación al primero, en febrero de 2005 la FCC inició una investigación contra la compañía Madison River Communications, proveedora de servicios de Internet. El organismo le envió una carta de petición (Letter of Inquiry, LOI) a la empresa, por acusaciones recibidas acerca de que estaba bloqueando los puertos utilizados para las aplicaciones del protocolo

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de voz sobre IP (VoIP), afectando la capacidad de los usuarios para utilizar dichos servicios a través de uno o más servidores. El episodio terminó en un acuerdo con la compañía, por el que Madison River dejaría de realizar dicha práctica de bloqueo y pagaría voluntariamente al Tesoro de los Estados Unidos – aceptando no presentar apelaciones judiciales en el futuro - la suma de 15.000 dólares (FCC, 2005a). Luego de este caso, en septiembre de 2005 la FCC lanzó una declaración (Policy Statement) sobre Internet y las telecomunicaciones, en la que adoptó una serie de principios para asegurar que las redes de banda ancha sean accesibles y abiertas para todos los consumidores: a. el derecho de los consumidores para acceder a cualquier tipo de contenido legal que elijan; b. la libertad para ejecutar las aplicaciones y utilizar los servicios que deseen; c. la libertad para conectar cualquier dispositivo legal que no dañe la red; d. la libre competencia entre proveedores de redes, proveedores de aplicaciones y servicios, y proveedores de contenidos. Hay que señalar que la enunciación de estos derechos, conocidos como “las cuatro libertades de Internet”, no constituye una regulación, puesto que se hallan sujetos a “una razonable administración de las redes” (FCC, 2005b). El segundo caso que marca un hito en los debates en torno de la neutralidad de la red y que ha tenido gran trascendencia pública es el que involucra a la empresa Comcast Corporation. Este episodio tuvo lugar en el año 2007, cuando una coalición de usuarios y grupos de interés público presentaron una petición ante la FCC en la que sostenían que la compañía bloqueaba el acceso a ciertos contenidos en contra de los principios establecidos por la Comisión. La investigación llevada adelante demostró que Comcast bloqueaba las descargas P2P (peer-to-peer) de los usuarios. En un primer momento la firma se defendió y justificó su accionar, explicando que su actitud era necesaria para gestionar el tráfico de la red y que, cuando la congestión del tráfico cesaba, los usuarios podían volver a acceder a los servicios requeridos. Sin embargo, las pruebas de la investigación demostraron que los bloqueos se producían a toda hora. Luego de un período en el que se recibieron numerosas opiniones públicas sobre el tema, el organismo concluyó, en el año 2008, que Comcast había incurrido en prácticas discriminatorias y arbitrarias, que interferían con el principio de una Internet abierta, y que no constituían una administración razonable del tráfico. Además, señaló que se trataba de prácticas anticompetitivas, pues la empresa bloqueaba ciertas descargas que competían con su propio servicio de video bajo demanda (video on demand, VoD). La FCC ordenó a la compañía que en un plazo de 30 días presentara los detalles de la irra-

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zonable práctica en la que había incurrido, que enviase un plan describiendo cómo pensaba terminar con ella, y que explicara, tanto a la Comisión como al público, las prácticas de gestión de la red que utilizaría en su lugar (FCC, 2008). Esta orden de la FCC fue la primera decisión tomada con respecto al tema de la neutralidad de la red. En un principio, Comcast cumplió con lo requerido, pero luego apeló ante la Corte de Apelaciones del Distrito de Columbia. La sentencia de la Corte resultó favorable para Comcast porque, pese a que la FCC invocaba el mandato de jurisdicción que le había otorgado el Congreso sobre las innovaciones tecnológicas en materia de comunicación, el fallo sostuvo que el organismo no justificó de manera suficiente su autoridad para regular las prácticas de gestión de la red de este proveedor de servicios de Internet (COMCAST, 2010). Vale subrayar que la Corte de Apelaciones no resolvió que la FCC no debe regular sobre neutralidad de la red en general, sino que no estaba habilitada para hacerlo en este caso. El 21 de diciembre de 2010, luego de una consulta pública, la FCC adoptó la llamada FCC Open Internet Report and Order (Open Internet R&O), que contiene una serie de regulaciones que apuntan a establecer el principio de neutralidad de la red y prohibir que los prestadores de banda ancha bloqueen el acceso a contenidos legales o a determinados sitios web. Esta orden, que establece diferencias entre las obligaciones de los prestadores de servicios de Internet fijos y los inalámbricos, entró en vigencia el 20 de noviembre de 2011 con tres reglas para preservar una Internet libre y abierta: a. Transparencia sobre los términos y condiciones de gestión de la red por parte de los prestadores de los servicios de banda ancha; b. No bloqueo de contenidos, servicios o aplicaciones legales por parte de los proveedores de servicios de banda ancha fijos o móviles; c. Que no haya discriminación injustificada en la transmisión de datos legales. Nuevamente, si bien resulta relevante el establecimiento de una serie de principios a seguir por parte de los prestadores se servicios de Internet, la Open Internet R&O aclara que las reglas de no bloqueo y no discriminación se hallan sujetas a excepciones justificadas por una “razonable” administración de las redes (FCC, 2010). En el año 2012 se presentaron nuevas denuncias encabezadas por asociaciones de usuarios y movimientos sociales que reclamaban por prácticas de gestión del tráfico “irrazonables” por parte de las empresas. Uno de estos casos es el de la firma Netflix, junto con el movimiento Free Press, que acusó a Comcast de no seguir los principios de neutralidad de la FCC y de restringir el acceso a sitios de video para promover el propio servicio de TV de Comcast, generando una competencia desleal con relación a otros proveedores de VoD en Internet. Del mismo modo, desde fines de 2012, una serie de asociaciones de usuarios, entre las que se encuentran Free Press, Public Knowledge y New American Foundation’s Open Technology Institute, reclaman ante la FCC por la violación de las reglas de neutralidad de la

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red por parte de la empresa AT&T, al restringir el uso de la aplicación FaceTime para video conferencias de la firma Apple. Esta aplicación puede utilizarse sólo a través de señales de Wi-Fi para quienes contraten planes premium de conexión para celulares con AT&T, excluyendo a quienes tengan planes de datos más antiguos. Los principios adoptados por la FCC aún se hallan lejos de saldar la discusión sobre la neutralidad de la red en los Estados Unidos. Mientras que las empresas prestadoras de servicios de Internet se oponen a cualquier tipo de limitación de sus prácticas de gestión de la red, las organizaciones de la sociedad civil, que defienden el interés público y a los consumidores, consideran que se trata de una regulación insuficiente. Han existido varios intentos por aprobar proyectos de ley en el Congreso norteamericano que contengan previsiones relativas a la neutralidad de la red y que impidan a los ISP utilizar modelos de precios variables según la calidad del servicio ofrecida, pero ninguno ha prosperado.

Canadá En este país la neutralidad de la red recibe el nombre de Internet Traffic Management Practices (ITMPs). Se trata de un tema en debate desde 2005, cuando la empresa Telus, una de las principales telefónicas de Canadá, bloqueó el acceso al sitio sindical “Voces para el cambio” (Voices for change) durante un conflicto gremial, alegando que había publicado fotos que dañaban su imagen y la de sus clientes con la finalidad de intimidar a sus empleados. En el año 2006 el gobierno canadiense reformó los objetivos de su política de telecomunicaciones, con el fin de promover el acceso a estos servicios en todas las regiones de Canadá, aumentar la eficiencia de los mercados telecomunicacionales y promover la inclusión de los ciudadanos a través de las redes. Otro caso se sumó al debate en abril de 2008, cuando la asociación canadiense de proveedores de servicios de Internet (Canadian Association of Internet Providers, CAIP) solicitó a la Comisión Canadiense de Radiodifusión y Telecomunicaciones (Canadian Radio-television and Telecommunications Commission, CRTC) que ordenara a Bell Canada terminar con la regulación del tráfico en la red por motivos de congestión. El organismo dictaminó, en noviembre de 2008, que la empresa no ejercía discriminación en su tarea, pero inició un proceso de revisión de la gestión del tráfico por parte de los ISPs que incluyó audiencias públicas sobre el tema (CRTC, 2008). En el año 2009 la CRTC publicó una Directiva Regulatoria de la Política de Telecomunicaciones (Telecom Regulatory Policy) que intenta balancear la libertad de los ciudadanos canadienses para utilizar Internet, con los intereses de los ISP de administrar el tráfico a través de sus redes. Se basa en cuatro consideraciones: la transparencia en las prácticas de los ISP, la innovación y la inversión en las redes como solución primaria para la congestión del trá-

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fico, la claridad y no discriminación en la gestión del tráfico, y la neutralidad competitiva. Asimismo, establece previsiones acerca de la privacidad de los usuarios (CRTC, 2009). Estos principios de transparencia y no discriminación se aplican a casos particulares. La CRTC recibe quejas específicas sobre ITPMs cada año, distinguiendo entre los reclamos relativos a la falta de divulgación de información por parte de los ISP, a los efectos de las prácticas de gestión de la red sobre los usuarios, y quejas relacionadas con otros usos de Internet, tales como la velocidad de los servicios. En el año 2012 se recibieron un total de 75 reclamos (CRTC, 2012). Si bien se han presentado algunos proyectos en el Parlamento para regular sobre este tema, ninguno se ha convertido en ley.

Comunidad Europea

1- Estas directivas eran: Directiva 2002/19/EC (sobre acceso), Directiva 2002/20/EC (sobre autorización de redes y servicios de comunicaciones electrónicas), Directiva 2002/21/EC (marco regulatorio común para redes y servicios de comunicaciones electrónicas), Directiva 2002/22/EC (sobre servicio universal), y Directiva 2002/58/EC (sobre privacidad y comunicaciones electrónicas). (THE EUROPEAN PARLIAMENT, 2002).

A diferencia de lo que ocurre en los Estados Unidos, el debate en torno de la neutralidad de la red en Europa es principalmente de carácter regulatorio y preventivo, dado que no se basa en casos o hitos salientes en el que las autoridades de los distintos países hayan tenido que intervenir, sino que es un debate “importado por los agentes globales” (PALAZUELOS; HERRERA, 2010). La discusión se ha dado en el seno de la Comisión Europea, que contaba con cinco directivas dictadas en el año 2002 para regular las redes y servicios de comunicaciones electrónicas.1 En el año 2007 la Comisión publicó una propuesta legislativa de revisión de estas directivas, con el fin de actualizar el marco existente y crear una serie regulaciones para la industria de las telecomunicaciones que fueran aplicables a los estados miembros. Esta propuesta se debatió entre noviembre de 2007 y diciembre de 2009, cuando se adoptó el llamado Paquete de Telecomunicaciones (Telecoms Package), que consiste en una serie de normativas para la provisión de los servicios, el acceso, la interconexión, los derechos y la privacidad de los usuarios. Además, prevé la creación de un organismo regulatorio europeo (Body of European Regulators of Electronic Communications, BEREC), que incluye en su directorio a representantes de las autoridades regulatorias nacionales (NRAs) y a oficiales de la Comunidad Europea, con el objetivo de promover la cooperación entre los países y contribuir al desarrollo y al mejor funcionamiento del mercado interno.2

2- El BEREC comenzó sus actividades en enero de 2010. Véase el sitio institucional del organismo para más detalles. (BEREC, 2012)

Dentro de las regulaciones que propone la Comisión Europea, y que han recibido numerosas enmiendas a lo largo de todo el proceso de debate, se establece que los consumidores deben ser informados acerca de la naturaleza del servicio al que se suscriben, las técnicas de gestión de la red y su impacto en la calidad de servicio que reciben, así como cualquier otro tipo de limitaciones (ancho de banda, velocidad de conexión, etc.) a las que estarán sujetos. Hay que destacar que concibe el acceso a Internet como un derecho fundamental, en el mismo orden que la libertad de expresión. Con relación a la neutralidad de la red, si bien se reconoce que el marco legal europeo no puede impedir efectivamente que los ISPs disminuyan la calidad de los servicios para sus

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clientes, la Comisión Europea propone que cada uno de los reguladores nacionales establezca un mínimo de calidad en el acceso al servicio, por debajo del cual los operadores de red no puedan descender en sus tareas de gestión del tráfico (COMISIÓN EUROPEA, 2007). Los miembros de la Unión Europea debían implementar las directivas en sus regulaciones nacionales para mayo de 2011. Sin embargo, sólo en los Países Bajos se ha adoptado una legislación específica sobre el tema.

3- Véase el informe de Erhel y de la Raudière (2011).

En varios países, tales como Italia, España y Bélgica, han existido discusiones parlamentarias y proyectos legislativos que todavía no han prosperado para convertirse en leyes. En Francia se creó en el año 2010 una Comisión de asuntos económicos sobre la neutralidad de Internet y las redes (Commission des affaires économiques sur la neutralité de l’internet

et des réseaux) que presentó en abril de 2011 un informe ante la Asamblea Nacional,3 que contiene una serie de propuestas y consideraciones técnicas y económicas sobre este principio, así como las previsiones emanadas del Telecom Package.

Países Bajos Este país se convirtió en el segundo en el mundo, luego de Chile, en contar con una ley que contempla la neutralidad de la red. La disposición surgió luego de que se presentara una controversia alrededor de la intención de KPN – el líder del mercado de telecomunicaciones holandés – de cobrar adicionalmente por servicios de VoIP y mensajería de texto de otros proveedores. El 22 de junio de 2011 la Cámara Baja del Parlamento aprobó, por amplia mayoría, una normativa que establece que los operadores pueden ofrecer distintas tarifas según velocidades de descarga y servicios brindados, pero no pueden cobrar cargos extra por utilizar servicios basados en aplicaciones gratuitas de Internet. De no cumplirlo, los operadores podrían pagar hasta un 10% de sus ingresos anuales por ventas en concepto de multas aplicadas por la autoridad de telecomunicaciones holandesa. Casi un año después, en mayo de 2012, el Senado promulgó la ley que establece que los proveedores de servicios de Internet no podrán cobrar tarifas preferenciales para acceder a determinados servicios ni interferir en el tráfico de datos. Si bien la norma permite la gestión del tráfico en casos de congestión o por motivos de seguridad, aclara que ésta debe realizarse únicamente en interés del usuario, e incluye además disposiciones que limitan la inspección profunda de paquetes (DPI), la que se podrá implementar solo en contadas ocasiones (bajo orden judicial, por ejemplo) o con el consentimiento previo del usuario.

Chile El 26 de agosto de 2010 Chile se convirtió en el primer país en promulgar una normativa sobre neutralidad de la red. La ley N° 20453, que modifica a la Ley General de Telecomunicaciones N° 18168, consagra este principio para todos los consumidores y usuarios de Internet.

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Esta normativa establece el derecho de los usuarios a acceder a todo tipo de contenidos y aplicaciones legales sin discriminación por parte de los proveedores de Internet. No obstante, habilita la gestión del tráfico por parte de los administradores de red, subrayando el principio de la libre competencia: Describe el art. 24H, inc. a: 4- El art. 2 de la Ley de Telecomunicaciones N° 19798 define a la telecomunicación como “[…] Toda transmisión, emisión o recepción de signos, señales, escritos, imágenes, sonidos o informaciones de cualquier naturaleza, por hilo, radioelectricidad, medios ópticos u otros sistemas electromagnéticos.” (ARGENTINA, 1972).

5El decreto 62/90 (Anexo I, Cap. XIX, 17.1) define al servicio de telecomunicaciones como “El transporte de señales, imágenes visuales, voz, música y otros sonidos por medio de hilos, sistemas radioeléctricos, sistemas ópticos y/u otros sistemas que utilicen energía eléctrica, magnética, electromagnética o electromecánica”. (ARGENTINA, 1990).

6- La Resolución SC Nº 97/96 señala en sus considerandos que “siendo la Internet un claro fenómeno autopoiético […], desarrollado sin el impulso de autoridad regulatoria alguna, es necesario dictar una reglamentación que aclare la vigencia de tal principio”, y dispone que Telecomunicaciones Internacionales de Argentina (Telintar S.A.) requerirá una licencia para la prestación de servicios de valor agregado en el ámbito nacional e internacional a quienes soliciten salida internacional para acceder a la Red Internet. (ARGENTINA, 1996).

7- Decreto 1279 - B. O. 1/12/1997. (ARGENTINA, 1997).

Con todo, los concesionarios de servicio público de telecomunicaciones y los proveedores de acceso a Internet podrán tomar las medidas o acciones necesarias para la gestión de tráfico y administración de red, en el exclusivo ámbito de la actividad que les ha sido autorizada, siempre que ello no tenga por objeto realizar acciones que afecten o puedan afectar la libre competencia. (CHILE, 2010).

Además, obliga a los prestadores a publicar en sus sitios web toda la información relativa a las características del acceso a Internet ofrecido, su velocidad y calidad de enlace; y prohíbe ciertas prácticas, tales como la distinción arbitraria de contenidos, aplicaciones o servicios basados en la fuente de origen, y en virtud de las distintas configuraciones de conexión a Internet que tengan los usuarios por contrato. Se preserva, asimismo, el derecho de los usuarios de conectar cualquier tipo de dispositivo legal a la red, y se establecen sanciones para el no cumplimiento de estos principios. Un elemento importante a resaltar del proceso chileno ha sido la participación y el impulso que el proyecto ha tenido por parte de los usuarios de Internet, que recurrieron al envío masivo de correos electrónicos a diputados y senadores, producto de una campaña de ciberactivismo que exigía una legislación urgente sobre este tema (CALIFANO; BALADRÓN, 2013). La ley fue reglamentada por medio del decreto 368/2010, que regula las características y condiciones de la neutralidad de la red en el servicio de acceso a Internet, y que entró en vigencia el 18 de marzo de 2011.

Argentina En Argentina existen una serie de normativas legales que enmarcan la regulación de Internet dentro de las telecomunicaciones. Entre ellas se encuentran la Ley Nacional de Telecomunicaciones N° 19798,4 el Decreto N° 62/905 y la Resolución Nº 97/96 de la Secretaría de Comunicaciones.6 En el año 1997 se promulgó el Decreto 554 que declara de interés nacional el acceso a Internet, en condiciones equitativas para todos los habitantes del país, con tarifas razonables y parámetros de calidad. Esta política de promoción del acceso a la Red por parte del Estado nacional se complementó con la declaración de Internet como un servicio amparado en el derecho a la libertad de expresión.7 En 2005 se promulgó la Ley Nº 26032 que establece además que “la búsqueda, recepción y difusión de información e ideas de toda índole a través del servicio de Internet, se considera comprendido dentro de la garantía

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constitucional que ampara la libertad de expresión” (art. 1). Desde entonces se han presentado cuatro proyectos legislativos en el Congreso Nacional para regular específicamente sobre el tema de la neutralidad de la red. Entre ellos se encuentran el de la diputada Bianchi, del Peronismo Federal de San Luis (expediente 0744D-2011, 15/03/2011); el de la diputada Belous, de Tierra del Fuego (expediente 1159D-2011, 23/03/2011); el de la senadora Di Perna, por el Frente por la Integración de la provincia de Chubut (expediente S-1491/11, 8/06/2011); y el de los senadores Estenssoro (Coalición Cívica) y Sanz (UCR), girado para su discusión en comisiones del Senado (expediente 3618-S-2012, 09/10/2012). (ARGENTINA, 2011, 2011a, 2011b, 2012) En general, estos proyectos coinciden en reglamentar la no discriminación y el no bloqueo de contenidos por parte de los proveedores de Internet en su tarea de gestión del tráfico, los requisitos de transparencia y claridad en cuanto a las características del acceso a Internet ofrecido, y el principio de libertad de competencia. Hasta ahora, ninguno de estos expedientes ha prosperado en su trámite parlamentario.

Brasil En este país se han producido algunos debates relevantes tendientes a regular la neutralidad de la red. En el año 2009, el Comité Gestor de Internet de Brasil (CGI.br), integrado por representantes del gobierno, del sector empresarial, del tercer sector y de la comunidad académica, emitió una serie de “Principios para la Gobernanza y el uso de Internet”. En el art. 6 de esta declaración se hace referencia específica a la neutralidad de la red, y se establece que los privilegios de tráfico y el filtrado de contenidos resultan inadmisibles por “motivos políticos, comerciales, religiosos, culturales o cualquier otra forma de discriminación o favoritismo”, los que deben sujetarse únicamente a criterios técnicos y éticos (CGI, 2009). En el año 2011 el Poder Ejecutivo presentó un proyecto de ley que establece principios, garantías, derechos y deberes para el uso de Internet en Brasil. Este proyecto legislativo, que lleva el número 2126/2011, tiene como punto de partida el llamado “Marco Civil de Internet”, que fue elaborado en un proceso conjunto y colaborativo que se inició en octubre de 2009 y que contó con la participación de legisladores, organizaciones civiles, académicos y usuarios. La propuesta del Marco Civil contiene una serie de directrices para la gobernanza de Internet, que respeta los derechos de libertad de expresión, pluralidad, diversidad, libre competencia y defensa del consumidor, entre otros. Uno de los puntos más controvertidos del texto se vincula con la protección legal de los proveedores de conectividad y de servicios de alojamiento web, a quienes se desliga de responsabilidades acerca de los contenidos subidos por terceros. La crítica que se hace a este punto se vincula con la posible colisión con otros derechos, como el de privacidad o el de propiedad intelectual, dado que, al proteger los contenidos subidos por los usuarios, los servidores no podrían retirarlos sin

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una orden judicial. El proyecto legislativo cuenta con 25 artículos divididos en cinco capítulos (Disposiciones preliminares, De los derechos y garantías de los usuarios, De la provisión de conexión y aplicaciones en Internet, De la actuación del poder público, Disposiciones finales) y afirma que el acceso a Internet es esencial para el ejercicio de la ciudadanía. Incluye un apartado específico sobre neutralidad de la red (Capítulo I, art. 3º, IV) que prohíbe la discriminación en el tratamiento de paquetes de datos por parte de operadores públicos y privados, cualquiera sea su contenido, origen o destino, servicio o aplicación. Establece el respeto por la libre competencia y obliga a los ISP a informar de modo claro y transparente sobre las prácticas de administración del tráfico adoptadas. Se contemplan algunas excepciones para la priorización de servicios de emergencia y para casos de índole judicial que así lo requieran, las que serán reglamentadas por decreto según las recomendaciones del Comité Gestor de Internet. Este proyecto aún se encuentra a la espera de discusión plenaria en el Congreso Nacional de Brasil.

Ecuador Si bien no cuenta aún con una ley específica que regule sobre neutralidad de la red, en el año 2012 el Consejo Nacional de Telecomunicaciones de Ecuador (CONATEL) lanzó un Reglamento para proteger los derechos de los usuarios y regular sus relaciones con los prestadores de servicios de telecomunicaciones, que incluye alguna previsión sobre este tema. Este reglamento establece, dentro de la Sección III, que los abonados o usuarios de estos servicios tienen derecho a acceder a información veraz, completa, clara y actualizada sobre las condiciones de prestación de los servicios de telecomunicaciones; y que pueden hacer uso de cualquier aplicación o servicio legal disponible en Internet. Si bien habilita la gestión del tráfico por parte de los ISP, aclara en su art. 15.6 que “[…] el servicio que ofrezcan los prestadores de los servicios no deberán distinguir ni priorizar de modo arbitrario contenido, servicios, aplicaciones u otros basándose en criterios de propiedad, marca, fuente de origen o preferencia” (CONATEL, 2012, p. 9).

PROBLEMAS Y DESAFÍOS PARA LA REGULACIÓN

Internet presenta nuevos desafíos regulatorios con relación al modelo tradicional de regulación de las telecomunicaciones. El volumen de datos que se transporta a cada minuto a través de las redes requiere necesariamente de administradores que gestionen el tráfico para garantizar su correcto funcionamiento, y la deseada neutralidad de la red en la que

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se basa el paradigma e2e no resulta a veces compatible con esta tarea. Los avances tecnológicos han permitido que los ISP puedan ver el contenido de un paquete de datos al transmitirlo y así priorizar o no el ancho de banda que su transporte requiere. Pero estas tecnologías pueden colisionar con los derechos de privacidad y libertad de expresión de los usuarios. Además, es posible también que los ISP prioricen en el tráfico a determinados servicios o aplicaciones – o restrinjan otras – por razones económicas, generando así mecanismos anticompetitivos. Son muchos los riesgos para los usuarios por detrás de estas prácticas. Entre ellos, la posible censura en el acceso a ciertos contenidos por motivos ideológicos, económicos o de otro tipo; que los motores de búsqueda no redireccionen hacia los sitios deseados por tener intereses en común con algunos proveedores de conectividad; que los ISPs cobren a los buscadores por tener una mayor velocidad; que haya una menor circulación de ideas a nivel general; etc. Por este motivo, la gestión del tráfico en Internet requiere de regulación específica, en pos de balancear los intereses de los usuarios, de los proveedores de servicios de conectividad, y de los proveedores de contenidos o aplicaciones. El análisis de la regulación por país realizado en este trabajo nos permite postular una serie de principios comunes que toda norma sobre neutralidad de la red debería contemplar: - la necesidad de transparencia en la tarea de los ISPs; - la no discriminación en las prácticas de gestión del tráfico o en las calidades del servicio a cambio de un costo adicional; - el no bloqueo y la no degradación en el acceso a contenidos, servicios, aplicaciones o terminales; - el respeto por la libre competencia entre todo tipo de proveedores (de red, de aplicaciones, de servicios y de contenidos); - claridad en la información brindada a los usuarios y al público en general sobre las características de los servicios ofrecidos y/o contratados; - disposiciones que regulen de manera clara la inspección profunda de paquetes (DPI); - respeto por los derechos de acceso a la información, privacidad y libertad de expresión de todos los actores involucrados. No obstante, la descripción desarrollada en este trabajo ha demostrado lo difícil que es contar con una regulación específica sobre el tema, no sólo porque resulta complejo balancear los intereses contrapuestos de los actores involucrados, sino porque persisten visiones ideológicas distintas acerca de la necesidad o no de regulación en Internet. En este artículo creemos que la implementación de políticas es necesaria, tanto para fo-

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mentar el desarrollo de Internet como para preservar los derechos de los usuarios. Además, si bien aquí proponemos algunos principios que la regulación debería tener en cuenta, es preciso también implementar mecanismos efectivos de control para evaluar si los ISP infringen estas normas, así como penalidades concretas en caso de que lo hagan. En suma, consideramos que los países enfrentan actualmente tres grandes desafíos para regular sobre este tema. En primer lugar, el diseño de políticas de Internet que sean coherentes con los principios establecidos a nivel global. En segundo término, la articulación de intereses entre actores contrapuestos, en una regulación que convine incentivos para la innovación y la inversión en el desarrollo de Internet, con el respeto a la libertad de expresión, tanto en su dimensión individual – proteger el derecho del emisor de expresar sus ideas –como social – garantizar el derecho de todos de acceder a la mayor cantidad y diversidad de informaciones. Finalmente, la implementación de mecanismos tecnológicos de medición y control de los principios de neutralidad, para lograr que Internet sea verdaderamente libre y abierta.

REFERENCIAS

ARGENTINA. Congreso de la Nación. Ley n. 19798 del 23 de agosto de 1972. Ley Nacional de Telecomunicaciones. Disponible en: <http://www.cnc.gov.ar/normativa/Ley%20 19798.pdf>. Acceso: 15 marzo 2013. ______. Ley n. 26032 del 17 de junio de 2005. Establécese que la búsqueda, recepción y difusión de información e ideas por medio del servicio de Internet se considera comprendida dentro de la garantía constitucional que ampara la libertad de expresión. Disponible en:< http://www.formarse.com.ar/ley26032.htm> Acceso: 15 marzo 2013. ______. Congreso de la Nación. Cámara de Diputados. Expediente 0744-D-2011. Principio de neutralidad de red: incorporacion a la legislacion nacional. 15 marzo 2011. Disponible en:<http://www.diputados.gob.ar/proyectos/proyecto.jsp?id=125346 >. Acceso: 15 marzo 2013. ______. Expediente 1159-D-2011. Regimen para neutralidad de red. 23 marzo 2011a. Disponible en: <http://www.diputados.gob.ar/proyectos/proyecto.jsp?id=125797 >. Acceso: 15 marzo 2013. ______. Congreso de la Nación. Cámara de Senadores Expediente S-1491/11. Neutralidad de la red en el servicio de acceso a internet. 8 junio 2011b. Disponible en:<http:// www.senado.gov.ar/web/proyectos/verExpe.php?&origen=S&numexp=1491/11&tipo=PL &tConsulta=1>. Acceso: 15 marzo 2013. ______. Expediente 3618-S-2012. 9 octubre 2012. Disponible en: <http://www.senado. gov.ar/web/proyectos/verExpe.php?origen=S&nro_comision=&tipo=PL&numexp=3618/1 2&tConsulta=3> Acceso: 15 marzo 2013.

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CAROS AMIGOS: O TRANSBORDAMENTO DO CAMPO JORNALÍSTICO CAROS AMIGOS: EL DESBORDAMIENTO DE CAMPO PERIODÍSTICO CAROS AMIGOS: OVER FLOWING OF THE JOURNALISTIC FIELD

Luciana Almeida CHAGAS Jornalista, Mestre em Comunicação (UFF) e Professora da Universidade Federal do Piauí.- Brasil Email: lua.chagas@uol.com.br

Revista Eptic Online Vol.15 n.3 p.38-57 set.-dez. 2013 Recebido em 29/03/2013 Publicado em 02/09/2013


Caros Amigos: O transbordamento do campo jornalístico

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Luciana Almeida Chagas

RESUMO Este artigo consiste numa análise da trajetória histórica da revista Caros Amigos, criada em 1997. Procuramos traçar um perfil deste periódico desde a formulação do projeto editorial em questão até a sua concretização e consolidação ao longo de sua primeira década. Examinamos as principais características do fazer jornalístico da revista e da empresa de comunicação estabelecida por este veículo, bem como o papel desempenhado pelo jornalista fundador Sérgio de Souza e seu grupo a frente da revista até 2008 - por ocasião do seu falecimento. Também criamos o conceito de transbordamento do campo jornalístico, pois segundo a definição de campo jornalístico (BOURDIEU, 1997), esta revista não se enquadra nas normas impostas pelo referido conceito, revelando assim um fazer jornalístico diferenciado da grande mídia brasileira.

Palavras-chave Campo jornalístico. Revista Caros Amigos. Transbordamento do campo jornalístico. Jornalismo. Pierre Bourdieu.

RESUMEN Este artículo es un análisis de la trayectoria histórica de la revista Caros Amigos, establecida en 1997. Nosotros tratamos de perfilar este diario desde la formulación del proyecto editorial en cuestión hasta su finalización y consolidación a lo largo de su primera década. Se examinan las principales características de revista periodística y la compañía de medios establecido por este vehículo, así como el papel del periodista fundador Sergio de Souza y su grupo por delante de la revista hasta 2008 - en el momento de su muerte. También creamos el concepto de campo de desbordamiento periodístico, ya que, de acuerdo con la definición del campo periodístico (BOURDIEU, 1997), esta revista no se ajusta a las reglas impuestas por ese concepto, lo que revela una periodísticos diferenciados grandes medios brasileños. Palabras clave Periodística campo. Revista Caros Amigos. Campo de desbordamiento periodístico. Periodismo. Pierre Bourdieu.

ABSTRACT This article is an analysis of historical trajectory the magazine Caros Amigos, created in 1997. We tried draw up a profile of this periodic since the formulation of the publish project until to materialize throughout its first decade. We examine the main features of this vehicle and media company established by this vehicle as well as the role played by journalist Sergio de Souza and his group in front of the magazine until 2008 - at the time of his death. We also created the concept of overflow of the journalistic field, since according to the definition of the journalistic field (BOURDIEU, 1997), this magazine does not fit the standards required, thus revealing a distinguished journalistic mainstream media. Keyswords Journalistic field. Caros Amigos Magazine. Over flowing of the journalistic field. Journalism. Pierre Bourdieu.

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Caros Amigos: O transbordamento do campo jornalístico

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Luciana Almeida Chagas

CAROS AMIGOS, TRANSBORDAMENTOS À VISTA!

1- Atualmente Editora Caros Amigos.

Enquanto os grandes veículos de informação preferiam não se manifestar contra a política neoliberal na década de 90, surgia a revista Caros Amigos com a intenção de ser uma alternativa à grande imprensa. O neoliberalismo contribuiu para a mutação dos jornalistas, da informação, do jornalismo e da imprensa brasileira. Desta forma, aqui, em abril de 1997 começa a história da revista que é uma das representantes atuais do transbordamento do campo jornalístico: Caros Amigos é uma revista mensal de circulação nacional - lançada pela Editora Casa Amarela1 -, que traz em cada edição uma grande entrevista, um ensaio fotográfico, reportagens, a opinião dos leitores e a colaboração de colunistas. O projeto dessa revista nasceu em 1996 quando José Carlos Marão procurava jornalistas experientes e que haviam deixado as grandes redações por conta de seus primeiros fios de cabelos brancos, portanto profissionais experientes. A intenção era a produção de um impresso inteligente e não apelativo. As primeiras reuniões foram realizadas por José Carlos Marão, Juca Kfouri, Alberto Dines, Sérgio de Souza, João Noro, Matthew Shirts e o

designer Hélio de Almeida. Depois de alguns encontros, mais um jornalista se juntou ao grupo: Roberto Freire (SOUZA, 1998). Dines (2007), que havia chegado recentemente de Portugal, afirma que propôs um formato diferenciado – berliner em papel off-set branco, com redação provocativa e o título Caros Amigos. O projeto consistia em matérias escritas em forma de cartas. A publicação seria uma grande seção de cartas, sempre elaboradas pelos jornalistas da equipe, mas não se descartava a possibilidade de receber a contribuição de outros profissionais e quiçá de leitores. Inicialmente, a proposta foi aprovada pela equipe e assim surgia a revista Caros Amigos. O grupo buscava resgatar justamente um jornalismo mais opinativo, com espaço para a reflexão do leitor. O grupo de jornalistas pretendia buscar a excelência do jornalismo. Sérgio de Souza (1998), fundador e editor-chefe da revista, sustenta que não existiu outro projeto para a Caros Amigos, que não fosse essa que está nas bancas há mais de uma década. Já Dines (1998) garante que houve o número zero de um outro projeto: Foi aprovada uma plataforma editorial (existe uma cópia) baseada na combinação do não-engajamento político com reportagens incisivas. O “progressismo” não seria ideológico, mas teria como base a inovação, a busca de excelência jornalística numa época em que nas redações mandavam os marqueteiros. [...] O experiente João Noro, da Editora Casa Amarela, encarregou-se de montar o projeto jurídico-empresarial enquanto os outros discutiam o número zero. Demorou, chegaram os pára-quedistas, o projeto inicial foi sequestrado e quando finalmente o número zero foi impresso, o produto final era outro. (DINES, 2007, grifo do autor). Dines (1998) confirma que deixou o título – Caros Amigos –, antes de sua saída, para Sérgio de Souza e os que permaneceram naquele projeto, pois o mesmo já havia sido registrado pela Editora Casa Amarela. Dines (1998) não concordava com o projeto que tornou-se a revista Caros Amigos e sim com o anterior.

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No primeiro editorial da revista, Sérgio de Souza (1997, p. 3) relata sua versão da história: Caros Amigos é uma reunião de inteligências e talentos que andam espalhados por diversos meios de comunicação, alguns; e outros que estão marginalizados por todos os meios. Têm, esses talentos e inteligências, diferentes modos de pensar e interpretar a realidade, mas se identificam, todos, no ponto crucial: a ética, preocupação primeira desta revista mensal que estréia nas bancas do país inteiro com a intenção de discutir o Brasil e o mundo de hoje de um ponto de vista original, pelo menos no que se refere ao atual mercado de publicações. Na época de sua criação, Roberto Freire e Sérgio Souza queriam uma revista na qual os jornalistas tivessem independência, que pudessem escrever o que quisessem, da maneira que quisessem, mas com comprometimento e com inserção nacional. A revista incorporou a filosofia de seus idealizadores e ganhou seu espaço no mundo do jornalismo. Começamos a organizar a ação. O Sérgio ficou encarregado de preparar um número zero e eu fui em busca dos colaboradores. Não precisamos escrever e registrar oficialmente que “a ideologia da revista seria isso e isso”. Todos sabíamos qual era a ideologia do outro e que éramos caras de esquerda. Isso, claro, se refletiria na revista. E, desde o começo, eu sempre disse que não iria trabalhar para qualquer órgão de imprensa que fizesse algum tipo de política partidária. Se a gente não conseguisse dinheiro para sustentar a revista, eu achava melhor que ela fosse fechada [...] Foi uma tentativa de reedição do jornalismo da paixão, que a gente conseguiu fazer em Realidade. (FREIRE apud PEREIRA FILHO, 2004, p. 112-113, grifo do autor).

REALIDADE: HERANÇA E INSPIRAÇÃO

Como uma parcela dos jornalistas que fazia parte do grupo havia trabalhado na revista Realidade, eles estavam sedentos por uma publicação que desse a liberdade para a realização do trabalho jornalístico, como foi naquela revista.

2- Editorial da revista.

Realidade era uma revista mensal de âmbito nacional - lançada em abril de 1966 e extinta em 1976. Em seu primeiro editorial a revista publicou um breve histórico da Editora Abril, que declarava: “há 16 anos editando revistas para o público brasileiro, acompanhando a extraordinária evolução do país. O Brasil vai crescendo em todas as direções”. (CIVITA, 1966).2 Em seguida Realidade era apresentada como uma revista que conhecia o país e seu público e que tinha como intenção informar, divertir, estimular e servir os leitores, sempre com seriedade, honestidade e entusiasmo. Durante os anos em que foi publicada, a revista sofreu diversas modificações em sua linha editorial, na composição gráfica e na tiragem devido a acontecimentos políticos no país e a mudanças estruturais na Editora Abril. Sendo assim, considera-se que Realidade teve três distintas fases. Segundo Faro (1999), que pesquisou a primeira fase da revista, de 1966 a 1968, durante esse período as edições abordavam temas polêmicos ligados à política e ao comportamen-

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to. No entanto, é preciso levar em consideração a incompatibilidade do projeto editorial com o “clima” de repressão que o país enfrentava, em especial a censura instalada com o Ato Institucional nº5 (AI-5) - que foi o instrumento utilizado pelos militares para aumentar os poderes do governo e permitir a repressão. Desde cedo a revista tornara-se uma preocupação para a censura, mas foi com uma reportagem de comportamento que a revista teve sua primeira apreensão em janeiro de 1967, por ordem dos Juizados de Menores dos Estados da Guanabara e de São Paulo. Tratava-se de uma edição especial sobre a mulher que trazia estatísticas sobre aborto, entrevistas com mãe solteiras, debates sobre a virgindade, fotografia de um parto. Dos 465 mil exemplares que haviam sido publicados, apenas 200 mil chegaram aos leitores, sendo o restante apreendido sob a alegação de ser “obscena e ofensiva à dignidade da mulher”. Na edição seguinte a revista reagiu em seu editorial alertando sob os riscos que a imprensa corria. (PEREIRA JUNIOR, 2001, p. 4910-4911, grifo do autor). Apesar da censura, a revista não foi perseguida no seu primeiro ano, inclusive Chateaubriand, responsável pela revista concorrente, a Cruzeiro, resmungava de que a Realidade estaria sendo protegida, pois um decreto-lei, publicado em fevereiro de 1967, alterou a Lei de Imprensa permitindo que empresários estrangeiros, como era o caso de Victor e Roberto Civita, publicassem edições científicas, técnicas, culturais e artísticas. Até então, apesar da liberdade de expressão, era vetada a propriedade e administração de empresas jornalísticas por estrangeiros. Em depoimento à Letícia Nunes, José Hamilton Ribeiro lembra o que facilitou a publicação de uma revista como a Realidade naquele momento: Dois dados conjunturais importantes ao nível local - o tímido liberalismo de Castelo Branco e uma sensação de mudança que permitia ousadias e ambições, mais a maturidade da Abril para uma “revista maior” – juntouse uma fermentação mundial que desembocaria no ano do macaco, em 1968, na explosão da juventude em todo o mundo, que nunca mais seria o mesmo. (RIBEIRO 1987, p. 72, grifo do autor apud MORAES, 2007, p. 44). Ribeiro (apud MORAES, 2007) acredita que o presidente Castelo Branco governava o país com um conservadorismo permissivo, o que contribuiu para o sucesso da Realidade. Caso Médici estivesse no poder em 66, possivelmente a revista não seria publicada. Paulo Patarra, que ao lado de Roberto Civita comandava a redação, foi o jornalista responsável pelo projeto editorial: revista mensal, colorida, com boa diagramação, de interesse geral, que tivesse equilíbrio entre texto e ilustração. Patarra (2007) revela que a revista Quatro Rodas foi um laboratório para a criação da Realidade: “estávamos lá de passagem, à espera do lançamento. Na redação produzíamos matérias que fariam parte da Realidade. Levei para Realidade todos os que tinha enfiado na Quatro Rodas”. Durante a sua primeira fase, Realidade teve a cada exemplar 12 reportagens sobre diferentes assuntos. Mylton Severiano revela a fórmula: O “caleidoscópio” era a fórmula mensal, num sistema de “escaninhos”. Todo número tinha de abarcar a realidade em 12 facetas, tais como: infância, política, esporte, mulher, doença, Brasil, internacional, educação, tragédia, religião, sexo, depoimento,

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pesquisa, perfil, documento, ensaio, problema, estudantes, espaço, saúde, esquerdas, ciência, racismo, guerra, política, assim por diante. Na afirmação, procurava-se abarcar o maior número possível de itens, ou seja, nunca permitir que, no mesmo mês, houvesse duas matérias do mesmo escaninho. (SILVA, 1999, p. 83, grifo do autor). Além disso, Realidade deveria ser considerada o cartão de visita da Editora Abril, deixando em segundo plano as revistas Claudia e Quatro Rodas, também bem-sucedidas editorialmente, embora com públicos específicos. Realidade Será a revista dos homens e mulheres inteligentes que desejam saber mais a respeito de tudo. Pretendemos informar, divertir, estimular e servir nossos leitores com seriedade, honestidade e entusiasmo. Queremos comunicar com nossa fé inabalável no Brasil e no seu povo, na liberdade do ser humano, no impulso renovador que hoje varre o país e nas realizações da livre iniciativa. Assim é com humildade, confiança e prazer que dedicamos Realidade a centenas de milhares de brasileiros lúcidos, interessados em conhecer melhor o presente para viver o futuro. (CIVITA, 1966).3

3- Editorial da revista.

Durante o tempo que permaneceu no mercado a revista ganhou sete vezes o Prêmio Esso de Jornalismo. Os repórteres da revista romperam com o uso do texto convencional, as matérias continham narrativa autoral e era comum a presença do repórter na matéria. Não só a narrativa utilizada na revista era diferente, mas o modo de produção. A observação era intensa e detalhada: os gestos e expressões faciais, além dos detalhes do cenário. Consumia-se tempo também com os diálogos. O subjetivo e o emocional da personagem também eram contemplados na reportagem, assim como acontecia no New Journalism. Para Faro (1999), as reportagens da revista continham o aprofundamento da informação social. O estilo narrativo e o tom investigativo faziam com que a revista atuasse na trincheira da luta democrática. O repórter também, pois era um [...] pesquisador do tema sobre o qual estava escrevendo, nenhum detalhe, nenhuma personagem, nenhuma causa ou efeito poderiam estar fora do texto; nenhuma relação entre eles poderia deixar de ser feita sob nenhum ângulo. A ambição era a totalidade do real, a integração entre as partes aparentemente desconexas do fato, eram assim apropriadas pelo jornalista. (FARO, 1999, p. 66). Na reportagem “Meninos do Recife”, [...] a cabeça da menina adormecida ao lado de Maria pendeu para a frente, Maria pousa-a em seu colo. Olhou Mauricio que dormia, apanhou um doce de coco e comeu-o devagar, enquanto pensava numa oração. O amém chegou junto com o sono. No céu, entre os edifícios, surgia uma leve mancha amarela. (FREIRE, 1967, p. 24).

O trecho acima descreve uma noite em que meninos de rua na cidade de Recife preparavam-se para dormir. A reportagem apontava a preocupação com o menor abandonado. Com essa reportagem, Roberto Freire mostrava ao leitor um pedacinho da realidade do país. A narrativa, ao trabalhar com a ambientação, nos leva a imaginar a cena, nos leva a

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refletir sobre a dura realidade dos menores abandonados. O estilo literário utilizado para a construção da reportagem nos remete a pensar como foi feita a produção da reportagem e a que circunstâncias o jornalista se submeteu para a produção da reportagem. A matéria ganhou o Prêmio Esso em 1967. Tal reportagem teria continuidade, mas a revista foi advertida pelo Juizado de Menores. Desta forma, a direção decidiu não prosseguir, pois não queriam conflitos com as autoridades. Os jornalistas da revista procuravam estar o mais próximo do tema de suas reportagens. Para eles, a observação e a vivência eram fundamentais para a construção da matéria. Certa vez, ao produzir uma reportagem sobre a tortura durante a Ditadura, José Hamilton Pereira Filho, levou para a redação um pau de arara4 e lá se pôs. Queria transmitir ao leitor a verdadeira sensação. Não suportou mais do que dez minutos. Foi a partir dessa experiência que o jornalista redigiu sua matéria. (SILVA, 2007)5 Outro exemplo de ousadia foi de Patarra, que em dezembro de 1968, conseguiu uma entrevista exclusiva com o dirigente do Partido Comunista Brasileiro, Luiz Carlos Prestes. Redigiu na reportagem as regras de segurança a que teve que se submeter para não descobrir e manter secreto o local do esconderijo do político.

4- É um instrumento de tortura, que consiste numa barra de ferro que e atravessada entre os punhos amarrados e a dobra do joelho, sendo o “conjunto” colocado entre duas mesas, deixa a pessoa pendurada. 5- Essa história foi contada por Mylton Severiano durante o 1º Anticurso de Jornalismo da Caros Amigos.

A partir de dezembro de 1968, Realidade passou a ser censurada. A censura chegava à redação através da direção da Editora, pois se tratava de uma publicação mensal. Como a Abril não queria se indispor com os governantes, acatavam as solicitações. Nesse momento Patarra e Sérgio de Souza deixaram a redação. Sendo assim, a segunda fase da revista Realidade teve início em 1969. Paulo Mendonça e Milton Coelho da Graça tomaram as rédeas da redação. Houve modificações no elenco de temas tratados e na composição das matérias. As reportagens com teor comportamental passaram a ganhar mais destaque, principalmente as que enfocavam temáticas sobre medicina e curiosidades científicas. Houve uma queda considerável na tiragem da revista. Em 1971, houve uma tentativa de recuperar o público. José Hamilton Ribeiro, relata que uma das estratégias para o sucesso editorial da revista, na segunda fase, foi contratar escritores para atuarem como repórteres. Nesse momento a tiragem teve uma melhora, mas nada comparado à primeira fase da revista. Em 1973, no início da terceira e última fase, foi anunciado o término do projeto jornalístico original. Ulisses Alves de Souza assumiu a direção. O formato da revista foi modificado e os textos ficaram menores e mais diversificados. A revista passou a publicar 24 matérias a cada edição. As diversas reportagens muito se aproximavam de certos guias para o diaa-dia ou manuais de autoajuda. As abordagens tornaram-se superficiais, não lembravam em nada aquelas reportagens que traziam o leitor para a reflexão. A preocupação maior era mostrar aos leitores como era possível “vencer na vida”, sendo inclusive esse o tema principal da edição de novembro desse mesmo ano. Apesar do nome, já não era a mesma revista. Chegou a ter um relançamento, inclusive com a carta de apresentação assinada por Victor Civita, na qual ele procurou associar a nova revista com o sucesso dos primeiros anos. Explica o sucesso, cita os prêmios de repor-

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tagem e diz que o Brasil continua mudando. (MORAES, 2007, p. 64).

Apesar das mudanças radicais, a revista ainda se sustentou por 30 meses, mas com certeza já não era mais a mesma revista. Realidade teve lento declínio, que começou talvez com a saída de Roberto Civita para cuidar dos negócios da empresa, possivelmente do lançamento da revista Veja, que seria apresentada ao mercado no ano seguinte, em outubro de 1968. Mas ambas revistas ainda permaneceram juntas nas bancas durante alguns anos. Em janeiro de 1976, Realidade publicou previsões para o ano que então começava. Tais previsões eram muito pessimistas em relação aos rumos da economia brasileira e mundial, com a revista fornecendo algumas dicas aos seus leitores de como tentar passar ileso pela onda de crise. Realidade, porém, foi extinta alguns meses depois. (PEREIRA JÚNIOR, 2001, p. 4911). Contudo, a Editora Abril foi responsável por um dos principais fenômenos do transbordamento do campo jornalístico: Realidade foi responsável pelo crescimento da empresa, que após o sucesso financeiro se rendeu às normas jornalísticas legitimadas pelo campo jornalístico. Hoje, o Roberto Civita é dono da Editora Abril. Quantas revistas têm a Editora Abril? Então ele dirige cerca de 150 revistas. Naquele tempo, ele dirigia Realidade e só, ele dedicava toda a sua energia, todo o seu talento, que todo mundo reconhece, para fazer uma revista só. Ele apostou muito, muito pesado na revista, inclusive pessoalmente. Eu me lembro de ele dormir em sofá na redação quando a gente estava fazendo uma reportagem de madrugada e tal, tinha que fechar, fazer edição de texto, titulação de página [...]. De manhã cedo tinha que estar pronto. Imagina ele fazendo isso hoje, numa redação. (MORAES, 2007, p. 73).

Realidade é um marco na história da imprensa brasileira. Seus textos longos, as narrativas que proporcionavam o diálogo com o leitor, a compreensão e a repercussão de suas reportagens fizeram com que o jornalismo praticado fosse classificado como inovador. Assim, como o New Journalism, ficou conhecida como revolucionária e sua contribuição ao jornalismo é imensurável. Edvaldo Pereira Lima acredita que Realidade foi A chance que o jornalismo poderia ter para se igualar, em qualidade narrativa à literatura, seria aperfeiçoando meios sem porém jamais, perder sua especificidade. Isto é, teria de sofisticar seu instrumental de expressão, de um lado, elevar seu potencial de captação do real de outro. (LIMA, 1993, p. 143 apud MORAES, 2007, p. 28). Foi a partir da experiência nessa escola que Sérgio de Souza se inspirou para criar a Caros Amigos: Trabalhava-se muito com prazer. Criou-se uma relação de vínculos profundos de amizade entre quase todos que faziam parte da equipe. Cada assunto profissional era discutido exaustivamente, assim como os assuntos pessoais, até íntimos. As conversas, a troca de opiniões, a crítica o elogio, tudo isso perpassava o ambiente da redação e transbordava para os bares, restaurantes, a casa de um e do outro. Essa era a dinâmica anímica (com o

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perdão da palavra); agora, se você quer se referir a dinâmica prática, concreta, também não era uma coisa corriqueira, burocrática, trabalhava-se com a liberdade própria de quem confia no outro e no profissionalismo de cada um. Claro que seguiam-se certas rotinas, como a reunião de pauta, a feitura do “espelho” da edição, o organograma de fechamento etc., como em qualquer outra redação. (MORAES, 2007, p. 69, grifo do autor).

Sendo assim, Souza tinha o desejo de recriar o ambiente e a forma de trabalhar proporcionada pela revista. Para ele, trabalhar num veículo como a Realidade na década de 60 foi uma realização profissional. Os jornalistas tinham liberdade para criar e para produzir as reportagens, tinham também independência em relação à opinião do patrão, existia afeto e companheirismo na redação, além do espírito de equipe. Ganhavam um bom salário e havia os recursos necessários para cumprir as pautas e o mais importante, na opinião dele a satisfação de mexer com a cabeça da sociedade - para Souza, o objetivo do jornalismo. Instado a analisar semelhanças entre Realidade e Caros Amigos, Faro (1999) que:

observa

As matérias [nas duas revistas] são produzidas a partir da perspectiva pessoal e investigativa do repórter e as narrativas mesclam os dados da objetividade com elementos da percepção do jornalista. Esta é uma herança que a revista Realidade deixou para toda a imprensa brasileira. Mas as semelhanças param por aí. Realidade foi fruto de uma conjuntura específica e esteve muito relacionada com os movimentos culturais dos anos 60 e 70. Já a Caros Amigos responde a outras demandas. (FARO, 1998).

Realidade e Caros Amigos são projetos distintos, desenvolvidos em tempos históricos diferentes, embora alguns jornalistas tenham atuado em ambas publicações. A bagagem profissional e a persistência de cada um contribuíram para a produção da Caros Amigos. Realidade contribuiu para a história do jornalismo de revista e da imprensa brasileira.

CONTANDO HISTÓRIAS: SER JORNALISTA...

No romance Recordações do Escrivão Isaías Caminha, Lima Barreto (1995) faz uma caricatura do meio jornalístico a partir da personagem principal, um contínuo que trabalha na redação de um grande jornal carioca. O autor discorre sobre os meandros do jornalismo, e dentre as características presentes na redação e enumeradas pelo autor estão a sordidez, o preconceito, o despreparo e o medo da denúncia - que muitas vezes levava a troca de favores. Essa permuta prejudicava a qualidade daquele jornalismo denunciado pelo literato. Naquele tempo existia um paradoxo entre as atividades de escritor e jornalista, pois ambas misturavam-se por ter a escrita como meio de expressão. Os escritores eram convidados para trabalhar nas redações de jornais e muitos tornavam-se jornalistas. Alguns “[...] homens de letras buscavam encontrar no jornal o que não encontravam no livro: notoriedade em primeiro lugar e um pouco de dinheiro” (SODRÉ, 1966, p. 334). Outros escritores

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consideravam que trabalhar com o jornalismo seria uma rendição dos seus princípios éticos e profissionais. No início do século XX, a generalização das relações capitalistas com as quais o jornalismo era incompatível, fez com que mudanças começassem a surgir na imprensa. Tais alterações foram introduzidas lentamente, mas acentuavam-se nas seguintes tendências: o declínio do folhetim, que foi substituído pelo colunismo e mais tarde pela reportagem; a entrevista, que foi substituída pelo artigo político e no predomínio da informação sobre a doutrinação. O aparecimento de temas, antes tratados como secundários, como os policiais, esportivos e mundanos ampliavam-se nas páginas dos jornais. Segundo Marialva Barbosa (2000), naquela época, os veículos de comunicação pretendiam possibilitar a migração de “falas” e a integração de múltiplas faces de uma mesma sociedade, informar sobre as experiências comuns da vida urbana, relacionar patrimônios históricos, étnicos e regionais e difundi-los com a intenção de coordenar múltiplas temporalidades de um público diversificado; o jornal era espaço de ascensão social. Alguns escritores-jornalistas conseguiram vender seus livros, somente após adquirir status escrevendo para jornais. Desta forma, Barbosa (2000, p. 101) afirma que “o jornalismo é bom para a literatura na medida em que possibilita ao autor ser lido, permite sua difusão, prepara o público, cria o trabalho.” Inúmeras transformações ocorreram no jornalismo no final do século XIX: a reprodução de fotos e ilustrações nas páginas dos jornais e revistas, maior rapidez no processo de produção e a utilização de modernas impressoras. Nas redações surge uma nova personagem: o repórter, que substitui os redatores de banca (SEVCENKO, 2003). A apuração ganha as ruas, a cobertura passa a ser feita junto às instituições - Ministérios, Câmara, Senado, teatros, delegacias de polícia entre outras. Surge uma divisão interna no trabalho dos jornalistas: criam-se setores de reportagem e crônica social. Os literatos passam a ocupar a primeira página das publicações. Desta forma, inaugura-se um novo modo de fazer jornal. O jornal fica mais barato, as notícias passam a conter o ineditismo, além da valorização das ilustrações e outros recursos gráficos. O jornal também se utilizava dos literatos – já conhecidos pela sociedade – para corroborar sua popularização. Os literatos, em contrapartida, faziam deste veículo o meio de divulgação e de publicação de seus escritos. Desta forma, O jornal passa a fornecer o público necessário à própria configuração da obra do escritor, a sua remuneração e às condições para que assuma, ao mesmo tempo, um lugar na burocracia oficial, melhorando suas condições de subsistência e satisfazendo a sua ambição de se integrar às elites. (BARBOSA, 2000, p. 98). Os literatos preocupavam-se com a concorrência do jornalismo, que criava padrões para a linguagem e oferecia empregos com baixas remunerações aos homens de letras. Surgia, nesse momento, críticas e também resistências à banalização e à neutralização da força cultural da literatura. “Mas nada embaraçava a expansão vitoriosa do jornalismo [...] Sua força e ação, quer sobre as classes conservadoras, quer sobre a massa de caixeiros, aven-

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tureiros e funcionários de toda espécie, é uma evidência indiscutível” (SEVCENKO, 2003. p.b126). E, ao mesmo tempo, esse jornalismo que surgia representava a consciência de massa e alterava os hábitos e valores daquela sociedade. Os escritores–jornalistas redigiam seus textos para poucos: 15 em cada 100 brasileiros eram letrados. O restante da população era analfabeto. Até então nenhum dos escritores vivia de letras, o salário que os sustentava era garantido por meio de outros ofícios. Não se concebia a atividade literária como profissão e o mercado de livros nacionais era incipiente (SEVCENKO, 2003). A literatura brasileira estava dividida em dois campos opostos. O primeiro grupo era de jornalistas que faziam parte da imprensa burguesa, aquela que representava o fazer jornalístico referente às normas legitimadas pelo campo jornalístico. E o segundo grupo - que fazia parte do outro jornalismo – encontrava-se inquieto e inconformado. Lutavam por uma mudança histórica e buscavam novas publicações de suas obras. Formavam uma espécie de “escritores-cidadãos”. Exerciam suas funções com os olhos postos nos centros de decisão e nos rumos da sociedade numa atitude perspicaz de “nacionalismo intelectual” (SEVCENKO, 2003, p. 134). Como escritores independentes, tentavam revalidar a literatura. Já os jornalistas estavam fascinados com o poder e o mérito que a opinião pública os trazia.

E OS REPÓRTERES DA CAROS AMIGOS

Caros... vem também incomodando a grande mídia com assuntos não abordados pelos tradicionais veículos de comunicação. Com a exceção dos bons salários e dos recursos para realização das pautas que tinha a revista Realidade -, pois fazia parte de uma grande empresa de comunicação, a Editora Abril -, esta revista consegue aproximar-se de seu objetivo editorial. A falta de recursos não intimida os jornalistas que trabalham na redação da revista. Portanto, podemos dizer que a Caros Amigos está entre o jornalismo produzido pela equipe de jornalistas que vieram da Realidade – pelo desejo e pela não-censura - e também influenciada pelos jornalistas-escritores do inicio do século XX - que tinham vínculo precário, mas interesses pessoais naqueles veículos. Os repórteres da Caros... fazem um jornalismo sem lide nem rabo preso, mas em contrapartida não são bem remunerados. Natália Viana (1997), repórter da revista, afirma: Só faço reportagens de ônibus, porque o motorista da redação vive ocupado. Não podemos fazer matérias fora de São Paulo, e como a verba é curta qualquer despesa extra precisa ser estudada. Os computadores são velhos, há poucas linhas telefônicas, a internet é lenta, o salário não é essas coisas. Mas para mim isso tudo é detalhe. Só prova que quem está aqui está por tesão. A primeira edição de Caros Amigos trazia a entrevista com Juca Kfouri. A tiragem inicial

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da revista - que foi idealizada em formato tablóide (33 x 27 cm), maior do que o tamanho convencional de outras revistas - foi de 50.000 exemplares, dos quais apenas 20.800 foram vendidos, assim conquistaram seus primeiros leitores6. O editor-chefe buscava o êxito numa publicação que tivesse compromisso e fosse leal ao seu leitor e à sociedade. Talvez motivos comerciais possam explicar a sua intenção - e do grupo que ficou -, após as mudanças ocorridas para o nascimento da Caros Amigos que está nas bancas há dezesseis anos. Souza não acreditava que o projeto proposto por Dines tivesse uma vida longa.

Caros Amigos, mesmo com sua imagem consolidada e prestígio por parte dos leitores conquistados, recebe pouquíssima publicidade e não sobreviveria se dependesse dela. A solução foi diversificar. O site tem alguns anúncios e uma loja virtual. A Editora Caros Amigos publica também um fascículo paradidático e livros que ajudam a manter a empreitada. O site promove a revista, que, por sua vez, promove o site. (KUCINSKI, 2007) Numa entrevista concedida a Verena Glass para a Carta Maior, Sérgio de Souza relatou que o maior desafio da revista é manter a distância apropriada do poder, seja ele político-partidário, seja econômico: [...] nosso papel é o papel reservado ao jornalismo numa sociedade democrática, qual seja: informar, de modo a não apenas manter as pessoas a par dos fatos que ocorrem no cotidiano das cidades e países, mas, principalmente, tratar de interpretar o significado dos fatos mais relevantes, o que acaba por promover a consciência do leitor, espectador ou ouvinte, de forma a olhar o seu meio e o mundo com mais acuidade, maior capacidade de julgamento. (SOUZA, 1997).

6- Os dados sobre a tiragem e vendagem inicial foram extraídos do Editorial da Caros Amigos (1997).

Caros Amigos também conta com a participação de muitos colaboradores – desde jornalistas experientes a estudantes de jornalismo -, para combater a falta de dinheiro que paira na redação. O secretário de redação, Thiago Domenici, relatou durante o Anticurso de Jornalismo Caros Amigos, por exemplo, que para viabilizar a reportagem “Quem é Renan Calheiros”, publicada em agosto de 2007, a equipe precisou – após uma decisão consensual numa reunião de pauta – abrir mão de salários e pró-labores no mês de julho do mesmo ano. Desta forma, o repórter João de Barros viajou para Alagoas – e lá permaneceu durante sete dias – com o intuito de cobrir o escândalo que envolveu o nome de Renan Calheiros. Mylton Severiano7 é colaborador da revista desde a sua primeira edição e nunca foi remunerado. O jornalista afirma que trabalhar com o que se gosta é uma diversão que ele leva a sério. Severiano classifica o jornalismo da revista Caros Amigos como independente: [...] a diferença, para usar uma terminologia do historiador Nelson Werneck Sodré, está em que a grande imprensa é ‘subsidiada’ e a imprensa independente não. Assim, a mídia gorda não pode desconsiderar muito seus subsidiadores, tais como bancos e outras empresas. (SILVA, 1998). Desta forma, a revista conta com pouquíssimos profissionais exclusivos. A maior parte da pequena equipe da revista tem um segundo trabalho. Além disso, Caros... tem colaboradores que não participam do cotidiano da redação. A interação se dá via internet. O jornalismo é a atividade que tem como objetivo transformar o acontecimento em notí-

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cia, reportagem, colunas entre tantas outras possibilidades. O mundo real é compreendido pelo profissional, que por sua vez, produz o jornalismo. Assim, percebemos que possui uma dimensão prática e comunicativa (narrativa). O lado prático representa a atividade racional, empresarial, temporal e perceptiva. E narrativa porque é social, ideológica e humana. E ambas são permeadas pelo profissional que vive, literalmente, os dois lados da notícia. Os jornalistas que atuam na Caros... vivenciam o prazer de escolher seu caminho narrativo – e suas pautas - e a amargura de não ganhar um “bom” salário. Mas mesmo assim, optam em continuar nessa vida profissional e, muitos deles, têm um segundo emprego como forma de complementar a renda salarial.

7- Após a morte de Sérgio de Souza, em março de 2008, Mylton Severiano que era colunista, assumiu a função de Editor-chefe da revista. Atualmente não faz mais parte da equipe da revista

O vínculo que existe entre a Editora Caros Amigos e seus funcionários nos faz relembrar a relação que existia entre os escritores e o jornalismo em seus primórdios. No início do século XX os escritores exerciam a profissão de jornalista nos veículos de comunicação, mas não tinham o jornalismo como ofício principal, tendo em vista que o sustento advinha de outro trabalho. Atualmente, os jornalistas que trabalham na Caros Amigos apreciam a possibilidade de trabalhar numa mídia que permite a liberdade na forma de fazer e escrever o jornalismo, apesar de não tê-lo como emprego principal. Para Renato Pompeu (1997), um dos editores especiais da revista, essa liberdade se sobrepõe às deficiências da revista. Existe na redação da revista um sentido de equipe que não pode ser desprezado, pois esse é o elemento chave para construção e compreensão da história da revista Caros Amigos. Ao analisar o trabalho em equipe no veículo revista, Scalzo (2006) afirma que a integração entre os jornalistas, os fotógrafos e o restante da equipe é primordial para que se obtenha um bom resultado final. Na redação da Caros... não existem editorias. As funções se misturam. Existe uma única regra a ser cumprida: obedecer à periodicidade. Também não existe horário a ser cumprido. Trabalha-se em clima de confiança naquilo que cada um está produzindo. Todos têm o compromisso de cumprir bem o seu papel para que tudo possa sair a contento, de modo que a revista chegue às bancas. Rompe-se de forma significativa com os padrões das redações convencionais e com as regras das rotinas produtivas – delimitados também pela concepção de campo jornalístico. Raramente acontece uma reunião de pauta, ocorre de fato quando é preciso tomar uma decisão. As matérias vão surgindo, os assuntos aparecem, os colaboradores escrevem, os artigos são produzidos e a entrevista é feita.8 Para a realização das entrevistas, cada repórter estuda sobre o entrevistado e faz sua pauta. No momento da entrevista, é como se estivessem numa mesa redonda9. Sérgio de Souza (apud PEREIRA FILHO, 2004, p. 119) e sua equipe concordam que “se não houver o mínimo de tranquilidade e prazer no que se faz, é melhor não fazer”. É no momento do fechamento que o grupo se reúne. Natália Viana (1997) vai além: “Tenho todo o prazo do mundo, posso aprofundar. O Sérgio me apóia em todas as pautas, temos o respaldo de uma revista conceituada e a edição é primorosa, sempre respeita nossas idéias e o nosso texto”. Pereira Filho (2004), ao analisar a estrutura da redação da revista Caros Amigos, critica a falta de normas. Ele acredita que essa é uma das lacunas e falhas da revista:

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Uma pedra no sapato que precisa ser melhor pensada e equacionada pela redação. [...] Planejamento, pesquisa e reunião de pauta são momentos fundamentais da atividade jornalística. Não se deve confundir organização e programação com burocracia, nem liberdade com bagunça. (PEREIRA FILHO, 2004, p. 121). Tais características fazem parte das rotinas produtivas do jornalismo, que de uma maneira geral, estão convencionadas dentro de parâmetros estruturais e organizacionais das empresas, que por sua vez praticam o fazer jornalístico reconhecido pelo campo. Segundo Mozahir Salomão (2004) as

8- Na Caros Amigos as entrevistas são feitas por vários repórteres. São, no mínimo, cinco jornalistas para que a entrevista seja como um grande batepapo. Na maioria das vezes a entrevista é realizada na redação da revista.

9- Em maio de 2009 a autora participou da entrevista realizada com o ator Wagner Moura. Foi uma oportunidade de estabelecer um contato empírico com o “método Caros Amigos” de entrevistar. A entrevista foi capa da edição de junho de 2009.

[...] rotinas produtivas devem significar, para o jornalista, acima de tudo, utilizar-se bem das práticas e técnicas regulares e indispensáveis ao seu trabalho cotidiano. Apuração, checagem e configuração de uma narrativa jornalística que tenham como orientação principal o compromisso com a informação correta e de qualidade. Desta forma, podemos afirmar que existem diferentes rotinas produtivas a serem utilizadas ou até criadas pelos distintos veículos de informação. Na redação da revista quem administra os prazos e intervém, caso haja necessidade, é a figura do secretário de redação, Thiago Domenici (1997), que relata: Sou eu que mantenho contato com os colaboradores, solto prazos, recebo pautas, distribuo, mantenho contato com o editor, Sérgio de Souza, produzo as entrevistas de capa, contato com entrevistados e entrevistadores, oriento os estagiários no que for preciso e dou suporte na redação. Tomo conta do e-mail da redação e sou a ponte com o mundo exterior. Se ligar lá na redação, provavelmente eu te atenderei. Sabe o famoso faz de tudo? Sou eu. Quando pinta tempo, como jornalista que sou, vou fazer minhas matérias. Cada veículo de comunicação pode criar diferentes rotinas para o funcionamento da redação e criação do seu produto, mas independente da estrutura o fazer jornalístico e a narrativa de suas reportagens podem ser analisados como um processo comunicacional tríade, que agrupa produção, circulação e recepção. Na Caros... esse processo é valorizado, pois extrapola os limites do campo jornalístico. Durante a elaboração das reportagens a função informativa daquela notícia não é colocada em primeiro plano, e sim a mescla da objetividade com a percepção do jornalista-autor. É daí que surge a narrativa da Caros Amigos, e é a partir da verificação das características do New Journalism e da autoria jornalística nas reportagens dessa revista que reconhecemos que os jornalistas da revista têm papel semelhante ao dos jornalistas-escritores do início do século XX. Eles pretendem contribuir com a informação e para a construção da cidadania em nossa sociedade, deixando de lado as técnicas do lide. Ao destacar a notícia, a reportagem pode dar vida à narrativa e causar o transbordamento do fazer jornalístico. O trabalho do jornalista é que fará a diferença na construção da reportagem, daí a preocupação com a apuração e o processo narrativo. Juntando as duas pontas, tanto do cenário quanto do fazer jornalístico, é possível afirmar que a reportagem pode ser entendida

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como algo que representa a busca por uma narração contextualizada. O compromisso do jornalista com seu leitor é de um olhar múltiplo na observação direta dos fatos - a partir de uma versão da realidade -, para que ele consiga formar sua própria opinião e atuar como sujeito. O jornalismo tem o dever – e pode fazê-lo – de publicar reportagens bem apuradas e desenvolvidas, para que cada indivíduo possa ter livre arbítrio na leitura dos fatos que são publicados pela imprensa. O texto são todos os sentidos da gente, e temos que exercitá-los para escrever bem. Um texto também tem cor, cheiro, tem forma [...] Quando o repórter está apurando uma matéria e sente o cheiro daquele lugar, esse cheiro tem que entrar na matéria. Além do fato seco, há sempre um entorno, que você percebe com os outros sentidos e tem de levar para a matéria. (NEDER apud VILLAS BOAS, 1996, p. 23). Ao comparar as narrativas de diferentes revistas, observa-se que o jornalismo de revista utiliza-se de distintas linguagens na construção de suas reportagens. “A revista se apropria de algumas formas literárias e assim faz um jornalismo que diagnostica, investiga e interpreta. O tempo é preponderante nessa abertura de portas para a criatividade e a elegância do texto” (VILLAS BOAS, 1996, p. 101). As convenções ajudam a dar legibilidade às mensagens. Elas fazem isso de modo que se “adequem” ao mundo social dos leitores, redatores, posto que as convenções de uma determinada sociedade ou época não são as mesmas das outras (SHUDSON, 1982). A Caros... permite o embaralhamento desses discursos em seu formato, a partir do momento em que acolhe jornalistas que têm diferentes formações, vivências e experiências. Os profissionais que nela atuam não recebem cartilhas nem precisam seguir uma gramática específica. Marcelo Salles10, correspondente no Rio de Janeiro, afirma que a Caros... “poderia ser definida como uma revista de interesse geral, essencialmente sobre política, que se pauta pela defesa da aplicação dos direitos básicos a todos os cidadãos”. No primeiro editorial já ficava clara essa escolha: Outros muitos talentos e inteligências, brasileiros e estrangeiros, irão desfilar nas páginas futuras de Caros Amigos - a lista é enorme e cada um, como nós, tem a absoluta certeza da existência de um largo contingente de leitores, mulheres e homens, jovens e maduros, ávidos por uma publicação que lide com idéias, que seja crítica, que leve à reflexão. E que traga tudo isso sem ser aborrecida, mas com bom humor; sem academicismo, mas com linguagem cotidiana; sem partidarismo, sem vanguardismo, sem voluntarismo, na verdade, sem nenhum “ismo”. (SOUZA, 1997, p. 3, grifo nosso). A revista Caros Amigos utiliza em suas reportagens elementos literários. Existe a valorização da narrativa jornalística que registra detalhes como gestos, hábitos, cenários, vestuários entre outros. Nela, parece-nos possível entender, que “o repórter humanizado não é mais sujeito da imparcialidade, ele depara-se com o seu próprio trabalho, encontra-se em seu próprio texto” (RESENDE, 2002, p.118). De alguma forma, Souza reconhece a influência que sofreu dos distintos veículos pelos quais passou. Trabalhou quase a vida inteira com os transbordamentos do campo jornalístico. E ainda manteve vivo esse fazer jornalístico enquanto esteve à frente da Caros..., compartilhando – e ensinando – inclusive para os jovens jornalistas que passaram pela

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10- Marcelo Salles concedeu a entrevista à autora em abril de 2007.

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revista durante esses 11 anos. Escreveu para compartilhar com seus leitores e com a sua equipe. Souza considera o lide dispensável e não acredita em regras para o jornalismo. Considera a Caros... uma revista contra-hegemônica, pois não segue os padrões do jornalismo feito pela grande mídia. Por outro lado, Caros... pode ser classificada como uma publicação institucional e não alternativa: pertence a uma editora registrada na Junta Comercial; tem seu título registrado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial; é membro da Associação Nacional dos Editores de Revistas; tem periodicidade e chega às bancas do país inteiro por intermédio da Distribuidora Nacional de Publicações, do grupo Abril; tem uma tabela de preços do espaço publicitário a ser comercializado em suas páginas; é produzida por profissionais tanto na área editorial quanto na comercial e administrativa, na sede que tem endereço físico; paga aluguel e contas de luz, água e telefone; mantém um site na internet; já foi premiada por várias entidades de reconhecida expressão no cenário nacional; consome toneladas de papel e de tinta gráfica mensalmente; circula nos meios que pensam o país - como a universidade, as escolas, as Câmaras Municipais e Assembleias Legislativas, os Executivos Municipais e Estaduais, o Judiciário, o Congresso Nacional e o Palácio do Planalto (GLASS, 2007 apud SOUZA, 2007). Souza (2007, grifo do autor) relembra sua intenção no momento em que criou a revista: [...] o meu propósito era criar uma publicação de interesse geral que se posicionasse contrariamente ao “pensamento único” que então transpirava de toda a grande imprensa do país, seguidora fiel do governo privatista de Fernando Henrique Cardoso. Havia outras propostas para a Caros Amigos, como a de uma revista “futurista”, que tratasse de um mundo novo oferecido pelo avanço galopante da tecnologia, ou uma revista para-literária. Ao final daquelas poucas reuniões acabou vingando a minha idéia de criar uma publicação mensal, de autor (...), [que] trouxesse reportagens, artigos, colunas, seções, humor, fotografia e uma grande entrevista que batizei de “explosiva”, para brincar com a clássica “exclusiva”, e que, aliás, se tornaria o prato forte de Caros Amigos. Todos os trabalhos publicados levariam assinatura, não seriam admitidos pseudônimos e os autores é que decidiriam que tema abordar, partindo de uma proposta simples: fale sobre algo que o esteja incomodando muito ou agradando muito. Somente as reportagens e a entrevista de capa eram decididas em reunião de pauta. Sendo assim, podemos considerar que a Caros Amigos se enquadra administrativamente nas regras utilizadas pelas empresas jornalísticas, mas o seu fazer jornalístico se dá a partir dos transbordamentos, o que a diferencia e a mantém distante dos veículos que compõem a grande mídia. Desta forma, a revista apresenta uma outra opção de jornalismo, especialmente no que diz respeito ao modelo narrativo de suas reportagens. Outro aspecto relevante é a relação da revista com o seu leitor. Ao que parece, ele define junto com a editoria e através de suas opiniões, críticas e sugestões, o caminho para que a revista continue produzindo. Uma pesquisa publicada pela revista em agosto de 2001 traça o perfil de seus leitores: 72% são homens com idade entre 20 e 49 anos; 91% têm nível superior completo, 19% pós-graduados. Este nível de escolaridade se reflete nas clas-

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ses econômicas A (17%), B (49%) e C (30%). Pouco mais da metade são solteiros (55%) e trabalham (67%). Grande parte dos leitores, 75% , têm acesso à internet; 22% recebem o Correio Caros Amigos semanalmente e 32% visitam o site com certa regularidade. A pesquisa analisou a forma como a revista é encarada pelos leitores: 89% consideram uma publicação “objetiva”, 87% a avaliam como “independente”, 86% como “verdadeira” e 79% como “indispensável”. Outro ponto a destacar é que 16% dos entrevistados declaram passar a revista para outras pessoas após a leitura, evidenciando a importância que ela tem, tanto do ponto de vista mercadológico, quanto institucional. Scalzo (2006) faz uma análise dessa relação entre o veículo revista e os leitores: Revista é também um encontro entre um editor e um leitor, um contato que se estabelece, um fio invisível que une um grupo de pessoas e, nesse sentido, ajuda a construir identidade, ou seja, cria identificações, dá sensação de pertencer a um determinado grupo. [...] Não é à toa que leitores gostam de andar abraçados às suas revistas – ou de andar com elas à mostra – para que todos vejam que eles pertencem a este ou àquele grupo. Por isso, não se pode nunca esquecer: quem define o que é uma revista, antes de tudo, é o seu leitor. (SCALZO, 2006, p. 112). Contudo, a receita da Caros Amigos vem das vendas em banca e da venda de assinaturas, mas é insuficiente para cobrir seus custos. A primeira tiragem da revista, em 1997, foi de 50 mil exemplares. Foram vendidos quase 21 mil. E assim permaneceu nos três primeiros meses. Em junho do mesmo ano as vendas caíram 10 mil exemplares, Essa situação perdurou até agosto de 1999, sendo que os números de venda, acrescido do das assinaturas - que começaram em junho de 98 – variavam entre 33 e 39 mil. A tiragem já havia diminuído desde junho de 1998. Em setembro de 1999, as vendas em banca começaram a melhorar – chegaram a 43 mil exemplares vendidos – e em seguida o número de assinaturas pulou de 4 para 7 mil em 2000. E as vendas se mantiveram nessa média até abril de 2004. Desde então, Caros... conta com a venda média de 25 mil exemplares na banca e 12 mil assinantes. Em 2003 a revista chegou a ter 18 mil assinantes. Souza revela que: 11- Souza concedeu a última entrevista à autora, na época mestranda, tendo como objeto de sua dissertação a Caros Amigos. Após o falecimento de Souza, a revista a convidou a publicála. Cf. Souza (2008b).

A maior barreira é a falta de capital e de mais anunciantes. [...] O verdadeiro patrocínio da Caros Amigos é a generosidade de todos que a fazem, colaboradores e o grupo fixo, inclusive vários estagiários que vêm passando por ela ao longo dos anos e continuam chegando, voluntários sempre e com os quais aprendemos muito também. Para ter idéia, só de três, de todos os colaboradores, recebem um valor a cada mês, o restante é de graça. E isso há anos, alguns desde a primeira ou segunda edição, como Frei Betto, Guto Lacaz, Ana Miranda e Mylton Severiano. Os estagiários a mesma coisa, e mais o grande número de jornalistas, fotógrafos e ilustradores de São Paulo e de outros lugares, ou profissionais de outras áreas que nos enviam trabalhos que querem ver publicados. Temos “correspondentes” (ponho entre aspas porque também são voluntários, o vínculo é afetivo) em Berlim, Paris, Buenos Aires, Angola, Brasília, Rio, com os quais podemos contar para eventuais pautas saídas daqui ou oferecidas por eles. E conforme a necessidade, tenho certeza de que podemos contar com alguém em muitíssimos lugares. No fundo, é esse ‘patrocínio’ todo o milagre “Caros Amigos”. (SOUZA, 1998, grifo do autor)11

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Na revista de janeiro de 2008 o editorial pergunta “feliz ano-novo?” E declara o caos financeiro em que a revista se encontra. E vivemos, a duras penas, conseguindo tocando o barco, à custa de empréstimos bancários e de amigos [...] A situação que temos vivido se estabeleceu por razões explicáveis: a receita de publicidade nas páginas de Caros Amigos não cobre os custos. É sabido que qualquer publicação jornalística periódica, seja de grandes ou pequenas editoras, garante seu sustento principalmente como dinheiro dos anúncios, além da venda em bancas e de assinaturas. É uma regra, às vezes ingrata. E que não temos conseguido o número mínimo de anúncios necessário para ir para frente, desenvolver os muitos planos que temos na gaveta. Fazemos essa colocação seguindo nosso princípio jornalístico aberto, sem peias e quase íntimo com o leitor. É preocupante o cenário que temos pela frente em 2008, mas continuaremos brigando, como temos feito até aqui. (SOUZA, 2008a).

Desde então, a revista vem sobrevivendo apesar das mudanças: de endereço, do tipo de papel utilizado na impressão entre outras economias, mas toda essa dificuldade não tem interferido no resultado de suas narrativas. Embora, cada vez mais, com a morte de Souza, a gente perceba em suas páginas o quanto os repórteres mudam a cada edição. Seria a insatisfação financeira acenando? O prestígio da Caros... estaria em queda?

Referências

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______. Revista Realidade – 1966-1968 –Tempo da reportagem na imprensa brasileira. Porto Alegre: Ulbra/AGE, 1999. FREIRE, Roberto. Meninos do recife. Revista Realidade. Ano II, n. 17, p. 24-34, ago. 1967. KUCINSKI, Bernardo. Comunicação o Desafio da esquerda. Revista do Brasil, São Paulo, n. 19, dez. 2007. Disponível em: <http://www.revistadobrasil.net/rdb19/midia.htm >. Acesso em: 03 fev. 2008. MORAES, Letícia Nunes de Góes. Leituras da revista Realidade (1966-1968). São Paulo: Alameda, 2007. PATARRA, Paulo. Hamilton Almeida Filho: um gênio diabólico nas palavras de Patarra - veio da rua. 24 abr. 2007. Disponível em: < http://www.abi.org.br/paginaindividual. asp?id=2162>. Acesso em: 22 jan. 2008. PEREIRA FILHO, Francisco Bicudo. Caros Amigos e o resgate da imprensa alternativa no Brasil. São Paulo: Annablume, 2004. PEREIRA JUNIOR, Dimas Sales. Realidade. In: ABREU, Alzira Alves de et. al. (Coord). Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro: Pós 1930. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: CPDOC/FGV, 2001.v. IV. p. 4910-4911. POMPEU, Renato. Entrevista concedida a autora [mensagem pessoal].Mensagem recebida por <lua.chagas@uol.com.br> em 08 dez. 1997. RESENDE, Fernando. Textuações: ficção e fato no novo jornalismo de Tom Wolfe. São Paulo: Anablume / FAPESP, 2002. SALOMÃO, Mozahir. Melhorar as rotinas no jornalismo. Observatório da Imprensa, São Paulo, edição 278, 25 maio 2004. Disponível em:< http://www.observatoriodaimprensa. com.br/artigos.asp?cod=278SAI003. Acesso em 13 set. 2009. SCALZO, Marília. Jornalismo de Revista. São Paulo: Contexto, 2006. SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. SHUDSON, Michael S. The politics of narrative form: the emergence of news conventions in print and television. Daedalus: Journal of the American Academy of Arts and Sciences, Cambridge, v. 111, n.4, p. 97-112, Fall, 1982.

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Dossiê Temático Direito à comunicação e diversidade

“As bi, as gay, as trava e as sapatão tá tudo preparada pra fazer revolução”. Esse é o refrão cantado em manifestação LGBTT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais), realizada no dia 22/07/2013. O vídeo da manifestação – realizada em plena Jornada Mundial da Juventude, no Rio de Janeiro – está postado e pode ser visto no youtube (https://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=DgWpgXTT5cY). De junho a agosto de 2013, em especial a juventude foi às ruas protestar: contra o aumento da passagem dos ônibus, contra o machismo, contra o capitalismo, contra a corrupção, contra os mega-eventos. Em grande parte, as manifestações foram organizadas e, depois, reportadas a partir da internet, das mídias sociais. “Vivemos na era da auto-expressão”, disse Rui Novaes (professor da Universidade do Minho), em palestra de abertura do 1º Colóquio Internacional de Jornalismo, realizado na UERJ, em 12/08/2013. Em sua exposição sobre a mídia impressa na contemporaneidade (não, a imprensa escrita não está para acabar, mostra a pesquisa apresentada), o pesquisador português destacou a importância da Madonna – que se reinventa, busca cantar para grupos e, mesmo com a novidade dos CDs, dowlouds, pirataria, continua no auge (a pop star completou 55 anos no dia 16/08/2013 - em 1984, foi “acusada” de incentivar o sexo antes do casamento...) – e a importância do Facebook – criticado, mas indispensável. A cantora Daniela Mercury, a Madonna brasileira (conforme definiu Camille Paglia), usou o instagram e disse “casei”. Inicialmente pelas mídias sociais, apresentou a jornalista Malu Verçosa como seu amor, sua mulher. Depois, em entrevista a veículos da chamada grande imprensa, afirmou considerar importante falar sobre seu amor por uma mulher, principalmente no momento que o País está vivendo. No Congresso Nacional, manifestantes ergueram cartazes: “Menos ódio, mais Daniela. Fora Feliciano”. Mulheres, lésbicas, gays, jovens, negras, negros, trabalhadoras e trabalhadores. As pessoas estão nas ruas e na mídia apresentando e debatendo suas demandas. Reivindicam respeito, mostram a diversidade, se expressam e buscam o exercício do direito à comunicação e a edição de políticas públicas mais inclusivas. Tratam de construir a democracia, a cidadania, o País. E a academia? Embora sua temporalidade seja outra, em sua função primeira - a de produzir conhecimentos que, ultrapassando a mera Revista Eptic Online Vol.15 n.3 p.58-60 set.-dez. 2013


Dossiê Temático: Direito ä Comunicação e Diversidade

mimetização da realidade, permita sua melhor compreensão e, desta forma, contribuam para a mudança social – várias são as vozes que, independentemente de convicções ou militâncias, têm revelado o quão multifacetado é este debate e o quanto alguns modelos de interpretação carecem de uma maior precisão. Precisão esta que não deve ser entendida como aplainamento das arestas e imposição de consensos epistemológicos pretensamente construídos, mas justamente pela maior atenção à diversidade, pelo respeito ao axioma de que dar voz aos diversos atores que constituem nosso tecido social é condição necessária para a edificação de uma ciência, e em particular de uma ciência da comunicação, cônscia de seu papel de agente transformador. Com o presente dossiê temático, a Revista EPTIC busca dar uma pequena contribuição – apresentando pesquisas e debatendo ideias- para o esforço coletivo de juntos construirmos um mundo melhor Abrimos o dossiê com uma entrevista com a pesquisadora Denise Cogo (Unisinos). Denise Cogo, que foi coordenadora do GP Comunicação para a Cidadania da Intercom e do GT Comunicação e Cidadania da Compós, destaca, nesta entrevista, a importância do direito à comunicação e do respeito à diversidade. Na sequência, apresentamos artigo de Catarina Farias de Oliveira (UFC), Denise Teresinha da Silva (Unipampa) e Sheila Rodrigues (Jornalismo da Terra – UFC). Nele, as autoras refletem sobre diferenças sociais e culturais, a partir de práticas da comunicação popular. São enfatizadas formas como estas experiências representam a diversidade cultural e social, aprofundando a reflexão sobre a temática de gênero. O artigo seguinte é de autoria de Maria Luiza Martins de Mendonça (UFG) e Janaína Vieira de Paula Jordão (UFG). As autoras mostram questionamentos sobre a desigualdade e hierarquias sociais no Brasil expostas por meio da cobertura midiática a respeito da equiparação dos direitos dos/as trabalhadores/as domésticos/as a outras categorias profissionais. Depois, o dossiê apresenta artigo de Ana Luiza Coiro Moraes (UFSM) e Jucineide T. da Silva Ferreira (UNIFRA). As autoras refletem sobre a visibilidade de negros e negras em um jornal impresso do Rio Grande do Sul, com estudo de sua coluna social, no período de 1960 a 2004. O debate sobre o termo diversidade, relações de gênero e lesbianidade, com reflexões sobre a presença das lésbicas na mídia e o Projeto de Lei de Iniciativa Popular da Comunicação Social Eletrônica é tema do próximo artigo de autoria de minha companheira Daniela Auad (UFJF) em parceria comigo. Na sequência, temos o artigo de Dulce Marcia Cruz (UFSC) e Elias Gilberto Filimone Djive (UFSC) que busca refletir sobre a comunidade virtual Instituto Mídia Étnica. O Instituto desenvolve um trabalho colaborativo usando o portal Correio Nagô, para a partilha dos conteúdos entre os membros, com comentários e propostas de solução. A seguir, José Márcio Barros (PUC-Minas e UFBA) e Fayga Rocha Moreira (UFBA) refletem, em artigo, sobre a comunicação e a participação nas metas do Plano Nacional de Cultura. Para debater sobre comunicação e cultura, entre outras questões, os autores lembram mudanças operadas nos últimos dez anos no Brasil, no que se refere ao modelo de construção

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de políticas públicas por meio da participação social. Decisões de Tribunais de Justiça do Rio de Janeiro, São Paulo, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Distrito Federal e do Supremo Tribunal Federal (STF) relativas a organizações da Marcha da Maconha e o direito à comunicação são refletidas, no próximo artigo apresentado, de autoria de Fernando Oliveira Paulino (UnB) e Jeronimo Calorio Pinto (UnB). Na sequência, temos o artigo de Saraí Schmidt (Universidade Feevale) e Pamela Stocker (UFRGS), que discute a pedagogia da mídia, buscando articular comunicação, juventude, gênero e sexualidade a partir da análise e discussão de peças publicitárias veiculadas na mídia impressa brasileira que evocam o universo masculino e feminino e do filme Desejo Proibido. Fechamos o dossiê (mas não o debate e a revista), com artigo de Vitor Souza Lima Blotta (USP), da área do Direito, que reflete sobre diversidade, liberdade de expressão e regulação da comunicação no Brasil. Esperamos, assim, contribuir com a pesquisa, o debate, a reflexão e ação, nas universidades, nas mídias e nas ruas em prol de uma sociedade mais igualitária e democrática. Boa leitura! Bom exercício do direito à comunicação! Boa e feliz diversidade! Cláudia Regina Lahni, coordenadora do Dossiê Temático desta edição da Revista da Eptic

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Entrevista “O direito de comunicar pertence aos indivíduos e aos grupos e comunidades que eles compõem.”

Denise Cogo Professora Titular do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos-RS e pesquisadora do CNPq é coordenadora do grupo de pesquisa Mídia, Cultura e Cidadania. Realizou pós-doutorado e atuou como professora visitante na Universidade Autônoma de Barcelona (2004-2008). É autora, dentre outras, das obras Diáspora latinoamericana: usos de mídias e cidadania das migrações transnacionais. Rio de Janeiro: Tríbia, 2012; e Mídia, migrações e interculturalidade. Rio de Janeiro/Brasília: E-Papers/CSEM, 2006.

Por Claudia R. Lahni

Denise Cogo foi a primeira coordenadora do Grupo de Pesquisa Comunicação para a Cidadania da Intercom (2001-2006) e do GT Comunicação e Cidadania da Compós (2011-2012). Com Maria Badet Souza, lançou, em 2013, o Guia das Migrações Transnacionais e Diversidade Cultural para Comunicadores – Migrantes no Brasil, volume 1 da Coleção de Guias de Diversidade Cultural para Comunicadores/ as (http://www.guiamigracoesdivcult.com/). Nesta entrevista, ela comenta a relação entre direito à comunicação, cidadania e diversidade. Cita que a cidadania comunicativa é pauta nos protestos que vêm ocorrendo no Brasil, neste ano. E ressalta que, na sociedade contemporânea, a visibilidade é importante mas não é o suficiente para o exercício da cidadania democrática

Revista Eptic Online Vol.15 n.3 p.61-68 set.-dez. 2013 Entrevista realizada em julho de 2013


“O direito de comunicar pertence aos indivíduos e aos grupos e comunidades que eles compõem” – Denise Cogo

Denise, de que forma entender a comunicação como um direito? Qual sua relação com o conceito de cidadania comunicativa, de Maria Cristina Mata? O direito de comunicar pertence aos indivíduos e aos grupos e comunidades que eles compõem. Podemos lembrar sobre como as bases desse direito foram enunciadas por Paulo Freire quando postula que o conhecimento é construído através das relações entre os seres humanos e o mundo para afirmar que a comunicação se define como a situação social em que as pessoas criam juntas e não apenas dão, transmitem ou impõem conhecimento. Na visão de Paulo Freire, a comunicação só se torna possível em um mundo de comunicação/ diálogo, pressupondo não apenas participação e reciprocidade, mas acima de tudo um processo de compartilhamento que nos coloca a preocupação com a igualdade de situações que deve pautar esse diálogo. Nessa perspectiva, Paulo Freire lança, ainda, os fundamentos da relação entre os universos da comunicação e da cultura. É enquanto ser de relação, de contatos, não apenas “no mundo”, mas “com o mundo” que o ser humano cria e recria a vida, fazendo cultura em comunicação com os outros. Por essa perspectiva de Paulo Freire, é possível dizer que a comunicação deve ser vivida por seres humanos como a sua vocação e em sua dimensão cultural e política. Nesse aspecto, as ideias de Paulo Freire contêm, ainda, uma sugestão ética ou humanitária sobre a responsabilidade de que seja assegurada uma distribuição global mais justa dos recursos necessários à comunicação, como é o caso do acesso aos recursos tecnológicos. Contudo, mais do que o conteúdo ou mensagem em si ou mesmo dos efeitos que se busca alcançar, essa perspectiva insere a ideia do processo como dimensão importante e que atribui um caráter político e também pedagógico a esse exercício do direito a comunicar, inclusive quando esse exercício envolve o uso das tecnologias e meios de comunicação.

Pesquisas acadêmicas sobre as mídias comunitárias e cidadãs vêm se ocupando em assinalar, nas últimas décadas, que a ocupação dos espaços institucionalizados dos meios de comunicação, como é o caso dos processos de regulamentação das rádios e TVs comunitárias na década de 1990 no Brasil, não corresponderam, necessariamente, à instauração de processos de participação ampla e democrática na produção, tomada de decisões e planejamento da comunicação. Mais recentemente, a maior autonomia possibilitada pela comunicação em rede e pela internet não tem excluído dificuldades no estabelecimento de processos coletivos mais participativos e democráticos de usos da tecnologia e formulação de projetos comunicacionais por indivíduos, grupos e movimentos sociais. As concepções de Paulo Freire estão presentes no pensamento de outros autores que contribuíram para conformar o campo conceitual da chamada comunicação alternativa, comunitária e cidadã na América Latina, como Mario Kaplún e Juan Diaz Bordenave, que, ao enfatizarem a dimensão da comunicação como processo, nos indagaram sobre os limites do esquema clássico “emissor-mensagem-receptor” como aquele que situa o emissor no início do processo comunicativo, como aquele que determina os conteúdos e as ideias a serem comunicadas; enquanto o destinatário estaria no final, como polo receptor de mensagens. Kaplún recorre a Bordenave para identificar três modelos educativos que

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servem como base para analisar os modelos comunicativos que podem ser encontrados em práticas de comunicação popular e comunitária. Um primeiro que põe ênfase nos conteúdos; um segundo, que enfatiza os efeitos; e um terceiro, que privilegia os processos. Nesse sentido, reconhece no modelo que privilegia o processo possibilidades de haver maior participação na comunicação na medida em que as posições de produtor e receptor se alternam e que ambos têm a mesma oportunidade não só de responder e reagir à mensagem recebida como também de gerar suas próprias mensagens. Outro desses teóricos é Jesus Martin-Barbero, quando postula o deslocamento da análise do consumo ou da leitura dos meios por parte dos receptores, para a análise dos processos de “empoderamento” ou do que poderíamos denominar igualmente de “políticas do sujeito” gestadas em experimentações com as tecnologias da comunicação. Ou seja, o exercício do direito à comunicação se efetivaria nessas experimentações, sem que estejam excluídas as desigualdades, assimetrias e hierarquias que podem se produzir no contexto dessas experimentações. Maria Cristina Mata é outra pesquisadora que, preocupada com a presença da mídia na vida social não apenas como lugar de interação entre produção e recepção, mas como “marca, modelo, matriz, racionalidade produtora e organizadora de sentido”, nos chama a atenção para a confiança que setores e movimentos sociais vêm depositando na capacidade dos meios de comunicação em configurar a realidade, e, nesse sentido, como essa confiança vem operando para a estruturação das práticas ou modalidades de manifestação e protesto desses movimentos. No marco dessa reflexão, podemos situar a noção de cidadania comunicativa proposta pela autora para assinalar as possibilidades de democratização do acesso e participação da sociedade na propriedade, gestão, produção e distribuição dos recursos comunicacionais. As tecnologias e meios de comunicação são espaços estratégicos para a expressão, mobilização e transformação sociocultural e política e nos quais a comunicação midiática não se restringe a conteúdos e efeitos, mas a processos comunicacionais, como uma dimensão tratada por Freire, Kaplún e Bordenave, que são possibilitados pelos usos dos recursos midiáticos por parte de diferentes setores sociais. Em certo sentido, essa pauta da cidadania comunicativa aparece nos protestos que vêm ocorrendo no Brasil nesse ano de 2013, seja na experimentação de processos de conformação de um campo comunicacional alternativo, através dos usos das mídias digitais pelos movimentos sociais, a qual comporta críticas à atuação criminalizadora não democrática da mídia comercial ou corporativa, seja na produção de processos próprios de participação na gestão na comunicação e produção de conteúdos , ou seja, ainda, na própria reinserção, na agenda social, da necessidade de democratização da comunicação no Brasil. No caso específico das migrações transnacionais, nosso tema de pesquisa nesses últimos anos, o exercício de uma cidadania comunicativa, pode ser observada através da criação, gestão e produção de espaços midiáticos próprios por parte dos migrantes, suas redes e organizações (jornais, boletins, programas de rádios, portais, blogs, sites de redes sociais, etc.) ou da utilização individual e coletiva de recursos comunicacionais como e-mail, listas de discussão, etc. Em uma de nossas últimas pesquisas, em que estudamos dez experiên-

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cias de produção midiática de migrantes latino-americanos nas cidades de Porto Alegre, São Paulo, Buenos Aires, Lisboa e Barcelona, pudemos observar que, com o uso das mídias, os migrantes vêm promovendo uma articulação identitária da diáspora latino-americana dispersa pelo mundo através do compartilhamento e valorização de elementos que compõem essa cultura. Vem, igualmente, conjugando esforços por constituir um campo discursivo contra-hegemônico de construção midiática das migrações transnacionais que não criminalize essas migrações e, por fim, usando as mídias em estratégias de mobilização no campo das políticas migratórias nacionais e supranacionais relacionadas às demandas por cidadania dos migrantes.

O conceito de diversidade, no Brasil, aparece associado a diferenças culturais e sexuais – entre outras –, o que por vezes reúne pessoas em vulnerabilidade social e aquelas com deficiências, podendo invisibilizar grupos (como as mulheres enquanto minoria social) e dificultar a implantação de políticas públicas efetivas. Como você avalia essa questão? Como pensar diversidade e seus significados quanto à comunicação? Aquilo que parece se tornar evidente no Brasil hoje, já há algumas décadas está relacionado ao que teóricos dos movimentos sociais como Alberto Melucci e Alain Touraine denominaram de reordenamentos dos movimentos a partir da necessidade de incorporação, em suas pautas, não mais apenas dos conflitos vinculados às questões econômicas e de classe, mas também de questões relacionadas às desigualdades sociais e culturais, como aquelas relativas às identidades étnicas, sexuais, ambientais, regionais, urbanas, etc. “Novos movimentos sociais” ou “movimentos culturais” são algumas terminologias que vêm sendo utilizadas para designar esses novos cenários de prática e ação coletiva dos movimentos sociais em que a cultura e a diversidade cultural assumem maior centralidade, ainda que frequentemente relacionadas a questão de classe. No caso da América Latina, Touraine lembra que a emergência de novos atores e demandas identitárias está relacionada à reflexão sobre como a modernidade se instaurou de um modo específico na América Latina fundada em uma tensão e ambiguidade permanentes entre um projeto elitista de racionalização da vida social e experiências culturais e processos de subjetivação. Mais recentemente, outro reordenamento – relacionado à emergência da chamada sociedade rede, conforme aparece definida por teóricos como Manuel Castells e Gustavo Cardoso, também vai ter incidência na trajetória dos movimentos sociais na medida em que as redes impactam o modo de organização das relações sociais contemporâneas, e as tecnologias, como a internet, assumem importância nas articulações dessas sociedades e na produção do que Castells define como experiência da autocomunicação de massa,

ou seja, do aumento significativo do potencial das audiências se encarregarem de suas práticas comunicativas. Essa autonomia está vinculada, ainda, à desestabilização de uma lógica hegemônica de transmissão das informações de forma massiva e generalizada, de um pequeno grupo produtor a um coletivo indiscriminado, para a possibilidade de produção de informação e estabelecimento de comunicação de uma forma mais descentralizada

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e distribuída para públicos segmentados. Na sociedade em rede, a convergência tecnológica e as possibilidades de experimentações com as tecnologias vêm propiciando modos de apropriação e usos sociais que se caracterizam, muitas vezes, por serem difusos, descentralizados, efêmeros e multidimensionais, escapando a lógicas organizativas mais tradicionais. Claro que se trata de interações sociocomunicacionais que não estão isentas de disputas, hierarquias e assimetrias, e que podem ser evidenciadas, inclusive, em muitas das modalidades de associativismo cidadão e em outras experiências e práticas de solidariedade em rede protagonizadas hoje pelos movimentos sociais. Embora seja necessário relativizar um certo otimismo de Castells sobre o potencial de autonomia dos usuários em relação às tecnologias, é perceptível que as chamadas minorias tem buscado se constituir como sujeitos comunicativos ocupando, constituindo e utilizando redes e meios de comunicação como gestores e produtores de fluxos comunicacionais. Nessa perspectiva, as lutas pelo reconhecimento da diferença por setores sociais, que podem ou não desembocar em políticas públicas, têm se desenrolado, cada vez mais, na instância simbólica dos discursos e da linguagem. Linguagem que pode ser entendida como matéria social que resulta da convivência e embates coletivos entre sujeitos situados sociohistoricamente. Meios de comunicação têm sido esses espaços simbólicos de construção, visibilidade e circulação de discursos, ideias e imagens em torno de múltiplas experiências de subjetividade vinculadas às minorias (mulheres, jovens, negros, indígenas, migrantes, etc.). E essas experiências não são fatos dados, mas vão ser constituídos e oferecidos à visibilidade pública a partir da ação e disputa dessas minorias por meio de linguagens e estéticas constituídas nos usos das tecnologias. Movimentos sociais vão articulando, assim, a questão do reconhecimento e da diferença com a questão da redistribuição dos recursos materiais, simbólicos e comunicacionais nas sociedades contemporâneas. No entanto, em tempos de intensificação da visibilidade ou de hipervisibilidade pública e midiática produzida pela sociedade em redes e pela própria intensificação da autocomunicação de massas, cabe resgatar o alerta de Stuart Hall quando aponta para os riscos impostos às culturas e às identidades pela lógica da visibilidade. No âmbito do chamado multiculturalismo comercial ou mercadológico, Hall já advertia sobre a insuficiência dos postulados que sugerem que o reconhecimento público da diferença ou da diversidade cultural através, por exemplo, da visibilidade midiática, assegurem a resolução (e dissolução) desses problemas no âmbito do consumo privado, sem qualquer necessidade de redistribuição do poder e dos recursos em sua dimensão coletiva. Ou seja, se a mídia é uma espaço fundamental de disputa simbólica nas sociedades contemporâneas, Hall nos alerta sobre os perigos da crença na suficiência desse espaço nas disputas e lutas por igualdade de direitos e cidadania também no âmbito das identidades e subjetividades.

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Como você vê a pesquisa sobre Direito à Comunicação e Diversidade? Citaria alguma?

No Brasil, embora as pesquisas nessa interface ainda sejam minoritárias, com o crescimento dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação nas últimas décadas, essa interface vai ganhando espaço nos últimos anos em algumas linhas de pesquisa que articulam as perspectivas da comunicação, cultura e cidadania, como é caso dos PPGs em Comunicação da Unisinos, UFC, UFG, só para citar alguns, ou mesmo pela atuação de pesquisadores em outras linhas de pesquisa capazes de abrigar essas temáticas. Também os GTs de Comunicação e a Cidadania da Intercom e Compós tem sido alguns dos espaços acadêmicos de presença e intercâmbio de pesquisas sobre as inter-relações entre comunicação e diversidade cultural a partir de experiências relacionadas às culturas juvenis, ao gênero, às migrações, ao envelhecimento, à infância, só pra citar algumas. Em muitas dessas pesquisas, tem sido possível perceber uma preocupação metodológica comum em produzir conhecimento científico que gere compreensão sobre as singularidades das experiências das minorias, num deslocamento dos metarrelatos ou de quadros explicativos generalistas em torno da diversidade cultural., Ou seja, os pesquisadores têm procurado não se aprisionar a esquemas impostos por uma cultura narrativa global ou totalizadora que busca organizar e explicar conhecimentos e experiências, e optado pela singularidade da produção de múltiplos relatos com base em aproximações empíricas com o cotidiano e as micropolíticas que se constituem a partir da presença ativa dessas minorias no espaço público e de suas práticas e ações organizadas ou não em movimentos sociais.

Caberia lembrar, ainda, que, essa aproximação entre comunicação e diversidade não tem excluído outros dois tipos de posicionamentos nos modos de captar e compreender a diversidade cultural pelo pensamento acadêmico no Brasil, seja no interior ou fora dos espaços citados anteriormente. Um primeiro posicionamento pode ser identificado em certas posturas ufanistas e de idealização do potencial criativo e performativo dos usos das tecnologias pelos movimentos das minorias, especialmente nas periferias brasileiras, sem uma preocupação em incorporar reflexões sobre seus conflitos e contradições. Um segundo posicionamento, podemos encontrar naqueles estudos que têm se pautado por reiterar a sobredeterminação das estruturas sociopolíticas e econômicas sobre os sujeitos, situando a dimensão da política e da economia quase que exclusivamente nas instituições e macroestruturas, desconsiderando os processos de resistência, desvios e subversões que podem derivar da intervenção e ação de sujeitos em diferentes espaços do cotidiano. Gostaria, por fim, de mencionar brevemente pelo menos três cenários de configuração da pesquisa em comunicação no Brasil que, a meu ver, têm colaborado para que permaneçam minoritárias as abordagens críticas sobre comunicação e diversidade cultural: a herança ensaística que temos na área e que não privilegia a pesquisa de caráter empírico; a suficiência teórica que vem sendo atribuída ao instrumental e ao tecnológico para a compreensão dos fenômenos e experiências sociais e que têm limitado o diálogo com o acervo constituído em outras ciências humanas e sociais onde podemos encontrar estudo desses fenômenos. E, por fim, as disputas simbólicas, políticas e financeiras (materializadas

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em poder e capital simbólico e financeiro na obtenção de recursos para a pesquisa, cargos de representação de área, etc.) em torno de territorialidades e fronteiras disciplinares que condicionam um tipo de delimitação do chamado campo da comunicação, e que buscam, via uma normatividade, reduzir também o diálogo com outras ciências humanas e sociais e confinar temáticas como a da diversidade cultural a áreas como antropologia e sociologia.

Determinados países, como Portugal, têm diferentes financiamentos diretos e indiretos do governo para jornais. Aqui, no Brasil, por sua vez, debate-se o encaminhamento das verbas publicitárias do governo, ainda muito concentradas. Essas e outras medidas podem proporcionar o pluralismo na comunicação? Penso que toda verba pública deveria ter distribuição e acesso o mais igualitário possível entre diferentes setores da sociedade, sem privilégio a alguns. Porém sempre é importante lembrar que a dependência de verbas publicitárias governamentais podem também gerar e tem gerado atrelamento entre empresas e setores governamentais, e também entre movimentos sociais e governo, podendo afetar a autonomia de ação desses movimentos frente a Estado e governos. Essa questão sempre esteve presente como perspectiva de debate da comunicação alternativa e comunitária nos anos 80 e 90 quando se discutia, por exemplo, a sustentabilidade financeira dos projetos de comunicação alternativa e popular ou quando se debateu a permissão de veiculação de publicidade na legislação que regulamentou as rádios comunitárias em 1998. Acho importante incluir nesse debate não apenas o acesso às verbas governamentais, mas o direito de acesso de pequenos anunciantes, como os comércios locais, por exemplo, a jornais, rádios e outras mídias, uma vez que o custo dessa publicidade tem tratado de excluir pequenos anunciantes. E, por fim, vejo como fundamental questionar o volume de recursos destinados à publicidade pelo governo federal, tendo em vista que sabemos que a aposta na publicidade é um modelo de matriz capitalista, adotado, com diferentes implicações, tanto na comunicação privada quanto pública, e que têm privilegiado grandes corporações nacionais e transnacionais. Não podemos deixar de refletir sobre a necessidade de um debate público sobre esse modelo em que se pautasse, por exemplo, a limitação de recursos da publicidade, especialmente a destinada à publicidade pelos setores governamentais, e seu direcionamento a investimentos em políticas sociais e públicas em áreas como educação, saúde, etc. O pluralismo na comunicação diz respeito a repensar o modelo de publicidade que adotamos, mas também estabelecer debates e alternativas sobre os modos de funcionamento e ampliação das possibilidades de participação da sociedade na propriedade, gestão, produção e distribuição dos recursos de comunicação.

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O Guia das Migrações Transnacionais e Diversidade Cultural para Comunicadores tem como objetivo “contribuir com o trabalho realizado por comunicadores e jornalistas na pauta e cobertura das migrações transnacionais no Brasil”. Isso por que existiria o que se aperfeiçoar quanto à formação (ensino de graduação e de pós) de comunicadores e comunicadoras, em prol do exercício do direito à comunicação e da diversidade?

O Guia surge do conjunto de evidências dos pesquisadores que produzimos a obra de que as migrações transnacionais não têm merecido, por parte da mídia, um tratamento que a posicione como uma questão de diversidade cultural e como uma questão humanitária. Não tivemos a intenção de ser unicamente prescritivos, mas de chamar a atenção para a importância do reconhecimento e debate do tema da diversidade cultural relacionado às migrações também no espaço da mídia, especialmente no momento em que se intensifica o fluxo de migrantes internacionais para o Brasil como consequência da crise global e da realização de obras dos chamados grande eventos no país como a Copa do Mundo e as Olimpíadas. Embora o Brasil seja um país constituído pelas migrações, esse reconhecimento da alteridade migratória como uma questão de cidadania ainda é precário. Tanto que a legislação, que trata das migrações no Brasil se chama Lei do Estrangeiro, é ainda a mesma da época da ditadura. Tem sido mais comum encontrar, na mídia, a migração tratada como fenômeno estatístico que busca evidenciar a presença quantitativa dos migrantes, da migração como mão de obra para suprir necessidades de infra-estrutura de alguns países ou, ainda, dos migrantes como geradores de problemas sociais, conflitos ou criminalidade. O próprio debate sobre a contratação de médicos estrangeiros pelo governo brasileiro, tanto no que se refere às posições favoráveis como contrárias, tem se pautado mais por visões corporativas, regulamentadoras, de controle, e muito pouco nas complexas questões de alteridade e interculturalidade que se impõem com a presença de culturas diferenciadas desses profissionais que vão se estabelecer no país. Pesquisas acadêmicas, em diferentes contextos nacionais, têm se ocupado, já há alguns anos, em refletir sobre a crescente presença de representações midiáticas criminalizadoras das migrações contemporâneas através da frequente associação dos migrantes a “problemas”, “ameaças” e “conflitos” ou, ainda, a “ilegalidade.” . Tais representações têm contribuído para fixar sentidos e compor um tipo de memória sobre as migrações transnacionais que não favorece o entendimento da alteridade migratória e nem colabora para as relações interculturais e processos de cidadania dessas migrações. Claro que não desconsideramos que esses modos de abordagem das migrações disputam hegemonia com outras narrativas que têm sido construídas, muitas vezes, pelos próprios migrantes, e que circulam em diferentes contextos. Narrativas que hoje são favorecidas, pelo próprio advento das mídias digitais como a internet e de suas características como a hipertextualidade, a multimidialidade e a interatividade, que permitem aos migrantes, suas redes e organizações produzirem fluxos comunicacionais. Essas narrativas têm colaborado também para organizar e dar visibilidade pública às lutas por direitos humanos e cidadania das migrações em âmbito local e global, conforme pudemos perceber em nossa última

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pesquisa já referida anteriormente. E entendo que é preciso aperfeiçoar a formação dos comunicadores, em nível de graduação e pós-graduação, para que estejam efetivamente preparados para lidarem com o tema da diversidade cultural e da interculturalidade. Precisamos apostar menos em uma formação de caráter instrumental para os jornalistas, por exemplo, e ampliar o espaço para uma formação, nos currículos e fora deles, fundamentada no pensamento, na reflexão e compreensão

do mundo, a qual pode ser feita via ciências humanas, mas sem desvinculação de práticas profissionais. Se pensarmos no próprio legado de Paulo Freire, seria produtivo, na perspectiva da diversidade cultural, pensarmos mais na formação de comunicadores do que jornalistas.

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VERSOS E REVERSOS NA REPRESENTAÇÃO DA DIVERSIDADE E DA DIFERENÇA NAS PRÁTICAS DE COMUNICAÇÃO POPULAR VERSOS Y REVERSOS EN LA REPRESENTACIÓN DE LA DIVERSIDAD Y LA DIFERENCIA EN LAS PRÁCTICAS DE COMUNICACIÓN POPULARES VERSES AND REVERSES IN REPRESENTATION OF DIVERSITY AND DIFFERENCE IN POPULAR COMMUNICATION PRACTICES

Catarina Farias de Oliveira Professora Doutora Adjunta M de Sociologia da Universidade Estadual do Ceará. UECE. Professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Ceará, UFC. Coordenadora do Grupo de Pesquisa: Mídia, Cultura e Política na UFC - Fortaleza/CE- Brasil Email:Catarinaoliveira30@gmail.com

Denise Teresinha da Silva Doutora em Ciências da Comunicação, professora adjunto III da Universidade Federal do Pampa – UNIPAMPA Campus São Borja, coordenadora da Especialização em Imagem, História e Memória das Missões: Educação para o Patrimônio e do Grupo de Pesquisa Fos, São Borja-RS - Brasil. Email: denisesilva@unipampa.edu.br

Sheila Rodrigues Graduanda do curso de Jornalismo da Terra, da Universidade Federal do Ceará (UFC)- Fortaleza/CE - Brasil.

Revista Eptic Online Vol.15 n.3 p.70-86 set.-dez. 2013 Autor convidado Publicado em 15/05/2013


Versos e Reversos na Representação da Diversidade... - Catarina F.Oliveira; Denise T.Silva; Sheila Rodrigues

RESUMO As práticas de comunicação popular permitem refletir tanto sobre temas inerentes às diferenças sociais e culturais quanto como o mercado as explora. Aqui, enfatizaremos a forma como estas experiências representam a diversidade cultural e social, aprofundando a temática de gênero e quais as estratégias são utilizadas pelos sujeitos para superar os limites na representação pela mídia massiva destas temáticas. Essa problemática é exemplificada através da análise de experiências empíricas sobre a programação das rádios comunitárias organizadas por movimentos sociais populares, bem como práticas de comunicação do movimento popular urbano e do Movimento Sem Terra.

PALAVRAS-CHAVE: diversidade, comunicação popular, gênero, cidadania

RESUMEN Prácticas de comunicación popular permiten reflejar tanto sobre temas inherentes a las diferencias sociales y culturales como a la forma en que funciona el mercado. En este sentido, subrayaremos en cómo estas experiencias representan la diversidad cultural y social, la profundización de las cuestiones de género y qué estrategias son utilizados por las personas para superar las limitaciones en la representación de estos temas por los medios de comunicación masivos. Este problema se ejemplifica con el análisis de experimentos empíricos relativos a la programación de la radio comunitaria organizada por los movimientos sociales populares y las prácticas de comunicación del movimiento popular urbano y el MST. PALABRAS CLAVE diversidad, comunicación popular, género, ciudadanía

ABSTRACT Popular communication practices allow reflecting on issues inherent to social and cultural differences as to how the market operates. In this regard, we emphasize how these experiences represent the cultural and social diversity, deepening gender issues and what strategies are used by people to overcome the limitations in the representation of these issues by the mass media. This problem is exemplified by the analysis of empirical experiments concerning the programming of community radio organized by popular social movements, and communication practices of the urban popular movement and the MST. KEYWORDS diversity, popular communication, gender, citizenship

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INTRODUÇÃO

A análise das propostas das práticas de comunicação populares, ao longo de nossas trajetórias como pesquisadoras, tem nos levado a refletir tanto sobre as diferenças como o mercado explora a segmentação cultural e social, difundida pelas empresas de comunicação privadas e comerciais quanto à forma como as experiências de comunicação populares representam a diversidade cultural, bem como a temática de gênero e diversidades sexuais. Sobre estas últimas práticas comunicacionais, perguntamos, principalmente, quais os limites das experiências de comunicação popular vivenciadas por movimentos sociais populares para enfrentar essa diversidade, seja social, cultural, de gênero, de sexo e, como podem superar limites na representação destas temáticas. Essa problemática surgiu à medida que investigamos a programação das rádios comunitárias organizadas por movimentos sociais populares entre 1998 e 2002 em Fortaleza, bem como práticas de comunicação mais contemporâneas atuantes entre 2006 e 2013 no âmbito do movimento popular urbano e do Movimento Sem Terra. Discutiremos a priori uma diferença significativa percebida entre o modo como as emissoras comunitárias apresentavam a pluralidade cultural e social encontrada na sociedade e o modo como o mercado comercial de bens simbólicos difunde a variedade cultural mercadológica segmentada que, supostamente, reflete a diversidade da cultura na sociedade moderna nesse início de século. O aporte destas reflexões é fundante para as considerações que teceremos teórica e empiricamente sobre as distinções e os limites de como as práticas de comunicação popular têm difundido e representado a pluralidade cultural e as temáticas de gênero e da diversidade sexual. O artigo tem uma abordagem teórica e ancora-se em pesquisas de campo realizadas por nós ao longo de nossas trajetórias como pesquisadoras das práticas de comunicação popular, da comunicação e dos movimentos sociais, analisando a constituição de suas práticas comunicacionais.

MERCADO DE BENS SIMBÓLICOS E DIVERSIDADE CULTURAL

Nossas reflexões se iniciam quando paramos para pensar o que o processo de segmentação de mercado fez com as mobilizações sociais e culturais que surgiram nos últimos anos na sociedade. Estamos falando do movimento feminista, das manifestações juvenis e dos movimentos negros, ecológicos, de homossexuais, dentre outros. Acreditamos que seja importante perceber em que proporções a explicitação desses segmentos foi apropriada pela propaganda e pela programação dos meios de comunicação impressos e audiovisuais. Segundo o pensamento de Raymond Williams (1969), analiticamente é difícil conceber uma sociedade em termos de massa e nesse mesmo caminho Ortiz (1997) deixa claro que é importante explicitar e rever a trajetória do conceito de cultura de massa na sociedade, destacando sua historicidade ligada à constituição da ideologia burguesa e à formação de uma cultura de mercado. A partir dessas reflexões é possível afirmar que a noção de

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segmentação de mercado foi construída em torno da reflexão sobre sociedade de massa e sempre procurou desestruturar a percepção de uma sociedade com suas culturas diversas ligadas a grupos e indivíduos que pudessem propiciar qualquer indício de organização ou mobilização. A opção por essa construção social está sem dúvida associada à lógica de mercado que concebe a cultura como mercadoria e norteia essa visão dentro de propósitos políticos. Esta evidência fica demonstrada na medida em que se acompanha a emergência do mercado cultural na sociedade moderna. Ortiz (1997) salienta que no momento da estruturação do Estado Moderno surgiu o problema da promoção da integração dos diferentes grupos na esfera social e cultural. A princípio construíram essa integração através das igrejas, mas, segundo Ortiz (1997, p. 105), “[...] apesar de suas intenções universalistas, objetivamente era impossível que elas envolvessem uma grande parcela da população. Sua abrangência era contida pela segmentação das sociedades agrárias que eram estamentais e organizadas através de vasos não-comunicantes.” De acordo com este autor, a “cultura de massa” além de desfrutar de novas condições sociais, concretiza-se em novas condições tecnológicas de produção e difusão da cultura. Tudo isso estará associado à formação das nações que enquanto entidades históricas também projetam a integração na sociedade moderna. Nesse sentido, Ortiz (1997) afirma ainda que massa e nação são integrantes de um mesmo projeto social e político. Dentro dessa realidade, nos Estados Unidos a publicidade surge então com a necessidade de promover a integração social, concretizando assim a nacionalização. É nesse contexto que surge o primeiro empenho de uma cultura mercadológica. No entanto, a realidade que hoje cerca a sociedade apresenta algumas mudanças. Não é mais o mesmo ideal político nacional que rege o mercado cultural. O processo de organização social feminino, por exemplo, mudou muito desde os anos 30. Passou de uma inserção doméstica da mulher para sua inserção intensa no mercado de trabalho, bem como para as mobilizações feministas, inclusive em termos mundiais. O contexto encontrado pelos jovens vivenciou a entrada desses segmentos no mercado de trabalho e sua visibilidade em termos de manifestações culturais também a nível mundial (punks, darks, roqueiros, os adeptos do rap, regueiros etc.) (HOBSBAWN, 1995). Novamente o mercado cultural viu-se cercado pela explicitação de desigualdades e diversidades culturais que não podiam ser camufladas por um ideário nacionalista, nem tão pouco se pode dizer que os processos de mundialização e de globalização correspondem ao fim da diversidade. É, portanto, em meio a essas mudanças no processo de mundialização da cultura que se modificam as noções de segmentação de mercado, adotando uma inserção dos segmentos culturais na programação e elaboração dos meios de comunicação. Acompanhando esse movimento a humanidade presenciou o surgimento de um mercado segmentado de revistas e programas de rádio e de TV que aparecem desde os anos 60, mas são explicitados principalmente na década de 80 com aperfeiçoamentos constantes (MIRA, 1997). Surgem revistas voltadas para o automobilismo, para os segmentos feminino, jovem e étnico. A programação do rádio e da TV também é segmentada para o público jovem, infantil e feminino, ocorrendo atualmente um aprimoramento dessa segmentação com a utilização da TV a cabo. Entretanto, nesse universo fica explicitada essencialmente a diferenciação de faixa etária, gênero e capital cultural. Nesse sentido, percebermos que a problemática da diversidade é direcionada para os objetivos de consumo, embora priorize as transformações culturais vivenciadas, permanece regida pela lógica que incentiva a

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vivência cultural em condições individuais e mercadológicas. A integração possível é a da comunidade de consumidores integrada através dos meios. (SARLO, 1997). Não era e não será, no entanto, a segmentação de mercado que tornará possível essa proposta. Nesta segmentação a relação com a diversidade cultural é restrita ao projeto político de uma globalização excludente que se apropria apenas de eixos restritos e esvaziados do processo de diferenciação cultural que emerge na sociedade moderna.

OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO E A CONSTRUÇÃO DO FEMININO

Desde o século XVIII, os corpos e a sexualidade se definem e se regulam pela lógica da diferença metafísica – ser homem ou ser mulher remete à ordem divina e natural. Essa prescrição é sancionada por um método, o pensamento cartesiano, o racionalismo. Kemy Oyarzun (1997) escreve que as culturas pré-modernas mais diversas distinguiam o masculino do feminino dentro de uma ampla categoria de distinções: yang/ying, alma/corpo, espírito/matéria, sagrado/profano. Já no início da Modernidade, a ciência sexual operava estritamente dentro das coordenadas victorianas frente ao tabu da homossexualidade e ao prazer sexual sem objetivar a procriação. À exceção dos valores sexuais, o Renascimento implicou uma flexibilização de muitos outros valores. Os gêneros se formam e se transformam ao longo da história da humanidade e são socialmente produzidos, portanto transcorrem das circunstâncias. Mulheres e homens produzem-se de diferentes maneiras, são ao mesmo tempo sujeitos de distintas classes, raças, sexualidades, etnias, nacionalidades, religiões. Portanto, de acordo com Louro (1998), deve haver muitas formas de ser feminina ou masculino. O que significa hoje formas normais de gênero ou de sexualidade, nem sempre foi concebido assim. Segundo ela, é um arranjo circunstancial e passível de ser alterado. As mudanças no pensamento da humanidade começam a acontecer, devido, em grande parte, ao aparecimento de movimentos organizados de luta contra a exclusão e o preconceito. Com novos pensamentos, a mulher começa a se organizar. O feminismo é um movimento que milita pela melhoria e extensão do papel e dos direitos da mulher na sociedade, e tem seu auge entre as décadas de 60 e 70. O crescimento do movimento feminista traduziu a importância do pensamento sobre o papel do gênero e a produção da desigualdade e das relações hierárquicas na sociedade capitalista, uma vez que o mundo está feito de acordo com os interesses e as formas masculinas de pensamento. Nos escritos feministas e nas práticas culturais destas décadas “[...] encontrava-se no centro da crítica da representação, da releitura de imagens e narrativas culturais, do questionamento de teorias de subjetividade e textualidade, de leitura, escrita e audiência” (LAURETIS, 1994, p. 206). Mas, afirma Lauretis (1994), que essa forma de ler o gênero, contrapondo-o com o sexo, acabou se tornando uma limitação para o pensamento feminista. A autora afirma que isso precisa ser desfeito e desconstruído. Por isso, ela faz uma sobreposição da teoria foucaultiana, que vê a sexualidade como uma tecnologia sexual, para propor uma tecnologia do gênero, que, visto como representação e autorrepresentação “[...] é produto de diferentes tecnologias sociais, como o cinema, por exemplo, e de discursos, epistemologias

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e práticas críticas institucionalizadas, bem como das práticas da vida cotidiana” (LAURETIS, 1994, p. 208). O debate sobre identidades, práticas sexuais e relações de gênero passou a ser mais intenso no século XX. Os principais motivos seriam a descoberta da pílula anticoncepcional, as novas tecnologias reprodutivas, as manifestações feministas e homossexuais. Surge uma nova linguagem em meio à revolução sexual, nomeando novas identidades sexuais e de gênero. O movimento moderno das mulheres, a partir do fim da década de 1950, envolveu a análise de como e por que a cultura popular e os meios de comunicação de massa trataram as questões das mulheres e suas representações de maneira incorreta, injusta e exploradora, no contexto de uma estrutura mais geral de desigualdade e opressão de gênero. (TRINATSI, 1999, p. 176).

Pode-se dizer que este século foi o mais marcante para a mulher durante toda a história da humanidade. Até o início deste século, o sexo feminino era visto sempre em função do masculino. Enquanto os meninos aprendiam a dar ordens, as meninas eram educadas para obedecê-las a fim de se tornarem boas mães, esposas dedicadas e excepcionais donas de casa. Mas, várias foram as mudanças no significado de ser mulher. Subjugadas pela cultura patriarcal, enfrentaram família e sociedade e saíram de casa para mostrarem que são tão capazes quanto os homens ao ocuparem os mesmos postos de trabalho. Neste sentido, muitos empecilhos surgiram, como a jornada dupla e a não equiparação salarial. Em toda a história da humanidade, a educação da mulher sempre foi crivada de ideologias a respeito da existência do seu (suposto) lugar apropriado na sociedade e sobre o seu (suposto) papel social e econômico. A mudança nesta concepção da capacidade intelectual e do papel adequado para as mulheres está estreitamente ligada aos movimentos feministas e sua preocupação com a educação feminina. Além das conquistas desses movimentos, o deslocamento da concentração do religioso para o social ampliou o acesso feminino à educação. Inicialmente, a educação formal em todo o mundo só estava disponível para as meninas das classes mais elevadas, que estudavam em conventos, internatos e em um pequeno número em escolas particulares. O fator essencial para a melhoria na qualidade da educação estava relacionado ao crescimento das profissões ditas femininas. Na América Latina, foram os movimentos políticos e sociais que influenciaram o crescimento da educação formal feminina. Em muitos países africanos o acesso às escolas pelas mulheres só aconteceu no final do século XX, enquanto que naqueles influenciados pela ideologia socialista costumava ser bastante avançado. O nível educacional foi de importância fundamental para que as mulheres desenvolvessem conhecimentos e habilidades que lhes permitiram questionar antigas normas culturais e morais, além de ampliar o seu papel dentro da sociedade. Até princípios deste século, para que seus dotes fossem mais valorizados, as meninas tinham aulas particulares de música, idiomas e prendas domésticas. Dessa forma, conseguiam um bom casamento, ambição máxima (autorizada) para o sexo feminino. Devido às grandes revoluções e principalmente às guerras que levavam os homens, a mulher se obrigou a sair da casa e exercer tarefas consideradas tipicamente

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masculinas. Hoje em dia, embora ainda com muitos dos antigos problemas, escutamos constantemente a mídia anunciar nomes de mulheres que exercem pela primeira vez cargos e funções antes só ocupadas por homens. Cabe acrescentar que antes disso, a Revolução Francesa havia alicerçado sua luta com base na bandeira de liberdade, igualdade e fraternidade. Essa doutrina aboliu os fundamentos de outras teorias sociais que se baseavam na subordinação de uma pessoa sobre outra. Para que as relações entre os homens fossem consideradas legítimas era preciso haver um contrato, uma vez que todos os indivíduos nascem livres e iguais, somente uma aceitação por parte de ambos os contratantes indicaria uma relação de subordinação, com base nas aptidões pessoais e condições sociais. Mas esse liberalismo dizia respeito somente às relações entre homens, as mulheres já nascem dentro da sujeição, ou seja, não têm as aptidões necessárias que a permitiriam participar de um contrato, por isso são naturalmente seres subordinados. Carole Pateman (1993) revela que os teóricos do contrato social não mencionam o contrato sexual que estabelece o patriarcado moderno e a dominação dos homens sobre as mulheres, porque os indivíduos que fazem parte do contrato original são homens brancos e isso não os interessa. Dessa forma, ele sempre dá margem às relações de dominação e subordinação e não de liberdade, igualdade e fraternidade. A sujeição das mulheres aos homens é assegurada por meio de um contrato, não imposto, mas de casamento, que garante o direito político patriarcal masculino. Este é o pensamento de Hobbes, conforme Pateman (1993), para explicar a subordinação feminina. Ele está baseado no direito que um indivíduo tem ao conquistar um outro em seu estado natural, assim, o conquistador terá adquirido um servo e essa aliança entre eles em relação às demais pessoas é vista como a de uma família. Logo, se a mulher é conquistada por um homem, ela se torna serva dele, e o seu senhor tem direito sobre os seus filhos e a tudo que ela possui. Hobbes apud Pateman (1993) afirma que na sociedade civil o marido é quem detém o domínio sobre sua família porque não existe registro de alguma cidade que tenha sido erigida por mães e sim por pais, por isso cabe a eles e não a elas governar a família através de um contrato de casamento realizado de acordo com as leis civis. Portanto, para a autora, os homens fizeram o pacto original e com isso garantiram a manutenção do direito político patriarcal. Pateman (1993) elabora uma explicação a respeito da suposição geral de Hobbes sobre os indivíduos, a qual aponta o motivo pelo qual os homens teriam sido capazes de conquistar as mulheres em seu estado natural: nas relações sexuais, a princípio, uma mulher consegue garantir que sejam consensuais, mas quando ela se torna mãe e necessita criar seu filho, fica com uma pequena desvantagem em relação ao homem, já que agora tem alguém para defender. Assim, o homem consegue derrotar uma mulher que inicialmente era uma igual e, assim, adquire uma família, com base na lei da conquista. Neste sentido, lembramos o questionamento da autora sobre qual seriam os motivos que levariam alguém a participar de um contrato como este, sendo os filhos uma chance para que o inimigo ganhasse a guerra. Ela percebe, portanto, que “[...] todas as histórias sobre as origens do contrato social e da sociedade civil são absurdas porque os indivíduos em estado

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natural seriam a última geração.” (PATEMAN, 1993, p. 79). Existe quem afirme que inicialmente existia uma sociedade matriarcal, onde o valor maternal do feminino prevalecia, como nas culturas arcaicas dos primórdios da humanidade. Monika Von Koss (2000) argumenta, com base em estudos antropológicos, que o estabelecimento de regras comportamentais entre as relações de homens e mulheres, na formação dos primeiros agrupamentos humanos, partiu das mulheres, para garantir segurança e sustento de sua prole. No entanto, Simone de Beauvoir diz que essa idade de

ouro da mulher não passa de um mito. Dizer que a mulher era o Outro equivale a dizer que não existia entre os sexos uma relação de reciprocidade: Terra, Mãe, Deusa, não era ela para o homem um semelhante; era além do reino humano que seu domínio se afirmava: estava portanto fora desse reino. A sociedade sempre foi masculina; o poder político sempre esteve nas mãos dos homens. [...] As mulheres nunca, portanto, constituíram um grupo separado que se pudesse para si em face do grupo masculino; nunca tiveram uma relação direta e autônoma com os homens. (BEAUVOIR, 2000, p. 91, grifo do autor). A análise das representações culturais é considerada como uma área de superposição entre os estudos da mulher e os estudos culturais. Isto porque ambos se interessam pela cultura popular e pela representação das identidades étnica, sexual, de classe, de nacionalidade. Porém, também há uma diferenciação, sobretudo, no que se refere às dimensões culturais de desigualdade de gênero e de poder patriarcal. Grandi (1995) diz que dentro desta área de representações culturais populares se pode separar as investigações dirigidas ao estudo da representação televisiva das mulheres e do consumo feminino da televisão. Em meio a essa relação de superposição e diferenciação, o autor diz que nos estudos culturais se toma consciência que os estudos precedentes se realizaram em função de necessidades ideológicas, sociais e políticas baseadas em relações de poder e que, além disso, é possível recuperar a ideia de que homens, mulheres ou subgrupos mistos podem interpretar as coisas de maneira diferente em relação com sua posição específica na sociedade. Os estudos culturais feministas se inter-relacionam com os estudos dos meios de comunicação e do cinema, bem como com a sociologia, a literatura, a história, os debates marxistas, feministas e pós-modernistas. A teoria feminista está intimamente ligada à teoria marxista. No final dos anos 70, segundo McRobbie (1998), o materialismo feminista recorria ao vocabulário neomarxista para explicar como as relações de classes e suas lutas coexistiam com as relações patriarcais, sem que as últimas dissolvessem as anteriores. Ao estudar a história e cultura das mulheres trabalhadoras, a autora aponta uma forte dualidade. Elas eram consideradas uma classe ativa e sujeitos sexuais, dessa forma, eram duplamente subordinadas pela classe e pelo sexo. No entanto, ela diz que essas mulheres apresentavam uma capacidade de resistência para enfrentar as forças de dominação mediante redes de apoio e informação. Hall (1999) escreve que muitos autores inferem na modernidade tardia, a identidade do sujeito moderno foi deslocada através de uma série de rupturas nos discursos do conhecimento moderno, ocasionando a descentralização do sujeito cartesiano. O impacto do fe-

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minismo, como crítica teórica e movimento social, foi um dos principais avanços na teoria social e nas ciências humanas que contribuíram com essa ruptura de pensamento. O autor diz que o feminismo faz parte dos novos movimentos sociais surgidos na década de 70 que apelavam para a identidade social de seus sustentadores, como o feminismo para as mulheres, a política sexual aos gays e lésbicas, as lutas raciais aos negros, os movimentos antibelistas aos pacifistas, nascendo, dessa forma, a política de identidade, ou seja, cada movimento tem sua identidade particular. Mas, afirma Hall (1999), o feminismo teve uma relação mais direta com o descentramento conceitual do sujeito cartesiano e sociológico. Lipovetsky (1999) diz que vivemos em um momento no qual as representações femininas clássicas, dominadas pela função poética, têm cedido lugar às imagens destinadas a estimular o consumo e não mais o prazer estético. Substituiu-se a beleza desinteressada da Vênus por uma beleza pragmática. A publicidade tem um papel decisivo como instrumento de comunicação social. Maria José de Los Ríos Porraz e Joaquina Martínez Rodríguez (1997) dizem que ela é capaz de configurar modelos coletivos de valores e comportamentos, oferecendo ao público, não só produtos, mas também modelos de atitudes, formas de vida e imagens paradigmáticas que orientam e, em muitos casos, definem as necessidades e os desejos dos consumidores. Frequentemente prevalece a consideração da mulher como objeto do que como pessoa, utilizando imagens de seu corpo para vender qualquer tipo de produto. Ela ainda é a dona de casa, porém mais moderna, sendo ajudada pelas máquinas e, às vezes, pelo marido. Existem homens que moram sozinhos e lavam suas roupas, mas as propagandas de sabão em pó, sempre utilizam uma mãe extremamente preocupada com as roupas do filho e uma esposa dedicada e cuidadosa na limpeza da casa e das roupas do marido. Frente a este mercado, a publicidade soube se adaptar às mudanças culturais que atravessaram a história e ao comportamento dos indivíduos frente ao consumo. Para Lipovetsky (1999), hoje o sujeito procura realizar o seu próprio ego, junto ao código do Novo e dos valores hedonistas. Por isso, é necessário esquecer os estereótipos e investir na fantasia e originalidade, esquecer de descrever com objetividade a função dos produtos e fazer rir, sentir, provocando experiências estéticas, existenciais, emocionais. O autor escreve sobre uma característica muito importante da publicidade: vetor estratégico de redefinição do modo de vida centrado no consumo e no lazer. Ela contribui para despertar os desejos, acelerando-os e deslocando-os, numa cultura hedonista baseado no princípio da individualidade. Ela desculpabiliza o fenômeno do consumo. Os padrões de beleza, feminilidade, masculinidade, a relação com o corpo adquirem significações próprias orientando a produção das aparências, a personalização e a sedução. A publicidade de moda parece estar imbuída no conceito de que tudo é possível, avessa às preocupações de mercado, desconstruindo inclusive noções arraigadas da área, como mostrar objetivamente a que se destina o produto. Entretanto, neste jogo da permissividade, continuam trabalhando ludicamente matrizes das distinções de gênero. O valor social consagrado pela tradição, imposto à humanidade e transmitido durante gerações sobre o papel feminino na sociedade, ainda tem um peso muito grande nas

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relações sociais. Durante muitos anos, as mulheres viveram sob normas de conduta reguladas pela cultura, sofrendo com preconceitos que lhe negavam os direitos à liberdade e igualdades de ações e pensamentos. O sexismo permitiu a perpetuação de uma imagem simplista da superioridade masculina, rechaçando que uma mulher não pode vencer política ou profissionalmente devido às suas características naturais e estruturas frágeis. Dessa forma, nota-se que não existem fatos concretos que determinem a inferioridade feminina, a não ser o papel cultural imposto por seu sexo. As questões como pertencimento identitário, cultura, família e gênero contribuem na construção de uma pluralidade de sentidos inerentes às interações cotidianas dos sujeitos da comunicação. Entretanto, cabe acrescentar que essas mediações muitas vezes permitem a conservação dos valores patriarcais, encontrando na instância midiática uma forte aliada para a propagação de suas ideias ao criar imagens fixas sobre os padrões de comportamentos esperados pela sociedade que servem como modelos de referência. Nessa conjuntura, percebe-se o porquê de instituições fundamentalistas insistirem na conservação do patriarcalismo. Sua estrutura está nas raízes que alicerçam a sociedade e o seu fim significaria mudanças no processo cultural que perpassam as questões religiosas, políticas, econômicas, sociais e pessoais no que se refere à configuração das identidades. Essa transformação atravessa a essência da constituição humana enquanto ser social. Notamos que, se os movimentos sociais citados acima propuseram uma transformação na rediscussão da representação feminina, o mesmo não acontece com o mercado de bens simbólicos, que apenas adota um formato para acompanhar “modernamente” esse tema.

A DIVERSIDADE E A DIFERENÇA NAS PRÁTICAS DA COMUNICAÇÃO POPULAR

A experiência das rádios comunitárias, organizadas por movimentos sociais e culturais populares entre o final da década de noventa e os primeiros cinco anos do século XXI, nos possibilitou a percepção de uma proposta para um marketing sociocultural e educativo com seus limites e ampliações em relação à proposta hegemônica do mercado de bens simbólicos. Esses limites eram também evidentes no tratamento dado a questão de gênero e mais ainda em relação à diversidade sexual.

1- A intensidade das mobilizações em torno de cada um desses gêneros varia. Essa variabilidade é flexível de acordo com o nível de organização social em que cada um se encontra na sociedade. O movimento hip hop apresenta no caso o maior ponto de articulação em torno de temáticas sociais

No caso das emissoras comunitárias, emergentes entre 1998 e 2002, tornava-se visível, através de sua programação, a vivência cultural de seus comunicadores receptores, principalmente nos programas de rap, capoeira e reggae. Nestas rádios, tomava-se uma ou duas horas para cada um desses ritmos. Eram difundidas músicas e informações sobre festas e mobilizações promovidas por grupos que viviam no seu cotidiano manifestações culturais e sociais a partir destes ritmos.1 No Entanto, não era simplesmente o espaço mais prolongado dos programas que diferenciava a segmentação de mercado e o modo como esta elege a forma de trabalhar com a diversidade cultural da maneira como as emissoras comunitárias investigadas decidiam abordar a pluralidade cultural na sua programação. Para

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a segmentação de mercado a diversidade é um alvo essencial para abranger o público alvo em termos de variabilidade. Nas rádios comunitárias, o objetivo em expressar a pluralidade cultural colocava em primeiro lugar a necessidade de aproximar-se dos grupos e ritmos musicais que o mercado ainda não considerava compatível com sua política de consumo. Diferente da anterior, a abordagem das expressões culturais nas emissoras comunitárias procurava trabalhar a criticidade dos receptores estimulando sua articulação em torno de grupos culturais organizados. Podemos ilustrar essa situação através dos programas de rap Cultura de Rua, veiculado na rádio comunitária Mandacaru FM em Fortaleza entre 2000 e 2002. No programa Hip Hop, Cultura de Rua, cuja locução era feita por membros deste movimento, os fatores que nos levaram a considerar um princípio educativo neste programa foram as advertências sobre o consumo de drogas, a violência e divulgação das mobilizações culturais que permeiam o movimento hip hop. Nas emissoras comerciais os mesmos gêneros eram difundidos, entretanto, havia uma fragmentação na apresentação das músicas. Toca-se o rap e o reggae, mas de forma recortada entre outros gêneros, o que não deixava espaço para que receptores, amantes desses ritmos, sintonizem por muito tempo numa mesma emissora ou se torne possível uma articulação que não seja em torno do consumo. Geralmente toca-se um rock, depois uma canção romântica, um reggae e um rap. Essa alternância varia de emissora para emissora comercial, mas a grande maioria mantém esse mesmo padrão fragmentado. Fizemos a comparação dessa forma de apresentação com o formato dos programas veiculados nas rádios comunitárias e percebemos que a partir daí era possível fazer uma reflexão que perguntasse em que medida as emissoras comunitárias estão concretizando a partir de sua programação a valorização de uma diversidade cultural mais ampla do que a variedade cultural exposta nas emissoras comerciais. Entretanto, questões que hoje são mais evidentes através das discussões do paradigma dos Novos Movimentos Sociais e que trazem as temáticas de gêneros, diversidade sexual, ecologia e questões étnicas, entre outras, estavam ausentes da programação das rádios comunitárias na década de 90 e inicio do século XXI. Em nossas referencias problematizamos que as vivencias dos movimentos sociais populares no Brasil, palco das práticas de comunicação popular, naquele momento, se vinculavam mais a temáticas de um paradigma marxista, aproximado de questões de transformações sociais ou de temáticas e das discussões sobre Movimentos Sociais Urbanos, portanto mais próximas do paradigma marxista, do que do paradigma dos Novos Movimentos Sociais. Isso fica mais claro quando constatamos que, apesar de as práticas de comunicação popular problematizarem questões que expressam uma diversidade de grupos culturais, essas experiências de comunicação não faziam o mesmo quando se tratava de questões de gênero e diversidade sexual. Estas últimas temáticas constavam, inclusive, nos artigos da Lei 9.612 que regulamentava as emissoras comunitárias no Brasil, mas não eram problematizadas a contento. Nas práticas de comunicação comunitárias, pesquisadas por nós e vivenciadas pelos movimentos sociais urbanos desde a década de 90, a preocupação com a pluralidade apareceu, principalmente, nos anos de elaboração da Lei 9.612, como uma temática que estava na própria definição das características do que deveria seguir a programação de uma emissora de rádio comunitária. “As programações opinativa e informativa observarão os princípios da pluralidade de opinião e de versão simultâneas em matérias polêmicas, divulgando, sempre, as diferentes interpretações relativas aos fatos

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noticiados” (BRASIL, 1998). Essa pluralidade foi buscada mais essencialmente no sentido cultural. A temática de gênero não foi uma questão colocada por estas experiências de forma explicita, seguindo esta mesma reflexão que havia tomado a pluralidade cultural. Mesmo que também tenha sido expressa na mesma Lei no artigo quarto que diz: “não discriminação de raça, religião, sexo, preferências sexuais, convicções político-ideológico-partidárias e condição social nas relações comunitárias”, as questões referentes à “discriminação ao sexo ou às preferências sexuais” não se tornaram temas de reflexões presentes nas rádios comunitárias. Essa problemática é concreta quando observamos hoje as fotos dos programas considerados mais educativos, na época da experiência da rádio Mandacaru FM, hoje, emissora fechada pela Anatel. Notamos que a figura masculina é preponderante no estúdio da emissora

Figura 1 - Programa Vem Cá Poeira – Mandacaru FM Foto: Acervo da autora Catarina Oliveira

Figura 3 - Programa Hip Hop Cultura de Rua- Mandacaru FM Foto: Acervo da autora Catarina Oliveira

Após a primeira década do século XXI, algumas mudanças podem ser percebidas. Analisando o Movimento Sem Terra (MST) e suas práticas de comunicação já encontramos a questão de gênero como temática de suas mobilizações, reflexões e práticas comunicacionais. No boletim Mulheres em Movimento, informativo de março deste ano, o MST analisa essa definição.

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2- Elaborado para 8 de março, dia Internacional da Mulher.

Gênero é uma categoria social de análise das relações sociais entre homens e mulheres. São papéis atribuídos para definir o que é ser homem e o que é ser mulher; o que é tido como “coisa” de homem e “coisa” de mulher. E como cada um e cada uma deve se comportar de acordo com os valores da sociedade vigente. (MST, 2012, p. 2, grifo do autor).2 Ao lermos esta definição, notamos que o conceito de gênero é confundido e reduzido ao sexo. Porém, há uma grande diferença entre ambos. Tereza de Lauretis (1994, p. 207) apresenta duas limitações do conceito de gênero como diferença sexual. Primeiro, “porque ele confina o pensamento crítico feminista ao arcabouço conceitual de uma oposição universal do sexo” ou seja, não abrange as diferenças existentes entre as mulheres e nem entre os homens, apenas um em relação ao outro, a mulher como diferença do homem. A autora diz que isso torna quase impossível visualizar as diversidades existentes no universo feminino (africanas, afegãs, brasileiras, cristãs, muçulmanas, hindus, negras, brancas, ricas, pobres, etc.), pois estariam afirmando que todas as mulheres seriam personificações de alguma essência arquetípica da mulher ou de uma feminilidade metafísico-discursiva. Segundo, porque: [...] tende a reacomodar ou recuperar o potencial epistemológico radical do pensamento feminista sem sair dos limites da casa patriarcal. [...] um sujeito é constituído no gênero, sem dúvida, mas não apenas pela diferença sexual, e sim por meio de códigos lingüísticos e representações culturais; um sujeito “engendrado” não só na experiência de relações de sexo, mas também de raça e classe: um sujeito, portanto, múltiplo em vez de único, e contraditório em vez de simplesmente dividido. [...] O sistema sexo-gênero, enfim, é tanto uma construção sociocultural quanto um aparato semiótico, um sistema de representação que atribui significado a indivíduos dentro da sociedade. (LAURETIS, 1994, p. 207- 208 e 212, grifo do autor).

Adriana Piscitelli (1997, p. 49) aborda uma discussão importante presente na produção de algumas teóricas feministas contemporâneas sobre a ambivalência dos conceitos de sexo e gênero. Ela diz que inicialmente o conceito de gênero era considerado “como um desnaturalizador potencialmente poderoso e como um conceito a partir do qual seria possível questionar posições teóricas estabelecidas” no entanto, gênero se impôs distinguindo-se de sexo. Utilizar a definição biológica simplifica a diferença em uma explicação universal ao reduzi-lo à relação dual entre natureza e cultura. O boletim é uma publicação do MST, específica para tratar da questão de gênero, mas é publicado apenas anualmente para o dia oito de março. De forma geral, isso demonstra que o tema gênero está apenas inserido em outros informativos do movimento como acontecerá também com a temática da diversidade sexual, ambas aparecem nas mídias do MST, mas apenas como artigo ou notícia. Nesse caso, ter um informativo específico e com uma periodicidade mais frequente demonstraria que essa relação estaria mudando e forma mais evidente. As publicações do informativo Mulheres em Movimento defendem que no Movimento Sem Terra, a luta pela igualdade de gênero está intimamente ligada à luta pela transfor-

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mação social, por isso, na luta pela terra o debate faz-se necessário, pois se trata da vida familiar, que é o espaço onde primeiro se manifesta as desigualdades de gênero e a hierarquia típica do modelo familiar patriarcal. Para o MST, a luta pela construção de novas relações de gênero está estreitamente vinculada à luta de classes. A luta pela construção de uma sociedade socialista exige sem dúvida alguma a luta feminista, através de debates e de medidas concretas que alterem a vida social e política das famílias e particularmente das mulheres (MST, 2012, p. 2). O Informativo registra a relação de como o MST tem problematizado o debate sobre gênero. Em linhas gerais o informativo apresenta que ao longo dos anos as mulheres do MST foram se dando conta de que a luta pela igualdade entre homens e mulheres passa pela luta por uma sociedade igualitária, em todos os seus aspectos, e que, assim como no modelo de dominação do capital, “o padrão de gênero é dinâmico, vai sendo construído ao longo do tempo e se transformando de acordo com os interesses da classe que está dominando” (MST, 2012, p. 2). Dessa forma, assim como não são naturais as desigualdades sociais, também não devem ser naturalizados os papéis de homens e mulheres atualmente estabelecidos. Para o MST, a discussão sobre igualdade nas relações de gênero não é recente, começou no início do movimento com o desafio de envolver toda a família no processo de conquista da terra. “No I Congresso Nacional do MST, realizado em 1985, foram aprovadas dentre as normas gerais a organização de comissões de mulheres dentro do MST” (MST, 2012, p. 3). Estas comissões tinham como objetivo incentivar a participação das mulheres nas instâncias de poder e garantir seus direitos. Foi a partir das comissões que as mulheres começaram a discutir sobre gênero e a pautar o tema como foco de formação em cursos, nas instâncias, na elaboração de materiais e até na agenda de lutas concretas. Na Cartilha “Mulher Sem Terra” (2000, p. 14), é possível perceber como foi se dando o processo de debate no período em que o MST completava 15 anos em nível nacional, quando refletia sobre a questão. Depois de 15 anos de lutas, discussões e vivências, podemos dizer com certo orgulho que crescemos no entendimento da importância da participação da mulher no seu desenvolvimento como ser humano, da sua igualdade na diferença com o homem. Porque entendemos que precisamos crescer como mulheres e homens novos, construindo novas relações de poder, novas relações com o meio ambiente, novas relações econômicas baseadas em novos valores. Por isso, já podemos falar de relação de gênero no MST. (MST, 2000, p. 14). A referida cartilha era um manual sobre como a militância deveria promover encontros de debates e formação sobre a participação da mulher nos assentamentos e acampamentos. A sugestão era de oito encontros, cada um com uma temática relacionada à questão das mulheres. Com o documento era possível debater sobre participação da mulher, a luta de classes, educação, valores, cultura, saúde e direito a terra. No oitavo encontro, que tinha como objetivo debater sobre as mulheres e a Reforma Agrária, o documento deixava evi-

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dentes as linhas políticas sobre a participação das mulheres.

3-Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) é responsável pela vistoria, emissão de posse acompanhamento às áreas de Reforma agrária.

4- Ciranda Infantil é uma experiência de educação itinerante e de cuidado com as crianças que acompanham as mães em atividades de formação e mobilização do MST.

1. Que as mulheres, junto com os homens e jovens devem participar dos núcleos de base, das coordenações dos assentamentos, das cooperativas, do partido, do sindicato (...): que na coordenação dos acampamentos e assentamentos sejam 50% de homens e 50% de mulheres (...); 2. Que no trabalho da produção, (...) as mulheres participem não só do trabalho, mas que se envolvam no planejamento, na execução, na administração dos resultados e na hora em que o técnico vem fazer a explicação ou dar um curso, também às mulheres estejam aí para aprender; 3. Que os cursos de formação não sejam coisas só para os homens. As mulheres devem buscar participar, pois só dirige quem sabe; 4. Que na luta pela terra, ocupação, acampamento, mobilizações, participa toda a família, portanto, a conquista da terra é uma conquista de toda a família. Nada mais justo que quando o INCRA3 vem fazer o cadastro, este seja feito no nome dos dois (...); 5. Como educar nossas crianças (...) para que sejam pessoas mais felizes? Esta não é uma tarefa só da mãe, mas também do pai e da comunidade (...); 7. Que em todos os cursos, reuniões... Sejam regionais, estaduais ou nacionais, o MST deve garantir a Ciranda Infantil4; 8. Nos nossos assentamentos e acampamentos é importante que se criem os coletivos de mulheres onde elas se encontrem para estudar, discutir seus problemas e se preparar para participar das questões maiores do acampamento, assentamento e do MST; 9. É importante também irmos criando espaços onde se encontram mulheres e homens para discutir sobre as questões de gênero, sexualidade, afetividade, novas relações entre homens e mulheres (ANCA, 2000, p. 57-59). O envolvimento do MST com as temáticas da diversidade sexual, não ocorre na mesma medida que é representada a questão de gênero. Não há boletins específicos, o movimento divulga noticias sobre marchas e participa de movimentos conjuntos com os coletivos e grupos de Gays, Lesbicas, Bissexuais, Travestis e simpatizantes (GLBTs), mas ainda não há mídias especifica para este tema no movimento como há para temática de gênero a publicação de cartilhas e informativos, embora estes ainda nãos sejam de publicações frequentes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em linhas gerais, os Novos Movimentos Sociais que tratam das questões de gênero e da diversidade sexual vem iniciando a problematização destas temáticas e tem publicizado estas questões . Entretanto, as práticas de comunicação popular não tem refletido no mesmo ritmo como tratar estes temas em seus conteúdos e nem em suas formas de participação no cotidiano destes meios de comunicação. Não há no Brasil espaços significativos na comunicação popular que apontemos como exemplos de representação do movimento pela diversidade sexual ou da problemática de gênero. Não estamos afirmando que os movimentos mais específicos que estão envolvidos no debate e nas mobilizações das questões de gêneros e GLBTs, não tenham suas publicações, informativos, vídeos ou mídias. O que afirmamos é que a comunicação popular não tem debatido estas temá-

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ticas a contento em seus conteúdos, como o fez quando o tema era pluralidade cultural. Embora não tenham dado conta desse tema da pluralidade cultural, pois haviam limites quando se tratava da pluralidade religiosa e as emissoras comunitária transmitiam quase especificamente programas católicos, trouxeram, de alguma forma, esta questão para o debate cotidiano do fazer da comunicação popular.

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MÍDIA E TRABALHO DOMÉSTICO: QUANDO A LEI EXPÕE DESIGUALDADES MEDIOS Y TRABAJO DOMÉSTICO: CUANDO LA LEY EXPONE LAS DESIGUALDADES MEDIA AND DOMESTIC WORK: WHEN LAW EXPOSES INEQUALITIES

Maria Luiza Martins de MENDONÇA Doutora em comunicação. Pós-doutorado pela Universidad Autónoma de Barcelona (Espanha) e pelo CNRS (França). Professora no PPG-Com UFG. Dirige o grupo de pesquisa Comunicação e Processos Sociais, CNPq.- Brasil E-mail: mluisamendonca@gmail.com

Janaína Vieira de Paula JORDÃO É doutoranda em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás, sendo bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás; é Professora no curso de Comunicação Social / Publicidade e Propaganda na Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia da UFG, Goiânia - Brasil. E-mail: janainavpj@gmail.com

Revista Eptic Online Vol.15 n.3 p. 87-100 set.-dez. 2013 Autor convidado Publicado em 15/05/2013


Mídia e trabalho doméstico – Maria L. M. Mendonça; Janaína V.P. Jordão

RESUMO Este trabalho tem por objetivo trazer questionamentos sobre a desigualdade e hierarquias sociais no Brasil expostas por meio da cobertura midiática a respeito da equiparação dos direitos dos trabalhadores domésticos a outras categorias profissionais, a partir da Proposta de Emenda à Constituição no 66 de 2012 (originária da 478/10) aprovada em 2013. Pretende-se refletir sobre a desigualdade e como ela pode se tornar ainda mais visível, a partir da aproximação de uma categoria profissional, seja por meios econômicos ou legais. A representação midiática da alteração da lei parece dar indícios de uma tentativa de fortalecimento de fronteiras entre grupos sociais, que invisibiliza a conquista de um direito tão caro à existência de uma sociedade mais igualitária.

Palavras-chave Desigualdade. Trabalhadoras domésticas. Representações sociais. Mídia.

RESUMEN Este trabajo tiene el objectivo traer cuestiones sobre las desigualdades y jerarquías en la sociedad brasileña, visibles por medio del tratamiento de lós medios sobre la igualdad de derechos de los trabajadores domésticos a otras prefesiones, a partir de la propuesta66/2012 (478/10) de alteración de la Constituición, aprobada em 2013. Intenta-se refletir sobre de desiguldad y los echos que la hacen más visible, desde el punto de vista de la inclusión de uma categoria profesional, sea por medidas económicas o legales. La representación midiática de esa alteración legal parece indicar um intento de fortalecimiento de las fronteras entre grupos sociales, al tornar invisible la conquista de um derecho necesário para la existéncia de uma sociedad más igual. Palabras-clave Desigualdades. Trabajadores domésticos. Representaciones sociales. Médios.

ABSTRACT This work aims to bring questions about inequality and social hierarchies in brazilian society shown by media’s coverage of the amendment proposal to the Brazilian Constitution 66/2012 (478/10), which was approved in 2013, and turns the rights of domestic workers equal to other professions. We want to reflect about inequality and how it can become even more visible with the approach of a professional category, whether by legal or economic means. The media’s representation of the change in the law seems to give evidence of an attempt to strengthen boundaries between social groups, which blurs the relevance of a such important conquest to the existence of a more egalitarian society. Keywords Social representation. Media. Domestic workers. Inequality.

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Mídia e trabalho doméstico – Maria L. M. Mendonça; Janaína V.P. Jordão

SOBRE MINORIAS E REPRESENTAÇÕES

Este texto resulta de reflexões sobre as formas como a mídia – em especial os meios hegemônicos - falam de (ou sobre) grupos minoritários e/ou subalternos desenvolvidos dentro de um projeto de pesquisa mais amplo, intitulado Representações do Outro: o olhar da mídia sobre as diversidades, no qual vimos trabalhando há alguns anos. A ideia central é a de conhecer, por intermédio de análises e observações sobre as maneiras que diferentes produções midiáticas tratam os conteúdos relacionados àqueles grupos (étnicos, de gênero, geracionais, de classe, culturais) e sua relação com os processos de luta pela hegemonia. Essa disputa, travada na esfera da produção simbólica, torna-se evidenciada não apenas pelas formas de representação, mas também por meio de políticas de visibilidade e de invisibilidade a que estão sujeitos certos segmentos e grupos sociais. Essa disputa não acontece propriamente no âmbito da apropriação do poder (político ou econômico), mas nos movimentos destinados à alteração ou fixação dos sentidos sociais considerados “oficiais” e na atribuição de legitimidade a determinadas concepções e práticas que vão incidir sobre a construção de subjetividades, tanto individuais como coletivas, podendo atuar como elementos desestabilizadores e gerando inseguranças. Convém deixar claro que o conceito de minorias aqui empregado não se refere apenas à dimensão quantitativa de determinados grupos sociais: remete a grupos sociais percebidos como diferentes e que são, em algum momento histórico, vítimas de um moindre pouvoir (GUILLAUMIN, 1981) ou, como acrescenta Muniz Sodré (2005, p. 5) de uma vulnerabilidade jurídico-política-social ou cultural e/ou de uma marginalização pelos sistemas hegemônicos de representação e produção de sentido. Acrescente-se a isso a dificuldade ou impossibilidade de autorrepresentação ou de que sua representação seja feita em seus próprios termos. Valorizar as formas de representação significa assumir que “representar” não se trata exclusivamente da interpretação que se relaciona à delegação de poder ou de estar no lugar de alguma pessoa ou grupo. Estende-se aos sistemas de atribuição de sentidos e quanto a isso a produção midiática é emblemática. Na verdade, não pretendemos afirmar que existam limites precisos entre imagem e representação, mas ressaltar a força emocional da imagem de maneira a possibilitar que incida sobre a construção de identidades, que seja capaz de mobilizar comportamentos e contribuir para formação de subjetividades. Segundo Woodward (2000), [...] os discursos e os sistemas de representação constroem os lugares a partir dos quais os indivíduos podem posicionar-se e a partir dos quais podem falar. Por exemplo, a narrativa das telenovelas e a semiótica da publicidade ajudam a construir certas identidades de gênero. (WOODWARD, 2000, p. 17).

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Aqui, o termo representação social se refere à elaboração de comportamentos e à comunicação entre indivíduos na vida cotidiana: são as diferentes representações socialmente construídas que permitem compreender e explicar a realidade, definir as identidades, orientar e justificar comportamentos e práticas sociais (SÁ, 1996). Como já é sabido, os meios de comunicação, nas sociedades contemporâneas, atuam como elemento importante na construção da realidade social, em especial dos conteúdos simbólicos dessa realidade e da imagem que ela, bem como os diferentes grupos sociais, possuem de si mesmos e dos outros. Produzem e fazem circular ideias, imagens e representações de uma visão de mundo que indica as maneiras adequadas de se comportar, de viver, a noção de certo e errado, as expectativas que se podem ter, a diferença entre o possível e as utopias, o lugar que se pode e deve ocupar no mundo. A forma como se é mostrado nos meios, assim como a invisibilidade são indicadores relevantes para compreender como a sociedade reconhece seus diferentes membros e grupos. Os estudos sobre as representações sociais, especialmente aqueles conduzidos por Moscovici (2011, p. 54), concluem que “a finalidade de todas as representações é tornar familiar algo não familiar”. Quando nos deparamos com pessoas que pertencem a outras culturas, por exemplo, ficamos incomodados porque são como nós, mas, ao mesmo tempo, diferentes. Estão aqui sem estar aqui. Poderíamos pensar em todas as pessoas estigmatizadas, para utilizar um termo de Goffman (1988). Isso porque o não familiar intriga, alarma, incomoda e ameaça. Afinal, “[...] quando a alteridade é jogada sobre nós na forma de algo que ‘não é exatamente’ como deveria ser, nós instintivamente a rejeitamos, porque ela ameaça a ordem estabelecida” (MOSCOVICI, 2011, p. 56). Com a representação, podemos transformar este incomum em comum, e o desconhecido pode ser colocado em uma categoria convencional, conhecida. Mesmo que a pessoa, objeto ou acontecimento não se adeque em uma categoria preexistente na concepção do ator, ele a força a assumir determinada forma para se enquadrar. É, como no exemplo do próprio autor, como os religiosos classificam as pessoas ou comportamentos dentro de uma escala religiosa de valores. Segundo Moscovici (2011), existem dois processes geradores das representações sociais: a) a ancoragem, que fundamentalmente é classificar e dar nome a alguma coisa, pessoa ou acontecimento, em que se reduzem as ideias estranhas a imagens comuns, colocando-as em uma categoria familiar. A partir daí, rotulamos: o “não-familiar” adquire características desta categoria ou é reajustado para que nela se enquadre. Segundo o autor, “pela classificação do que é inclassificável, pelo fato de se dar um nome ao que não tinha nome, nós somos capazes de imaginá-lo, de representá-lo” (MOSCOVICI, 2011, p. 62). Confinamos, assim, o “não-familiar” a um conjunto de comportamentos previamente estabelecidos, onde já está estipulado o que é ou não permitido, e a partir daí, ele vai estar dentro ou fora das normas, se ele está sendo como deve ser ou não; e b) a objetivação, que é o momento da materialização das representações, pois se transfere o que está na mente em algo que exista no mundo físico. O autor exemplifica com as ideias que eram incomuns para uma geração passarem a se tornar comuns e até óbvias para as posteriores. Surgem então as fórmulas e clichês, que vão se tornando cada vez mais fortes, quanto mais vão sendo dis-

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tanciados da pessoa que os disse pela primeira vez, passando a ser senso comum, e aceito, portanto, como realidade. Segundo o autor, “Nós personificamos, indiscriminadamente, sentimentos, classes sociais, os grandes poderes, e quando nós escrevemos, nós personificamos a cultura, pois é a própria linguagem que nos possibilita fazer isso.” (MOSCOVICI, 2011, p. 76). Como as representações vão se tornando senso comum, e aceitas como verdade, o autor defende que, para estudá-las, é necessário tentar descobrir a característica não familiar que a motivou, de preferência que esta característica seja observada no momento exato que está emergindo na esfera social. Nesses termos, a importância que damos às formas de representação deve-se ao entendimento de que, mais do que retratar as coisas do mundo, a linguagem constrói a realidade ao nomeá-la. “A linguagem não apenas nomeia o mundo; ela o institui” (SODRÉ, 2005, p.32) e a realidade é, também, um efeito de discurso, tanto um produto da representação como seu ponto de partida. Vale lembrar que a representação não é neutra, deve ser compreendida tanto a partir da posição que os indivíduos representados ocupam no meio social e cultural como das políticas de visibilidade que os meios utilizam e que são, ao mesmo tempo, políticas de invisibilidade, uma vez que existem tomadas de decisões sobre o que vai ser divulgado e de que maneira. Em outras palavras, as ideias que circulam sobre determinados temas/grupos/classes sociais devem ser percebidas como a expressão concreta (e simbólica) de relações sociais concretas e devem ser inseridas em um contexto histórico que permite sua maior compreensão. Um fato novo que está sendo situado nas representações das pessoas, com a mediação – entre outros – da mídia, é o caso da Proposta de Emenda à Constituiçãono66 de 2012 (originária da 478/10), aprovada em 2013, que estende aos trabalhadores domésticos direitos conquistados por outras categorias e os coloca no mesmo patamar de igualdade de direitos trabalhistas que os demais trabalhadores urbanos e rurais. Isso, dentro de um contexto de uma outra aproximação entre classes sociais, pelo viés econômico, em um momento de um maior acesso aos bens de consumo por uma grande parcela da população brasileira. Pela mirada que se dá em algumas publicações da mídia de massa, percebe-se que a representação que se ancora e se objetiva é a de que esse avanço de cidadania que tardiamente se conquistou no Brasil tem maior relevância em relação ao seu custo. Mas não um possível custo que pudesse deixar porosas as fronteiras das desigualdades. Mas um custo relacionado ao bem-estar dos dominantes, “prejudicados” pela proximidade dos dominados. O que ainda teremos que observar com o tempo é se, em vez de retirar tijolos das fronteiras, a mídia não tem acrescentado cimento.

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DIFERENÇAS E DESIGUALDADES NO TRABALHO DOMÉSTICO

Antes da aprovação em 2013 da PEC que iguala o trabalhador doméstico aos demais, o trabalhador doméstico, dos 34 direitos listados para trabalhadores urbanos e rurais na Constituição Brasileira, tinha direito a apenas 9, além de sua integração à Previdência Social. Somente no ano 2000, o empregado doméstico passou a ter direito a ao SeguroDesemprego e ao FGTS, caso o empregador optasse pelo depósito. Esta distorção da lei era fruto de uma sedimentação na cultura de desigualdades que têm raízes no Brasil escravocrata. Os escravos, segundo Freyre (2006), especialmente trazidos da Guiné, Cabo, Serra Leoa tinham mais aptidão para o serviço doméstico e, assim, especialmente as mulheres eram levadas para as casas-grandes para a execução deste tipo de trabalho – o que já configuraria uma divisão sexual do trabalho doméstico. Após a Abolição, essas mulheres continuaram trabalhando em setores desvalorizados, se tornando grande parte das trabalhadoras domésticas, cozinheiras, lavadeiras e prostitutas. A ausência de leis que empurrassem o limite da cidadania para essas trabalhadoras contribuiu certamente para que a ocupação não se tornasse uma profissão como as demais, deixando para as relações intramuros uma grande parte da definição de fronteiras nas relações sociais entre patrões e empregados. Assim, delineiam-se três grandes fatores que contribuem para a condição de subalternidade das trabalhadoras domésticas: a situação econômica menos favorecida em relação aos patrões, o caráter feminino da profissão - que reduz o seu prestígio ou desejabilidade, segundo Bourdieu (2007) - e a desvalorização da ocupação em relação a outras categorias profissionais. Esta experienciação de relações gênero e trabalho, no caso das trabalhadoras domésticas, traz um aspecto peculiar: a relação entre patroa e trabalhadora, duas mulheres em diferentes posições sociais, lidando ao mesmo tempo com trabalho e afetividades. A questão de gênero é, portanto, compartilhada, mas desigualmente vivenciada (KOFES, 2001), já que constituída por mulheres de diferentes classes sociais e comportamentos culturais. E a relação de trabalho não é tão bem formatada, pois, além de todas as insuficiências legais e a desvalorização histórica, é atravessada por afetividades, já que com as [...] negociações de pagamentos extrasalariais, na troca de serviços não vinculados ao contrato, nas fofocas entre mulheres e trocas de carinhos com as crianças é impossível deixar de reconhecer a existência de uma carga forte de afetividade. Esta, no entanto, não impede uma relação hierárquica, com clara demarcação entre chefe e subalterno, isto é, entre aqueles que podem comprar os serviços domésticos e aqueles que se encontram, na oferta de seus serviços, uma das alternativas menos duras de sobrevivência no Brasil (BRITES, 2007, p. 93-94).

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A característica feminina da profissão também remete à questão do uso do tempo, se considerarmos que a divisão sexual do trabalho repousa também sobre as temporalidades, ou ao uso do tempo. Ao analisar a divisão entre diferenças e desigualdades, Souza (2006) afirma que A oposição mais fundamental e central é aquela entre mente e corpo, cabendo ao primeiro a primazia [...]. Afinal não só a divisão entre as classes, mas também a oposição entre as minorias sexuais, raciais e culturais e a cultura dominante vão assumir a forma da oposição mente e corpo. Entre as classes vai ser o capital cultural, o trabalho intelectual e mental das frações burguesas que irão se opor ao trabalho muscular, manual e corporal das classes trabalhadoras como instância legitimadora do diferencial de salário e prestígio relativo. Como fundamento da desigualdade de gênero, também o homem é percebido como instância calculadora e racional por oposição à mulher, definida como lugar do afetivo, do emocional e da sensualidade, da corporalidade enfim, numa diferenciação sexual que reproduz os mesmos termos da oposição entre classes (SOUZA, 2006, p. 80-81).

1- Esse tema tem sido desenvolvido por Marc Bessin. Ver Bessin (1999) e Bessin e Gaudart (2009).

A isso podemos acrescentar que no caso feminino esse “sistema de gênero” repousa também sobre a naturalização de certas competências ditas femininas que torna a temporalidade feminina refém das demandas e necessidades de outros1. Requisita-se mulher disponibilidade temporal para o outro, além de um sentimento de proteção, cuidado, atenção que acaba por tornar-se quase que uma “ética feminina” que incide na atenção às carências alheias tanto no plano material como subjetivo/afetivo. Segundo Porto (2006), o caráter feminino da profissão revela então uma naturalização da forma de apropriação do tempo e da energia das mulheres, fazendo com que a exploração inerente a este tipo de relação ficasse até hoje invisível aos olhos da sociedade. Antes, a escravidão; e hoje, é o trabalho doméstico que se realiza em uma situação servil.

2-Esta é uma questão instigante, a da necessidade de capital cultural para a devida aceitação social em termos hegemônicos, entretanto não cabe aqui o seu aprofundamento, por razões de escopo e espaço.

No caso da trabalhadora doméstica, podemos afirmar que as condições de subalternidade são amplamente preenchidas em termos de classe, gênero e frequentemente também étnicas. Acrescente-se a essas condições o preconceito cultural, que mostrou-se em toda sua força com as ironias midiáticas em torno de um suposto “gosto popular” devidamente categorizado como inferior2. Esta condição de subalternidade, na prática, pode ser vista com a criação de uma divisão categórica desigual entre patrões e empregados, em uma tensão relacional dos dois lados da fronteira. A partir das análises do pesquisador Charles Tilly (1998), a desigualdade pode ser percebida como a distribuição desigual de atributos entre tipos de unidades sociais, como indivíduos, categorias, grupos ou regiões. O seu interesse de estudo é voltado para aquelas desigualdades entre pares categóricos que duram por carreiras, vidas. Para o autor, os bens que são distribuídos de forma desigual não são somente os salários, mas podem se configurar como o controle de terras, a exposição a doenças, o respeito por parte dos outros, o risco de homicídios etc. Sobre a existência da desigualdade, Tilly (1998) afirma que já houve várias correntes sociológicas que buscaram entendê-la: algumas delas, atribuindo uma excessiva força ao sistema (ou estrutura, ou cultura), como as teorias do sistema; e outras, atribuindo uma excessiva capacidade de agência aos atores

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sociais, como as teorias individualistas. Mas, segundo o autor, há que se analisar não só o individual, mas também o social para se entender as desigualdades, complementando, portanto, as análises individualistas com a estrutura social da desigualdade, uma vez que, para o autor, as pessoas possuem tantas identidades quanto o número de relações sociais que mantêm e adquirem sua individualidade através da interação entre suas capacidades genéticas e suas experiências sociais. Com isso, não queremos dizer que necessariamente a pessoa que exerce o trabalho doméstico se encontra em posição de subalternidade em todas esferas sociais pelas quais circula. Mas, como trabalhadora doméstica, faz parte de um par categórico com os patrões – especialmente a patroa - no território de quem supostamente detém as regras do jogo nesta relação, que também pode ser considerada de dominação. O agravamento desta relação de dominação, entendemos, está no fato de ser uma relação que traz uma desigualdade durável. Segundo Tilly (1998), quando diz sobre as raízes da desigualdade entre categorias, elenca dois mecanismos que favorecem a instalação das desigualdades categóricas: a exploração e o acúmulo de oportunidades. Segundo este autor, as autoridades (ou os detentores de poder) resolvem seus próprios problemas organizacionais, de maneiras categóricas, alocando para sua própria vantagem os recursos, tendo a eles um acesso privilegiado, como vantagens mais limitadas, porém mais genuínas. Por muito tempo, a legislação brasileira favoreceu a ação desses mecanismos. Com menos direitos e menos reconhecimento, não fica difícil vislumbrar o caráter de exploração e o acúmulo de oportunidades, já que na divisão desigual dos recursos, os patrões se apropriam dos esforços alheios, detendo para si o que poderia ser de direito dos trabalhadores, se estivéssemos há muito em uma sociedade igualitária no campo do reconhecimento ao trabalho. Além disso, para Tilly (1998), dois processos generalizam os efeitos das desigualdades: a emulação e a adaptação. A emulação pode ser comparada à repetição intramuros de desigualdades duráveis em esferas mais amplas na sociedade, como os preconceitos contra pobres e mulheres. É a importação para dentro da relação patroa-empregada de categorias externas. Ainda segundo o autor, donas de casa têm comumente recrutado ajuda doméstica combinando uma categoria subordinada interior de serviçal com categorias exteriores de raça, etnia, gênero, e/ou classe, que são largamente estabelecidas na sociedade. Já a adaptação consiste na elaboração de uma rotina diária, com ajuda entre os interessados na manutenção e no reforço das fronteiras, e o uso de influência política na base das estruturas desiguais. No caso deste trabalho, este reforço pode estar estampado nas representações midiáticas sobre a Proposta de Emenda à Constituição.

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MÍDIA E REPRESENTAÇÃO DA DESIGUALDADE

Quando se observam dois dos maiores portais de notícias, Veja (2013) e Globo (2013), páginas especiais sobre a mudança na lei que regula o trabalho doméstico, uma característica em comum se sobressai: a preocupação com a “nova vida” dos patrões, e, nos poucos casos em que foram colocadas as dúvidas das trabalhadoras, o tom foi muito mais de caráter mercadológico do que de cidadania. No site da Veja, com menor destaque, há a chamada a entrevista com o ex-Ministro do Trabalho, o economista Walter Barelli, que diz que a mudança na lei é um avanço civilizatório, e ao mesmo tempo afirma que será o fim do trabalho doméstico da maneira como tem sido feito.

Figura 1: Vista geral da página da Globo sobre o tema. Fonte: G1Globo (2013).

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Figura 2: Vista geral da página da Veja sobre a PEC. Fonte: PEC... (2013).

Já a edição impressa da revista trouxe a foto de um homem na cozinha, e um título que mais parece ameaçar, superestimando a mudança – pra pior - na vida dos empregadores a partir da validade da lei que dá igualdade de direitos às trabalhadoras domésticas. Entendemos que a escolha de um homem lavando louça acentua o caráter de mudança, já que, se a representação fosse de uma mulher, a patroa, talvez o impacto fosse menor, afinal, não seria surpresa nenhuma uma mulher à pia.

Figura 3: Capa da revista Veja impressa. Fonte: Capa da revista VEJA (2013).

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Desta forma, entendemos que esta lei traz mudanças muito maiores- tanto do ponto de vista de ganho de direitos, quanto da possibilidade de demissões em grande número - do que as consequências nas práticas diárias e na economia dos patrões. Sob a emenda, está o suporte de uma tardia, mas tão esperada, igualdade e um necessário reconhecimento do trabalho doméstico como uma profissão, cujas raízes da desigualdade estão, como já dissemos, no modo de vida mais cruel e desigual que tivemos: a escravidão legitimada. É por isso que questionamos, a partir da representação midiática da PEC, a continuação da invisibilidade de questões tão caras à cidadania das trabalhadoras, para privilegiar aspectos econômicos, especialmente os que afetam a vida dos patrões, em um momento “oficial”, em que ainda serão criadas leis e políticas públicas para regulamentar as alterações na Constituição Brasileira. 3-Poderia-se questionar o público a que se destina as publicações, e a partir daí fazer uma defesa de que as preocupações seriam as de seu público, os patrões. Mas consideramos que um avanço na cidadania de um país, que tem repercussões nacionais, poderia passar por uma discussão que nos afetasse a todos, e não somente à classe imediatamente interlocutora.

Assim, a invisibilidade das trabalhadoras domésticas em um momento “oficial” dá visibilidade à questão da desigualdade entre grupos sociais. Isso parece nos dar indícios de que, apesar de uma certa aproximação entre os pares categóricos desiguais, via direitos, há um fortalecimento da fronteira que os separa, via representações sociais3.

REFLEXÕES

A convivência entre diferentes grupos sociais e as hierarquias que se estabelecem nas sociedades não é uma novidade, mas nem sempre é cordial convivência cotidiana entre indivíduos e grupos distintos, embora possa parecer. A base para contornar essas diferenças e animosidades tem sido as concepções e políticas de multi e de interculturalismo, destinadas a tornar a vida em comum menos hostil e desencorajar os preconceitos. Não são poucas as críticas aos conceitos e às políticas destinadas a promover o multiculturalismo, em especial aquelas que o consideram como uma forma de tolerância, desde que cada um (indivíduo ou coletivo) permaneça no lugar socialmente atribuído a ele e mantenha uma respeitosa distância dos grupos hegemônicos (ZIZEK, 2007). Segundo o autor, isso não é senão uma afirmação da superioridade das camadas hegemônicas. É possível a identificação do “Outro”, tomando como critério a frequência com que aparecem membros de certos grupos e a forma como são representados, inclusive pela mídia. Como um paradoxo apenas aparente, algumas ausências são identificadas e parecem significativas, pois na verdade, os discursos se revelam não apenas pelo que falam, mas também por aquilo que omitem. A cobertura da mídia parece preferir dar visibilidade às consequências ruins para os patrões de uma lei que traz uma equiparação – ao menos jurídica – às trabalhadoras domésticas, quase se calando sobre as consequências – boas e/ ou ruins – que podem se abater sobre a categoria. No Brasil, pelo menos duas questões podem explicar, ainda que parcialmente, essas rígidas hierarquias históricas: apesar dos avanços no que se refere aos processos democráticos formais, a sociedade ainda é bastante hierarquizada e segregadora, resquícios da escra-

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4-Eis uma matéria emblemática no dia da trabalhadora doméstica e um pequeno apanhado dos tipos retratados nas novelas brasileiras. Chamam a atenção o título da matéria e a pergunta da jornalista para uma atriz que está interpretando uma trabalhadora doméstica, se esta não se incomoda em fazer papéis assim” (LUVIZOTTO, 2013).

vidão e das formas de organização social. A compreensão de fenômenos como esses da discussão sobre os direitos das trabalhadoras domésticas está para além da invisibilidade midiática ou não e das formas caricatas de representação social em que quase sempre as trabalhadoras mostradas como “mãe preta” que a todos atende ou consola ou a bela do subúrbio decidida a usar o corpo como meio de ascensão social4 (outro tema instigante que não será possível nos estender aqui). Por outro lado, a forma como os meios se organizaram institucionalmente, como empresas privadas em busca de lucro, fez com que os avanços tecnológicos e o domínio de técnicas sofisticadas de produção privilegiassem os efeitos sensoriais em detrimento do conteúdo. Isso tende a subordinar os conteúdos aos interesses econômicos mesmo que contribua para aumentar a distância que separa indivíduos, grupos, em termos de classes, gerações, etnias e até mesmo de “gosto”. Parece não existir cuidado em não naturalizar desigualdades e discriminações, materiais ou simbólicas. De forma semelhante, as políticas de visibilidade/invisibilidade adotadas pela mídia hegemônica para vários grupos sociais (homossexuais, ecologistas, movimentos sociais) só ganham notoriedade em duas ocasiões: quando os grupos exercem alguma ação “performática”, com capital midiático suficiente para atrair audiência, ou quando a causa que representam sai dos limites da “tolerância” e entra no regime legal, dos direitos cidadãos. A história recente do Brasil está repleta desses exemplos: a mudança do Código Florestal, a lei Maria da Penha, o andamento da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, entre outros, expõem animosidades, racismos e intolerâncias contra as diversidades e acabam por explicitar o que se queria ocultar sob a crença em uma sociedade plural, democrática e tolerante. Tolerância que significa que cada qual pode existir em sua singularidade, desde que ocupe o lugar social a ele designado pelas convenções hegemônicas apenas subentendidas, mas de conhecimento geral, e não invada espaços sociais alheios, respeite as conveniências e as regras da boa convivência nos termos hegemônicos, obviamente. Em relação às trabalhadoras domésticas, podemos afirmar que experimentam variadas formas de subordinação e de exclusão: temporal (aliás, presente em todas categorias que colocam seu tempo a serviço do outro), de gênero, de classe, muitas vezes étnica e agora visivelmente econômica. Ainda mais se considerarmos dois elementos presentes: a crítica irônica de um gosto popular, a partir do momento em que a “Classe C” adquiriu visibilidade; e a crítica também irônica à extensão dos direitos a essa categoria – vale reforçar o argumento, o incômodo que causa a transformação de uma relação de “favor” e de tolerância em uma relação que se funda no direito e na lei. Assim, as desigualdades dissimuladas, os preconceitos também dissimulados vêm à tona em momentos em que a questão se torna pública e sai da esfera do privado, do favor tão comum nas relações sociais no Brasil, para a ordem do direito. As repercussões disso são emblemáticas de quanta intolerância, preconceito e conservadorismo ainda perduram na sociedade. Entretanto, embora a nossa proposta não tivesse como objetivo ou possibilidade apontar soluções, pretendemos minimamente animar o debate sobre diferenças que se transformam em desigualdades exemplarmente exibidas quando se trata de apontar o exotismo ou mesmo um “estranhamento” do popular que, no cotidiano vivido incidem de

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forma pejorativa sobre indivíduos e suas subjetividades. As pequenas exclusões vivenciadas cotidianamente e muitas vezes não manifestas não são despercebidas, deixam sim sua marca subjetiva que, muitas vezes se revela por meio de um sentimento de inferioridade que paralisa, imobiliza e quase sempre não conduz à ação.

REFERÊNCIAS

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Mídia e trabalho doméstico – Maria L. M. Mendonça; Janaína V.P. Jordão

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VISIBILIDADE NEGRA NA COLUNA SOCIAL DO JORNAL APALAVRA: estruturas de sentimento dominantes, residuais e emergentes* LA VISIBILIDAD DEL NEGRO EN LA COLUMNA DE CHISMES DEL PERIÓDICO APALAVRA: estructuras de sentimiento dominante, residual y emergente VISIBILITY OF THE BLACK PEOPLE IN THE GOSSIP COLUMN OF THE NEWSPAPER APALAVRA: structures of feeling dominant, residual and emergent

Ana Luiza COIRO MORAES Professora Visitante do Programa e do Departamento de Comunicação da UFSM; Pós-doc no Programa de Comunicação e Cultura da Universidade Federal da Bahia (UFBA); Doutora pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). - Brasil E-mail: anacoiro@gmail.com

Jucineide T. da Silva FERREIRA Jornalista com formação no Centro Universitário Franciscano (UNIFRA), Santa Maria (RS) - Brasil E-mail: neidi25@hotmail.com

* O artigo é resultado da reelaboração de trabalho apresentado no XI Congreso Latinoamericano de investigadores de la Comunicación, ALAIC (COIRO MORAES; FERREIRA, 2012).

Revista Eptic Online Vol.15 n.3 p.101-116 set.-dez. 2013 Recebido em 27/03/2013 Publicado em 02/09/2013


Visibilidade Negra na Coluna Social do Jornal Apalavra - Ana L. C. Moraes; Jucineide T. S. Ferreira

RESUMO O artigo investiga como se construiu historicamente a visibilidade do negro na coluna social do jornal Apalavra, em São Sepé, Rio Grande do Sul. Isso se procede através de exame ao espaço reservado à divulgação dos eventos socioculturais de dois clubes que dividiram a cidade da década de 1960 ao ano de 2004: o Clube do Comércio, dos “brancos”, e a Sociedade Recreativa Visconde do Rio Branco, o clube dos “negros” Trata-se de explorar o alcance epistemológico do conceito estrutura de sentimento, articulado às noções de dominante, residual e emergente, de Raymond Williams, para a análise das processualidades culturais de racismo e segregação, investigando elementos de diferentes temporalidades e origens que constituem o gênero jornalístico coluna social, suas práticas discursivas e objetos empíricos.

Palavras-chave Coluna Social. Visibilidade do negro. Estruturas de sentimento. Estudos culturais.

RESUMEN El artículo investiga cómo la visibilidad del negro se hay construido históricamente en la columna de chismes del periódico Apalavra de São Sepe, Rio Grande do Sul. Este examen se realiza a través del espacio reservado para la difusión de eventos socio-culturales de los dos clubes que dividían la ciudad de 1960 a 2004: el Club de Comercio, de “los blancos”, y la Sociedad Recreativa Visconde de Rio Branco, el club de “los negros”. Se está estudiando el alcance epistemológica del concepto estructura del sentimiento, articulado a los conceptos de dominante, residual y emergente, de Raymond Williams, para el análisis del procedurales del racismo cultural y de la segregación, la investigación de elementos de diferentes orígenes y temporalidades que constituyen el género columna de chismes periodística, sus prácticas discursivas y objetos empíricos. Palabras clave Columna Social. Visibilidad de negro. Estructuras de sentimiento. Estudios culturales.

ABSTRACT The paper investigates how the visibility of black people has been built historically on the gossip column of the newspaper Apalavra, from São Sepe, Rio Grande do Sul. This is performed through the analysis of the space reserved for promoting sociocultural events of two clubs that divided the city from 1960 to 2004: Clube do Comércio, which was for “white people”, and Sociedade Recreativa Visconde do Rio Branco, for “black people”. The study explores the epistemological scope of Raymond Williams’s concept structure of feeling, articulated with his ideas of dominant, residual and emergent, for the analysis of the cultural procedures of racism and segregation, in order to investigate elements of different origins and time frames that compose the journalistic gender Gossip Column, its discursive practices and empirical objects. Keywords Gossip Column. Black people visibility. Structure of feeling. Cultural studies.

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INTRODUÇÃO

1- De acordo com o site Estados e Cidades (2010), a população de São Sepé era de 23787 de habitantes.

Dois clubes de específicas características dividiam a pequena cidade brasileira de São Sepé1, no Estado do Rio Grande do Sul: o Clube do Comércio, dos “brancos”, e a Sociedade Recreativa Visconde do Rio Branco, clube dos “negros”. O Visconde foi fundado em 1953 na periferia da cidade, construído por operários de baixa renda, em sua maioria, descendentes de escravos, mas está fechado desde 2004. Já o Clube do Comércio, desde 1941 mantém suas portas abertas em frente à praça central da cidade. A diferença entre esses clubes é que por muito tempo os negros eram proibidos de entrar no clube dos brancos, e os brancos, por opção, não frequentavam o clube dos negros. Contudo, os clubes eram as alternativas para sediar os eventos socioculturais da cidade, cuja cobertura estava a cargo da coluna social do Apalavra, o jornal mais antigo da cidade, que preserva seu acervo desde os primeiros impressos, em janeiro de 1950. Apalavra inicialmente circulava na cidade uma vez por semana e depois às quartas-feiras e aos sábados, quando a coluna social era publicada, divulgando a agenda social de final de semana. A proposta deste trabalho é examinar a cobertura dos eventos e festividades dos dois clubes e assim verificar a visibilidade negra no espaço social promovido pelo jornal Apalavra, em sua coluna social. Para tanto, analisa-se comparativamente o material dos arquivos de Apalavra a partir da década de 1960 (quando o jornal passou a contar com coluna social) até 2004, data em que as portas do Visconde fecharam-se definitivamente. Trata-se de pesquisar se através desses dados é verificável a segregação do negro, visível nos clubes, também nas páginas da coluna social desse período. Isso implica investigar as representações jornalísticas do negro, de sua história e de sua cultura, e por em questão a própria identidade cultural negra, tensionada em discursos cuja enunciação se dá a partir do ponto de vista dos brancos. Neste âmbito, o artigo se insere no debate sobre o que vem sendo discutido por pesquisadores como Stuart Hall (2003) e Muniz Sodré (1983, 1988, 2000, 2003), para refletir sobre a representatividade do negro na sociedade, suas lutas por igualdade e sua visibilidade no espaço midiático. As estratégias culturais, que vão da invisibilidade a um tipo de visibilidade cuidadosamente regulada e segregada, de acordo com Hall (2003), acarretam as “guerras de posição”, quando um modelo cultural se sobrepõe ao outro, ou seja, quando as diferenças marcam as identidades: Esse momento essencializa as diferenças em vários sentidos. Ele enxerga a diferença como “as tradições deles versus as nossas” – não de uma forma posicional, mas mutuamente excludente, autônoma e auto-suficiente ― e é, consequentemente, incapaz de compreender as estratégias dialógicas e formas híbridas essenciais à estética diaspórica. (HALL, 2003, p. 344, grifo do autor).

Assim, esta pesquisa se justifica pela reflexão de que a segregação racial existe desde a

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diáspora negra que levou os africanos à escravidão em todos os cantos do mundo. Na comunidade sepeense, essas marcas eram visíveis cotidianamente, já que os negros não compartilhavam sua vida social com os brancos, nem se viam representados nas páginas de jornal. Por isso, também se examina, ainda que brevemente, o contexto dos clubes sociais como territórios de segregação social, bem como questões discursivas ligadas à coluna social como gênero jornalístico. Para analisar tal contexto, o artigo se ampara em Raymond Williams, onde busca os conceitos de dominante, residual e emergente, que, articulados à noção de estrutura de sentimento, do mesmo autor, visam identificar como as características dominantes em um determinado processo ou sistema cultural presente (no caso deste estudo, a segregação social dos negros) se articulam a elementos que foram formados no passado, mas ainda estão ativos no processo cultural, isto é, as características residuais (aqui representadas pela sociedade escravagista, cujos traços ainda são perceptíveis no presente), tensionadas ainda pelas características emergentes (que no artigo se manifestam na noção de igualdade social que se traduz na gradativa aceitação de negros pelo clube dos brancos).

ESTRUTURAS DE SENTIMENTO: DOMINANTES, RESIDUAIS E EMERGENTES

Brennen (2003, p. 18, tradução nossa) afirma que “metodologicamente, estrutura de sentimento fornece uma hipótese cultural que tenta entender particulares elementos materiais de uma geração específica, num especial tempo histórico, dentro de um processo complexo de hegemonia”. Para ela, Williams vislumbrou o conceito de “estrutura de sentimento não apenas como uma construção teórica, mas também, como um específico método de análise”. (BRENNEN, 2003, p. 18) A associação de noções usualmente contraditórias promovida por Williams (2003, p. 57) — estruturas e sentimentos —, em suas palavras: “[...] é tão firme e definitiva quanto sugere a palavra ‘estrutura’, mas opera nos mais delicados e intangíveis aspectos de nossas atividades. Em certo sentido, essa estrutura de sentimento é a cultura de um período: resultado específico de todos os elementos da organização geral.” Na leitura de Higgins (1999) a Williams, é possível pensar em estrutura de sentimento como forma de desvelar convenções, no sentido de consentimentos tácitos e de padrões de aceitação entre o que é dado na esfera da produção cultural e a consciência social que daí emerge. E Filmer (2003, p. 200) acredita que com estrutura de sentimento Williams chegou a um “conceito central e carregado de sentido” que operacionalizou “[...] suas análises das relações entre as restrições estruturais das ordens sociais e as estruturas emergentes das formações interpessoais, sociais e culturais”. Por isso, para desvelar as estruturas de sentimento contidas na processualidade do sistema de segregação na sociedade de São Sepé, opera-se sua interlocução com as noções de

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dominante, residual e emergente, também formuladas por Williams (1979, 2003). Beatriz Sarlo (1997) propõe articular estrutura de sentimento com as noções de dominante, residual e emergente que Williams utiliza em Marxismo e Literatura para descrever elementos de diferentes temporalidades e origens que configuram o processo cultural. (GOMES, 2007, p. 16). Os conceitos de dominante, residual e emergente podem ser articulados como categorias analíticas dos elementos culturais retratados na coluna social do jornal Apalavra, pois se trata de aplicá-los a uma pesquisa que trabalha com dados que ao longo do tempo foram se transformando e esses conceitos oferecem a necessária contextualização no tempoespaço cultural. A noção de dominante permite reconhecer os elementos hegemônicos em uma dada cultura, a partir das relações que se estabelecem em seu interior, e de como essas relações predominam umas sobre as outras. A análise da cultura contemporânea é a análise daquilo que se configurou historicamente como dominante, juntamente com suas instituições e formações, e seus processos de imposição sobre outras forças desenvolvidas em paralelo (SILVA, 2000). A concepção de residual leva em conta que ao longo do processo histórico, novas práticas sociais emergem, valores, costumes, normas e vivências são substituídos ou mesclados por novas experiências, mas permanecem resquícios e vestígios de características do passado. Essas nuances são residuais, elementos que ainda operam no presente, porque de alguma forma, ao longo da sua trajetória na história, resistiram à cultura dominante. O residual por definição, foi efetivamente formado no passado, mas ainda está ativo no processo cultural, não só como elemento do passado, mas como um elemento efetivo do presente. Assim, certas experiências, significados e valores que não se podem expressar, ou verificar, substancialmente, em termos da cultura dominante, ainda são vividos e praticados à base de resíduo − cultural bem como social − de uma instituição ou formação social e cultural anterior. (WILLIAMS, 1979, p. 125).

A concepção emergente é resultado da tensão dos aspectos dominantes e residuais, que gradativamente perdem força diante de novas práticas sociais que emergem. O que se dá, todavia, é uma fusão entre o novo e o velho, já que há aspectos dominantes e residuais que sobrevivem ao emergente. Por isso, os resultados do exame de práticas culturais, como a que aqui se procede, não apontam em um sentido único, pois quaisquer que sejam espaços de tempo focados, o dominante inclui em sua processualidade tanto as novas práticas culturais que emergem quanto os aspectos residuais que permanecem.

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UM BREVE HISTÓRICO DE RACISMO, ESCRAVIDÃO E SEGREGAÇÃO À BRASILEIRA

Williams (2007) assinala que a falta de precisão no sentido de definir a palavra “raça” favoreceu o seu uso, sempre discriminatório, em relação a grupos diferentes como judeus, negros, orientais. E, tal discriminação é um dos fatores que desencadearam ódio racial e a cruel perseguição e extermínio, na II Guerra Mundial, de judeus, mas também de militantes comunistas, homossexuais, ciganos e tantas outras pessoas vitimadas no holocausto promovido pelo nazismo. “O preconceito e a crueldade [...] colocaram sob ameaça a necessária linguagem de reconhecimento (livre de preconceitos) da diversidade humana e de suas comunidades reais” (WILLIAMS, 2007, p. 335). Sodré (2000) afirma que a ideia de “raça” foi utilizada para tentar descrever cientificamente o problema de distância entre o paradigma branco-europeu e a diversidade das pigmentações de pele humana no mundo. Mas, sob o seu ponto de vista, o conceito de raça utilizado para diferenciar indivíduos com patrimônios genéticos diferentes não existe, o que há são diferentes fenótipos. As etnias ou as etnicizações são geralmente artefatos conceituais criados pelos grupos dirigentes para melhor controlar determinadas contradições sociais. [...] A percepção imediata classifica automaticamente, a partir de noções inventadas (“raça” ou etnia), a maioria dessas diferenças fenotípicas (SODRÉ, 2000, p. 193, grifo do autor).

Nas interações sociais ocorridas no Ocidente, os brancos, sobrepujando-se a negros, mulatos, mestiços e índios, condicionaram um sistema discriminatório chamado “racismo”, que segundo Santos (1984) não passa de uma interpretação lógica, mas errônea, do que é um grupo racial: Racismo é um sistema que afirma a superioridade de um grupo racial sobre outros [...] O que é um grupo racial? A pergunta parece tola; ninguém confunde um branco com um negro, um índio com um japonês e, se for um bom observador não confundirá, também, um judeu com um italiano. Nenhum desses grupos de pessoas é, porém uma raça. Pretos e brancos são apenas conjuntos de indivíduos que têm cores-nada mais (SANTOS, 1984, p. 11).

Assim, operando sob o racismo, o que era para ser uma comunidade sanguínea (todos são humanos do mesmo sangue) tornou-se uma comunidade de “raça”, e a maneira pela qual o “outro” ser humano, portador de características, cultura e cor diferentes, é isolado e limitado pelo ser humano dominante em dado arranjo civilizacional afeta a sua formação psicológica e social. Isso porque o diferente é identificado através do não aceite social, isto é, o racismo entra em cena na forma de premissa de não pertencimento a determinado território, e essa hipótese passa a constituir o sistema de valores dominante de uma época.

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Negros da África Ocidental foram capturados, contrabandeados, escravizados e obrigados a povoar o mundo nas “dispersões irreversíveis da diáspora negra” (Hall, 2003, p. 343). Os negros que povoaram o Brasil são provenientes de nações nativas da costa africana, em fluxo de intensidade variável. Segundo Fausto (1996), não há cálculos definidos sobre o número de escravos, estima-se que, entre 1550 e 1855, entraram pelos portos brasileiros quatro milhões, na maioria, jovens do sexo masculino que, ao desembarcarem, eram levados para mercados públicos para serem vendidos. E, como toda mercadoria, tinham um preço que variava de acordo com a maré dos negócios. Seu valor correspondia à moeda em circulação, nunca menos de mil-réis, porém, a partir de 1800, chegou aos oitocentos mil-réis devido a limitações impostas ao tráfico (LUNA, 1968). A economia no Brasil estava em fase de expansão e o trabalho braçal (não remunerado) do negro foi de grande importância em todos os afazeres: nas plantações, nos engenhos de açúcar, nas casas de famílias e nas fazendas de gado, onde os escravos se viam sob a “[...] tirania do tronco, dos bolos de palmatória, do suplício das máscaras de Flandres, das torturantes prisões em solitárias soturnas, da terrível agonia dos longos jejuns e das formas desumanas de humilhação e castigos” (LUNA, 1968, p. 19-20). O ciclo escravista, que durou do século XVI ao XIX, foi suficiente para afastar os negros de sua essência cultural e social, dando lugar à reprodução e adaptação daquilo que passavam a experenciar no cativeiro, isto é, o tipo de organização social dos brancos. Trata-se de uma lógica escravista que, gradativamente, derrubou a cultura africana para dar lugar a uma cultura escrava. Mas, desde os primeiros tempos de colônia existiram tensões entre senhores e escravos. Negros fugidos, quilombos, levantes de escravos eram episódios constantes desde o século XVI (COSTA, 1989). A escravidão passou a ser vista como uma instituição condenada a desaparecer, principalmente a partir da aprovação da Lei do Ventre Livre. [...] No entanto, nem as transformações estruturais na economia, nem a diminuição relativa da população escrava e o crescimento da população livre, nem as tentativas de substituir o escravo pelo imigrante, nem a retórica dos abolicionistas, nem a legislação emancipadora que pairava como ameaça sobre os senhores de escravos desde 1871, nem todas as condições somadas são suficientes para explicar a aprovação final da lei que aboliu a escravidão em 13 de maio de 1888. (COSTA, 1989, p. 38).

A abolição da escravatura entrou em cena com a promessa de ser um movimento em favor de uma redefinição social do trabalho produtivo e uma trégua aos sofrimentos dos negros, mas a ordem social ainda acusava a presença de elementos residuais do período escravagista. Na pós-escravidão, o negro estava liberto, mas não em novas condições e sim em diferentes condições de vida. Ele conquistou o trabalho livre, porém a segregação continuou, isto é, ainda estava em desvantagem em relação ao branco, pois sua estruturação social, psíquica e econômica guardava elementos residuais da sociedade escravocrata.

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Domingues (2007, p. 102-103) conta que “[...] para reverter esse quadro de marginalização no alvorecer da República, libertos, ex-escravos e seus descendentes instituíram movimentos de mobilização racial no Brasil, criando inicialmente dezenas de grupos (grêmios, clubes ou associações) em alguns estados da nação.” Já no século XX, os movimentos negros brasileiros se alinhariam aos conflitos entre grupos hegemônicos e marginalizados iniciados nos Estados Unidos, nos anos 1960, com a luta de líderes religiosos negros e estudantes, que foram aos poucos atraindo outros grupos de cidadãos, que passaram a se organizar por partilhar o sentimento de exclusão. Líderes como Martim Luther King e Malcom X e grupos como Black Panther e Black Power incentivaram e impulsionaram o movimento negro em direção à resistência à opressão; contudo, gradativamente, começaram a se destacar também outros tipos de movimento, como o feminista, o dos homossexuais e os de outras tantas minorias sociais. Naquele momento, emergia socialmente a importância da diversidade étnica e cultural e a necessidade de acesso igualitário a oportunidades educacionais, de trabalho e de representação social, reconfigurando os aspectos dominantes da época.

CLUBE SOCIAL COMO TERRITÓRIO DA SEGREGAÇÃO SOCIAL

Antes dessas conquistas, no entanto, os negros já buscavam organizar-se socialmente e reconstruir os próprios espaços de diálogos e práticas culturais. Por si, a necessidade desses espaços evidencia a segregação territorial, tradicional na organização social brasileira, marcada por normas de rejeição como as faixas de proibição de acesso de agregados e escravos ao interior das residências brancas (SODRÉ, 1988). De cunho eminentemente assistencialista, recreativo e/ou cultural, segundo Domingues (2007), as associações negras conseguiam agregar um número não desprezível de “homens de cor”, como se dizia na época. Algumas delas tiveram como base de formação determinadas classes de trabalhadores negros, como portuários, ferroviários e ensacadores, constituindo uma espécie de entidade sindical. Os clubes sociais negros surgiram no século XIX e, além de constituírem um local de sociabilidade e de lazer para a população negra, eram lugares de reuniões para mobilizações contra o preconceito racial, zona de pertencimento, onde se promoviam festas, batuques e outras práticas sociais identificadas com a cultura negra. Luna (1968) informa que essas associações existiram em vários pontos do Brasil, constituindo-se em espaços de expressão de construção social, patrimônio de conquista dos negros, e configurando-se em lugar de memória cultural.

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O patrimônio simbólico do negro brasileiro (a memória cultural da África) afirmou-se aqui como território político, mítico, religioso para a sua transmissão e preservação. Perdida a antiga dimensão do poder guerreiro, ficou para os membros de uma civilização desprovida de território físico a possibilidade de “reterritorializar” na diáspora através de um patrimônio simbólico (SODRÉ, 1988, p. 50, grifo do autor). 2- Entrevista concedida a Jucineide Ferreira, em 14 de julho de 2011, pelo expresidente da Associação Visconde do Rio Branco, Elpídio Santana, que ficou no cargo de 1972 a 1974. Hoje, ele luta para reabrir o clube.

Na cidade de São Sepé não foi diferente, os negros tinham seu território e vida social bem distante dos brancos, inclusive na hora de cultivar as tradições gaúchas. O Centro de Tradições Gaúchas Ronda Crioula era e ainda é o “CTG dos negros”. Em entrevista2, Elpídio Santana, declarou: Para não haver mistura de negros e brancos no outro CTG, que também era conhecido como “CTG dos brancos”, nós negros fomos aconselhados a fundar nosso próprio CTG, porque devido essa separação tínhamos o desejo de também cultuar as tradições gaúchas e por isso que CTG Ronda Crioula foi fundado (Informação verbal).

A Associação Recreativa Visconde do Rio Branco foi fundada em 23 de abril de 1953 por operários de baixa renda, quase todos descendentes de escravos. Localizado na ‘baixada’ da cidade, o Visconde teve seu auge entre os anos de 1940 e 1960, quando se tornou uma referência para os negros de São Sepé. Nas suas dependências havia atividades cívicas e esportivas, inclusive um prestigiado time de futebol. Os carnavais, o Baile da Primavera e o Baile de Revellion estavam entre as maiores festas do Visconde. “Vinha gente de todos os lugares do estado para prestigiar os bailes. Os negros separavam sua roupa de linho, e a melhor fatiota para esses eventos”, declarou Santana (Informação verbal). O clube passou por diversas mudanças de endereço até conseguir construir a sede própria, mas foi fechado em 2004 por conta de um mandado judicial, pois acumulava dívidas de água, luz e IPTU; mas desde 2006, militantes do Movimento Negro local vêm se empenhado pela sua revitalização, na qualidade de Instituição de Cultura Negra. Hoje, em São Sepé os negros reterritorializaram-se e frequentam um local que já foi somente dos brancos, o Clube do Comércio, mas o registro dessa trajetória pode ser conferido na coluna social do jornal Apalavra.

3- Para Maria (2008, p. 2), a nova forma de fazer jornalismo incluía: “Técnicas como o lead e a ‘pirâmide invertida’, implantação de novos cargos nas redações dos jornais, como o copydesk, e a adoção e criação de manuais de redação”.

COLUNA SOCIAL: BREVE HISTÓRICO DE UM GÊNERO JORNALÍSTICO

Considerado um gênero jornalístico de opinião, mas também de caráter informativo, já que registra, embora de maneira levemente persuasiva, o que está ocorrendo na sociedade (MELO, 1994), a coluna social foi fruto de uma nova forma de construir a informação3,

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começou com as gossip columns americanas e foi trazida para os jornais brasileiros. Seus temas eram ligados às famílias da alta sociedade (MARIA, 2008), constituindo-se em relatos de festas, informações fúteis, curiosidades políticas, fofocas sobre milionários, artistas e celebridades. Para Sodré (2003), a coluna social ajudou a construir uma “mitologia pequeno-burguesa” sinalizando aqueles que tinham poder e oferecendo-lhes visibilidade. A função histórica da “coluna social” era a de consagrar a modernização dos estilos de vida das elites. [...] A temperatura ideológica deste gênero, ou seja, aquilo que constituía o “tom” jornalístico da visibilidade social da nova fração de classe no poder, consistia na celebração de sinais exteriores de consumo conspícuo. (SODRÉ, 2003, p, 1, grifo do autor ).

As colunas sociais também funcionaram como um mecanismo de inclusão na elite, foram meio de inserção de novos ricos nas “altas rodas”, bastava ter seus nomes veiculados em alguma coluna social de prestígio. E não era menor o prestígio adquirido pelos colunistas. Maria (2008) cita alguns deles: Jacinto de Thormes, Ibrahim Sued e Tavares de Miranda. Na coluna social do jornal Apalavra de São Sepé, os assuntos sempre estiveram relacionados basicamente aos eventos sociais de clubes da cidade, mas dela fazem parte, também, nascimentos, falecimentos, aniversários, casamentos, formaturas, concursos de beleza, nova decoração de casas, viagens a várias partes do Brasil, inclusive a Porto Alegre ou a Santa Maria (cidade vizinha). Os textos têm no máximo um parágrafo e não há separação das informações, todas localizadas num quadro no lado esquerdo da página, uma embaixo da outra. E, como se pode observar na coleta de dados desta pesquisa, durante muito tempo, estiveram em foco, numericamente mais representados na coluna social do Apalavra, os eventos do Clube do Comércio e as festas privadas da alta sociedade branca.

DISCUSSÃO DOS RESULTADOS DA PESQUISA

A coleta dos dados, isto é, a seleção das colunas sociais do jornal Apalavra se deteve nos anos de 1966, 1971, 1980, 1990, 2000 e 2004, cada um deles representando uma década. Os jornais de 1960 e 1970 seriam a sequência inicial, porém eles foram extraviados do arquivo, e os anos de 1966 e 1971 entraram na pesquisa para suprir a falta desses documentos. No total, foram seis décadas, para verificar a visibilidade que o jornal Apalavra deu ao negro, por meio de sua coluna social, em um corpus constituído por 80 entradas dos clubes do Comércio e Visconde do Rio Branco, como mostra a Tabela 1.

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Tabela 1 – Entradas nas Colunas Sociais

Mês Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez Ano: 1966

COMÉRCIO

VISCONDE

3 3 1 4 1 4 2 4 2 3 1 4

0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0

32

0

Mês Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez Ano: 1980

COMÉRCIO

VISCONDE

0 1 0 0 2 2 0 0 0 0 1 0

0 0 1 0 0 0 0 0 0 0 0 0

6

1

Mês Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez Ano: 2000

COMÉRCIO

VISCONDE

3 0 0 0 1 0 2 1 0 1 0 2

0 0 0 1 0 0 0 0 0 1 0 0

10

2

TOTAL CLUBE DO COMÉRCIO: 71

Mês Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez Ano: 1971

COMÉRCIO

VISCONDE

2 1 1 0 0 2 1 1 1 1 1 0

0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0

11

0

Mês Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez Ano: 1990

COMÉRCIO

VISCONDE

1 0 0 2 0 0 0 1 1 0 1 2

0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 2 0

9

2

Mês Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez Ano: 2004

COMÉRCIO

VISCONDE

0 0 0 0 0 0 0 0 0 2 0 1

0 0 0 0 0 0 0 0 0 2 0 2

3

4

TOTAL CLUBE VISCONDE DO RIO BRANCO: 9

Fonte: Coleta de dados realizada pelas autoras nos arquivos do jornal Apalavra.

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Visibilidade Negra na Coluna Social do Jornal Apalavra - Ana L. C. Moraes; Jucineide T. S. Ferreira

Como se pode constatar na Tabela 1, a partir do ano de 1980 começaram a aparecer informações relacionadas ao Visconde. No dia 1º de março, há uma nota na coluna social relatando o sucesso de um baile carnavalesco ocorrido nas dependências da Sociedade Recreativa Visconde do Rio Branco. Entretanto, o nome do clube não foi citado, sua invisibilidade na coluna social apenas é alterada por uma referência ao evento “naquela Sociedade”, ou seja, a identidade negra se revela através da diferença em relação ao clube dos brancos. Trata-se do que Hall (2003) considera uma prática de significados e identificação de território, pois só é possível perceber que se trata do Visconde, por ele ser o único clube da cidade que se chama “sociedade” e porque há referência a uma fantasia cujo título é Feitiço Africano.

4- Entrevista concedida a Jucineide Ferreira, em 11 de novembro de 2011.

Além disso, as pessoas citadas na nota da coluna fazem parte de uma espécie de comitiva branca que se dirigiu ao Visconde naquela data: o prefeito e alguns outros “notáveis” da cidade. O ex-presidente do Clube do Comércio, Pedro Pinto, cuja gestão ocorreu entre 1989 e 1999, ao ser questionado sobre as razões pelas quais esse clube aparecia mais na coluna social, justificou: “O clube era o que mais organizava festas e eventos sociais, e também era ele que patrocinava a coluna social, logo quem mais aparecia era ele e seus sócios” (Informação verbal)4. A declaração do ex-presidente do Clube do Comércio corrobora uma das funções da coluna social descritas por Kovacs (apud MELO, 1994), que é de atuar como veículo de projeção de setores da economia (como o do lazer); mas reduz a questão da segregação social, ao atribuir a fatores econômicos a falta de notícias sobre o clube dos negros.

5- Entrevista concedida a Jucineide Ferreira, em 11 de novembro de 2011.

Em 1990, houve um aumento razoável de informações sobre o Visconde no jornal, como a notícia sobre a escolha da Miss Mulata. No entanto, ao divulgar a Festa do Rosário no Salão Paroquial da Igreja, que foi organizada por festeiros negros, a coluna identificou-os como “os morenos”. Francisco (2002) afirma que uma das alternativas usadas pela mídia para diferenciar negros e brancos se dá através da linguagem. No jornal Apalavra, a coluna social apela ao eufemismo “morenos” para falar de negros, como se ser negro se constituísse numa ofensa a ser atenuada com palavra menos forte. O ano de 1990 registra uma situação de confronto entre a coluna e os frequentadores do Visconde, identificados como “Negros de Mandela”, na nota em que o colunista afirmava que “quem quiser cortesia, tem que ser cortês”. O colunista Sérgio Machado relata5 que chegando ao Visconde para fazer a cobertura de um evento, membros da diretoria do clube não o deixaram entrar, e por isso publicou a nota. A polêmica deu o que falar na pequena São Sepé, e logo, o colunista redigiu um pedido de desculpa aos frequentadores do Visconde, esclarecendo que citou o nome de Mandela, por se tratar de um grande líder negro: “não houve intenção de ofender. De resto, estamos aqui e aí, para servir brancos e negros” (Informação verbal). Desse quiproquó, ressalta-se o fato de que o colunista, considerado um formador de opinião, cujas palavras repercutem no tecido social (MELO, 1994), dirigir um pedido de des-

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Visibilidade Negra na Coluna Social do Jornal Apalavra - Ana L. C. Moraes; Jucineide T. S. Ferreira

culpas aos negros se configura como um elemento emergente na cultura segregacionista dominante, pois os até pouco tempo destituídos de qualquer visibilidade na coluna social (como nos anos de 1966 e 1971), agora são alvo de atitude respeitosa. Em 2000, o Clube do Comércio passou a ter uma coluna exclusiva, localizada na terceira página, mas isso não significou que tenha deixado de ser citado na coluna social. Entretanto, em 2000 e em 2004, os eventos sociais do Visconde ganham maior visibilidade, e na coluna social são vistas chamadas para festas como a “Folia Momesca”, a visita da Escola de Samba Imperadores do Ritmo, a eleição da “Mais Bela Negra”, bem como a opinião do colunista Sérgio Machado em relação a evento ocorrido no Visconde (“a festa esteve animada”). Todavia, se considerado o espaço exclusivo do Clube do Comércio, é verificável que o colunismo social sepeense persistia em seus alvos de divulgação, que no caso da coluna do Apalavra continuavam majoritariamente direcionados à cobertura dos eventos envolviam a vida das pessoas influentes da cidade, em outras palavras, os brancos detentores do poder econômico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O racismo operou em várias frentes, e sempre esteve perceptível em fatos e acontecimentos sociais, não só no Brasil, mas em várias partes do mundo, o que, dentre outras consequências, relegou os negros à segregação e à invisibilidade social. Em São Sepé, a identidade negra e as diferenças sociais entre negros e brancos, neste artigo articulados a partir dos Estudos Culturais, revelaram aspectos residuais de uma estruturação social dominante, nos diferentes recortes no tempo focalizados na pesquisa, que remete ao regime escravocrata e suas consequências históricas. Por outro lado, na gradativa inclusão de notícias relativas ao clube dos negros, a partir da década de 1980, percebem-se aspectos emergentes na política editorial do jornal Apalavra, no sentido de promover igualdade viabilizando mais espaço de representação negra na coluna social. Contudo, a partir dos dados coletados, é possível posicionar a segregação na cidade de São Sepé, sob o ponto de vista da (in)visibilidade do negro na coluna social do jornal Apalavra. Ademais, esses dados dão conta das estruturas de sentimento de um específico — e longo — período de tempo, em que consentimentos tácitos e padrões de aceitação entre a esfera da produção jornalística e as crenças e atitudes dominantes compartilhadas por pessoas de um lugar específico, uma pequena cidade no interior do Rio Grande do Sul, convencionaram que seria preciso mais de um século após a abolição da escravatura para que negros fossem aceitos no clube dos brancos e para que ocupassem, em (quase) igualdade de condições, as páginas da coluna social.

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Visibilidade Negra na Coluna Social do Jornal Apalavra - Ana L. C. Moraes; Jucineide T. S. Ferreira

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Visibilidade Negra na Coluna Social do Jornal Apalavra - Ana L. C. Moraes; Jucineide T. S. Ferreira

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DIVERSIDADE, DIREITO À COMUNICAÇÃO E ALQUIMIA DAS CATEGORIAS SOCIAIS: DA ANOREXIA DO SLOGAN AO APETITE DA DEMOCRACIA DIVERSIDAD, DERECHO A LA COMUNICACIÓN Y ALQUIMIA DE LAS CATEGORÍAS SOCIALES: DE LA ANOREXIA DEL LEMA AL APETITO DE LA DEMOCRACIA DIVERSITY, THE RIGHT OF COMMUNICATION AND TO ALCHEMY SOCIAL CATEGORIES: ANOREXIA SLOGAN THE APPETITE OF DEMOCRACY

Daniela AUAD Doutora em Educação pela USP (Universidade de São Paulo), Pós-doutora em Sociologia pela UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas) e professora adjunta da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora)- Brasil. E-mail: auad.daniela@gmail.com

Cláudia Regina LAHNI Doutora em Ciências da Comunicação pela USP (Universidade de São Paulo), Pós-doutoranda em Comunicação pela UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e professora associada da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora)- Brasil. E-mail: lahni.cr@gmail.com

Revista Eptic Online Vol.15 n.3 p. 117-130 set.-dez. 2013 Recebido em 31/05/2013 Publicado em 02/09/2013


Diversidade, Direito à Comunicação e Alquimia das Categorias Sociais - Daniela Auad; Cláudia R. Lahni

RESUMO O artigo trava debate sobre como assegurar o direito à comunicação pode concorrer para a diversidade das identidades produzidas e reveladas pela rica mistura das especificidades das categorias sociais. A discussão sobre cidadania e homossexualidades é considerada de modo a refletir a centralidade da comunicação e a importância da visibilidade para colocar em questionamento a heteronormatividade, esta como regra produtora da homossexualidade como desvio. Da homofobia à invisibilidade lésbica, do ardente culto aos privilégios heterossexuais à negação da bissexualidade como orientação sexual possível e praticada, o texto propõe reflexões que representam a intersecção de saberes advindos das Humanidades e das Ciências Sociais Aplicadas, com a finalidade de contribuir para a construção de Políticas Igualitárias.

Palavras-chave Direito à Comunicação. Diversidade. Cidadania. Relações de Gênero. Lesbianidades.

RESUMEN El artículo se cuelga debate sobre como la manera de garantizar el derecho a la comunicación puede contribuir a la diversidad de las identidades producidas y desarrolladas por la rica mezcla de categorías sociales específicas. La discusión sobre la ciudadanía y homosexualidades es considerada que refleja la centralidad de la comunicación y la importancia de la visibilidad de poner en cuestión la heteronormatividad, esta regla como productor de la homosexualidad como una desviación. De la homofobia a la invisibilidad lesbiana, de la adoración ferviente heterosexual a la negación de la bisexualidad como una orientación sexual posible y practicada, el texto propone reflexiones que representan la intersección de conocimientos provenientes de Humanidades y Ciencias Sociales Aplicadas, con el fin de contribuir a la construcción de Políticas Equitativas. Palabras clave Derecho a la Comunicación. Diversidad. Ciudadanía. Relaciones de Género. Lesbianidades.

ABSTRACT The paper debate how to ensure the right to communication can contribute to the diversity of identities produced and developed by the rich mix of specifics social categories. The discussion about citizenship and homosexualities is considered to reflect the centrality of communication and the importance of visibility to put into question the heteronormativity, this rule as producer of homosexuality as a deviation. Homophobia lesbian invisibility, the ardent worship of heterosexual privilege denial of bisexuality as a sexual orientation possible and practiced, the text proposes reflections that represent the intersection of knowledge coming of Humanities and Applied Social Sciences, in order to contribute to building Equitable Policy. Keywords Right to Communication. Diversity. Citizenship. Gender Relations. Lesbianidades.

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Diversidade, Direito à Comunicação e Alquimia das Categorias Sociais - Daniela Auad; Cláudia R. Lahni

INTRODUÇÃO

Ao longo de nossa formação na pós-graduação, na não tão distante década de noventa, tínhamos uma professora que nos ensinava a ter cuidados – básicos, segundo ela – com a linguagem. Nesse sentido, o uso de algumas palavras era enfaticamente desaconselhado por ela. “Por meio”, “através de”, “interditado” eram exemplares das palavras desautorizadas. No entanto, nenhuma palavra merecia tanto desvelo quanto “interessante”. Esta, como nos ensinava nossa mestra, poderia, segundo ela, indicar da mais severa anorexia ao mais voraz apetite. Assim, adjetivar algo como “interessante” poderia revelar muito, pouco ou quase nada. Quase duas décadas depois, deparamo-nos com tal sentimento ao ver os mais tradicionais anseios feministas, as mais urgentes necessidades por igualdade racial, os mais justos desejos de inclusão de variados tipos, por vezes, completamente homogeneizados sob o patrocínio do uso da palavra “diversidade”. Percebemos, então, que o horror ao “interessante” tinha, afinal, algum – senão muito – sentido e, a partir de nossas melhores preocupações acadêmicas e civis, tentamos, então, romper com o esvaziamento das palavras, dos movimentos sociais e dos sujeitos que demandam por direitos, sem nos abandonar pela rejeição ao uso dos termos ou pela fácil utilização sem refletir sobre seus sentidos. Há de se considerar, tanto na tensão da escrita quanto no pensar sobre a tessitura do cotidiano e das políticas que, pesarosamente, por mais que se possa ressignificar uma série de relações, o lugar em que o poder está – ou os lugares – ainda aponta para importância da continuidade de reafirmar o que foi estabelecido, mas ainda não conquistado, há 65 anos, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

1- A palavra alquimia é adotada no presente texto, inicialmente, por força da citação do texto de Mary Castro (1992), intitulado Alquimia das categorias sociais na produção dos sujeitos políticos. Tal adoção é potencializada e fundamentada pela ideia de mistura de elementos que, ao ocorrer, transforma cada um deles, de modo a torná-los diferentes do que eram originalmente, antes de terem se misturado. Para mais referências sobre esse entendimento do termo alquimia, sobre a definição de mistura e sobre o conceito de mixité, pesquisar em Zaidan (1996), Hirata et al. (2000), Auad (2003, 2006).

É comum encontrar, na atualidade, o uso do termo diversidade como slogan que pode reforçar a invisibilidade das minorias sociais em suas especificidades geracionais, raciais, de classe, de gênero e de orientação sexual. Desde disciplinas em cursos de graduação até em textos de políticas públicas, ambos com iniciativas e intenções pretensamente igualitárias, utiliza-se a diversidade para conferir legitimidade a textos e discursos que pretendem dispensar “igual tratamento” a travestis, pessoas com deficiência, negras e negros, lésbicas e gays, população de rua, transexuais e prostitutas. Naquilo que se costuma denominar como “a melhor das intenções”, são alocados como elementos de um mesmo conjunto, em uma confusa e pouco consistente intersecção, o que é árduo objeto, precisa temática e íntegro foco de distintos e variados Movimentos Sociais e múltiplos Grupos de Pesquisa. Assim, cumpre destacar, para não se incorrer em “interessante” situação que, no escopo do presente artigo, ao utilizar o termo diversidade faz-se referência a uma maneira de perceber como as diferenças hierarquizadas são construídas a partir da combinação da categoria gênero ora com raça, ora com geração, ora com classe social, ora com orientação sexual. Seja em uma perspectiva de intersecção, seja diante da noção de alquimia1 das categorias sociais (CASTRO, 1992), a perspectiva sobre a diversidade adotada no presente texto, pode potencializar o debate, por exemplo, sobre como são construídas, mantidas ou eliminadas as desigualdades, a partir da consideração de vulnerabilidades relacionadas às variadas maneiras de ser mulher e jovem, lésbica e negra, idosa e pobre. Cada uma dessas identidades e todas elas informam e conformam diferenciais de poder construídos

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em nossa sociedade. Estas diferenças hierarquizadas, usualmente tornam as mulheres uma minoria social em relação aos homens, em variadas searas do cotidiano, como no mercado de trabalho e participação no poder. A maternidade, por exemplo, é algo que foi e é frequentemente oferecido como explicação para a exclusão das mulheres do mercado de trabalho e da participação política. Da mesma maneira, a raça foi historicamente relacionada à razão da escravização e/ou sujeição das mulheres negras. Nesses casos, os processos de diferenciação social baseados em gênero e raça produzem exclusões as quais são então justificadas em termos percebidos como biológicos (SCOTT, 2005). Há de se ressaltar que, na presente abordagem sobre diversidade, as relações de gênero são centrais e correspondem ao conjunto de representações construído em cada sociedade, com sua história, para atribuir significados, símbolos e diferenças desiguais para cada um dos sexos. As características biológicas atribuídas aos homens e às mulheres são interpretadas segundo as construções de gênero de cada sociedade. Ou, em outras palavras, o gênero faz com que percebamos o sexo biológico, pois as características e diferenças anatômicas são enxergadas e valorizadas do modo como são, e não de outro modo, graças à existência das relações de gênero socialmente construídas. Repetidamente praticadas, contadas e recontadas, estas relações vão ganhando a feição de “naturais”. Tais características são construídas historicamente, a partir do modo como as relações de poder entre alguns pares foram e vão se engendrando socialmente (AUAD, 2006).

DIVERSIDADE E A COMPREENSÃO DA DESIGUALDADE Negritude e branquitude, juventude e velhice, riqueza e pobreza, heterossexualidade e homossexualidade são pares comumente utilizados para revelar, produzir e para analisar os fenômenos sociais, ao lado dos e em conjunto aos arranjos de gênero também polarizados entre masculino e feminino. Relacionadas a essas combinações, um vasto conjunto de ideias e representações cria percepções binárias e naturalizadas, as quais serão utilizadas para “organizar” os sujeitos de modo a reforçar diferenças hierarquizadas, em uma desigual escala de valores. Essas dinâmicas e processos tornam as mulheres sujeitas a específicas vulnerabilidades, as quais correspondem a um conjunto de fatores cuja interação amplia ou reduz o risco ou a proteção de uma pessoa ou de uma população em relação a uma determinada doença, condição ou dano. Assim, ser menina adolescente, negra, homossexual e moradora da periferia são identidades exemplares de como as vulnerabilidades podem se somar e corresponder a obstáculos ao pleno desenvolvimento de um grupo populacional, causando, em última análise, e a longo prazo, um dano imenso à construção de uma sociedade que se pretende igualitária e democrática. Expressões dessas assertivas são fornecidas por dados recentes sobre as mulheres em variadas searas. Em 2012, o Brasil registrou a taxa média de desemprego de 5,5%, a mais baixa da História (AUAD, 2013). Tais boas notícias atestam o aumento dos empregos com carteira assinada e os maiores rendimentos para trabalhadores e trabalhadoras. Apesar do desenvolvimento, uma análise mais detida sobre os números no mercado de trabalho também revela desigualdades. Segundo o IBGE, uma mulher branca, com 11 anos de

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estudo ou mais, ganha algo em torno de R$ 2,2 mil. Uma mulher negra, com a mesma escolaridade, ganha 59% do rendimento recebido pela branca. Além disso, as mulheres continuam ganhando menos que os homens. Na comparação do IBGE, enquanto as mulheres ganham em média R$ 1.489,01, os homens já recebem R$ 2.048,34 (AUAD, 2013). Mesmo sendo “mais baratas” para os empregadores, menos da metade das mulheres tem empregos, em comparação com quase quatro quintos dos homens, conforme informa o Banco Mundial. Ainda com dados extraídos da situação brasileira, no ano de 2012, o Governo Federal recuou da ideia de sancionar lei que previa punição às empresas que pagassem salário menor para as mulheres contratadas para a mesma atividade realizada pelos empregados homens. A lei seria sancionada pela presidenta Dilma Rousseff, no que seria uma solenidade alusiva ao Dia Internacional da Mulher. Da alusão não sobrou nem a ilusão. Nesse episódio, a opinião de empresários de todo o País pode ter sido um dos fatores de barreiras para o igual salário para o mesmo trabalho de mulheres e homens. Setores representantes dos empresários reagiram contra a proposta e afirmaram que a implantação da lei poderia resultar na redução de vagas para mulheres no mercado de trabalho. Incoerente e ironicamente, no mesmo ano em que deixou de sancionar a lei, a presidenta fez pronunciamento em cadeia nacional de rádio e TV, por ocasião do Dia Internacional da Mulher, no qual afirmou sua “alegria de chefiar um governo que tem o maior conjunto de programas de apoio à mulher na nossa História” (AUAD, 2013). Como dado complementar, e também alarmante, no que se refere à situação de violência sexual contra mulheres e meninas, nas últimas décadas, a violência ainda é demasiadamente difundida. Por mais que se perceba melhora, em razão da criação e implantação de legislação específica, como a Lei Maria da Penha, no Brasil, 47 mil mulheres foram atendidas pelo SUS (Sistema Único de Saúde), em 2011, como vítimas de violência (AUAD, 2013). Há de se lembrar que esses são apenas os casos relatados, diante dos inúmeros silenciados. Desse total, 13 mil mulheres foram vítimas de estupro, crime que costuma não ser notificado pelas vítimas por temerem sofrer novas violências a partir da primeira, tais como linchamento moral de toda ordem, sem contar os constrangimentos em ambientes despreparados para atendê-las. Desta forma, mesmo considerando a existência de leis avançadas, o Brasil é um dos países com maiores índices de violências contra as mulheres. Há de se considerar, portanto, a violência contra as mulheres de todas as idades, raças, orientações sexuais e classes sociais como um complexo fenômeno multifacetado, sendo os eixos raça e gênero, classe e gênero, geração e gênero, orientação sexual e gênero importantes para o reconhecimento de variadas formas de violência e para o seu enfrentamento. Podem ser elementos de diferenciação, de reconhecimento e/ou de motivação de desigualdade e exclusões ser reconhecida e se reconhecer branca, negra ou indígena; heterossexual, bissexual ou homossexual; moradora da periferia, da zona rural ou do centro; idosa, jovem ou adulta. A maneira como esses elementos são considerados ou silenciados pode ser determinante tanto para o acirramento das desigualdades quanto para a construção de uma sociedade onde igualdade e diferença são colocadas a serviço da cidadania democrática. Nessa abordagem, a

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Diversidade, Direito à Comunicação e Alquimia das Categorias Sociais - Daniela Auad; Cláudia R. Lahni

diversidade, entendida também como a consideração do feixe de categorias sociais, pode ampliar o debate sobre a centralidade da comunicação, na sociedade atual, e a importância da visibilidade para a (re)configuração de identidades (HALL, 2002). Para melhor expressar o ponto de vista em pauta, cuja perspectiva vai ao encontro de assegurar o exercício e a ampliação do Direito à Comunicação, doravante o presente texto apresenta reflexões sobre ações de comunicação, no Brasil e no exterior, cidadania e homossexualidades.

DIREITO À COMUNICAÇÃO E A CONSTRUÇÃO DA DEMOCRACIA

A heterossexualidade como norma produz a homossexualidade como desvio. Não há norma sem desvio. A norma só se sustenta pela existência do desvio; a virtude pelo vício; a manutenção da saúde pela fuga de tudo quanto é socialmente percebido como doença. Esses pares, essas oposições binárias – tão constituintes também do que se conhece e se aceita como masculino e feminino – expressam a maneira como historicamente foi sendo produzida a heterossexualidade compulsória. Esta é a matriz de um conjunto de fenômenos, da homofobia à invisibilidade lésbica, do ardente culto aos privilégios heterossexuais à negação da bissexualidade como orientação sexual possível e praticada. Diante dessa dinâmica, “tornar-se” lésbica pode requerer a participação em comunidades e a adoção de discursos específicos. Como conta Stein (1997), em seu Becoming Lesbian, assumir uma identidade lésbica envolve aproximar-se da subcultura lésbica e, ao mesmo tempo, gerenciar a comunicação dessa informação estigmatizadora para com o restante da sociedade. Essa subcultura lésbica representaria uma resistência à heterossexualidade dominante, pois se trata de um espaço diferenciado - no interior da sociedade heterocentrista -, no qual as lésbicas poderiam existir e ser elas mesmas (GOMIDE, 2007). Apesar da existência desse arcabouço teórico, cuja origem se encontra em práticas disseminadas entre as mulheres, ainda hoje, absurdamente, ser chamada de lésbica ou de sapatão é algo que ainda soa como rótulo e pode ser utilizado como insulto fundamentado na interpretação negativa de comportamentos, atitudes e posturas consideradas não adequadas para o que se espera do feminino, a partir de relações de gênero tradicionais. Esse quadro desprestigioso para as lésbicas as coloca como minorias e pensar na formação identitária desse incontável grupo de mulheres se torna tarefa primeira para aqueles e aquelas que desejam, ao considerar a diversidade, debater cidadania, direitos das mulheres, direito à comunicação e movimentos sociais. Assim, o presente texto, parte do princípio da comunicação como elemento central na sociedade contemporânea; parte da percepção da mídia como espaço público. Neste locus, identidades são configuradas e reconfiguradas. Conforme Hall (2002, p. 71), “a identidade está profundamente envolvida no processo de representação” que se dá principalmente a partir dos meios de comunicação de massa. A mídia é percebida, na abordagem assumida no presente texto,

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como responsável por mediações sociais, como reguladora da relação do indivíduo com o mundo e com seus pares e, desta maneira, como agência socializadora. Diante disso, pessoas e grupos articulam suas estratégias e políticas de visibilidade identitária, em âmbito local, nacional ou mesmo transnacional, como aponta Denise Cogo (2004). A autora menciona ações de porto-riquenhos e mexicanos, nos Estados Unidos, e indígenas, no Brasil, no sentido de buscar visibilidade e reivindicar ofertas de sentidos junto à mídia massiva, com suas especificidades étnicas e culturais. Alexandre Barbalho (2005) reflete sobre a necessidade de atualização dos direitos, no contexto atual da importância da comunicação. Para o autor, é preciso se estabelecer políticas culturais que valorizem a diversidade, assim como é preciso ter uma atuação do Estado, no sentido da democratização da comunicação. O reconhecimento de nossas identidades tem dois níveis. Um, de esfera privada, que tem relação com a forma como elaboramos nosso encontro com os outros. O segundo, relacionado por esse diálogo com o externo, é o da esfera pública, onde atua a política da diferença. Para Barbalho (2005, p. 35-37, grifo nosso), “um dos pré-requisitos para que as discussões a favor do reconhecimento encontrem ressonância é, sem dúvida, a sua presença nas estruturas de comunicação”. Conforme o autor, “[...] é a mídia que nos dias de hoje detém o maior poder de dar a voz, de fazer existir socialmente os discursos. Então, ocupála torna-se a tarefa primordial da política da diferença”. Afinal, “[...] a cidadania, para as minorias, começa, antes de tudo, com o acesso democrático aos meios de comunicação. Só assim ela pode dar visibilidade e viabilizar uma outra imagem sua que não a feita pela maioria”. O conceito de minoria, trabalhado por Barbalho (2005), é definido a partir de Muniz Sodré (2005). Para este autor, são elementos distintivos daquilo que é possível ser percebido como minoria as seguintes características básicas: vulnerabilidade jurídico-social (como não ter acesso a direitos de outros grupos, tais como direito a se casar ou o direito de andar de mãos dadas sem levar uma surra); identidade in statu nascendi; luta contra-hegemônica; estratégias discursivas. Sodré (2005, p. 13, grifo nosso) postula que “[...] uma minoria luta pela redução do poder hegemônico, mas em princípio sem objetivo de tomada poder [...], a mídia é um dos principais ‘territórios’ dessa luta”. O autor afirma que “estratégias de discurso e de ações demonstrativas (passeatas [...], revistas, jornais, programas de televisão, campanhas pela internet) são os principais recursos de luta atualmente”. As formulações de Sodré (2005) sobre as minorias podem ser acompanhadas pelo que afirma Joan Scott (2005), em O enigma da Igualdade. A autora assevera que é devido às diferenças de poder entre homens e mulheres que as feministas têm se referido às mulheres como uma minoria, ainda que elas sejam mais da metade da população. Para Scott (2005), os eventos que determinam que as minorias são minorias o fazem através da atribuição do status de minoria a algumas qualidades inerentes ao grupo minoritário, como se essas qualidades fossem a razão e também a racionalização do tratamento desigual. A relação de causalidade é, de fato, inversa: os processos de diferenciação social produzem exclusões e sujeições que são justificadas por características percebidas no corpo das mulheres. Diante desse argumento, há de se questionar o que seria frequentemente oferecido

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como fator de exclusão das lésbicas. Às mulheres lésbicas recai a diferença hierarquizada do feminino (sempre em relação ao masculino como padrão hegemônico) e, soma-se a isso, a desigualdade relativa à homossexualidade. Duplamente desviantes, porque não homem e não heterossexual, as mulheres lésbicas sofrem, na maior parte do tempo, dupla discriminação, específicas desigualdades e muita invisibilidade no que se refere aos aspectos que definem sua identidade sexual e de gênero. Nesse sentido, os processos de identificação e as políticas de reconhecimento são uma necessidade e urge a construção de múltiplos modelos. Quanto mais opções disponíveis, mais possibilidades para exercício da sexualidade. E esse múltiplo leque também pode ser percebido como outra faceta da diversidade abordada no presente texto e comumente associada ao termo, tanto no meio acadêmico quanto no senso comum. Trata-se da existência de um número tal de modelos e padrões tanto quanto fosse a quantidade de tipos de pessoas que podem existir, onde quer que estejam e da maneira como desejarem ser. Trata-se de ter como modelo o não-modelo. Por mais utópica que seja essa demanda, sua simples enunciação pode ampliar as possibilidades de visibilidade das múltiplas sexualidades e concorrer para o alcance e reconhecimento de direitos básicos.

AÇÕES DE COMUNICAÇÃO E O EXERCÍCIO DA CIDADANIA 2- Segundo o conceito da

antropóloga espanhola Olga Viñuales apud Agostini (2010), ao se falar de lesbianidade, é preciso abordar três temas: relações de parceria e papéis de parentesco; gênero e práticas sexuais; coming out (o assumir-se). A partir desta visão, a estudiosa Adriana Agostini (2010, p. 48) conclui que não é possível pensar numa identidade lésbica comum a todas as mulheres . Além disso, a palavra lesbianidade vem sendo adotada pelas organizações sociais de lesbianas em oposição ao lesbianismo por sua associação com a concepção ultrapassada de homossexualidade como doença, que vigorou no Código Internacional de Doenças (CID-10) até a década de 80. Em razão deste debate, no presente texto será utilizado o termo lesbianidades.

Ao debruçar-se sobre telenovelas brasileiras e lesbianidades2, Lenise Santana Borges (2007) lembra que a visibilidade conferida pela mídia a temas e acontecimentos considerados tabus tem tido diferentes interpretações. A visibilidade lésbica na mídia pode ser notada como elemento importante para a construção e circulação de novos significados sobre aquilo que é considerado proibido. Ao lado disso, há a consideração dessa visibilidade como estratégia de resistência para grupos considerados minoritários (2007). Em um só tempo, há a concordância, por parte das autoras do presente artigo, com as observações de Lenise Borges (2007). E, apesar disso, cumpre destacar que a mídia é percebida também, no âmbito da abordagem adotada, como um locus privilegiado de manutenção de significados homogeneizantes, impeditivos do reconhecimento da pluralidade existente no cotidiano das mulheres e dos homens e obstacularizador da construção da diversidade a partir da consideração das categorias gênero, classe, raça, geração e orientação sexual. Os meios de comunicação têm responsabilidade e grande influência no que podem causar na vida das pessoas, o que elas podem vir a ser, como são e como devem ser tratadas. Se, de um lado, os meios de comunicação podem reforçar a heteronormatividade e outros ideários conservadores e produtores de desigualdades, por outro lado, a mídia também pode expressar ações progressistas, representar identidades plurais, assim como construílas, em um só tempo. As lesbianidades em ação e em construção em The L Word são exemplares desse dinâmico processo.

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Na mesma direção, há mais de dez anos, a comédia Ellen se tornava um marco para a visibilidade lésbica na mídia. Na série, que estreou em 1994 e ficou no ar até 1998, a protagonista Ellen Morgan, vivida pela comediante e apresentadora Ellen DeGeneres, é dona de uma livraria que tem que tomar conta não só dos negócios, como também de toda sua família. Em 1997, no episódio The Puppy Episode, ela se vê apaixonada por uma amiga. Numa atitude inesperada, ela se declara: “Susan, I´m gay!” (“Susan, eu sou gay!”). A comediante, com essa frase, não só assumiu sua homossexualidade no programa como na vida real, passando a aparecer nas revistas com sua então namorada Anne Heche. O episódio causou comoção nacional entre a comunidade lésbica norte-americana e, mais tarde, teve seu roteiro premiado pelo Emmy Awards 2007. Como influência positiva de sua atitude ao assumir sua lesbianidade, as pessoas passaram a ver mais e mais personagens homossexuais aparecendo nas séries (ASSIS, 2013). Essa presença concorre para ajudar a diminuir o preconceito, a partir do momento em que mostra os homossexuais não mais como caricaturas de seres humanos, estereotipadas e negativas, mas da forma como as pessoas simplesmente são, com seus conflitos, seus humores, suas características consideradas universais, suas pretensas particularidades e seus anseios. Ao obedecer a padrões de consumo e, portanto, mesmo não sendo muitas vezes observada, por olhares mais críticos, como a forma ideal, a visibilidade homossexual nas séries é uma realidade bem vinda nos dias de hoje. Quando a série Sex and The City chegava ao fim, na segunda quinzena de 2003, começaram a surgir informações sobre um novo programa que seria produzido pela rede de TV Showtime. Comentava-se que este também seria sobre um grupo de amigas e suas aventuras sexuais em uma cidade. Dessa vez, essas mulheres seriam um pouco diferentes das mostradas na série de Carrie e suas três amigas. O novo grupo de mulheres seria composto por mulheres lésbicas. Outros comentários surgiram quando foi exibida a campanha de marketing, na internet e na TV norte-americana, com os dizeres Same sex, different city (Mesmo sexo, cidade diferente). Por volta de outubro daquele ano, confirmou-se o que até então era suspeita, com a divulgação do nome da série: The L Word. A palavra com L, que se ocultava no título da novidade, era lésbica. As lésbicas ali apresentadas eram interpretadas por atrizes consideradas lindas e elegantes pelo público, em cenas sensuais divulgadas em trailers, antes do lançamento. Em dia 18 de janeiro de 2004, foi acessível à população norte-americana ver, na TV por assinatura, em menos de 1 minuto e meio de programa, um casal de lésbicas dormindo nuas em uma cama de casal, cobertas apenas por um lençol. Na cena seguinte, um beijo na boca entre ambas comemorava o fato de uma delas estar ovulando e anunciava que era o momento ideal para fazer a inseminação artificial. Em reduzidíssimo tempo de exibição, o programa já acenava com os tabus e preconceito com os quais lidaria e, por mais que as opiniões e críticas fossem diversas, fato é que pela primeira vez se produzia uma série de TV totalmente feita por, sobre e para lésbicas. Quando começou a ser exibida nos Estados Unidos, The L Word causou muitos comentários negativos. As temporadas foram passando e, após seis anos, a série terminou com saldo positivo de público e de representatividade. Quando se fala em mídia internacional

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especializada, não é incomum que se retrate The L Word como uma versão lésbica de Sex and the city. Essa comparação pode ser feita, inclusive, no que tange a padrões de relacionamento, de consumo, reforço e criação de modelos estéticos e noções de pertencimento de classe, de reconhecimento racial e distinção geracional. Vale notar que as lésbicas de The L Word, mesmo estabelecendo relações de longo prazo em alguns momentos, ou desejando isso, não pautam seu discurso na ideia de “só ser uma mulher completa dentro de uma relação”. No enredo dos episódios, elas partem do princípio que a orientação sexual cria uma série de inserções sociais que não poderiam ser pensadas fora desse contexto, um lugar diferenciado no mundo, cujo instrumento principal de agência é a ideia de que é bom ter este estilo de vida e que é bom estar “fora do armário” (VENCATO, 2005, p. 54). Na série foram mostradas algumas das muitas possibilidades de ser lésbica, em variadas identidades e diversas situações. Trata-se de obra ficcional expressiva dos dilemas, escolhas, dúvidas, conquistas e vivências de muitas mulheres homossexuais contemporâneas, não apenas norte-americanas. Talvez, em razão disso, The L Word tenha se tornado um fenômeno da TV por assinatura e da internet ao longo de suas seis temporadas – e não só para o público lésbico. Atrizes como Jennifer Beals, Pam Grier e Mia Kirshner foram escolhidas para os papéis principais; todas elas eram heterossexuais, com uma tradição de personagens consideradas sensuais, tanto no cinema quanto na TV. A atriz Jennifer Beals havia se fixado na memória de homens e mulheres com sua famosa dança e sua atitude independente e forte de construtora civil, no clássico dos anos 80 Flashdance ,1983. Também cantora, Pam Grier era conhecida como a querida de Quentin Tarantino, com quem fez Jackie Brown, 1997, uma homenagem aos vários papéis parecidos que havia interpretado nos anos 70. Mia Kirshner foi uma das vilãs de 24 Horas, 2001, no qual também interpretava uma assassina lésbica. Além delas, Karina Lombard, Erin Daniels, Lauren Holloman, Katherine Moening foram escaladas para viverem lésbicas na série. A única atriz homossexual assumida era Leisha Hailey e – justamente ela – foi convidada a viver uma bissexual, o que pode ser interpretado como uma brincadeira de “nada é o que parece ser” ou, em outras palavras, as lésbicas, as heterossexuais e as bissexuais podem todas se parecer com qualquer mulher e, ao mesmo tempo, com todas as mulheres. A série se tornou uma potente fonte de visibilidade das lésbicas e do que pode ser denominado um movimento cultural, político e social das mulheres lésbicas, assim como de suas diversas identidades. Cabe pesquisa e nunca será demais mencionar as mulheres que conseguiram, a partir da série, aceitar sua homossexualidade e se assumir, pois se viram refletidas nas situações ali mostradas. Bem antes das estreias oficiais em outros países e mesmo considerando problemas de acessibilidade, a existência de internet, com conexões banda-larga e divulgação de cópias gravadas em variadas plataformas, facilitou o acesso às séries de TV. No Brasil, no que se refere à The L Word, uma grande parte das espectadoras e espectadores do seriado, assim como da opinião da crítica especializada, foi formada com downloads dos episódios, o

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que permitia acompanhar o seriado, de muitos lugares do mundo, simultaneamente à sua estreia em solo norte-americano. O fato das pessoas terem visto a série anteriormente pela internet não atrapalhou a audiência do canal. Ao contrário, fez centenas de fãs celebrarem quando The L Word começou a ser anunciada no canal latino-americano e, da mesma forma, possibilitou que criticassem o canal quando este passou a exibir uma versão cortada e com legendas com erros e/ou adulterações de tradução. Após a exibição de três episódios, a Warner Channel, provavelmente motivada por pressão do público, reiniciou a exibição da série sem cortes, com legendas de qualidade condizente com as demais séries exibidas e inseriu na grade de programação um horário de reprise. A chegada de The L Word ao Brasil provocou a criação de diversos sites, blogs e comunidades em redes sociais. Esses também podem ser percebidos como ações de comunicação e tanto quanto a série ela mesma são bases que potencializam múltiplas possibilidades de identificação para mulheres homossexuais, bissexuais e heterossexuais. Tais identificações podem se dar pelas mulheres que aparecem na série e por aquelas que estão invisibilizadas. Trata-se de construir subjetividades, erigir maneiras de ser, revelar formas de sentir e enunciar permissões para estar tanto a partir das mulheres mostradas ao longo dos episódios quanto a partir das mulheres silenciadas na série. É possível, assim, afirmar que The L Word fez e faz diferença real e sem precedentes na conjuntura da mídia, na contemporaneidade. Como aponta Eve Sedgwick (2006), os efeitos quantitativos quanto à dramatização de mais do que um perfil de lésbica por episódio fizeram diferença qualitativa entre os telespectadores, sobretudo no que se refere à interpretação e entendimento daquilo que pode ser denominado como a realidade social no tocante às relações de gênero e diversidade sexual. Foi possível perceber variadas representações de lesbianidades ao longo das temporadas e, mesmo ao considerar essa diversidade, o seriado gira em torno de narrativas que podem aproximar as lésbicas como um único grupo, composto por incontáveis membros. Como lembra Ana Paula Vencato (2005), são abordadas a homoparentalidade com reprodução assistida, a construção de novo núcleo familiar e relacionamento com família de origem, visibilidade e todos os desdobramentos do ato de assumir-se publicamente como lésbica e/ou bissexual, conjugabilidade e práticas sexuais, homossexualidade e mercado de trabalho, homossexualidade e lazer, homossexualidade e consumo. Enfim, por mais que seja inegável a relevância de The L Word , urge relembrar que as ações de comunicação descritas acima podem ser relacionadas e percebidas como continuidade ao processo expresso por Deborah Abbot e Ellen Farmer, em seu livro Adeus, maridos (1998), ao analisarem a relação entre o Movimento Feminista e a visibilidade lésbica, na primeira década do século XX. As autoras lembram que, neste momento histórico, pela primeira vez, a lesbianidade foi usada não para descrever atos, mas para revelar uma categoria de pessoa, valorizar uma identidade. O inédito debate público a respeito de um assunto até então proibido introduziu muitas mulheres, não só as lésbicas, ao fato de mulheres se relacionarem sexualmente com mulheres. Segundo Abbot e Farmer (1998, p. 21-22), “as lésbicas ganharam um nome e, algumas, o reconhecimento de que seus sentimentos eram reais e compartilhados por outras”.

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Sem a ampla e complexa trajetória dos Feminismos, provavelmente as Lesbianidades expressas em produções como The L Word ainda estariam invisibilizadas e não é demais afirmar que a criação, produção, exibição e apropriações de The L Word podem ser debitadas nos incontáveis desdobramentos das conquistas do Movimento Feminista. Ao concluirmos este artigo, o Brasil vive um momento de debate e reivindicação do Marco Regulatório da Comunicação, cuja importância e necessidade já expressamos em outra oportunidade (LAHNI; AUAD, 2012). Uma campanha nacional busca assinaturas e apoios ao Projeto de Lei de Iniciativa Popular da Comunicação Social Eletrônica. Entre outros, em seu capítulo 2, artigo 4, o projeto de lei prevê estabelecer que A comunicação social eletrônica reger-se-á pelos seguintes princípios e objetivos: [...] promoção da diversidade regional, étnico racial, de gênero, orientação sexual, classe social, etária, religiosa e de crença [...] e o enfrentamento a abordagens discriminatórias e preconceituosas em relação a quaisquer desses atributos, em especial o racismo, o machismo e a homofobia. (PARA EXPRESSAR A LIBERDADE, 2013).

Assim, como debatido ao longo do presente artigo, The L Word é uma produção televisiva que se apresentou como importante para a visibilidade lésbica. Mais do que essa ação de comunicação pontual, entendemos a necessidade de produções sistemáticas. Nesse sentido, o Marco Regulatório da Comunicação, como já previsto no projeto de lei de iniciativa popular, pode garantir o direito à comunicação para as mulheres lésbicas de forma contínua e necessária, de modo a assegurar a representação da diversidade das identidades produzidas e reveladas pela rica mistura das especificidades das categorias sociais.

REFERÊNCIAS

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O INSTITUTO MÍDIA ÉTNICA COMO EXPERIÊNCIA DE INTELIGÊNCIA COLETIVA E CULTURA PARTICIPATIVA EL INSTITUTO MIDIA ETNICA COMO UNA EXPERIENCIA DE LA INTELIGENCIA COLECTIVA Y LA CULTURA PARTICIPATIVA THE MEDIA ETHNIC INSTITUTE AS AN EXPERIENCE OF COLLECTIVE INTELLIGENCE AND PARTICIPATORY CULTURE

Dulce Márcia CRUZ Professora doutora do Departamento de Metodologia de Ensino e do Programa de Pós-graduação em Educação, do Centro de Ciências da Educação da Universidade Federal de Santa Catarina. Bolsista Produtividade CNPq- Brasil. E-mail: dulce.marcia@gmail.com

Elias Gilberto Filimone DJIVE Possui graduação em Letras pela Universidade Eduardo Mondlane. Atualmente é docente da Escola Superior de Jornalismo, em Maputo, Moçambique. Bolsista de Mestrado do CNPq no Programa de Pós-graduação em Educação, Centro de Ciências da Educação, da Universidade Federal de Santa Catarina- Moçambique. E-mail: eliasdjive@gmail.com

Revista Eptic Online Vol.15 n.3. p.131-145 set.-dez 2013 Recebido em 14/05/2013 Publicado em 02/09/2013


O Instituto Mídia Étnica como experiência ... - Dulce M. Cruz, Elias G. F. Djive

RESUMO Este artigo visa interpretar a comunidade virtual Instituto Mídia Étnica, à luz dos conceitos de inteligência coletiva e cultura participativa, na visão de Pierre Lévy e Henry Jenkins. Outro propósito é procurar perceber como as mídias têm propiciado uma esfera pública democrática valorizando a diversidade. A pesquisa qualitativa teve um caráter etnográfico ou, mais precisamente, netnográfico, como metodologia mais apropriada para se estudar as comunidades virtuais. Resultados mostraram que o Instituto desenvolve um trabalho colaborativo usando o portal Correio Nagô para a partilha dos conteúdos entre os membros, através de comentários e propostas de solução. Por essa razão, pode ser visto como espaço alternativo, democrático e plural das vozes dos negros na Bahia, no Brasil, no continente africano e no mundo inteiro ao apropriar-se das potencialidades das tecnologias de informação e comunicação (TIC) para desenvolver, entre seus membros, a cultura participativa concorrendo, deste modo, para o desenvolvimento da inteligência coletiva.

Palavras-chave Cultura participativa. Inteligência coletiva. Netnografia. Instituto mídia étnica. Políticas identitárias.

RESUMEN Este trabajo tiene como objetivo interpretar la comunidad virtual étnico Instituto de Medios, y los conceptos de inteligencia colectiva y la cultura participativa, la visión de Pierre Lévy y Henriy Jenkins. Otro propósito es mirar para ver cómo los medios de comunicación han favorecido una esfera pública democrática, valorando la diversidad. La investigación tenía un etnográfica cualitativa o, más precisamente, netnographic como la metodología más adecuada para estudiar las comunidades virtuales. Los resultados mostraron que el Instituto desarrolla un portal de colaboración mediante el correo Nagô para compartir contenido por los miembros a través de los comentarios y propuestas de solución. Por esta razón, puede ser visto como un espacio democrático y voces plurales de los negros en Bahía, Brasil, en África y en todo el mundo mediante la apropiación de las posibilidades de las tecnologías de la información y la comunicación (TIC) para el desarrollo entre sus miembros , la cultura participativa contribuyendo así al desarrollo de la inteligencia colectiva. Palabras clave Cultura participativa. La inteligencia colectiva. Netnografía. Instituto Mídia Étnica.

ABSTRACT This paper aims to interpret the virtual community Ethnic Media Institute, and the concepts of collective intelligence and participatory culture, the vision of Pierre Lévy and Henry Jenkins. Another purpose is to look to see how the media have favored a democratic public sphere valuing diversity. The research had a qualitative ethnographic or, more precisely, netnographic as the most appropriate methodology to study virtual communities. Results showed that the Institute develops a collaborative portal using the Mail Nagô to share content by members through comments and proposed solutions. For this reason, it can be seen as democratic space and plural voices of blacks in Bahia, Brazil, in Africa and around the world by appropriating the potential of information and communication technologies (ICT) to develop among its members, participatory culture contributing thus to the development of collective intelligence. Keywords Participatory Culture. Collective intelligence. Netnography. Media Ethnic Institute.

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O Instituto Mídia Étnica como experiência ... - Dulce M. Cruz, Elias G. F. Djive

INTRODUÇÃO

1- De acordo com Lévy (2011, p. 23), “o grande movimento de desterritorialização, que começa a desenvolver-se na aura dos tempos modernos, não resulta na supressão dos territórios, mas em sua subversão, sua subordinação aos fluxos econômicos”.

A cibercultura tem como sua pauta os temas da sociedade, porque está inserida na sociedade e nas práticas cotidianas; ela ganha vida no dia a dia, dinamizando o imaginário contemporâneo e concretizando-se nas práticas. Ela permite a audição das aflições e anseios das coletividades humanas, traduzindo o pensamento plural dos indivíduos de forma “desterritorializada” e indiscriminadamente. A abertura do ciberespaço permite conceber formas de organização econômica e social centradas na inteligência coletiva e na valorização do humano em sua variedade, como aponta Lévy (2011), pois, com a desterritorialização1, tornada possível pelas novas tecnologias, o movimento no espaço e tempo ganha outra dinâmica. De tal modo que “[...] mexer-se não é mais deslocar-se de um ponto ao outro da superfície terrestre, mas atravessar universos de problemas, mundos vividos, paisagens dos sentidos” (LÉVY, 2011, p. 14). Independentemente das distâncias geográficas, os indivíduos podem partilhar os seus saberes, reunidos numa comunidade de conhecimento mais diversificada e rica em experiências, vivências, culturas e opiniões. O presente artigo pretende levar a cabo um exercício de identificar, no Instituto Mídia Étnica, o trabalho colaborativo que se relaciona com a inteligência coletiva desenvolvida por Pierre Lévy (2011), bem como o conceito de cultura participativa desenvolvido por Henry Jenkins (2012), nos seus trabalhos com a Cultura da Convergência. O nosso objetivo consiste, igualmente, em demonstrar como a convergência tecnológica tem permitido espaços de democratização dos cidadãos, de modo a que possam manifestar suas preocupações sem necessitar de usar mecanismos de representatividade tradicionalmente instituídos, nos movimentos sociais. Concomitantemente, nosso objetivo nesta pesquisa prende-se com as relações que se estabelecem entre os membros dessa comunidade, os impulsos que os movem para um fim comum relativamente à condição do negro no espaço brasileiro e internacional: na mídia, na educação, na saúde, na religião, no emprego, na arte, etc., em todas as vertentes da sociedade em que eles se sentem menos (ou não) representados, ou ainda marginalizados em detrimento dos brasileiros não negros, como em todos os continentes. Nosso interesse não consiste em delinear estratégias para a solução dos problemas do negro no Brasil e no mundo afora, mas sim compreender como as Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) têm vindo a permitir que estas comunidades online se expressem livremente, e como o Instituto Mídia Étnicas, junto com os seus membros e todos os 15 grupos que compõem a mesma comunidade, se tem beneficiado destas ferramentas contemporâneas para alcançar os seus desígnios. Nossa hipótese neste texto é que, nos propósitos desta comunidade online se encontram a inteligência coletiva e a cultura participativa, na medida em que o conhecimento é trazido pelos membros e leitores deste espaço, ao se identificarem com as causas da existência do Instituto Mídia Étnica.

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O Instituto Mídia Étnica é responsável pela produção do Correio Nagô, um portal de jornalismo sobre temas ligados à comunidade negra que permite acesso online para seus 15 grupos e que se apresenta, ao mesmo tempo, como um grupo e como um espaço de debate de diversos temas do movimento negro no Brasil. Assim, o Instituto, apesar de estar sediado em Salvador (Bahia-Brasil), ao poder ser acessado desde qualquer lugar do planeta a partir do espaço comunicativo do Correio Nagô, será aqui considerado como uma comunidade virtual ou online. Consideramos que, ao se virtualizar como rede social a partir de sua desterritorialização, o Instituto passa a integrar o ciberespaço e possuir as características definidas por Rheingold (1996, p.18), como uma comunidade virtual: uma experiência social não planejada na qual os participantes “[...] de um debate levam por diante em número e sentimento suficientes para formarem teias de relações pessoais no ciberespaço, espaço conceptual onde se manifestam palavras, relações humanas, dados, riqueza e poder dos utilizadores da tecnologia de CMC.” Para estudar essa comunidade online foi utilizada a netnografia, uma metodologia voltada para as pesquisas com comunidades mediadas pelos computadores (CMC) e como uma nova metodologia para compreender a nova realidade trazida pelo ciberespaço, assim como a sua relação com a investigação antropológica e o estudo das relações das sociedades humanas num contexto de cultura da convergência. Estas abordagens sobre etnografia são trazidas nesta pesquisa a partir de vários artigos de pesquisadoras que tiveram como suporte bibliográfico autores como Hine, Bishop, Star, Neuman, Ignacio, Sandusky e Schatz e Kozinets. Mais adiante, são definidos os conceitos de cultura participativa e inteligência e os seus impactos positivos ao abrigo da formação espontânea de opiniões em coletivos inteligentes.

CULTURA PARTICIPATIVA E INTELIGÊNCIA COLETIVA

2- Para Jenkins (2012) participação são as formas de engajamento do público moldadas pelos protocolos sociais e culturais, e não pela tecnologia em si.

Os conceitos inteligência coletiva e cultura participativa são bastante interligados, na medida em que se torna impensável conceber um trabalho colaborativo sem o envolvimento (participação2) de membros dessa coletividade engajada nessa colaboração. Por outro lado, o engajamento dos membros de uma determinada agremiação concorre para um conhecimento (inteligência) coletivo dos seus membros constituintes. Assim, trataremos destes conceitos de forma separada, como estratégia metodológica, mas, em determinadas ocasiões, iremos tocar em ambos, em simultâneo.

Cultura participativa

De acordo com Jenkins (2012, p. 378) “ [...] cultura participativa refere-se à cultura em que os fãs e outros usuários são convidados a participar ativamente da criação e da circulação de novos conteúdos”. Deste modo, esta cultura implica o engajamento de to-

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dos os membros na busca, criação, recriação, inovação, etc. de conteúdos para alimentar a comunidade. 3- Inicialmente, este termo referia-se a qualquer revelação sobre o conteúdo de uma série televisiva que talvez não fosse do conhecimento de todos os participantes de uma lista de discussão na Internet. Gradualmente, passou a significar o processo ativo de localizar informações que ainda não foram ao ar na televisão, nas palavras de Jenkins (2012).

O mesmo autor refere ainda que a era da convergência das mídias permite modos de audiência comunitários, em vez de individualizados. Assim, com o encontro das mídias (tradicionais e novas), torna-se possível aos spoiling3 avaliar o conhecimento que é veiculado pelas mídias e que entre em discordância com os princípios de igualdade racial, no caso do Instituto Mídia Étnica, ferindo a cidadania dos negros e das negras brasileiras. E a maneira democrática de produzir e avaliar o conhecimento das mídias é uma das razões que torna os spoiling uma prática mais atrativa. Na cultura participativa, supõe-se que cada pessoa tem algo a contribuir, mesmo que seja de forma provisória, instantânea. E é esta contribuição que vai concorrer para a inteligência coletiva dos membros de certa comunidade online, fortalecendo e reafirmando os laços sociais, e não a posse do conhecimento individual, particularizado, mas o processo de aquisição do conhecimento que é dinâmico e envolvente. Com as novas tecnologias midiáticas, os cidadãos estão se envolvendo cada vez mais com conteúdos das mídias tradicionais, encarando a internet como plataforma para ações coletivas, na solução dos seus problemas, deliberações públicas e criatividade alternativa. Com a convergência das mídias, as comunidades encontram novas formas de resolver os velhos e frequentes problemas que a humanidade sempre enfrentou, tanto entre os membros da sociedade, como com os líderes políticos, religiosos, midiáticos. Jenkins (2012) considera que os novos meios de comunicação não estão substituindo os velhos, mas sim os estão transformando. Devagar, mas de modo perceptível, a velha mídia, continua o autor, está-se tornando mais rápida, mais transparente, mais interativa – não porque quer, mas porque precisa. E é esta interatividade que permite a efetivação da cultura participativa, dentro das CMCs.

Inteligência Coletiva A esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos. Jürgen Habernas (1997, p. 92, grifo nosso).

O conceito inteligência coletiva é largamente desenvolvido por Lévy (2011, p. 29), segundo o qual se trata de “[...] uma inteligência distribuída por toda a parte, incessantemente, valorizada, coordenada em tempo real, que resulta em uma mobilização efetiva das competências.” A base e o objetivo da inteligência coletiva, para este autor, são “o reconhecimento e o enriquecimento mútuos das pessoas, e não o culto de comunidades fetichizadas ou hipostasiadas” (LÉVY, 2011, p. 29).

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Relativamente à distribuição da inteligência por toda parte, o mesmo autor ressalta que o conhecimento não existe confinado num só indivíduo, mas sim se encontra espalhado por toda parte; considera que não há um reservatório do conhecimento, cada um de nós sabe um pouco daquilo que constitui o conhecimento da humanidade. Deste modo, quanto melhor os grupos humanos conseguem se constituir em coletivos inteligentes, em sujeitos cognitivos abertos, capazes de iniciativa, de imaginação e de reação rápidas, melhor asseguram seu sucesso no ambiente altamente competitivo (LÉVY, 2011). Com o uso das novas TIC pelas sociedades, se fornecem instrumentos para reunir forças mentais dos grupos sociais - indignados, marginalizados etc. - seus conhecimentos, suas habilidades cognitivas com o propósito de constituir inteligentes coletivos, em direção à solução das preocupações que as mídias tradicionais (massivas e comunitárias ou alternativas), por si só não conseguem superar. Nesses grupos, apropriando-se do potencial das novas tecnologias, seus laços sociais se tornam mais fortes e coesos, na busca de criação, recriação, inovação, produção de conhecimentos coletivos, como reforça Lévy (2011, p. 64): o “[...] uso socialmente mais rico da informática comunicacional consiste, sem dúvida, em fornecer aos grupos humanos os meios de reunir suas forças mentais para constituir coletivos inteligentes e dar vida a uma democracia em tempo real.” Esta democracia em tempo real se materializa com base nas facilidades de acesso à informação que as TIC permitem, aliado à convergência dos meios e usos que vai para além dos computadores, abrangendo os celulares que, devido à evolução tecnológica, reúnem várias funções que outrora não era possível ter num só meio de comunicação. Este tipo de democracia proporcionada pelas TIC dá às coletividades humanas a possibilidade de proferir um discurso plural, sem passar por representantes institucionalmente eleitos. Mais ainda, o ciberespaço abre, hoje, incomensuráveis perspectivas de um aprofundamento das práticas democráticas. Porém, há que reconhecer que nem todos os cidadãos (especialmente negros) do Brasil têm acesso a essas TIC, o que nos permite supor que os membros da comunidade virtual, Instituto Mídia Étnica, talvez usem este espaço para reforçar as preocupações e lutas dos movimentos da população negra. As comunidades virtuais podem ser entendidas como uma estratégia do indivíduo inserido numa sociedade em rede de se fazer reconhecer por meio de uma ou várias identidades. Isso porque, segundo Corrêa (2004, p.7), o indivíduo escolhe, elege de qual comunidade virtual “[...] quer fazer parte, sendo a principal motivação o seu interesse particular em um ou mais assuntos em que percebe uma identificação e encontra pessoas com quem possa compartilhar idéias e promover discussões públicas.” Com as novas tecnologias, os membros de uma comunidade pensante, seja online ou não, examinam, registram, conectam, meditam, empreendem, e seu saber coletivo se materializa em uma gigantesca imagem eletrônica pluridimensional, quase viva em transformação permanente, florescendo aos passos das invenções, das descobertas. Assim, “[...] o intelectual coletivo agrega suas práticas, suas esperanças, seus interesses, suas negocia-

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ções, seus trasbordamentos, sedimenta seus devires subjetivos, concretiza seus afetos e, ao fazê-lo (se fazendo), produz seu mundo.” (LÉVY, 2011, p. 188). As comunidades virtuais possibilitam a aquisição de conhecimentos que levam à autodefinição dos próprios grupos, do conhecimento de si mesmo e da afirmação perante outros grupos que, de certa forma, não reconheçam as habilidades, cultura, virtualidades, identidades dos cidadãos desses grupos marginalizados. Estas comunidades, quanto mais numerosas forem, mais oportunidades têm de diversificar seus saberes e anseios, e mais enriquecem com sua variedade viva às comunidades pensantes para cuja construção elas contribuem. “Em cada mundo virtual, uma pessoa revestir-se-á de um corpo angélico diferente” (LÉVY, 2011, p. 92). Um coletivo ou comunidade humana pensante age como uma sociedade anônima dentro da qual cada um dos seus membros contribui com os seus conhecimentos, suas habilidades, suas emoções, suas crenças e seu modo de aprender e ensinar, sem que se sintam limitados. A partir da inteligência valiosa de cada membro dos coletivos inteligentes, constrói-se uma globalidade de ideias que enriquecem o pensamento do grupo e dos seus elementos.

METODOLOGIA

Os estudos sobre as comunidades virtuais vêm da década de 1990 e muitas são as abordagens e metodologias. Recuero (2005), por exemplo, entende as comunidades virtuais como redes sociais e propõe uma metodologia para seu estudo a partir da estrutura, organização e dinâmica. Para estudar os fatos e fenômenos ligados à internet, e poder interpretar o comportamento cultural da comunidade online, como é o caso do Instituto Mídia Étnica, que é o objeto desta pesquisa, recorremos à netnografia ou etnografia virtual que Hine (2008) considera como sendo a metodologia adequada para estudos qualitativos realizados nos espaços da internet. Essa é uma metodologia que olha para as pesquisas no mundo digital como sendo diferente de outros tipos de pesquisas. Daí a necessidade de haver um tratamento diferenciado pelo pesquisador quando se vão interpretar estes fenômenos que caracterizam as CMC. Deste modo, urge a necessidade de esclarecer esta nova metodologia no campo das pesquisas de comunidades online. Para o efeito, recuperamos a gênese deste conceito, que é avançado por Braga (2006, p. 4, grifo do autor) O neologismo “netnografia” (nethnography=net+ethnography) foi originalmente cunhado por um grupo de pesquisadores/as norte-americanos/ as, Bishop, Star, Neuman, Ignacio, Sandusky e Schatz, em 1995, para descrever um desafio metodológico: preservar os detalhes ricos da observação em campo etnográfico usando o meio eletrônico para “seguir” os atores.

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Outro elemento importante a referir é que o conceito netnografia é mais usado pelos estudiosos da área de Marketing digital, e etnografia virtual é amplamente usado pelos pesquisadores da área de Comunicação. Por outro lado, este conceito deriva, como se nota na associação etimológica, do conceito etnografia, que se trata de um conceito amplamente aplicado na Antropologia segundo Kozinets (2002), citado por MONTARDO e ROCHA (2005, p. 35): Netnografia é definida como um método de pesquisa que derivado da teoria etnográfica desenvolvida no campo da Antropologia e, costuma-se dizer que a netnografia tem conhecido um crescimento considerável devido à complexidade das experiências da sociedade digital.

Portanto, se a etnografia é uma metodologia científica que pressupõe o envolvimento do pesquisador com os abjetos pesquisados, face a face, a netnografia, por sua vez, exigirá do pesquisador dessas CMC o seu envolvimento para efetuar a observação participante que se recomenda nos estudos antropológicos, pois, “toda etnologia supõe um testemunho direto de uma atualidade presente” (AUGÉ, 1994, p. 75). Assim, para estudar a comunidade virtual Instituto Mídia Étnica, houve necessidade de imergir nessa CMC. Essa imersão foi possível graças a uma primeira conversa online tida com o seu criador, Sr. Paulo Rogério, explicando o nosso interesse na pesquisa com fins meramente acadêmicos e o objetivo de demonstrar até que ponto essa comunidade desenvolve os conceitos de inteligência coletiva e cultura participativa nas suas atividades. Coincidentemente, um dos objetivos desta agremiação é ser difundida pelos estudiosos, ativistas, etc. Deste modo, o nosso estudo é visto pelos membros desta comunidade como uma plataforma de divulgação, no campo acadêmico. Segundo Christine Hine (2008), como uma forma mais ativa de engajamento etnográfico, as pesquisas baseadas na etnografia virtual requerem que o pesquisador mais do que observar (de forma oculta, ou lurking) ou fazer download de arquivos nas comunidades que estuda na internet, deve se engajar com os participantes. Com isso, o pesquisador imerge com o intuito de dar sentido às pessoas, quer esse sentido seja por suposição ou pela maneira implícita em que os próprios membros integrantes dessas comunidades dão significado às intenções comunicativas. 4-Pesquisador-insider, no entendimento de Amaral (2008), permite ao pesquisador quanto aos pesquisados um nível de envolvimento e partilha de ideias no processo da própria pesquisa. Ambos, pesquisador e pesquisados, descobrem campos de pertencimentos comuns nas suas atividades cotidianas.

Braga (2006, p. 5) refere ainda que a “participação no ambiente pesquisado possibilita o ofício do etnógrafo a uma imersão e experiência efetiva”, e é esta participação que torna as comunidades virtuais mais dinâmicas e mais interessantes, pela cumplicidade que o pesquisador assume ao se tornar pesquisador-insider4 nessas práticas comunicacionais das subculturas da web. E com essas ferramentas cria-se um fluxo de devedor da participação ativa dos cidadãos - que elegem a inteligência coletiva – que trarei mais adiante – como plataforma do seu potencial.

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O INSTITUTO MÍDIA ÉTNICA

O Instituto de Mídia Étnica, objeto desta pesquisa, é uma organização da sociedade civil, sediada em Salvador (Bahia-Brasil) que realiza projetos para assegurar o direito humano à comunicação e ao uso das ferramentas tecnológicas, especialmente para a comunidade afro-brasileira. Salvador é a cidade mais negra fora da África e, para ampliar o acesso dos negros aos meios de comunicação, foi criado este instituto, em 21 de outubro de 2005, no Museu de Arte Moderna da Bahia. O mais importante dos objetivos deste instituto é lutar pela equidade racial, pela cidadania e pelo desenvolvimento social sustentável e incluir os negros em todo o processo midiático (INSTITUTO, 2005). Este grupo atualmente conta com 115 integrantes, provenientes de todos os quadrantes do mundo, independentemente da cor da pele, da condição social, da crença religiosa ou filiação partidária.

Figura 1: Logotipo do Instituto Mídia Étnica Fonte: Rede Social Correio Nagô (2012).

O Instituto Mídia Étnica é, igualmente, responsável pela produção do Correio Nagô - www. correionago.com.br - um portal de jornalismo colaborativo sobre temas ligados à comunidade negra, vencedor do edital para mídia eletrônica da Fundação Cultural do Estado da Bahia (FUNCEB) e que possui uma rede social que pode ser acessada pelo link www. correionago.ning.com. As suas principais ações prendem-se com i) advocacia para a diversidade na mídia; ii) treinamento de jornalistas e estudantes de comunicação; iii) assessoria para organizações afro-brasileiras; iv) monitoramento dos meios de comunicação; v) realização de campanhas publicitárias; vi) Media Training para lideranças de movimentos sociais; vii) Treinamento de jovens para o uso da Comunicação e viii) Produções audiovisuais. Conforme se pode notar através destas ações, trata-se de uma agremiação que vai para além de discussões políticas, mas sim preocupados com a condição do negro em todas as esferas da vida.

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O Instituto Midia Étnica e os seus grupos, todos compõem o portal Correio Nagô. Movidos pela constatação de Marcus Mosiah Garvey, na citação supra, junto com os seus membros, partem em busca de soluções para o conhecimento da sua própria história e cultura, enquanto afro-brasileiros, tal como descrevem no site: Uma das formas de resistência encontradas pelos primeiros negros escravizados trazidos à força para o Brasil foi a transmissão de conhecimento e informação através da história oral. Assim nasceria o “correio nagô”, adaptado à realidade enfrentada por cada um dos negros saudosos de sua terra, mas conscientes dos valores que naturalmente exigiam preservação. (INSTITUTO..., 2012, grifo do autor).

Movidos por esse espírito, os jovens afro-brasileiros organizaram-se para levar adiante o resgate da sua história e cultura, pretendendo, ainda, lutar contra a discriminação e exclusão sócio racial a que estão sujeitos os negros de toda a parte do mundo, e a discriminação que ocorre na mídia brasileira. Estes objetivos são perseguidos através da participação colaborativa dos seus leitores oriundos da Bahia-Brasil e do mundo: Outra missão da nossa rede social é estabelecer um canal de notícias tratando da cultura negra, possibilitando a difusão do que vem sendo produzido por diversas comunidades e grupos militantes do movimento negro. É veiculando imagens, vídeos, notícias e eventos culturais abordando a temática afro, que o Correio Nagô pretende combater uma das piores formas de marginalização do nosso tempo: a falta de acesso à informação. Informar e divertir, socializar e interagir, esses também são outros verbos que propomos aos nossos leitores, parceiros e colaboradores. (INSTITUTO..., 2012).

É nos propósitos desta comunidade online que se encontram a inteligência coletiva e a Cultura Participativa, na medida em que o conhecimento é trazido pelos membros e leitores deste espaço, ao se identificarem com as causas da existência do Instituto Mídia Étnica. De ressaltar que o Correio Nagô é o portal principal de acesso a todos os quinze (15) grupos criados pelo Instituto Mídia Étnica, e que o próprio Instituto se apresenta como um grupo e espaço de debate de diversos temas do movimento negro no Brasil. Os 15 grupos do correio Nagô respondem, cada uma a seu modo, às diversas preocupações dos negros brasileiros e de todo a parte do mundo. Daí o sucesso desta comunidade online. O Instituto Mídia Étnica criou o portal Correio Nagô: um espaço onde os negros pudessem trazer suas contribuições relacionadas às preocupações do negro no espaço midiático, nas manifestações artísticas, na educação, na religião, no emprego e negócios, na saúde, etc. A partir de um espaço que desenvolve o espírito democrático e apropriando-se das possibilidades que as novas tecnologias lhes possibilitam para desenvolver a sua interatividade, possam colaborar sem fronteiras e sem ter que, necessariamente, passar pelos representantes políticos, religiosos, entre outros.

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Figura 2 - Grupos criados pelo Instituto Mídia Étnica, e que compõem o Correio Nagô5

5- Para mais informações sobre os grupos do Correio Nagô, Cf. Instituto Mídia Étnica(2012).

Conforme se pode notar nas temáticas diferentes dos grupos, um membro ao se integrar pode eleger o grupo com o qual se identifica, em função dos seus conhecimentos e interesses. Cada grupo corresponde a um fórum no qual um determinado membro posta (indexa) uma informação obtida através de outras fontes de informação. Depois da postagem, começa uma sessão de debates, em forma de comentários a respeito dos conteúdos disponibilizados. Vale ressaltar que nem todos os grupos debatem a situação de subalternidade negra no espaço brasileiro e no mundo fora. O exemplo disso são os grupos de Diversão, de Poesia e Literatura, de Ação Social etc.

As transformações dos paradigmas comunicacionais na afirmação de identidades subalternas O que a vida e a sociedade exigem de cada um de nós é certa atenção constantemente desperta, que vislumbre os contornos da situação presente, e também certa elasticidade de corpo e de espírito, que permitam adaptar-nos a ela. Tensão e elasticidade, eis as duas forças reciprocamente complementares que a vida põe em jogo.

Henri Bergson (1983, p. 18).

A convergência dos meios de comunicação e informação tem propiciado novas formas de interação entre os atores e profissionais da comunicação no Brasil, em particular, e no mundo afora, de um modo geral. Este novo paradigma comunicacional vem permitindo que leitores, espectadores e ouvintes - por que não – usem os seus potenciais intelectuais

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para agir e reagir perante os conteúdos veiculados pelas mídias. No tocante ao Instituto Mídia Étnica, o novo cenário permite aos seus membros estabelecerem essa “tensão e elasticidade” referida por Bergson (1983) em todas as esferas – públicas e privadas – onde se sentem discriminados. Com este novo cenário, formam-se diferentes públicos, como bem os teorizou Tarde, conforme refere Carvalheiro (2010, p. 67): [...] Tarde teorizou os públicos como nova forma de sociabilidade moderna, capaz de associar indivíduos em torno de afinidades não restringidas às comunidades territoriais, mas sim numa base electiva e argumentativa capaz de formar colectivos dispostos à acção política.

A partir do entendimento desta teorização de Tarde, nota-se que a comunidade virtual em estudo reúne membros que ultrapassam as fronteiras territoriais da Bahia – sua sede – para agregar membros de todo o espaço brasileiro e da esfera transnacional. Todos se unindo por uma causa única, que é a situação subalterna dos negros e das negras na esfera política, cultural, social etc. Portanto, este espaço do ciberespaço – passe a redundância aparente -, criado por esta comunidade ético-racial, concorre para uma intervenção naquilo que são as políticas de identidade que, segundo o autor acima referido, “[...] partem de um diagnóstico acerca da opressão sistemática de grupos minoritários, cujos membros deixam de aceitar a sua inferiorização pela cultura dominante, passando a pô-la em causa.” (CARVALHEIRO, 2010, p. 70). Com efeito, os negros usam este espaço alternativo para resistir à sujeição das suas culturas pelas culturas dominantes – nesse caso as culturas dos brancos. É neste espaço que procuram reivindicar ações inclusivas na atuação dos produtores culturais – nos seriados, nos noticiários, nas telenovelas, no humor midiático etc. – e nas políticas editorias das pequenas e grandes mídias, por forma a que tenham um tratamento igualitário com os “não negros”. Diante de estágios de militância política desta camada da população brasileira, encontra-se um abrigo, senão uma lei regulatória das mídias para com grupos minoritários: No entanto, é uma exigência razoável que a mídia, para cumprir seu potencial democrático, retrate a diversidade da sociedade. A diversidade social possui várias facetas: gênero, idade, raça, etnicidade, casta, idioma, crença religiosa, capacidade física, orientação sexual, renda e classe social etc. Os órgãos da mídia detêm poder considerável para moldar a experiência de diversidade da sociedade (UNESCO, 2010, p. 35).

À luz dessa regulamentação do organismo internacional – a UNESCO – urge a necessidade de os profissionais e atores da mídia brasileira desenvolverem um espírito e agendas de inclusão racial, étnica, religiosa, social, cultural, etc. nos seus trabalhos. A mídia pode propiciar plataformas que permitam a ascensão de notabilidade desses grupos negros e

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de todas as populações discriminadas nas mídias brasileiras. No caso da comunidade em estudo, serve-se de um espaço alternativo para debater questões preocupantes no país.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O coletivo inteligente não é mais um sujeito fechado no seu único espaço geográfico, cultural, espiritual, intelectual. É, sim, um sujeito aberto a outros membros, a outros coletivos, a novos aprendizados, novas emoções, novas criações humanas que continuamente se compõe e decompõe no espaço do saber. O espaço virtual propiciado pelas tecnologias de inteligência (novas tecnologias) direciona-o a um público desterritorializado no sentido de permitir a participação dos indivíduos interessados mesmo à distância, com autonomia para formar comunidades agregadas sobre temas do mesmo interesse. A netnografia, por sua vez, torna-se uma metodologia de pesquisa favorável para pesquisas com estes coletivos inteligentes virtuais, visto que permitem a inserção do pesquisador nesses ambientes e melhor interagir com os membros das mesmas. Com a inserção do pesquisador nestas mídias alternativas, se pode observar, analisar, examinar, arguir, questionar as diversas relações de interação que ocorrem nessas CMC, tal como se verificou no Instituto Mídia Étnica, objeto deste estudo. Esta comunidade virtual, Instituto Mídia Étnica, desenvolve um trabalho colaborativo nas suas atividades, em resposta às suas preocupações inerentes à condição dos negros nas mídias brasileiras e de todo o mundo, bem como em várias vertentes da vida em que os negros são discriminados. Para o alcance dos seus objetivos, este grupo multifacetado de diversas arenas de discussão a partir da cultura participativa, rumo a uma inteligência coletiva de todos os membros que compõem este grupo, que usa o portal Correio Nagô para a partilha dos conteúdos que devem ser analisados minuciosamente pelos membros, através de comentários e propostas de solução; igualmente, divulgam todas as atividades artísticas, acadêmicas e culturais levadas a cabo pelos negros de toda parte do mundo. Efetivamente, a comunidade virtual Instituto Mídia Étnica pode ser vista como um espaço democrático e plural das vozes dos negros na Bahia, no Brasil, no continente africano e no mundo inteiro. Este Instituto apropria-se das potencialidades das TIC para desenvolvermos, entre seus membros, a cultura participativa concorrendo, deste modo, para a inteligência coletiva. No entanto, para que esse espaço seja mais efetivo, ainda é preciso lutar para diminuir as taxas de exclusão digital, especialmente no Brasil e na África, para que o acesso das populações negras a comunidades online como essa seja ampliado.

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A COMUNICAÇÃO E PARTICIPAÇÃO NAS METAS DO PLANO NACIONAL DE CULTURA: UMA APROXIMAÇÃO LA COMUNICACIÓN Y LA PARTICIPACIÓN EN LAS METAS DEL PLAN NACIONAL DE CULTURA: UNA APROXIMACIÓN THE COMUNICATION AND PARTICIPATION IN THE GOALS OF THE NATIONAL PLAN OF CULTURE: AN APPROACH

José Márcio BARROS Prof. Dr. do PPg em Comunicação da PUC Minas e da Universidade Estadual de MInas Gerais- UEMG- Brasil E-mail: josemarciobarros2013@gmail.com

Fayga Rocha MOREIRA Doutoranda do PPG em Cultura e Sociedade da UFBa.- Brasil E-mail:faygamoreira@gmail.com

Revista Eptic Online Vol.15 n.3 p. 146-161 set.-dez. 2013 Recebido em 30/05/2013 Publicado em 02/09/2013


A comunicação e participação nas metas do PNC – José M. Barros; Fayga R. Moreira

RESUMO Este texto procura desenvolver uma primeira aproximação analítica sobre as relações entre cultura e comunicação, por meio da análise da presença de propostas de comunicação nas metas do Plano Nacional de Cultura. Após uma demarcação conceitual e histórica, problematiza-se os limites e os desafios para se pensar a relação entre a participação social e planejamento de metas em políticas públicas de cultura.

Palavras-chave Políticas culturais. Comunicação. Plano Nacional de Cultura. Diversidade Cultural.

RESUMEN El texto procura desenvolver una premera aproximación analítica acerca de las relaciones entre cultura y comunicación, atravez de la análise de la presencia de propuestas de comunicacion em las metas del Plan Nacional de Cultura. Después de una demarcación conceitual y histórica, reflexiona sur los limites y desafios para pensarmos la relacion entre La participacion social y la planificación de metas en las políticas públicas de cultura. Palabras clave Políticas culturales. Comunicación. Plan Nacional de Cultura. Diversidad Cultural.

ABSTRACT This text seeks to develop the first analytical approach regarding the relationship between culture and communication, by analyzing the presence of communication proposals in the goals of the National Plan of Culture. After conceptual and historical demarcations, it discusses the limitations and challenges of these goals to think about the relation between social participation and planning in the cultural politics. Keywords Cultural Politics. Comunication. National Plan of Culture.Cultural Diversity.

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PARTICIPAÇÃO SOCIAL E POLÍTICAS DE CULTURA E DE COMUNICAÇÃO NO BRASIL - UM NOVO MODELO

1- Cf. Barros (2012). Trabalho apresentado no GT4 Políticas culturais e economia política da cultura, no 4º Encontro Nacional da União Latina da Economia Política da Informação, da Comunicação e da Cultura (ULEPICC-Brasil), realizado no Rio de Janeiro entre os dias 9,10 e 11 de outubro de 2012.

2-Cf. Pogrebinschi (2010).

Em estudo anterior1, foram realizadas algumas considerações sobre as mudanças operadas nos últimos 10 anos no Brasil, no que se refere ao modelo de construção de políticas públicas por meio da participação social. Utilizando como fontes uma pesquisa realizada pelo Instituto Universitário de Pesquisas do RJ (IUPERJ) em 20092 e informações disponíveis no portal da Secretaria Nacional de Articulação Social, órgão vinculado à Secretaria Geral da Presidência da República (BRASIL, 2013) o trabalho procurou compreender como o boom de conferências nacionais, precedidas de conferências estaduais e municipais, constitui a parte visível de um novo modo de relacionamento entre o poder público e a sociedade civil organizada. Em uma rápida exploração das informações disponibilizadas, foi possível reconhecer que dois terços das conferências nacionais já convocadas no país foram realizadas entre 2003 e 2012. Esse período coincide com o início dos governos do Presidente Lula e da Presidenta Dilma. Para que se tenha uma ideia, entre a primeira conferência, realizada em 1941 na área da saúde pública e a mais recente, realizada em julho de 2012 sobre direitos da criança e do adolescente, foram realizadas 120 conferências nacionais. Até então, duas foram realizadas na área da cultura (2005 e 2010) e uma na área da comunicação (2009). Para 2013, foram previstas mais 14 conferências, dentre elas, a terceira na área da cultura. Tais dados revelam a emergência de um novo modelo de representação, de participação e de deliberação no país, entendido aqui como espaço privilegiado de diálogo com a sociedade civil para a construção de políticas públicas. Entretanto, se consideramos o campo da cultura e da comunicação, o otimismo deve ser relativizado. Enquanto as áreas da saúde, dos direitos humanos e dos direitos das crianças e dos adolescentes, já realizaram, respectivamente, 13, 11 e 8 conferências nacionais, a comunicação e cultura parecem ainda engatinhar neste modelo de institucionalidade da participação da sociedade civil nas deliberações sobre as políticas públicas. Além do pequeno número, todas as três ocorreram muito recentemente. Outra questão que emerge neste contexto, refere-se ao debate sobre a questão de seus resultados. Ou seja, para além das evidências de que a realização das conferências evidencia avanços no modelo de participação e deliberação social, a compreensão crítica dos resultados deste mecanismo, para o planejamento e execução de políticas públicas, parece interessar cada vez mais a todos os envolvidos. Para além dos números que revelam crescimento, a questão que parece se impor é a de saber qual é o nível de eficiência, eficácia e efetividade de tais mecanismos, tanto na dimensão da consolidação de um modelo de participação quanto de planejamento e execução de políticas públicas. O desafio parece ser o de procurar medir e qualificar os processos, os resultados e os impactos de tais mecanismos e suas deliberações, enquanto modelo de definição e implementação de políticas públicas. Tal tendência vem ganhando corpo desde 1998 com a introdução do princípio de eficiência no texto constitucional brasileiro, através de sua emenda constitucional n. 19. (SILVA, 1999)

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Contudo, é necessário chamar a atenção para o fato de que, no campo jurídico e organizacional, eficiência parece ser reduzida à relação custo/benefício, ou seja, o quanto se gastou para atingir um determinado resultado. Se, por um lado, a introdução de novos mecanismos para buscar positivamente a eficiência fizeram evoluir a gestão pública, por meio da criação de agências regulatórias e executivas, criação de Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscips) e Organização Social (OS), institucionalização de termos de parceria, contrato de gestão e realização de pregão como modelo de agilização das licitações, apontando para inovações, por outro lado tal perspectiva parece reduzir e divorciar a relação intrínseca com a eficácia, além de não ser suficiente para desvendar sua efetividade. De acordo com o estudo do IUPERJ, de 3.750 projetos de lei que tramitaram pelo Congresso Nacional, 1937 (51,6%) tinham alguma afinidade com diretrizes votadas em conferências nacionais. Sintomaticamente, na análise realizada sobre a Conferência Nacional de Comunicação, a pesquisa constatou que em 2009 não houve nenhum projeto de lei ou proposta de emenda à constituição decorrente de suas recomendações finais. No que se refere à 1ª Conferência Nacional de Cultura de 2005, 57 projetos de lei ou emenda guardavam umaestreita relação com seus resultados, sendo que 6 foram transformados em leis. Em suas análises conclusivas o estudo apontou para: •

a comprovação de que “as conferências nacionais impulsionam a atividade legislativa do Congresso Nacional, fortalecendo, assim, através de uma prática participativa e deliberativa, a democracia representativa no Brasil” (POGREBINSCHI, 2010, p. 83);

o questionamento à ideia de que “formas participativas e deliberativas de democracia seriam substituíveis à representação política tradicionalmente exercida no Poder Legislativo” (POGREBINSCHI, 2010, p. 83);

a revelação de que o legislativo federal mostra-se “receptivo e permeável às demandas expressas em práticas participativas dos cidadãos e instâncias deliberativas da sociedade civil” (POGREBINSCHI, 2010, p. 83);

a reafirmação de que “democracia representativa, participativa e deliberativa, são modelos teóricos que devem ser conciliados na prática” (POGREBINSCHI, 2010, p.84);

e, por fim, que, apesar de não testadas efetivamente, duas hipóteses se mostraram positivas no estudo. A primeira constata que as deliberações de uma conferência serãotão mais informativas para o Congresso nacional quanto maior for a pluralidade de visões, valores e interesses levados em consideração; a segunda é a de que as chances de transformação das proposições em leis são maiores quanto menor for o elenco de questões tratadas em seu âmbito, o que facilita sua tramitação (POGREBINSCHI, 2010).

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Para uma melhor compreensão, um breve recuo histórico poderá auxiliar no avanço da análise. Data do final dos anos 70, com o fim da ditadura militar e início da redemocratização, o processo de transformações políticas, jurídicas e institucionais que engendraram novos modelos de relacionamento entre a sociedade civil e o Poder Público. Entretanto, é a partir dos anos 90 que tal processo se intensifica e adquire expressão local: O Brasil dos anos 90 é marcado por um conjunto de formas ampliadas de participação política, entre as quais poderíamos destacar as diferentes formas de orçamento participativo, os conselhos, além de um conjunto de formas consultivas e deliberativas de participação da população no processo de tomada de decisão acerca da distribuição de bens públicos, das políticas públicas e da deliberação sobre prioridades orçamentárias. (AVRITZER; PEREIRA, 2005, p. 17).

Vale ressaltar que nos primeiros 10 anos pós-regime militar, a participação política da sociedade se deu, especialmente, pelo aumento significativo nas formas de organização dos movimentos sociais, especialmente na criação e atuação de associações civis. Aqui, a luta pelos direitos e a superação de carências marcaram a atuação de associações de caráter comunitário e temático, que foram criadas em quantidade e velocidade expressivas, e com discursos e dinâmicas “anti-institucionais” marcantes. Com o processo constituinte no final dos anos 80, foram inaugurados novos debates e um novo modelo de participação que, segundo os autores aqui comentados, consolida uma “perspectiva de participação ampliada em um conjunto de instituições” (JACOBI, 2000; RAICHELLIS, 1999 apudAVRITZER; PEREIRA, 2005). A Constituição Federal de 1988 consolidou um momento histórico marcado por outra configuração no relacionamento entre o Estado e a sociedade civil. Para além dos movimentos sociais, emergiu, ancorado no texto constitucional, a presença mediadora de instâncias institucionalizadas de representação e participação direta, tais como conselhos e conferências. Das 120 conferências nacionais já realizadas no Brasil, 97, ou seja, 81% aconteceram após 1990. Tais dispositivos legais e arranjos institucionais criaram outras dinâmicas e práticas de participação e deliberação trazendo, ao primeiro plano da cena política, novos atores políticos e, consequentemente, desafios inéditos para o exercício do poder e da gestão pública. Ao arguir a lógica, a consistência e a exequibilidade daquilo que, na dimensão da comunicação e da diversidade cultural, se transformou em metas que devem balizar as políticas públicas de cultura no período de 10 anos, procura-se contribuir para o avanço avaliativo destes mecanismos de participação e planejamento. Em que medida a participação social nas conferências nacionais de cultura e de comunicação, traduzidas na forma de metas de ação pública e governamental, lograram resultados para a interconexão entre comunicação e diversidade cultural? Trata-se de se saber a eficiência, eficácia e efetividade deste mecanismo para o delineamento de proposições capazes de serem operacionalizadas, avaliadas e exprimirem a dimensão política da participação social.

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A AGENDA DA POLÍTICA CULTURAL NO BRASIL: ESFORÇOS EM PROL DE SUA INSTITUCIONALIDADE As conferências nacionais revelaram uma cartografia dos desejos nacionais com relação ao desenvolvimento do campo e do reconhecimento da diversidade cultural existente no país. A prioridade mais votada na II Conferência Nacional de Cultura estava relacionada ao Sistema Nacional de Cultura, o que demonstra o desejo dos atores da área por uma almejada estruturação da cultura no âmbito governamental. Do mesmo modo, na Conferência Nacional de Comunicação uma das metas prioritárias trata da proposta de criação de um sistema nacional de comunicação, que garanta a participação social na implementação de políticas públicas para a área. A diferença é que em 2010 e 2009, respectivamente, quando aconteceram as duas conferências citadas, a cultura já reivindicava a aprovação de seu sistema, enquanto a comunicação ainda estava sugerindo a criação do mesmo. No campo da cultura, desde 2002, tem-se presenciado um grande esforço, para a institucionalização dos componentesde um sistema federativo como dimensão fundamental para a gestão pública e imprescindível para o desenvolvimento cultural no país. Quando observamos o percurso histórico da relação entre cultura e Estado no Brasil, notamos quão importante é essa pauta, tendo em vista a necessidade de se superar aquilo que Albino Rubim (2007) aponta como as principais características das políticas públicas de cultura no Brasil: a instabilidade, a descontinuidade, a fragilidade e a desintegração dos órgãos, responsáveis pelas políticas culturais. É com esse panorama de [...] fragilidade institucional; políticas de financiamento da cultura distorcidas pelos parcos recursos orçamentários e pela lógica das leis de incentivo; centralização das ações do Ministério em determinadas áreas culturais e regiões do país; concentração dos recursos utilizados; incapacidade de elaboração de políticas culturais em momentos democráticos. (RUBIM, 2007, p. 29),

que Gilberto Gil ao assumir, em 2003, o Ministério da Cultura (MINC) coloca em ação um programa de governo que aponta para a necessidade de “instituição de Políticas Públicas de Cultura de longo prazo, para além das contingências dos governos” (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 2003). Quase uma década depois, o Sistema Nacional de Cultura (SNC) foi proposto, votado e incluído na constituição federal, institucionalizando um novo modelo de gestão pública que cria uma articulação entre os entes federativos e uma pactuação com a sociedade civil, visando a implementação conjunta de políticas públicas de cultura. O SNC prevê uma série de componentes interdependentes, que “interagem entre si em torno de objetivos em comum, tendo como finalidade garantir a sustentação orgânica e institucional da área cultural dos entes federados – União, Estados e Municípios” (COELHO; VILUTIS, 2012, p.5).

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3- O Sistema Nacional de Cultura foi proposto como um novo modelo de gestão pública que cria uma pactuação entre os entes federativos e a sociedade civil, visando a implementação conjunta de políticas públicas de cultura. O SNC prevê uma série de componentes interdependentes, que “interagem entre si em torno de objetivos em comum, tendo como finalidade garantir a sustentação orgânica e institucional da área cultural dos entes federados – União, Estados e Municípios” (COELHO; VILUTIS, 2012, p.5). 4- Falaremos especificamente sobre o Plano Nacional de Cultura a seguir. 5- O Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais (SNIIC) é o instrumento monitoramento do Plano Nacional de Cultura, por meio da coleta, sistematização e interpretação de dados do campo da cultura.

6- De acordo com dados do Ministério da Cultura, disponíveis em sua página institucional, entre os anos de 2002 e 2012, 98 leis de interesse ao campo da cultura foram sancionadas, ao passo que no mesmo período de 10 anos, anteriores, 1991 a 2001, apenas 41 leis foram aprovadas. É certo que a quantidade de leis não implica necessariamente qualidade ou eficácia pública e democratizante da legislação, contudo já demonstra a densidade e o espaço que o campo ganhou na gestão federal. 7-E, quiçá, esse seja o ponto mais relevante, visto que mesmo as leis sancionadas e pactuadas federativamente podem ser desarticuladas, dependendo da força política que assuma o governo no país.

Os caminhos para garantir essa institucionalidade da cultura em todas as instâncias federativas (federal, estadual e municipal) foram trilhados, em um plano macropolítico, principalmente, por meio de instrumentos, como o Sistema Nacional de Cultura3, o Plano Nacional de Cultura4 e o Sistema de Informação e Indicadores Culturais5. Ademais, inúmeras leis, decretos e portarias foram sancionados, buscando aprimorar ou abrir espaço para a cultura na gestão pública do país6. Como alerta Lia Calabre (2010), esse é um dado fundamental, visto que a legislação é um importante indicador sobre a ação do Estado em determinado campo. De um ponto de vista micropolítico, podemos afirmar que o impacto do boom de editais e prêmios na dinâmica da produção cultural brasileira e o consequente empoderamento de grupos que antes não estavam contemplados nas políticas culturais precedentes, contribuem para garantir a demanda por ações de longo prazo, ou seja, a pressão dos atores da sociedade civil envolvidos no campo da cultura também se configura como variável relevante para efetivação da institucionalidade da área na gestão pública nacional7. Ao Estado cabe, nessa nova configuração que estabelece para a cultura, “assumir plenamente seu papel no planejamento e fomento das atividades culturais”, mas tendo como referência para essa atuação a incessante participação da sociedade civil, o interesse público e a diversidade cultural (MINC, 2011, p. 6). Entendendo que dar conta da pluralidade cultural do nosso país é assunto para todo um governo e não pode se limitar a um Ministério, foi que o Minc, por meio da ausculta à sociedade nas Conferências, propôs avanços e inter-relações com outras pastas. Destaca-se aqui as metas relacionadas ao campo da comunicação que o Plano Nacional de Cultura propõe. Necessário, entretanto, sublinhar o descompasso entre esses dois Ministérios ao longo dos 8 anos de gestão de Lula, o que tornou inviável a conjugação de esforços em prol da democratização cultural, tendo o Minc atuado definitivamente fora dos preceitos neoliberais, postura bem dissonante à do Ministério das Comunicações, ainda sob forte influência da indústria cultural. Importa lembrar, entretanto, que desde o programa “A Imaginação a serviço do Brasil” (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 2003) proposta de políticas públicas de cultura escrita pela coligação que apoiou a candidatura do Presidente Lula em seu primeiro mandato, já se apresentavam diretivas de articulação entre Cultura e Comunicação, com propostas como: novos critérios de relação com as grandes cadeias de entretenimento; Conselho Nacional de Comunicação Social; redes públicas de TV; estímulo à produção e difusão cultural regional; afirmação da identidade nacional por meio das identidades culturais regionais; respeito à diversidade cultural, além de já se apontar a intenção de vincular comunicação e cultura, interação indispensável para uma efetiva democratização dos dois campos. É assim que já na 1ª Conferência Nacional de Cultura, realizada em 2005, a afirmação desse vínculo já se mostrava contundente, ao propor como um dos eixos de discussão a temática “Comunicação é Cultura”. O que se pretende aqui é verificar como no Plano Nacional de Cultura e, especialmente, em suas metas, entendidos como instrumentos políticos e de planejamento estratégico do SNC, tais proximidades se traduziram efetivamente em propostas de ações e metas.

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CRUZAMENTOS ENTRE COMUNICAÇÃO E CULTURA NO PNC E EM SUAS METAS

O Plano Nacional de Cultura (PCN), instituído pela Lei 12.343 de 2 de dezembro de 2010, é um conjunto de princípios, objetivos, diretrizes e metas que tem por finalidade o planejamento e implementação de políticas públicas de longo prazo voltadas à proteção e promoção da diversidade artística e cultural brasileira. “O PNC constitui um importante instrumento do SNC porquanto o seu conteúdo representa as motivações e as expectativas de segmentos representativos da sociedade brasileira sobre o desenvolvimento e progresso da cultura e da arte” (COELHO; VILUTIS, 2012, p.7). Tem vigência até 2020, com previsão de revisão a cada 4 anos. Tendo em vista as propostas prioritárias votadas nas conferências, fóruns, seminários e demais consultas públicas, foram definidas 53 metas para o Plano. As metas operacionalizam o PNC, na medida em que definem caminhos objetivos a serem percorridos e parâmetros para qualificar e quantificar o impacto do mesmo no cenário da cultura brasileira em 2020. No texto do Plano Nacional de Cultura, o direito à comunicação constitui-se como um de seus princípios basilares e se faz presente de forma articulada ao direito à informação e à crítica cultural, como expresso no Art. 1° inciso V. O documento expressa também, em seu Art. 3° inciso VII, como também em várias estratégias e ações que compõem seus anexos, ser papel do Estado promover a articulação das políticas publicas de cultura com as políticas de comunicação, de forma a ampliar e permitir a criação de espaços de troca entre os diversos agentes culturais, por meio de dispositivos e condições para iniciativas compartilhadas, intercâmbio e a cooperação. Afirma ainda que, desta forma, efetiva-se o aprofundando do processo de integração nacional, além de, por meio da absorção de recursos tecnológicos, contribuir para se garantir conexões locais com os fluxos culturais contemporâneos e centros culturais internacionais, estabelecendo parâmetros para a globalização da cultura. Como se pode perceber, do ponto de vista de princípios e perspectivas políticas e conceituais, o Plano Nacional de Cultura projeta sobre a comunicação um estratégico e central papel nas políticas culturais. É tanto a condição para o exercício de uma cidadania crítica, quanto mecanismo através do qual dois movimentos opostos e paradoxais podem se realizar – a integração nacional e a participação nos fluxos de trocas globalizadas. No que se refere à diversidade cultural sua presença como princípio, estratégia e conjunto de ações no Plano é ainda mais incisiva. Figura como princípio no inciso II do mesmo Art. 1° e no Art. 2° como o primeiro de seus objetivos, qual seja, o de reconhecer e valorizar a diversidade cultural, étnica e regional brasileira. Em seu Art. 3° inciso V, o PNC define como uma das competências centrais do poder público a de [...] proteger e promover a diversidade cultural, a criação artística e suas manifestações e as expressões culturais, individuais ou coletivas, de todos os grupos étnicos e suas derivações sociais, reconhecendo a abrangência da noção de cultura em todo o território nacional e garantin-

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do a multiplicidade de seus valores e formações; (MINC, 2012, p.160).

De modo geral, o Plano conjuga uma perspectiva antropológica de cultura, que integra os modos de vida, as dimensões simbólicas e os fazeres artísticos, associada a uma concepção política onde o Estado deve assumir papel regulador, indutor e fomentador, com a missão de valorizar, reconhecer, promover e preservar a diversidade cultural existente no país, por meio de estratégias que possam Proteger e promover a diversidade cultural, reconhecendo a complexidade e abrangência das atividades e valores culturais em todos os territórios, ambientes e contextos populacionais, buscando dissolver a hierarquização entre alta e baixa cultura, cultura erudita, popular ou de massa, primitiva e civilizada, e demais discriminações ou preconceitos. (MINC, 2012, p.168, grifo do autor). e Difundir os bens, conteúdos e valores oriundos das criações artísticas e das expressões culturais locais e nacionais em todo o território brasileiro e no mundo, assim como promover o intercâmbio e a interação desses com seus equivalentes estrangeiros, observando os marcos da diversidade cultural para a exportação de bens, conteúdos, produtos e serviços culturais. (MINC, 2012, p.169, grifo do autor).

Espera-se que, com o PNC, se realize uma operação histórica de adequação da legislação e da institucionalidade das políticas públicas de cultura, de modo a atender à Convenção da Diversidade Cultural da Unesco e a firmar “a diversidade no centro das políticas de Estado e como elo de articulação entre segmentos populacionais e comunidades nacionais e internacionais”. (BRASIL, 2010) Trata-se aqui, também, de uma perspectiva ampla e complexa de se pensar a diversidade cultural por meio do enfrentamento de paradoxos: articular ações de reconhecimento e reforço identitário, com a dissolução de hierarquias, e articulação e diálogo com outras culturas. Avançando para além dos aspectos conceituais e de princípios, a análise comparativa entre as estratégias/ações e as metas, revela que as primeiras se mostram bem mais amplas e complexas que as últimas. Ou seja, as metas aprovadas e votadas não realizam em seu conjunto, todas as ações e estratégias delineadas. A explicação para isso pode ser desdobrada em duas hipóteses. A primeira refere-se à metodologia adotada. Partiuse primeiro de um rol de ações garimpadas dos documentos das conferências nacionais realizadas, o que resultou em centenas de propostas que se sobrepunham e por vezes se repetiam e só depois foram formatadas as estratégias e metas. O que acabou produzindo um certo desencaixe entre a expressão política e a função de planejamento do Plano, reforçada (e aqui a segunda e complementar explicação) pelo desnível entre o vigor da participação popular e suas reivindicações e a fragilidade do processo de mediação, necessário para transformar reivindicações legítimas em componentes lógicos e operacionalizáveis de política pública.

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Vejamos como isso acontece. No que se refere à comunicação, é possível identificar cerca de 15 estratégias e ou ações voltadas à comunicação, que propõem: •

Aprimoramento e ampliação de mecanismos de comunicação e de colaboração entre os órgãos e instituições públicos e organizações sociais e institutos privados, de modo a sistematizar informações, referências e experiências;

Ampliação de linhas de financiamento e fomento à produção independente de conteúdos para rádio, televisão, internet e outras mídias, democratizando os meios e valorizando a diversidade cultural;

Participação dos órgãos gestores da política pública de cultura no debate sobre a atualização das leis de comunicação social;

Adequação da regulação dos direitos autorais ao uso das novas tecnologias de informação e comunicação;

Estabelecimento de articulações entre as diversas instâncias de governo e os meios de comunicação públicos, de modo a garantir a transversalidade de efeitos dos recursos aplicados no fomento à difusão cultural;

Desenvolvimento de uma rede de cooperação entre instituições públicas federais, estaduais e municipais, instituições privadas, meios de comunicação e demais organizações civis para se promover o conhecimento do patrimônio cultural, por meio da realização de mapeamentos, inventários e ações de difusão;

Fomento ao emprego das tecnologias de informação e comunicação, como as redes sociais, para a expansão dos espaços de discussão na área de crítica e reflexão cultural;

Incentivo à realização de projetos de pesquisa sobre o impacto sociocultural da programação dos meios de comunicação concedidos publicamente;

Utilização de novas tecnologias da informação e da comunicação em estratégias de ampliação de oferta e redução de preços de produtos, bens e serviços culturais;

Estímulo à criação de programas nacionais, estaduais e municipais de distribuição de conteúdo audiovisual envolvendo os meios de comunicação e circuitos comerciais e alternativos de exibição (cineclubes, centros culturais, bibliotecas públicas, museus, rede de videolocadoras);

Ampliação do acesso dos agentes da cultura aos meios de comunicação;

Realização de programas de formação e capacitação para artistas, autores, técnicos, gestores, produtores e demais agentes culturais, para o uso das tecnologias de informação e comunicação;

Promoção de formas de apropriação social das tecnologias da informação e da comunicação de forma a para ampliar o acesso à cultura digital e suas possibilidades de produção, difusão e fruição;

Envolvimento dos órgãos, gestores e empresários de turismo para a difusão de atividades culturais para fins turísticos;

Utilização de sistemas de comunicação, principalmente, internet, rádio e televisão, para ampliar os processos e as instâncias de consulta, participação e diálogo para a formulação e o acompanhamento das políticas culturais.

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Quando exploramos as metas construídas para o PNC, descobre-se que este conjunto de propostas, que se referem a uma gama complexa de aspectos, dimensões e desdobramentos do campo comunicacional e sua interface com a cultura, foram transformadas em 3 metas que tratam da questão diretamente e outras 2 como referências indiretas. A meta 43 fala da implantação em todas as Unidades da Federação de um núcleo de produção digital audiovisual e de um núcleo de arte tecnológica e inovação. A ideia é que tais núcleos possam efetivar o diálogo entre cultura, comunicação, arte e tecnologia, oportunizando ambientes de encontro e compartilhamento. 8- O Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) é uma dotação específica do Fundo Nacional da Cultura (FNC), e tem como objetivo fomentar o desenvolvimento articulado de toda a cadeia produtiva da atividade audiovisual no Brasil. Foi criado pela Lei nº 11.437, de 28.12.2006 e regulamentado pelo Decreto nº 6.299, de 12.12.2007.

A meta 44 propõe níveis de participação da produção audiovisual independente brasileira na programação dos canais de televisão, na seguinte proporção: 25% nos canais da TV aberta; 20% nos canais da TV por assinatura. Aqui a perspectiva é a de induzir um comprometimento das empresas de comunicação com a divulgação da diversidade cultural regional e nacional, visando o estímulo à produção independente, através do fomento do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA).8 Já a meta 45 assume o compromisso de realizar em 450 grupos, comunidades ou coletivos, ações de comunicação para a cultura. Em seu texto, o Caderno de metas do PNC explicita que o público prioritário desta meta são as mulheres, os negros, os indígenas, os quilombolas, os ribeirinhos, os trabalhadores rurais, as pessoas com deficiência, os segmentos sociais Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros (LGBTs). A meta será realizada através do já existente programa Cultura Viva e da criação de um novo programa intitulado Comunica Diversidade, cujo objetivo é desenvolver processo de formação, disponibilização de conteúdos de comunicação para a cultura e oferta de infraestrutura. De forma indireta, a comunicação aparece na meta 32, com o compromisso de investimento para a manutenção, modernização e comunicação de bibliotecas públicas em todos os municípios brasileiros; e na meta 35, que inclui a comunicação como campo de competência na capacitação de gestores culturais. Como se pode perceber, as metas possuem uma grande coerência com o conjunto de ações e estratégias apresentadas no PNC, entretanto, não abarcam a totalidade e complexidade dessas últimas. Importante ressaltar que um dos documentos que serviu de referência para a construção das metas do PNC foi o diagnóstico do campo público de televisão, desenvolvido a partir do 1º Fórum Nacional de TVs Públicas (MINC, 2006). Nesse documento, Gilberto Gil, então Ministro da Cultura, justifica, assim, o interesse estratégico da comunicação – nesse caso, especificamente, da televisão – como dimensão crucial para propiciar o desenvolvimento da cultura: De forma mais geral, a televisão precisa ser compreendida como um fenômeno cultural global. Ela transmite e é ela própria um objeto cultural. A televisão produz imagens, sons e significados não apenas quando transmite programas de inclinação artística: a televisão interage com o simbólico dos brasileiros a cada momento. Na novela, no futebol de domingo e na propaganda. (MINC, 2006, p.4).

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É com esse entendimento de que comunicação e cultura formam um par indissociável que a análise da relação das metas e as ações deve ser empreendida. Pode-se dizer que todas elas têm como objetivo primordial promover a criação, o acesso e a fruição de representações da pluralidade cultural brasileira, em vista de um processo histórico de subrepresentação dessa diversidade nos meios de comunicação de massa. Para que os meios de comunicação assumam um [...] potencial de inclusão é preciso que exista um terreno propício que, antes de tudo, as considere um novo problema social, exatamente porque não funcionam, entre nós, como meras tecnologias da informação, mas como novos espaços de sociabilidade aos quais confiamos força suficiente para instaurar mudanças efetivas no que conhecemos por real. Daí o seu caráter político, afinal, eles não se comportam como pura mímesis de uma realidade já dada a priori (MOREIRA, 2009, p. 52).

E esse cenário de desigualdades e dissonâncias nas mídias tem relação direta com as elevadas margens de concentração destas, não condizentes com os ideais de democratização. Algumas consequências decorrentes desse quadro – extremamente desfavorável para o diálogo intercultural, vale lembrar – são: centralização geográfica da produção de conteúdos e informações, empobrecimento da diversidade de olhares e interpretações sobre a realidade, orientação comercial para produção e difusão dos conteúdos, falta de oportunidade dos médios e pequenos produtores, dentre outras (BECERRA; MASTRINI, 2010). Todo esse cenário de alta concentração na propriedade e gestão dos circuitos infocomunicacionais combina-se com uma “debilidade dos poderes públicos para dispor de regras de jogo equânimes que garantam o acesso dos diferentes setores sociais, políticos e econômicos à titularidade de licenças” (BECERRA; MASTRINI, 2010, p. 94). Essa confluência leva a uma dificuldade de regulação do circuito infocomunicacional, o que acirra o predomínio de representações, estética e discursos por setores restritos desse contexto tão plural. (MOREIRA, 2010, p. 4)

Em vista deste panorama, o PNC apresenta um conjunto de ações, estratégias e metas que buscam equacionar as demandas do campo cultural com as potencialidades e restrições do campo da comunicação. Se levarmos em conta as propostas de ação apontadas por Alfons Matinell Sempere (2010) como necessárias para concretização de políticas públicas mais efetivas voltadas para a relação entre cultura, comunicação e desenvolvimento observa-se que o Ministério da Cultura além de ter dado passos importantes nessa direção nos últimos anos. Tomando como referência o caso do PNC, mais especialmente, fica evidente o estímulo à criação de olhares diferenciados e plurais por grupo antes sub-representados nos meios de comunicação de massa, bem como o fomento à produção de material audiovisual por grupos, empresas ou profissionais independentes. Entretanto, ao se analisar as relações entre ações, estratégias e metas, que tratam especificamente da comunicação e da diversidade cultural no PNC, percebe-se uma desproporção entre o reconhecimento de sua importância e a operacionalidade, a eficiência, eficácia e efetividade das mesmas na reversão do quadro atual. A instalação, em cada um dos

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estados, de um núcleo de produção digital audiovisual e um núcleo de arte tecnológica e inovação se mostra mais uma meta de efeitos políticos que efetivamente de reversão do quadro de sub-representação midiática. Os circuitos de criação e produção na atualidade apontam mais para a necessidade de acessibilidade e formação do que de instalação centralizada de unidades produtivas. A digitalização dos meios de criação cria a possibilidade de novos arranjos produtivos e de compartilhamento que suplantam as possibilidades de unidades centralizadas. Neste sentido, acreditamos ser mais eficaz e efetivo o barateamento e a democratização do acesso a softwares e equipamentos, associados a circuitos de visibilidade e intercâmbio, do que a instalação de unidades físicas que dependem de estruturas burocráticas. A meta 44, é uma realidade em implementação na TV a cabo e nas TVs públicas, já demonstrando sua pertinência. O próprio Minc reconhece que essas ações só produzirão o impacto desejado caso as empresas de comunicação se comprometam a veicular esses olhares plurais, visto que a programação dos canais de televisão ainda não exibe conteúdos da produção audiovisual independente brasileira na proporção almejada na meta 44 do PNC. Porém, como observa o próprio texto dessa meta, essa situação pode mudar com a regulamentação da Lei 12.485/2011 (BRASIL, 2011), que estabelece cotas de conteúdo independente brasileiro na TV por assinatura e determina o monitoramento da programação. “Embora essa lei seja restrita à TV por assinatura, é possível que ela tenha consequências na TV aberta, pois, com a maior circulação de produções independentes nacionais nesse mercado, será possível incluir essas obras também na TV aberta” (MINC, 2012, p. 119). No que se refere à meta 45, que propõe que 450 grupos, comunidades ou coletivos sejam beneficiados com ações de comunicação para a cultura, se configura mais como um marcador político, que uma meta de planejamento de políticas, o que não tira sua importância, mas impede a visualização do que será realizado efetivamente em nome da articulação cultura e comunicação. É inevitável reconhecer que as metas apresentadas no PNC, expressam o anseio daqueles envolvidos com o fazer cultural e as estratégias do Minc para a superação das barreiras que reprimem a visibilidade da diversidade cultural e da riqueza simbólica. Aos poucos, mas com metas já traçadas e uma agenda já organizada, espera-se que as mesmas sejam removidas, a partir de vontade e deliberação política para se frear a força dos monopólios de comunicação frente ao poder público e aos governos, mas também pela pressão social voltada à priorização do direito à comunicação e à sua democratização. Afinal, não é possível falar de democracia sem garantir um mínimo de equanimidade de representação da diversidade cultural no espaço público e nas instâncias e práticas midiáticas. As provocações pontuadas pelo coletivo que desenvolveu a Lei da Mídia Democrática, “uma proposta da sociedade civil para a democratização das comunicações no Brasil”, sugerem questões interessantes: Pare e pense! Como o índio, o negro, as mulheres, os homossexuais, o povo do campo, as crianças, aparecem na televisão brasileira? Como os cidadãos das diversas regiões, com suas diferentes cultu-

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ras, etnias e características são representados? A liberdade de expressão não deveria ser para todos e não apenas para os grupos que representam os interesses econômicos e sociais de uma elite dominante? Existem espaços para a produção e veiculação de conteúdos dos diversos segmentos da sociedade na mídia brasileira? (FNDC, 2013).

A despeito do amadurecimento da percepção da importância da comunicação para o campo da cultura e para a promoção da diversidade cultural, as metas do PNC apresentam tanto do ponto de vista quantitativo, quanto do ponto de vista da tríade eficácia/eficiência e efetividade, algumas limitações. Essa percepção não condena tais metas ao fracasso, afinal representam o atual estágio de institucionalidade e participação social. Mas são seus desdobramentos é que poderão causar um impacto positivo nos modos de representação e de reconhecimento da diversidade cultural que compõe o país. Sugere, entretanto, a necessidade de se aliar os esforços de sua consecução já à sua imediata superação com novas perspectivas e proposições. As metas do PNC parecem ser mais eficientes e eficazes como expressão parcial do processo político de discussão da relação entre a cultura e a comunicação do que como conjunto de ações, estratégias e metas que planejam o modo de se produzir tal articulação. É a expressão de um momento de maturidade e convergência dos diversos atores do campo da cultura e seu olhar para a comunicação, mas ainda parece estar distante de se constituir como instrumento capaz de gerar efetivas transformações. O anseio é maior que os caminhos traçados. Cabe relembrar e salientar que as metas do PNC estão vinculadas à implementação do Sistema Nacional de Cultura, uma proposta de institucionalização da cultura que pretende estar instituído em todos os estados e em pelo menos 60% dos municípios brasileiros. Essa capilaridade também deve ser mencionada como um fator positivo para operacionalizar e reforçar a relação entre comunicação, cultura e diversidade, afinal, ainda que atuem somente como diretrizes para a formulação e implementação de políticas culturais, as metas do plano apontam para um horizonte que rompe com os descompassos entre a expressiva riqueza cultural no país e a pobreza dos olhares veiculados em nossos meios de comunicação.

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DIREITO À COMUNICAÇÃO, LIBERDADE DE EXPRESSÃO E MARCHA DA MACONHA DERECHO A LA COMUNICACIÓN, LIBERTAD DE EXPRESIÓN Y MARIJUANA MARCH RIGHT TO COMMUNICATION, FREEDOM OF SPEACH AND MARIJUANA MARCH

Fernando Oliveira PAULINO Doutor, Msc. e Bacharel em Comunicação, Professor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília(UnB). Coordenador do Grupo "Ética, Liberdade de Expressão e Direito à Comunicação" e Diretor da Associação LatinoAmericana de Investigadores da Comunicação(ALAIC)Brasília -Brasil . E-mail: fopaulino@gmail.com

Jeronimo Calorio PINTO Bacharel

em

Comunicação pela Universidade de Brasília(UnB). Brasília - Brasil E-mail: jero.cp1@gmail.

Revista Eptic Online Vol.15 n.2 p.162-176 set.-dez. 2013 Recebido em 02/05/2013 Publicado em 02/09/2013


Direito à Comunicação, Liberdade de Expressão... - Fernando O. Paulino; Jeronimo C.Pinto

RESUMO O artigo busca refletir sobre decisões de Tribunais de Justiça do Rio de Janeiro, São Paulo, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Distrito Federal; e do Supremo Tribunal Federal (STF) relativa a organizações da Marcha da Maconha e o direito à comunicação. A pesquisa leva em conta o contraste entre as proibições ao evento em âmbito estadual e a decisão do STF que permitiu a realização das Marchas a partir de 2011, quando a matéria tramitou e recebeu a autorização dos ministros por meio de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 187). Através da análise baseada em pesquisa bibliográfica de assuntos relacionados para a formulação do referencial teórico associado à hermenêutica da profundidade (THOMPSON, 2002), utiliza-se do escopo do direito à comunicação, da liberdade de expressão e do direito de reunião para comparar diferenças e semelhanças entre as decisões judiciais. Enquanto alguns tribunais que proibiram interpretaram como danoso à sociedade um movimento que supostamente fazia apologia às drogas, outras instâncias estaduais e o STF consideraram como vitais à democracia movimentos que visem à liberdade de expressão por meio da disputa de ideias, base da democracia.

Palavras-chave Liberdade de expressão. Direito à comunicação. Direito à reunião. Marcha da Maconha.

RESUMEN Este trabajo busca reflexionar sobre las decisiones de los Tribunales de Justicia de Rio de Janeiro, São Paulo, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Distrito Federal, y el Tribunal Supremo (STF) sobre las organizaciones de la Marijuana March y el derecho a comunicarse. La investigación toma en cuenta el contraste entre las prohibiciones para el evento en la decisión de la Corte Suprema del estado y permitió la realización de las marchas a partir de 2011, cuando fue procesado y recibió la autorización de los ministros a través de denuncia por infracción de precepto fundamental (la materia ADPF 187). A través del análisis basado en una revisión de la literatura de las cuestiones relacionadas con la formulación del marco teórico asociado a la profundidad de la hermenéutica (Thompson, 2002), utiliza el alcance del derecho a la comunicación, la libertad de expresión y el derecho a reunirse para comparar diferencias y similitudes entre las decisiones judiciales. Mientras que algunos tribunales han prohibido interpretado como perjudicial para la sociedad un movimiento que supuestamente estaba alabando las drogas, otras entidades estatales y el Tribunal Supremo consideró como vital para los movimientos democráticos que buscan la libertad de expresión a través del concurso de ideas, base de la democracia. Palabras clave Libertad de expresión. Derecho a la comunicación. Derecho de reunión. Marijuana March.

ABSTRACT This paper intends to make a reflection about decisions of the Courts of Justice of Rio de Janeiro, São Paulo, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Distrito Federal, and Supreme Court (STF) on organizations Marijuana Marc and the right to communicate. The research takes into account the contrast between the prohibitions to the event at the state Supreme Court decision and allowed the realization of the Marches from 2011, when the matter was processed and received the authorization of ministers through complaint of breach of fundamental precept (ADPF 187). Through analysis based on a literature review of issues related to the formulation of the theoretical framework associated with the depth hermeneutics (Thompson, 2002), uses the scope of the right to communication, freedom of expression and the right to assemble to compare differences and similarities between judicial decisions. While some courts have banned interpreted as harmful to society a movement that supposedly was praising drugs, other state entities and the Supreme Court considered as vital to democracy movements that seek the freedom of expression through the contest of ideas, the basis of democracy. Keywords Freedom of expression. Right to communication. Right to assemble. Marijuana March.

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INTRODUÇÃO O presente artigo pretende analisar e comparar decisões judiciais a respeito da organiza-

1- Incitar, publicamente, a prática de crime.

2- Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime.

3- Associarem-se mais de três pessoas, em quadrilha ou bando, para o fim de cometer crimes.

4- Induzir, instigar ou auxiliar alguém ao uso indevido de droga.

ção de edições da Marcha da Maconha emitidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e por tribunais estaduais de Pernambuco, Paraíba, São Paulo, Rio de Janeiro, Distrito Federal e Rio Grande do Norte a partir do conceito de direito à comunicação como instrumento de multiplicação de atores da comunicação. Tal estudo busca ser relevante academicamente uma vez que as sentenças mostram diferentes interpretações a respeito da manifestação - ora como crime, ora como reivindicação de alteração do marco normativo vigente. Os diferentes pontos de vista a respeito do tema nos textos jurídicos evidenciam não só a pluralidade de opiniões dentro do Poder Judiciário, mas também seu reflexo na arena do debate público e suas consequências para os cidadãos. O mesmo tema foi tratado de formas distintas em diferentes instâncias jurídicas. Enquanto alguns tribunais estaduais, tais como o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), o Tribunal de Justiça da Paraíba (TJPB), interpretaram os artigos 2861, 2872 e 2883 do Código Penal, e do artigo 33 § 2o da lei 11.3434 para criminalizar o discurso apresentado pela Marcha da Maconha, outros tribunais estaduais, como o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), o Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), e o Supremo Tribunal Federal (STF) utilizaram o direito à livre expressão e o direito de reunião para defender o direito à comunicação. Dessa maneira, pretende-se comparar as diferentes interpretações a respeito da legalidade do evento como forma de evidenciar a concepção do direito à comunicação como elemento essencial à constituição da Democracia. De acordo com o World Drug Report 2012, elaborado pela ONU (2012), a maconha é a droga mais utilizada no mundo, estimando-se entre 119 e 224 milhões de usuários ao redor do globo. No Brasil, a Cannabis Sativa (nome científico) chega, segundo Elisaldo Araújo Pereira, em seu artigo publicado em revista eletrônica sobre a História da Maconha no Brasil, 2005 – com os escravos africanos e logo se enraíza na cultura indígena e nas camadas mais pobres da população. Apenas no início do século XIX é que a maconha começa a ser tratada como um problema social (CARLINI, 2005).

5- Em 1830, os ingleses obtiveram exclusividade das operações comerciais no porto de Cantão. A China produzia seda, chá e porcelana, então em moda na Europa, a Inglaterra sofria um significativo déficit comercial em relação à China. Para compensar suas perdas econômicas, a Grã-Bretanha traficava o ópio indiano para a China. O governo de Pequim resolveu proibir o tráfico de ópio e isso levou Londres a declarar guerra à China, pois pretendia conservar este lucrativo comércio.

O mundo passava por profundas transformações em sua concepção sobre o uso de drogas, principalmente com o advento da modernidade. Em sua tese de Doutorado, Juliana Chaibub (2009) propõe a leitura da sociedade moderna enquanto precursora, dentro de outros pensamentos, de uma razão que serviria de origem para o discurso proibicionista no qual países como a Inglaterra, que travou a guerra do Ópio5 com a China, procurava regulamentar o comércio da droga extraída da papoula para favorecer com exclusividade sua indústria farmacêutica De outro lado os Estados Unidos, mergulhados na Grande Depressão de 1929 que deixava milhares desempregados decidem por iniciar política de tolerância zero e, “Nessas condições, ocorreu o marco da proibição internacional das drogas, quando o consumo passou a ser objeto de uma forte intervenção reguladora estatal, transformando-se numa questão geopolítica [...].” (CHAIBUB, 2009, p. 106).

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6- Composta de cinquenta e um artigos relaciona os entorpecentes, classificando-os segundo suas propriedades em quatro listas. Estabelece as medidas de controle e fiscalização prevendo restrições especiais aos particularmente perigosos; disciplina o procedimento para a inclusão de novas substâncias que devam ser controladas; fixa a competência das Nações Unidas em matéria de fiscalização internacional de entorpecentes; dispõe sobre as medidas que devem ser adotadas no plano nacional para a efetiva ação contra o tráfico ilícito, prestando-se aos Estados assistência recíproca em luta coordenada, providenciando que a cooperação internacional entre os serviços se faça de maneira rápida; traz disposições penais, recomendando que todas as formas dolosas de tráfico, produção, posse etc., de entorpecentes em desacordo com a mesma, sejam punidas adequadamente; recomenda aos toxicômanos seu tratamento médico e que sejam criadas facilidades à sua reabilitação (IMESC, 2012).

7- Formulação catalisada pelas atividades desenvolvidas pela Unesco como decorrência da interpretação de Jean D´Arcy de que os cidadãos têm direito não só de receber, mas também produzir e disseminar informações. Tal interpretação está presente em obras como “Um mundo e muitas vozes”, conforme entrevista de Murilo César Ramos (2008).

Inicia-se então um embate internacional que, depois de várias tentativas de tratados e da criação de organismos internacionais, culmina na Convenção Única de Nova York sobre Entorpecentes6, da ONU, assinada por 73 países. O resultado foi um documento que “[...] consolidava, no contexto internacional, o entendimento do consumo de drogas como uma grave ameaça à saúde física e moral da humanidade, salvo para uso médico” (CHAIBUB, 2009, p. 95). Os relatos divergem quanto à quando e onde, mas a Marcha da Maconha (Million Marijuana March ou Global Marijuana March) surge em meados dos anos 1990, e acumula novas cidades-sedes do mundo todo a cada ano. No Brasil sua primeira atuação ocorre no Rio de Janeiro, em 2002, e desde então gera polêmica e reação por parte de movimentos religiosos, membros do Ministério Público, polícia e parlamentares. As Marchas estão relacionadas aos contrapontos de campanhas mundiais proibicionistas. Seus ativistas pró-legalização se amparam na liberdade de manifestação e de expressão (artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos) em discursos sociais, políticos, econômicos e culturais, tendo como principais pilares os valores medicinais e econômicos da maconha, além do fim do tráfico e corrupção, liberdade individual e direito à comunicação7. A carta de princípios da Marcha da Maconha Brasil afirma partilhar “do entendimento de que a política proibicionista radical hoje vigente no Brasil e na esmagadora maioria dos países do mundo é um completo fracasso, que cobra um alto preço em vidas humanas e recursos públicos desperdiçados” (BLOG MARCHA DA MACONHA, 2013). Sendo assim surge a discussão sobre o direito à comunicação e à liberdade de expressão que proporcione circulação de ideias e debate sobre substância conhecida que nos últimos anos foi ligada ao tráfico de entorpecentes e equiparada a outras drogas de maior risco à saúde8. No Poder Judiciário, as diversas interpretações atribuídas ao movimento causaram situações polêmicas. Episódios de Marcha da Maconha em São Paulo, por exemplo, antes da decisão do STF de 2011, acabaram com: Tiros com bala de borracha e explosões de bombas de gás lacrimogêneo acobertaram o som das palavras de ordem que pediam a legalização da maconha em São Paulo. Uma manifestação proclamada como ato pela “liberdade de expressão” - devida à proibição instituída pelo Ministério Público do uso da palavra ‘maconha’ - foi duramente reprimida pela Polícia Militar no último sábado, que entrou em confronto para dispersar os manifestantes. (RIBEIRO, 2011, grifo do autor). É importante salientar que não é objetivo deste artigo fazer defesa da legalização de qualquer droga, e em especial da Maconha, ou de se posicionar a favor de ideias proferidas pelos militantes que reivindicam mudança no marco legal. Pretende-se analisar os pontos coincidentes e divergentes nas decisões de tribunais estaduais e do STF, agrupando e conectando princípios relacionados ao direito à comunicação e à liberdade de expressão e de manifestação, além de elementos sociais, políticos, jurídicos e culturais que apontem para um prejuízo no campo do debate público e das consequentes políticas públicas que envolvem o diálogo sobre a questão.

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8- Esta é uma questão que sempre causa discussões e, por isso, há mais de uma posição a respeito. Do ponto de vista da lei não há diferença entre drogas leves e pesadas, mas apenas entre drogas legais e ilegais (ou lícitas e ilícitas). Fumar maconha ou inserir cocaína, por exemplo: as duas atitudes infringem igualmente a lei. Na prática, porém, o uso de maconha raramente chega a ter as mesmas consequências perigosas à saúde que o de cocaína. Além disso, os riscos relacionados ao consumo de drogas dependem mais da maneira e das circunstâncias em que elas são usadas do que do tipo de droga utilizado.

Para a realização deste artigo, utilizou-se da pesquisa bibliográfica para a formulação de um referencial teórico com relação aos tópicos: 1) os direitos fundamentais e suas implicações na constituição do Estado de direito; 2) a contextualização da questão da maconha – e de forma mais ampla das drogas, em geral – nos campos políticos, jurídicos, acadêmicos e culturais. O referencial teórico, no entanto, só é possível se delimitado um objeto de estudo, no caso, a abordagem jurídica no âmbito do Supremo Tribunal Federal e de tribunais estaduais de justiça de São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Distrito Federal. Mais em específico, suas peças jurídicas foram levadas em conta para desenvolver um estudo comparativo de discursos utilizados para a fundamentação de suas ações. Para analisar as decisões judiciais, buscou-se aplicar a “hermenêutica da profundidade”, conforme análise proposta por Thompson (2002). O autor afirma ser necessário um estudo aprofundado dos contextos culturais da sociedade a respeito de um determinado campo de conhecimento para que seja feita uma análise mais profunda do objeto em questão, tentando trazer ao conhecimento científico maior embasamento e credibilidade.

A QUESTÃO DA MACONHA E AS DROGAS NO MUNDO O World Drug Report de 2012, elaborado pela ONU, afirma que Cannabis is the world’s most widely used illicit substance (UNODC, 2012, p. 2), e estima que uma em cada 20 pessoas, entre 15 e 64 anos, já experimentou ou faz uso da Cannabis Sativa. Os países da América são os líderes no consumo de drogas no mundo. Só no caso da maconha, as estimativas podem atingir a marca dos 6,9% de pessoas, entre usuários e experimentadores (UNODC, 2012, p. 18). Em relação à realidade brasileira, o II Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil, realizado pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas psicotrópicas (CEBRID, 2005) em 108 cidades, em 2005, diagnosticou a maconha como a droga ilícita mais usada no país por público estimado em 4,472 milhões de usuários. A pesquisadora Juliana Chaibub (2009) relata o desencantamento do mundo moderno através da racionalização do ser humano, estabelecida, principalmente, pelos efeitos da Revolução Industrial, tida como marco da modernização ocidental. Utilizando o conceito weberiano de “desencantamento do ser humano”, a autora indica que “a existência de força de trabalho formalmente livre, o cálculo contábil e a utilização técnica de conhecimentos científicos” (CHAIBUB, 2009, p. 40) são elementos presentes na configuração de um Estado moderno.

Segundo Chaibub (2009, p. 40):

[...] à modernização social credita-se a consolidação do Estado nacional como provedor de serviços e controle, baseado no poder militar permanente, no monopólio da legislação, no sistema tributário centralizado e, sobretudo, num crescente processo de burocratização.

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A modernidade trouxe um novo olhar sobre a força de trabalho. O conceito de um indivíduo produtivo seria o daquele que não possui nada para atrapalhá-lo em sua vida, sobre o discurso do direito à vida e à saúde. Juliana Chaibub (2009, p.

59) constata que:

A estratégia de gestão centrada no poder sobre a vida articula um conjunto de intervenções sobre os campos culturais, como a moralidade e os costumes; temas de saúde coletiva e segurança pública; assistência aos pobres e regulação do trabalho e do comércio. O Estado passa a investir na construção de corpos sãos que, dispostos ao trabalho e à defesa da pátria, permaneçam pouco afeitos à contestação da ordem. Surge então o que a autora chama de “estatismo terapêutico”: um conjunto de valores que visam instituir na vida do cidadão o conceito do que está dentro ou não da moral e da saúde. Os EUA, desde o final do século XIX, são responsáveis pela difusão de perspectiva relacionada ao estatismo terapêutico no mundo. A concretização da interferência do Estado no bem estar físico e moral do trabalhador é simbolizada, por exemplo, com o surgimento de duas leis (a Lei Harrison e a Lei Seca) estadunidenses. Como afirma Chaibub (2009, p. 62, grifo do autor) “A Lei Harrison conferia ao Estado a função e a competência para afirmar ‘cientificamente’ quais drogas eram perigosas e necessitavam de controle estrito do aparelho burocrático e quais eram inofensivas e podiam ser livremente negociadas e consumidas.” Já em 1919, os EUA consolidavam a ideia do estatismo terapêutico ao aprovar a Lei Seca, que proibiu a fabricação, varejo, transporte, importação ou exportação de bebidas alcoólicas em solo estadunidense. A ideia incutida era a de que o álcool criava uma dependência capaz de ferir a moral e a dignidade humana. A Lei Seca contribuiu para que fosse estabelecido um sistema de crime organizado como o entendemos na sociedade moderna: uma indústria informal, baseada na corrupção e violência, sem garantia de controle nenhum por parte do Estado. Importante ressaltar que, mesmo o “Seu fracasso na coibição do consumo de álcool pela população, no entanto, não arrefeceu o movimento proibicionista: havia outros interesses em jogo.” (CHAIBUB, 2009, p. 63). 9- Esse tratado internacional foi uma das primeiras tentativas de se regulamentar o uso médico de substâncias psicoativas, no caso, o ópio. Foi fundamental para iniciar o marco das políticas proibicionistas, uma vez que visava definir quais drogas eram entendidas como médicas e quem poderia manipulá-las.

Os EUA foram muito além da simples guerra às drogas dentro de suas próprias fronteiras. Após consolidar leis em âmbito federal que classificam as drogas em seu nível de “perigo” à saúde pública, o governo estadunidense liderou uma série de acordos internacionais que visavam regulamentar a questão das drogas. Chaibub (2009, p. 97) constata a conhecida divisão entre hemisfério norte (países ricos) e hemisfério sul (países pobres) no Protocolo de 19539, que, em síntese, estabelecia “[...] a possibilidade de intervenção nos países de produção de ópio, [...] a beneficiar países ricos e suas florescentes indústrias farmacêuticas.” Segundo Chaibub (2009, p. 105), os EUA, “[...] apropriam-se dessas estratégias em manipulação das informações e da construção de verdades científicas para sustentar a grande cruzada nacional e internacional contra as drogas”, situação que passara a tomar conta da agenda governamental dos anos 1970. Para entender melhor o modelo de Estado moderno que emergiu no final do século XIX, e a sua relação com as drogas, Chaibub (2009) analisa duas faces de uma mesma moeda:

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1. De um lado, a afirmação dos valores civilizatórios modernos da universalidade, individualidade, liberdade e da autonomia, em todas as esferas, que propõe que cada qual, de modo independente, crie e governe a si mesmo, num processo contínuo de transformação e autoformação. 2. De outro, o surgimento de uma sociedade disciplinar, cuja ênfase na utilidade social, na coesão e na solidariedade se impõe objetivamente sobre a complexidade do sujeito, sobre o qual recai controle e disciplina. Nos primeiros anos do século XX no Brasil, o uso hedonista da maconha foi difundido, principalmente entre negros, indígenas e outros componentes das camadas mais pobres da população como marinheiros e prostitutas. Carlini (2006, p. 315) defende que “pouco se cuidava então desse uso, dado a estar restrito às camadas socioeconômicas menos favorecidas, não chamando a atenção da classe dominante branca”. É importante evidenciar que, no caso da maconha no Brasil, há um recorte de classes e um recorte racial em torno da proibição. Faz-se necessário aqui um paralelo com o argumento apresentado por Chaibub (2009) sobre o reduzido uso de argumentos científicos na formulação de políticas públicas sobre drogas, levando em conta um trecho extraído por Carlini (2006) de um documento de 1959 do Ministério de Relações Exteriores, onde se reconhece que a maconha não está na mesma categoria de outras drogas. Segundo o documento: [...] essa dependência de ordem física nunca se verifica em indivíduos que se servem da maconha. Em centenas de observações clínicas, desde 1915, não há uma só referência de morte em pessoa submetida à privação do elemento intoxicante, no caso a resina cannábica. No canabismo não se registra a tremenda e clássica crise de falta de privação (sevrage), tão bem descrita nos viciados pela morfina, pela heroína e outros entorpecentes, fator este indispensável na definição da OMS para que uma droga seja considerada e tida como toxicomanógena. (PINTO, 2013, p. 21). Não se pretende diferenciar a maconha das outras drogas no sentido de isentá-la de suas implicações medicinais e sociais. Ao contrário, essa comparação traz à tona um dos fatores evidenciados pelos trabalhos de Chaibub (2009) e de Carlini (2005), no sentido de afirmar que a formulação de regulamentações por parte dos Estados não tem sido, e maioria, motivado por estudos científicos, mas sim por motivações econômicas e políticas.

DIREITO À COMUNICAÇÃO, LIBERDADE DE EXPRESSÃO E MARCHA DA MACONHA No Brasil, a Marcha da Maconha se inicia no Rio de Janeiro em 2002, porém ganha destaque apenas em 2008, quando sua realização foi proibida em: Belo Horizonte, Brasília, Cuiabá, Curitiba, Fortaleza, João Pessoa, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo. Os argumentos estavam todos apoiados no indício de apologia às drogas, sendo em sua maioria baseada nas referências encontradas na internet e nas notícias sobre o evento em

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diversos lugares no mundo. Nos anos que se seguiram, as decisões sobre a proibição não ocorreram de maneira simultânea e uniforme. Em “A legalidade da proibição da Marcha da Maconha”, Eduardo Oliveira (2008) traz elucidação a respeito dos Direitos Fundamentais da Constituição Federal (CF) e de sua importância para a estruturação do Estado democrático de direito: Os Direitos Fundamentais são os direitos considerados inatos, absolutos, invioláveis, intransferíveis e imprescindíveis ao homem. Inatos, pois todos os homens já nascem o tendo e acredita-se que seja o reconhecimento de um Direito que o homem em seu estado primal possuía e o perdeu devido aos desdobramentos históricos. Absolutos, pois por si só já alcançam o objetivo de garantir a dignidade do ser humano. Invioláveis, pois como garantidores do bem estar necessário ao homem para um desenvolvimento moral e social e da sua dignidade, eles são peças-chave do sistema democrático. Intransferíveis, porque a todo homem pertence, não sendo possível sua alienação ou abdicação, por ser um direito necessário ao homem. Imprescindíveis, pois como citado acima sem eles, acreditasse que não seria possível a democracia e o desenvolvimento pleno do homem no meio social. (OLIVEIRA, 2008, p. 16, grifo do autor). A Constituição Federal de 1988 versa ser “livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” (Artigo 5, inciso IV). Esse pressuposto garante ao cidadão o direito não somente de pensar, mas de manifestá-lo, de torná-lo público, desde que a origem de tal manifestação seja clara, afim de não isentar seus manifestantes da responsabilidade do que é dito. Na Constituição vigente está previsto que “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”, (Artigo XVI) (BRASIL, 1988, grifo nosso). Ainda sobre o artigo XVI da CF, também, é relevante ressaltar, o fato de o direito de reunião não exigir, a priori, uma autorização para ser exercido. Essa noção se torna importante para entendermos o espaço público livre de uma avaliação prévia do que pode ou não ser tema de uma reunião. A única exigência é um aviso às autoridades competentes, entendendo assim que a reunião não é sigilosa ou secreta, e que se sujeita às condições da lei em todos os sentidos. Antes de apresentar análises sobre as decisões do STF e dos TJs faz-se necessário uma reflexão a respeito das leituras jurídicas, muitas vezes tidas como absolutas. Para Daniel Nicory do Prado (2008), o fato de as leis serem escritas por um grupo de pessoas – nas democracias os legisladores – e interpretadas por outros – advogados, juízes e outros operadores do direito – acarreta em um fenômeno que aproxima a leitura jurídica da leitura literária: ambas são passíveis de múltiplas interpretações. Sendo assim, tem-se que, a diferença essencial entre o texto literário e o texto jurídico seria a de que, embora ambos admitam múltiplas interpretações, enquanto o primeiro não acarreta em prejuízos penais ao autor e a terceiros, o segundo pode determinar conse-

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quências graves não só penalmente falando, mas a conceitos como democracia, liberdade de expressão, direito de reunião, entre outros. Cabe, então, ao juiz responsável por interpretar, a tarefa de determinar o que, naquele momento, naquela hora, seria a leitura mais adequada. Prado (2008, p. 4919) constata que “a diferença fundamental está na abordagem do intérprete, de acordo com o que espera a comunidade interpretativa de que ele faz parte”. E ainda completa afirmando que, em casos onde há a possibilidade de dupla interpretação, ou múltiplas interpretações, “não há como negar que a escolha de uma das interpretações possíveis é, antes de tudo, política.” (PRADO, 2008, p. 4924) A aplicação dos artigos em questão 286 e 287 do Código Penal é fundamental para que entendamos qual a concepção de crime utilizadas por Tribunais de Justiça em proibições de realizações de Marchas entre 2008 e 2011. Em seu trabalho “A legalidade da Marcha da Maconha”, Eduardo Luiz Oliveira (2008, p. 12) delimita que “a conduta tipificada no Código Penal, prevê a prática criminosa quando efetivamente se faz a apologia, não importando se de forma oral, escrita, através de gesto.” Entende-se então que a aplicabilidade do Código Penal está sujeita a fatos que obrigatoriamente tenham acontecido, impedindo a sua justificação em eventos 10- Para prosseguir com a análise das decisões, é preciso, no entanto, trazer a luz o conceito de “princípio da razoabilidade” também conhecido como “princípio da proporcionalidade”, para entender no que se basearam impetrantes e juízes envolvidos em tais decisões judiciais. Os princípios em questão são conceitos jurídicos utilizados para tomar decisões em casos de conflitos jurídicos. Nas decisões analisadas por este trabalho, quando os juízes se usam desse conceito, em suma, interpretam ser de interesse maior da sociedade que seja aplicado o Código Penal em vez dos princípios associados aos direitos fundamentais de liberdade de expressão e direito de reunião.

11- O Habeas Corpus preventivo consistiu em documentos que pediam à justiça, antes mesmo do acontecimento das Marchas da Maconha, que os direitos fundamentais de liberdade de expressão e direito de reunião fossem previamente garantidos a todos que participassem do evento.

futuros.

Para ilustrar o estudo comparativo dos TJs, é necessária a seguinte tabela:

Tabela 1 – Proibições x Liberações

Decisão dos Tribunais Regionais

Proibida

Liberada

Cidades

Sentença

Argumento

São Paulo (2008, 2009, 2010, 2011); Rio de Janeiro (2008); Brasília (2011); Paraíba (2008)

Proibir o evento de acontecer

Princípio da razoabilidade, ou da proporcionalidade10

Rio de Janeiro (2009); Rio Grande do norte (2009); Recife (2009)

Pedido de Proibição Negado (apenas Recife)

Liberdade de Expressão e Direito de Reunião (Direitos Fundamentais)

Habeas Corpus Preventivo11 Fonte: Tabela formulada pelos autores com dados da pesquisa

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O contraste entre os argumentos de proibição e liberação serão mais bem evidenciados quando as decisões do STF são analisadas. O importante para a nossa compreensão é o argumento usado para se proibir as Marchas, que se confronta com Direitos Fundamentais (no caso a liberdade de expressão, o direito à comunicação e o direito de reunião) e com o princípio da proporcionalidade. Para ilustrar um pouco mais esse conceito jurídico, apontaremos observações na proibição de Brasília. Em 2011, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) decidiu no dia anterior à Marcha da Maconha no Distrito Federal por proibir a realização do evento. Segundo a decisão judicial: Alegam que a pretensão de realização do evento pode efetivamente corresponder ao induzimento e instigação do uso de maconha, substância psicotrópica e de uso prescrito no Brasil, porquanto não há necessidade, para consumação do delito, do efeito uso da erva, conforme entendimento doutrinário e jurisprudencial dominante. Aduz ainda, que na hipótese de propaganda genérica à realização da manifestação, mas com idêntica possibilidade de induzimento à utilização de drogas, pode-se configurar o tipo descrito no art. 287 do código penal (apologia ao crime), além do previsto no art. 288 do mesmo diploma legal (quadrilha ou bando). (NCS 2011-001027722-5, TJDFT, João Timóteo de Oliveira, 03/06/2011 – grifo nosso). Entende-se, então, que para a aplicação dos artigos em questão, o TJDFT se usou, como pode ficar evidente pelos trechos grifados, de uma possibilidade de infração da lei para proibir a Marcha. A frase que diz “porquanto não há necessidade, para consumação do delito, do efeito uso da erva”; pelo uso dos períodos “pode efetivamente corresponder”, ou “pode-se configurar”; e pelo não uso dos tempos “correspondem”, ou “configura-se” entende-se que o referido órgão público se utilizou do material contido no site para induzir que haveria a prática dos crimes em questão, aplicando os artigos do Código Penal 287 e 288 sobre infrações que poderiam ocorrer, não que de fato tenham ocorrido anteriormente. A liminar de proibição da Marcha da Maconha no TJDFT registra que “a presente medida não se trata de restringir direitos e garantias individuais, [...], mas sim, [...] assegurar o princípio da proporcionalidade entre a pretensão dos manifestantes, e o ordenamento legal” (PINTO, 2013, p. 34). A fundamentação jurídica aplicada às decisões referentes à Marcha da Maconha prévias à decisão do STF utiliza textos acadêmicos para subsidiar a argumentação proibicionista. Transcrição de trecho de texto acadêmico de Vicente Greco Filho foi inserido na proibição da Marcha da Maconha do DF em 2011 com fins de fundamentação científica do argumento jurídico utilizado. A saber: O ataque, portanto, deve ser total e em todas as frentes para que se possa obter algum êxito, mas há que se reconhecer a real impossibilidade da eliminação completa do vício que se enumera entre os males sociais cuja a erradicação, posto que deva ser a meta desejada, jamais se obterá completamente. Nas sociedades organizadas, há que se contemplar um índice tolerável, que deverá ser o menor possível, mas que não ser reduzido

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a zero pela inexistência de vacina que venha prevenir a incidência do mal [...] Em suma, defendemos a monopolização educacional antitóxico pelos órgãos estatais especializados, de modo que os cursos, esclarecimentos gerais, palestras e campanhas que se realizem, tenham orientação única, oficial e ponderada (PINTO, 2013, p. 38, grifo do autor). Acima são evidenciados elementos que baseiam a política de tolerância zero propagada pelo Estado terapêutico sistematizado por Chaibub (2009). O Estado, no intuito de defender a “monopolização educacional” faz “o ataque [...] em todas as frentes”, mesmo reconhecendo que a “eliminação completa do vício [...] jamais se obterá completamente”.

STF, LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DIREITO DE REUNIÃO A Procuradora Geral de República Deborah Duprat protocolou em 2009 um pedido de Arguição de Desrespeito à Preceito Fundamental (ADPF) com relação aos argumentos apresentados pelos tribunais que proibiram as Marchas da Maconha. No que se refere diretamente à liberdade de expressão e transversalmente ao direito à comunicação, a procuradora explica “porque o fato de uma ideia ser considerada errada, ou até mesmo perniciosa pelas autoridades públicas de plantão não é fundamento bastante para justificar que a sua veiculação seja proibida” (ADPF 187, STF, Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira). (BRASIL, 2009, p. 5). A Procuradora afirma, assim, que as proibições foram motivadas pela discordância por parte do Estado em relação ao assunto abordado pelas Marchas. No que se refere ao direito de reunião, a Procuradora argumenta que seria ilegal uma “reunião em que as pessoas se encontrassem para consumir drogas ilegais ou para instigar terceiros a usá-las. Não é este o caso de reunião voltada à crítica da legislação penal e de políticas públicas em vigor” (ADPF 187, STF, Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira). (BRASIL, 2009, p. 6, grifo do autor). O STF julgou a questão em 2011. Na ocasião, a ação foi interpretada como procedente por unanimidade por oito ministros que estavam presentes na sessão e votaram a favor da submissão do art. 287 do CP aos direitos fundamentais estabelecidos pela CF. Na ocasião, os Ministros entenderam ser a Marcha da Maconha um movimento legítimo e legal, amparado nos princípios de direito à comunicação, liberdade de expressão e de reunião, pela reivindicação de mudança nas políticas públicas, como fica clara na declaração do Ministro Relator Celso de Melo, ao afirmar que: [...] ao contrário do que algumas mentalidades repressivas sugerem, a denominada “Marcha da Maconha”, longe de pretender estimular o consumo de drogas ilícitas, busca, na realidade, expor, de maneira organizada e pacífica, apoiada no princípio constitucional do pluralismo político (fundamento estruturante do Estado democrático de direito), as idéias, a visão, as concepções, as críticas e as propostas daqueles que participam, como organizadores ou como manifestantes,

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desse evento social, amparados pelo exercício concreto dos direitos fundamentais de reunião, de livre manifestação do pensamento e de petição. (Relator Celso de Mello) (BRASIL, 2011a, p. 39, grifo do autor). Faz-se necessário, também, expor o entendimento do STF quanto às proibições à Marcha da Maconha como forma de controlar o debate público, quando o Ministro Luiz Flux apresentou voto com a compreensão de que a “repressão à ‘Marcha da Maconha’ [...] dá ao Estado, sob o argumento da aplicação da lei penal, o monopólio da seleção das ideias que serão submetidas à esfera do debate público” (BRASIL, 2011b, p. 8, grifo do autor). Na visão do ministro, a proibição do debate torna-o clandestino, “estimulando-se a formulação de juízos parciais e míopes, com elevado risco do surgimento de visões maniqueístas de ambos os lados” (BRASIL, 2011b, p. 8). Uma vez que a única condição exigida para a realização da Marcha da Maconha é a de ser pacífica, o princípio da proporcionalidade, ou da razoabilidade foi interpretado pelo STF como incompleto. O ministro Relator Celso de Mello deixa isso claro, ao afirmar que: [...] a defesa, em espaços públicos, da legalização das drogas, longe de significar um ilícito penal, supostamente caracterizador do delito de apologia de fato criminoso, representa, na realidade, a prática legítima do direito à livre manifestação do pensamento, propiciada pelo exercício do direito de reunião, sendo irrelevante, para efeito da proteção constitucional de tais prerrogativas jurídicas, a maior ou a menor receptividade social da proposta submetida, por seus autores e adeptos, ao exame e consideração da própria coletividade. (BRASIL, 2011a, grifo do autor).

Quadro 1- Tabela Síntese

Tribunais que proibiram a Marcha da Maconha

Tribunais que liberaram a Marcha da Maconha, Habeas Corpus; e o STF

Direitos Fundamentais

Código Penal

Reconhecem a importância e a existência dos direitos de liberdade de expressão e de reunião, porém interpretam uma limitação nos mesmos a partir do momento que ferem a liberdade da sociedade (Princípio da Proporcionalidade).

Através de análise de conteúdo virtual, os TJs interpretaram como apologia o material de divulgação do evento na internet, classificando o evento como um crime em potencial.

Interpretam os direitos fundamentais de liberdade de expressão e direito de reunião como bases para a formação da democracia enquanto disputa de opiniões, mesmo que de ideias minoritárias.

Julgaram ser necessário a consumação de ato criminoso para enquadramento do código penal, sendo impossível sua análise a priori.

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CONCLUSÕES O presente artigo evidenciou duas formas de interpretar a Marcha da Maconha. De um lado, as autoridades policiais, Ministérios Públicos, juízes de primeira instância e Tribunais de Justiça que se utilizaram do “princípio da razoabilidade, ou princípio da proporcionalidade”, para afirmar ser um risco à sociedade permitir a realização de evento que fazia referência a fato criminoso, incorrendo no risco de expor aos demais cidadãos a práticas criminosas como instigar e auxiliar no uso de maconha, assim como sua respectiva apologia. Por outro lado, outros TJs e o STF interpretaram a Marcha da Maconha como um movimento pacífico em prol de uma mudança legislativa amparado nos Direitos à Liberdade de Expressão e reunião, e, portanto, lícito. Os referidos órgãos interpretaram como saudável e fundamental à democracia que se exponham argumentos em prol de mudanças nas políticas públicas, independendo da polêmica gerada pelo assunto. O Estado terapêutico duela com a autonomia do indivíduo em relação ao seu corpo, ditando o que pode e o que não pode ser usado. A criação dessa perspectiva, no entanto, não esteve baseada em valores científicos. Ela obedeceu ao longo da história a vários interesses políticos e econômicos, que acabaram refletindo na concepção mundial sobre as drogas. A glorificação do indivíduo puro, limpo, em perfeito potencial de trabalho, somada à estigmatização do consumo de drogas, em especial as ilícitas; ajudou a criar um terreno pantanoso nas políticas públicas sobre drogas, tanto no campo da saúde, como no campo jurídico e social. A democracia exercida pelo direito à comunicação (aqui representado principalmente pela liberdade de expressão e pelo direito de reunião) não deve estar limitada à participação eleitoral, praticada a cada dois anos pelo cidadão. Ao contrário, ela deve ser estimulada no seu cotidiano, a cada dia. O ser humano contemporâneo, inspirado pelo Iluminismo e sua concepção de razão, pode compreender como fundamental a contraposição de ideias e opiniões para que se configure uma sociedade baseada na igualdade e na justiça. Igualmente fundamental, o direito de reunião se mostra ponte fundamental para exercer o direito à comunicação e à liberdade de expressão, pois o individuo isolado não consegue fazer o compartilhamento de suas ideias, e por isso deve buscar seus semelhantes. O ser humano sente a necessidade de exprimir suas versões dos fatos, suas opiniões, seus sentimentos, e, portanto, deve estar desimpedido a buscar a presença de seus companheiros. É através da apresentação e reflexão de ideias que se permite a renovação, multiplicação e aprimoramento dos conhecimentos. Só assim foi possível que conceitos da humanidade, possivelmente considerados perigosos, pecaminosos ou imorais, chegaram à sua aceitação, tais quais o sufrágio universal ou o fim da escravidão. No Brasil é possível citar ainda o caso da capoeira, que um dia foi proibida, e hoje não só é reconhecida oficialmente por comitês esportivos internacionais, como é tido como Patrimônio Cultural Brasileiro.

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COMUNICAÇÃO, JUVENTUDE E DIVERSIDADE COMUNICACIÓN, JUVENTUD Y DIVERSIDAD COMMUNICATION, YOUTH AND DIVERSITY

Saraí SCHMIDT Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Docente no Programa de Pós-Graduação em Inclusão e Diversidade e no Mestrado em Processos e Manifestações Culturais da Universidade Feevale. Novo Hamburgo, RS- Brasil. E-mail: saraischmidt@feevale.br

Pamela STOCKER Mestre em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS - Brasil. E-mail: pamelastocker@gmail.com

Revista Eptic Online Vol.15 n.3 p.177-189 set.-dez. 2013 Recebido em 30/05/2013 Publicado em 02/09/2013


Comunicação, Juventude e Diversidade – Saraí Schmidt; Pamela Stocker

RESUMO O estudo discute a pedagogia da mídia, buscando articular comunicação, juventude, gênero e sexualidade a partir da análise e discussão de peças publicitárias veiculadas na mídia impressa brasileira que evocam o universo masculino e feminino e do filme Desejo Proibido. A partir dos estudos de Zygmunt Bauman, as análises colocam em relevo a estreita relação entre a cultura jovem e a mídia, centrando o foco na discussão da noção de tolerância desenvolvida pelo autor. A pesquisa problematiza as representações de homossexualidade produzidas e colocadas em circulação por meio da publicidade e do cinema e busca investigar os enunciados proferidos pelos/as jovens acadêmicos/as em relação às práticas sexuais e de gênero não-hegemônicas.

Palavras-chave Tolerância. Mídia. Cultura. Juventude. Gênero.

RESUMEN Este estudio discute la pedagogía de los medios con el propósito de articular comunicación, género y sexualidad a partir del análisis y la discusión de obras publicitarias que se vehiculan en los medios impresos brasileños que evocan el universo masculino y femenino, y de la película Deseo Prohibido. Utilizando como referencia teórica privilegiada los estudios de Zygmunt Bauman, los análisis ponen de manifiesto la estrecha relación entre la cultura joven y los medios, centrando el foco en la discusión de la noción de tolerancia que desarrolla el autor. La investigación problematiza las representaciones de homosexualidad que se producen y ponen en circulación a través de la publicidad y el cine e intenta investigar los enunciados que manifiestan los/las jóvenes académicos/as en lo que concierne a las prácticas sexuales y de género no hegemónicas que los medios vehiculan. En base a los estudios de Barman, la investigación intenta comprender cómo una expresión ambivalente como “tolerancia” acaba por ampliar y tensionar un concepto históricamente construido como el de “juventud”. Palabras clave Tolerancia. Medios. Cultura. Jóvenes. Género.

ABSTRACT This paper discusses the pedagogy of the media, articulating communication, youth, gender and sexuality through the analysis and discussion of advertising pieces published in the Brazilian printed media, evoking the masculine and feminine universe of the film If These Walls Could Talk 2. With Zygmunt Bauman's studies as main theoretical reference, the analysis highlights the close relationship between youth culture and the media, focusing on the discussion of the notion of tolerance developed by that author. This study problematizes the representations of homosexuality produced and circulated through advertising and film and investigates the statements uttered by young academics regarding the non-hegemonic sexual and gender practices by the media circulates. Keywords Tolerance. Media. Culture. Youth. Gender.

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INTRODUÇÃO A tolerância promovida pelo mercado não leva à solidariedade: ela fragmenta, em vez de unir. Bauman (1999, p. 292). 1- O filme traz três histórias curtas que abordam a homossexualidade de diferentes formas. Apenas uma das histórias foi analisada. O filme conta uma história de amor entre duas mulheres na década de 60. Abby (Marian Seldes), companheira de Edith (Vanessa Redgrave) por 50 anos, tem de enfrentar silenciosamente a perda de sua parceira e também o fato de não ser considerada da família, nem pelo hospital, nem pelos herdeiros de Abby

O artigo discute a relação entre juventude, comunicação e diversidade a partir da análise e discussão de peças publicitárias veiculadas na mídia impressa brasileira que evocam o universo masculino e feminino e do filme Desejo Proibido1. O estudo problematiza as representações de homossexualidade produzidas e colocadas em circulação por meio da publicidade e do cinema e discute os enunciados proferidos por um grupo de jovens acadêmicos/as de Comunicação Social em relação às práticas sexuais e de gênero não-hegemônicas. A partir dos estudos de Zygmunt Bauman (1999, 2003, 2005), a análise coloca em relevo a estreita relação entre a cultura jovem e a mídia, centrando o foco na discussão da noção de tolerância desenvolvida pelo autor. A proposta é promover a reflexão a partir da percepção dos/as jovens em relação à homossexualidade e da implicação da mídia nesse processo. A opção por pesquisar a mídia remete-nos ao território das pedagogias culturais, pois sabemos que a mídia ocupa um importante espaço pedagógico, ensinando diferentes formas de viver e de relacionar-se com o outro e consigo mesmo. Como afirma Fischer (1996, p. 282, grifo do autor), “Formar, ensinar, orientar são ações que transbordam de seus lugares tradicionais, sendo assumidas explicitamente pelos media, através de uma infinidade de modalidades enunciativas, cuja característica principal é a publicização de fatos, pessoas, sentimentos, comportamentos”. A cultura da mídia acolhe-nos, confortanos e capta-nos para a construção do nosso modo de ser. Isso tem efeitos na produção de subjetividades e identidades juvenis, ou seja, aprendemos na mídia quem somos nós e quem são os outros ou, ainda, como são aqueles/as a quem desejamos ser iguais ou de quem queremos ser diferentes. A cultura veiculada pela mídia fornece o material que cria identidades, e sabemos o quanto isso nos leva a repensar as relações que se estabelecem entre comunicação, juventude e diversidade (SCHMIDT, 2006). Inicialmente, esclarecemos que este artigo não tem a proposta de realizar um investimento investigativo sobre as diferentes concepções de juventude. São inúmeras as pesquisas acadêmicas que tratam do tema juventude, realizadas a partir de distintos referenciais teóricos e seguindo recortes os mais variados, de forma que seria impossível ter a pretensão de mapear, em sua totalidade, tais trabalhos. Tentar esse mapeamento é um desafio, e não teríamos como recorrer a um uso da categoria juventude que se imporia de modo igual a todos/as os/as pesquisadores/as:

Uma das formas de resolução desse impasse, para tornar exeqüível o empreendimento investigativo, reside em reconhecer que a própria definição da categoria juventude encerra um problema sociológico passível de investigação, na medida em que os critérios que a constituem enquanto sujeitos são históricos e culturais. A juventude é uma condição

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social e ao mesmo tempo um tipo de representação. Assim sendo, os estudos podem ser também investigados a partir do modo peculiar como construíram seu arcabouço teórico sobre a condição juvenil. (SPOSITO, 2001, p. 2). Nesse contexto, quando pensamos numa possível definição para cultura jovem, a mídia torna-se um terreno fecundo para problematizar as políticas de identidade, sobretudo da identidade jovem, na medida em que os/as jovens são apontados/as tanto como fonte de inúmeros problemas sociais — sexualidades fora de controle, drogadição, desemprego, violência —, quanto, paradoxalmente, como fonte para a solução das dificuldades que o País enfrenta. Vale destacar o quanto especialistas das mais diversas áreas (psicologia, medicina, educação, sociologia, etc.) vêm sendo convocados/as a falar sobre a juventude e sobre o comportamento jovem. Esses/as experts do comportamento humano carregamnos de explicações (provindas das mais diferentes áreas) para o que se acredita ser um problema comum, dizendo “[...] o que é ser jovem hoje, que perigos e doenças rondam sua existência e como tratar faltas, excessos e desvios. Jovens e adolescentes conquistam direitos e, ao mesmo tempo, tornam-se disponíveis como importantes objetos de saber e poder” (FISCHER, 1996, p. 21). Importa ressaltar o empenho em analisar, esquadrinhar, classificar esses/as jovens e, paralelamente a isso, apontá-los/as como o caminho para a conquista de uma “nova sociedade”. Trazer como tema de estudo a relação da cultura jovem com as pedagogias da mídia neste alvorecer de século pode oportunizar novos olhares, oferecer outras possibilidades para subsidiar esse debate inesgotável. É interessante observar que os apelos feitos para que sejamos jovens, postos em evidência e produzidos pelos mais variados espaços da cultura (dentre os quais, destacamos os meios de comunicação), invadem as salas de aula da universidade de diferentes formas e parecem corroborar a afirmação de Canevacci (2005, p. 22) de que “escola, mídia e metrópole constituem os três eixos que suportam a constituição moderna do jovem como categoria social”. Na etapa inicial do estudo, foram realizados dois encontros com o mesmo grupo de acadêmicos/as, formado por cinco mulheres e 10 homens com idades entre 18 e 30 anos. Na primeira sessão, foi feita a projeção do filme Desejo Proibido, seguida de uma discussão aberta com a turma. Na segunda sessão, foram apresentadas inúmeras e diversificadas propagandas voltadas para o público masculino e feminino veiculadas em revistas brasileiras, e o grupo discutiu o material apresentado. Foram duas sessões que oportunizaram um “caloroso” debate sobre o que significa “ser homossexual” para os/as jovens acadêmicos/ as e que apontaram a importância de colocar em discussão a noção de “tolerância” em nosso tempo. Baseada nos estudos de Zygmunt Bauman (1999), a pesquisa busca discutir e ampliar a ambivalente expressão “tolerância” a partir da análise dos pronunciamentos dos/as acadêmicos/as em relação à homossexualidade.

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DESEJO PROIBIDO

2- Programa exibido pela emissora MTV Brasil. Apresentado pela modelo Daniela Cicarelli, o programa conta com um participante denominado príncipe ou princesa que precisa escolher, entre três participantes vestidos de sapos ou pererecas, apenas um deles para dar um beijo na boca no final do programa.

Após assistir ao filme, que narra uma história de amor entre duas senhoras, alguns/algumas acadêmicos/as mostraram-se surpresos/as por a produção cinematográfica retratar um casal de idosas como personagens protagonistas. O grupo evidenciou que compreende a homossexualidade como algo relacionado à “liberação jovem”, e não propriamente como da ordem da afetividade. No imaginário dos/as jovens participantes da pesquisa, um filme que aborde uma discussão com tal tema, necessariamente, teria personagens jovens e cenas de sexo. No caso da homossexualidade, talvez possamos compreender essa associação à juventude pelo fato de que, nas poucas vezes em que nos deparamos com representações de sexualidade não-hegemônicas na mídia, elas recorrentemente apresentam pessoas jovens. Podemos citar como exemplos o programa Beija Sapo2, da MTV (que apresentava uma versão gay e uma versão lésbica de seus quadros) e as telenovelas, que cristalizam a noção de homossexualidade como algo do “universo jovem desviante”. Assim, essa associação da homossexualidade com a juventude, materializada neste estudo pelos depoimentos dos/as acadêmicos/as, acaba se consolidando como se fosse uma inovação do nosso te [...}É um filme que mexe com quem está assitindo, mas eu imaginava duas pessoas mais jovens [..]É o que a gente mais vê... Mais jovem, não é? É mais difícil ver um casal de idosos. [...] Hoje é um pouco mais aceito do que era antigamente, então, provavelmente os nossos filhos vão ver casais de pessoas mais velhas. Coisa que hoje é mais difícil porque mesmo que não tenha mais jeito, são mais discretos. [...] Duas senhoras, respeitosas. É muito comum hoje meninas super amigas, ao ponto de trocar presentes, de ver uma a família da outra. Então, eu nunca desconfiaria, se eu visse duas senhoras andando juntas, caminhando na rua ou indo no mercado juntas, eu nunca iria desconfiar. Observamos, durante a discussão, que parte dos/as acadêmicos/as, ao mesmo tempo em que se diziam sem preconceitos, adotaram uma perspectiva sintonizada com a noção de que é preciso tolerar o diferente por uma questão de solidariedade. Ao discutir as formas como a sociedade encara a homossexualidade, comparando os anos 60 – época em que transcorre a história do filme – e os dias de hoje, os/as acadêmicos/as chegam à conclusão de que a diferença é que hoje as pessoas “toleram” mais. O autor polonês Zygmunt Bauman (1999, p. 250) discute e amplia a noção de tolerância e ambivalência, afirmando que “O estado da tolerância é intrínseca e inevitavelmente ambivalente. Presta-se com igual facilidade – ou dificuldade – ao louvor comemorativo e à condenação zombeteira: pode tanto dar lugar à alegria quanto ao desespero.” Nos ditos tempos pós-modernos, o autor coloca em pauta três palavras que sugerem uma tríade de valores que estão sendo amplamente propagados em nosso tempo e que também foram recorrentemente ratificados durante a discussão: “liberdade, diversidade e tolerância”. A luta pela “tolerância”, o terceiro valor apontado como premissa da pós-modernidade pelo autor, também perpassa a cultura jovem de nosso tempo, quando temos propagada a fórmula “viva e deixe viver”. A tolerância, que tem como propulsora o mercado, pressupõe certa superioridade daquele/a

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que tolera sobre o/a tolerado/a ou aquele/a que é diferente. A mídia cria a noção de quem são aqueles/as que precisam ser ajudados/as, que precisam da benevolência da sociedade e, sobretudo, da tolerância do/a jovem do nosso tempo. No caso dessa tolerância em relação à homossexualidade identificada pelos/as jovens na sociedade atual – e, consequentemente, na própria juventude –, o ato de tolerar pode demonstrar arrogância e certa superioridade daquele/a que tolera. Bauman (1999) identifica nesse tipo de postura uma mudança de valores que inspiram a imaginação e a ação humanas: E assim os valores começaram a mudar. Primeiro nas questões bizarras, idiossincráticas, fáceis de desprezar e desconsiderar como “atípicas” ou francamente malucas. Mas aí o movimento lento se transformou num estouro da boiada. Já não se pode mais ignorar que a nova tríplice aliança de valores ganha em popularidade às expensas da velha. Os novos horizontes que parecem hoje inspirar a imaginação e a ação humanas são os da liberdade, diversidade e tolerância. São novos valores que informam a mentalidade pós-moderna (BAUMAN, 1999, p. 289, grifo do autor).

A partir das discussões e análises desenvolvidas, evidenciamos o quanto o/a jovem deste tempo é convocado/a para lutar pela “liberdade” de consumir, pelo direito à “diversidade” ou pela “tolerância” com aquele/a que não tem o seu estilo ou que precisa da sua ajuda. Nos depoimentos dos/as jovens acadêmicos/as, temos uma confluência que aponta que o ato de tolerar a homossexualidade possa ser entendido como uma evolução comparada à postura das gerações anteriores; os/as jovens ostentam orgulhosamente esse discurso, como vemos nas falas de alguns/algumas dos/as participantes da pesquisa: J1: Eu pensava: eu não sou preconceituoso, até o ponto de eu perceber que era simplesmente uma máscara que eu estava usando e que eu sou preconceituoso, infelizmente, não é? Mas sou! Eu tinha, eu defendia essa ideia, até o momento em que eu disse: “não, espera aí!”. Da forma como eu fui criado, educado, de maneira conservadora, de não aceitar isso e tudo mais, através da mídia e destas discussões, assim, que começaram a abrir, sabe? E a tolerar. Mas eu tenho meu preconceito, não na forma de não aceitar, eu aceito na boa...

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J2: O preconceito sobre o que é, no caso, o correto ou o normal: são coisas diferentes. O preconceito é não saber conviver normalmente com alguém que seja homossexual e o homossexual não conviver normalmente com uma pessoa heterossexual. O normal, ou o caso da maioria, ou algo assim, é uma coisa completamente diferente. Eu acredito que o normal, em minha opinião, é a relação homem/mulher, biologicamente falando. Eu acho, pela questão biológica, de procriação. Porém, não tenho preconceito nenhum e respeito o defeito das outras pessoas. Porém, para mim, o natural é homem com mulher... J3: Eu já fui educado sem nenhum tipo de preconceito, sabe? Tenho bons amigos, grandes amigos que são [gays] e não interfere em nada, respeitam a minha opção sexual também. Até porque, se não respeitassem, não seria da mesma maneira. Se não respeitar, fica difícil, não é? Mas é uma relação super saudável. Tenho mais de um amigo que é gay e não tenho problema nenhum de me relacionar com eles.

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Ainda que tenha consciência e assuma o seu preconceito, percebemos no primeiro depoimento o que Bauman (1999, p. 249) aponta como uma desdenhosa versão da tolerância: “Fica-lhe bem como é. Que o seja. Só que eu jamais seria assim.” Já no segundo e no terceiro depoimentos, identificamos a noção de gentileza, explorada pelo mesmo autor, em que “ser gentil é apenas uma maneira de manter o perigo à distância”: Ser gentil e a tolerância que isso representa como símbolo de comportamento e linguagem podem muito bem significar a mera indiferença e a despreocupação que resultam da resignação (isto é, da sina, não do destino): o outro não irá embora e não vai ser como eu, mas eu não tenho meios (pelo menos no momento ou no futuro previsível) a forçá-lo a ir-se ou mudar. Como estamos condenados a dividir o espaço e o tempo, vamos tornar a nossa coexistência suportável e um pouco menos perigosa. Sendo gentil, eu atraio gentileza. (BAUMAN, 1999, p. 248, grifo do autor). Em ambos os casos, a tolerância se traduz na fórmula “viva e deixe viver”, como explica Bauman (1999, p. 290) – “Ali onde reina a tolerância, a diferença não é mais estranha e ameaçadora. A diferença, por assim dizer, foi privatizada”. Dessa forma, os/as jovens globais e universitários/as que frequentam as mais diversas tribos flutuam por entre as mais variadas identidades, confrontando-se aqui com a rigidez de uma tradição cuja oposição lhes parece inaceitável ou até desviante. Talvez, para os/as jovens, tolerar a homossexualidade possa ser uma forma de não ser preconceituoso e demonstra uma evolução em relação à tradição de valores e costumes, ainda tão citados pelos/as participantes. J4: É muito mais fácil aceitar amigos, conhecidos, do que familiares, não é? Sei lá, nasce um filho teu, teu neto, é muito mais fácil aceitar conviver com alguém que é teu colega de trabalho, mas alguém da família, é difícil de lidar por questão de tradição. A essa altura da vida, tu descobres que teu pai é gay. É uma baita decepção! Uma coisa é o pai descobrir que o filho é gay. É uma grande decepção, independentemente de tu aceitares ou não aceitares. Família é muito complicado, pela expectativa que tu terias em cima da pessoa. Chantal Mouffe apud Bauman (1999, p. 262) explica que “[...] é sempre possível distinguir entre o justo e o injusto, o legítimo e o ilegítimo, mas isso só pode ser feito a partir de determinada tradição.... De fato, não há ponto de vista externo a qualquer tradição a partir do qual se possa fazer um julgamento universal”. Sendo assim, a opinião dos/as jovens em relação às representações de homossexualidade existentes no filme é estruturada na “tradição”, que afirmam ser a norteadora da sociedade e da mídia: “Por tradição, por as coisas serem assim há anos, sabe? Eu acho que às vezes as pessoas colocam toda a culpa na mídia. Ah, tudo é assim porque a mídia mostra... A mídia primeiro mostra o que é tradição, e isso às vezes reflete” (J8).

MÍDIA E DIVERSIDADE

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3- As revistas analisadas foram “Época” (11 de junho de 2007), “Revista Veja” (06 de junho de 2007), “Revista Isto É” (06 de junho de 2007) e “Revista Mens Health” (junho de 2007).

Partindo da produtiva relação entre mídia e “tradição”, lembrada pelos/as jovens participantes da pesquisa, e problematizando-a, podemos levantar alguns questionamentos. Se os/as homossexuais já conquistaram seu espaço nas novelas e em outros programas de televisão, por que ainda não são recorrentemente representados/as na publicidade? Em análise de quatro edições de quatro revistas3 de grande circulação nacional do mês de junho de 2007, não foram encontradas representações de casais homossexuais em nenhum anúncio, fazendo referência, ou não, ao tão divulgado Dia dos Namorados. Se a mídia apenas reflete as tradições, como afirmam os/as jovens participantes da pesquisa, talvez ela entenda que não seja um costume os casais homossexuais se presentearem no dia 12 de junho, quando a maioria dos casais comemora a data, seguindo os apelos eficientes das estratégias mercadológicas. Todos os anúncios analisados que fazem referência à data ilustram suas peças publicitárias com um casal heterossexual branco aos beijos e abraços. Podemos compreender que é a tradição quem dita o que é certo e o que é errado, construindo as diretrizes das identidades ou, ainda, o que deve e o que não deve ser aceito, o que precisa ou não ser “tolerado”. Nesse sentido, Louro (2001) assinala que as identidades não são tão fixas e estáveis quanto parecem: Ao conceber a identidade heterossexual como normal e “natural”, nega-se que toda e qualquer identidade (sexual, étnica, de classe ou de gênero) seja uma construção social, que toda identidade esteja sempre em processo, portanto nunca acabada, pronta ou fixa. Pretende-se que as identidades sejam – em algum momento mágico – congeladas. (LOURO, 2001, p. 139, grifo do autor).

Ao discutir algumas peças publicitárias no segundo encontro realizado pelo grupo, os/as acadêmicos foram instigados/as a compreender a mídia com um olhar de estranhamento e a contemplar a possibilidade de que os anúncios, além de venderem seus produtos, operam seguindo o “estatuto pedagógico da mídia”. Fischer (1996) considera que a mídia assume um status pedagógico quando é compreendida como um mecanismo que educa e produz conhecimentos, ensinando-nos modos de ser e estar no mundo.

4As propagandas selecionadas para a discussão com os/as acadêmicos/as foram analisadas em Sabat, Ruth (1999), Entre signos e imagens: gênero e sexualidade na pedagogia da mídia. Dissertação de Mestrado. Programa de PósGraduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Trata-se de um interessante estudo a partir da perspectiva dos Estudos Culturais e com contribuições da Semiótica.

Diferentes e inúmeras propagandas publicadas no final da década de 1990 foram analisadas e discutidas pelo grupo4. Segundo Sabat (1999), as identidades culturais vão sendo constituídas também à medida que as representações midiáticas são apresentadas. A autora lembra que “é por meio da mídia que diariamente observamos imagens de femininos e masculinos construídas com o objetivo de vender algum produto ou alguma ideia.” (SABAT, 1999, p. 30). Sendo assim, não consumimos apenas as mercadorias, mas uma série de valores implícitos nessas peças publicitárias, ou seja, está em exercício o estatuto pedagógico da mídia. É importante lembrar que, mesmo que não sejamos consumidores/ as de todos os produtos, somos consumidores/as de seus anúncios e dos significados que eles carregam. Apesar de a maioria dos/as acadêmicos compreender que propagandas podem acabar fixando diferenças entre os gêneros, um participante da pesquisa discordou de que os espaços pudessem ser os mesmos para homens e mulheres na sociedade: J9: Sei lá, imagina descarregar um caminhão, fazer serviço de carpintaria... Eu acho que é próprio do homem. Acho até que a mulher

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pode fazer, capaz que não, mas é mais difícil para a mulher. Acho que o ideal é uma coisa mais leve... A mesma coisa homem cuidando de um maternal... Imagina um monte de barbado no maternal! É nesse sentido que Louro (2001, p. 67) afirma que, “[...] para que se compreenda o lugar e as relações de homens e mulheres numa sociedade, importa observar não exatamente seus sexos, mas sim tudo o que socialmente se construiu sobre os sexos”. Ou seja, é necessário compreender a importância de analisarmos constructos sociais, como as peças publicitárias, a fim de pensar na possibilidade de reposicionar os lugares que ocupam homens e mulheres. Uma propaganda analisada durante a discussão foi a da marca de lingeries Duloren. A peça de duas páginas inicia com uma chamada em fundo preto: “Você não imagina o que a falta de uma Duloren é capaz”. Ao virar a página da publicação, o anúncio traz uma foto de página inteira de dois homens envolvidos em um ardente beijo na boca com a inscrição: “Duloren, só prazer”. Essa foi, sem dúvida, a peça publicitária que mais chamou a atenção dos/as jovens participantes da pesquisa. Após uma reação inicial de espanto e algumas risadas, ao que parece, os/as estudantes identificaram prontamente as marcas da diferença explícitas na propaganda: Ninguém ia imaginar o que tem na próxima página / Essa imagem é a que mais me choca / Me incomoda bastante / Me incomoda também/ Me chamou a atenção [...] que os homens podem virar isso aí, ó! / Poderia muito bem ter feito ali a imagem da esposa do personagem sem a Duloren e uma outra mulher com, e aí trocando ela [a esposa] por outra mulher. Chocaria menos. / Acho que coloca a mulher na obrigação: ‘te liga, senão ele vai te trocar!’ / Acho que é o ó do borogodó. Porque é bem naquele sentido, sabe, ‘tu és tão pouco mulher, que tu vais perder o homem para outro homem’. Pelo menos na minha concepção, não tem cabimento / Será que é natural isso, ou não? Fosse pela cultura, todos nós aqui, todo mundo seria hetero, não ia existir uma minoria homossexual. Com quem aprenderam, quem ensinou a eles? / Eu acho que não é natural. Eu me pergunto: foi criado assim? É uma doença psicológica? Eu acho que não, ele foi ensinado a ser homenzinho / Eu acho que é uma questão de criação, de valores. Pra mim, por exemplo, isso me choca! (grifo nosso). Poderíamos compreender que esse incômodo e a reação de “choque” ao deparar-se com a propaganda pode acontecer pelo fato de cenas como essa – o beijo homossexual – não serem comumente divulgadas na grande mídia. Segundo Sabat (1999), é também através das marcas da diferença que as identidades se constituem e se afirmam: Nenhum grupo define-se por si mesmo. Ele precisa sempre do outro, de sua negação para se auto definir. É através das marcas de diferença, apenas percebidas no que é estranho, não familiar, que podemos identificar em nós mesmos as marcas que nos constituem, que nos tornam iguais. E é por esses traços de igualdade que nos constituímos enquanto grupo, que afirmamos nossas identidades (SABAT, 1999, p. 67). A estratégia da marca Duloren ao colocar em circulação uma fotografia de página inteira onde vemos um beijo entre dois homens pode ser interpretada, numa primeira análise,

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como uma possibilidade de rompimento de um olhar cristalizado da grande mídia, que costuma adotar representações heterossexuais de sexualidade. Porém, ao analisarmos a estrutura simbólica da peça publicitária, pela qual os anúncios procuram nos convencer da importância e da necessidade que determinado produto pode ter em nossas vidas, percebemos que ela está sintonizada dentro dos padrões hegemônicos. A ideia que a propaganda reforça é que o pior que pode acontecer para uma mulher, no caso da falta de lingerie Duloren, é ser trocada por um homem. Nesse sentido, é preciso estar atento, porque muitas vezes a publicidade também subverte padrões já estabelecidos, não como uma forma de contestação, mas como um modo de chamar atenção para o produto que está à venda. Sendo assim, a veiculação da imagem que “chocou” os/as acadêmicos/as é mais uma estratégia de venda para o produto, configurando até mesmo uma marca identitária que reforça o desrespeito a quem é homossexual, por encarar a diferença como algo “inevitável e permanente”: Ocorre, contudo, que a faca da identidade também é brandida pelo outro lado – maior e mais forte. Esse lado deseja que não se dê importância às diferenças, que a presença dela seja aceita como inevitável e permanente, embora insista que elas não são suficientemente importantes para impedir a fidelidade a uma totalidade mais ampla que está pronta a abraçar e abrigar todas essas diferenças e todos os seus portadores. (BAUMAN, 2005, p. 83). Apesar de alguns/algumas jovens terem se manifestado a favor de veiculações que fujam dos padrões hegemônicos de sexualidade comumente veiculados pela mídia, a maioria dos/as participantes da pesquisa mostrou-se contrário à propaganda da marca Duloren. Enquanto alguns/algumas acadêmicos/as justificavam a importância dessas representações, ressaltando que devemos nos familiarizar com as diferentes formas de viver o gênero e a sexualidade, outros/as enfatizavam que apenas o respeito é suficiente em relação à homossexualidade: J10: Eu acho que se familiarizar é uma coisa e outra é respeitar. Acho que o respeito parte de ti: é lá, eu respeito, mas é lá! Não tem nada a ver comigo, nem com a minha família! Enquanto familiarizar, não, é uma coisa que está no teu meio, na tua vida, no teu convívio. Aqui nos deparamos mais uma vez com a bandeira da tolerância, tão utilizada pelos/ as jovens acadêmicos/as em relação à homossexualidade. Apenas o respeito é permitido quando se trata da diferença, e esta deve ser mantida a uma distância razoável e segura, longe da vida e do convívio familiar. Estabelece-se, assim, uma espécie de hierarquia e, segundo Bauman (1999), a retirada de uma promessa de igualdade: [a tolerância] pode ser pregada e exercida sem medo, porque reafirma mais do que questiona a superioridade e privilégio do tolerante: o outro, sendo diferente, perde o direito a um tratamento igual – com efeito, a inferioridade do outro é plenamente justificada pela diferença. (BAUMAN, 1999, p. 292).

O verniz superficial da tolerância acaba por tentar esconder o preconceito que existe na

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fala dos/as acadêmicos/as participantes desta pesquisa, o que nos remete aos novos valores que Bauman (1999) atribui à mentalidade pós-moderna: “liberdade, diversidade e tolerância”. O ato de tolerar parece ser o mais acertado, primeiro porque camufla o preconceito e depois porque denota certa superioridade daquele/a que tolera sobre aquele/a que é tolerado/a. Um bom exemplo do quanto nossa sociedade está mais tolerante, mas não menos preconceituosa, pode ser observado nas novelas: os casais homossexuais existem, estão entre os personagens, mas pouco vemos cenas de afeto ou beijo entre eles. O tão esperado beijo entre Junior (Bruno Gagliasso) e Zeca (Erom Cordeiro) na novela América, de 2005, que seria veiculado no último capítulo, não aconteceu. O enlace entre os dois homens ficou restrito a uma troca de olhares apaixonados, com os rostos bem próximos – mas sem qualquer contato físico. Ou seja, existe uma forma adequada para a novela narrar a homossexualidade, em sintonia com a noção de tolerância da sociedade.

TOLERÂNCIA E MERCADO

Podemos observar, a partir dos exemplos citados ao longo do estudo, que a noção de gentileza evocada por Bauman (1999, p. 250) permeia as relações da mídia, com um público cada vez mais tolerante: “[...] ser gentil e a tolerância que isso representa como símbolo de comportamento e linguagem podem muito bem significar mera indiferença e a despreocupação que resultam da resignação.” O público tolera que existam personagens homossexuais nas novelas, desde que eles não perturbem a ordem, a moral e os bons costumes. Um beijo entre dois homens ou duas mulheres, como percebemos pela reação dos/as participantes desta pesquisa em relação à propaganda da lingerie Duloren ainda “agride” grande parte dos/as jovens e da nossa sociedade.

5- A propaganda foi desenvolvida pela Agência TAG Comunicação, de Blumenau - SC. A Unimed foi uma das 50 empresas e personalidades do País a ganharem o Oscar Gay 2006, conferido pelo grupo Gay da Bahia. Foi também vencedora do Prêmio de Marketing da Unimed do Brasil com essa peça publicitária.

Já na contramão do que vemos na maioria das campanhas publicitárias, em 2005, o Plano de Saúde Unimed Blumenau5, no estado de Santa Catarina, utilizou material para a mídia impressa (jornais e revistas), mídia eletrônica (TV e rádio), mídia digital (internet) e exterior (outdoor, busdoor e front-light) que apresentava a foto de um casal homossexual abraçado, com a chamada “De um jeito ou de outro, todo mundo precisa. Plano familiar Unimed. Para todo tipo de família”. Ainda que a campanha tenha sido motivada pelo marketing – pesquisas do IBGE há tempos apontam diversas mudanças no perfil dos casais, sendo uma delas o crescimento dos casais homoafetivos –, por meio dela a Unimed expressa seu desejo de atender também a comunidade homossexual. Além disso, provoca reflexões em relação aos modelos e conceitos de família existentes em nosso tempo, como alerta Louro: [...] parece importante que observemos as relações de gênero não apenas naquilo que elas apresentam de mais “evidente” (o que usualmente quer dizer aquilo em que se ajustam às nossas expectativas ou às representações dominantes), mas que sejamos capazes de olhar para os comportamentos que fogem ao esperado, para os sujeitos que desejam transgredir as fronteiras e os limites. [...] parece que é mais importante “afinar” nossos sen-

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tidos, observando e registrando os comportamentos e as práticas do que pretender encontrar respostas sobre os “fundamentos”, a “causa básica” ou “origem última” dos fenômenos. (LOURO, 2001, p. 124, grifo do autor).

Desconstruir a visão “simplista” que existe hoje em relação à mídia e à tolerância reside na possibilidade de que se compreendam e incluam as diferentes formas de masculinidade e feminilidade em nosso campo de visão. É nesse sentido que talvez seja produtivo colocar em circulação na mídia outras formas de viver o gênero e a sexualidade. Nas palavras de Bauman (1999, p. 289, grifo do autor), “Os novos horizontes que parecem hoje inspirar a ação humana são os da liberdade, diversidade e tolerância. São novos valores que informam a mentalidade” pós-moderna. Quanto à prática pós-moderna, no entanto, não parece nem um pouquinho menos desigual que a sua antecessora”. Se é a tolerância quem enverniza as relações pessoais, camuflando o preconceito e legitimando a superioridade daqueles/as que toleram, talvez seja o momento de desconstruirmos certos conceitos e lançarmos o nosso permanente olhar de estranhamento sobre as práticas cotidianas. Nas palavras de Louro: As desigualdades só poderão ser percebidas – e desestabilizadas e subvertidas – na medida em que estivermos atentas/os para suas formas de produção e reprodução. Isso implica operar com base nas próprias experiências pessoais e coletivas, mas também, necessariamente, operar com apoio nas análises e construções teóricas que estão sendo realizadas. (LOURO, 2001, p. 121). É nessa perspectiva que este estudo pretende contribuir, problematizando as discussões dos/as jovens sobre as representações de homossexualidade na mídia e ressaltando a importância de questionar aquilo que é naturalizado em nosso cotidiano. Talvez possamos enxergar com outros óculos as lições que a mídia nos ensina sobre gênero e sexualidade, analisando por outro ângulo os artefatos midiáticos e colocando em xeque modelos legitimados e compreendidos como naturais, lembrando que “[...] a tolerância promovida pelo mercado não leva à solidariedade: ela fragmenta, em vez de unir” (BAUMAN, 1999, p. 292, grifo do autor). O estudo discutiu a relação da cultura jovem e a cooptação desta para o compromisso com a “tolerância”. A juventude pode ser entendida como uma espécie de síntese da cultura, e poderíamos dizer que, ao assumir para si um amplo conjunto de responsabilidades, a juventude líquida se torna inseparável do tempo e da cultura que a produziu.

REFERÊNCIAS

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ENTRE DIVERSIDADE E JUSTIFICAÇÃO: LIBERDADE DE EXPRESSÃO E REGULAÇÃO DA COMUNICAÇÃO NA PERSPECTIVA DA COMUNICAÇÃO SOCIAL NO BRASIL MIENTRES DIVERSIDAD Y JUSTIFICACIÓN: LIBERTAD DE EXPRESIÓN Y REGULACIÓN DE LA COMUNICACIÓN EN LA PERSPECTIVA DE LA COMUNICACIÓN SOCIAL EN BRASIL BETWEEN DIVERSITY AND JUSTIFICATION: FREEDOM OF EXPRESSION AND COMMUNICATION REGULATION IN THE PERSPECTIVE OF SOCIAL COMMUNICATION IN BRAZIL

Vitor Souza Lima BLOTTA Mestre e Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da USP. Pesquisador Sênior e Pós-Doutorando do Núcleo de Estudos da Violência da USP, bolsista FAPESP (processo 12/10780-0). Trabalha especialmente com Filosofia do Direito, Filosofia Política e Filosofia Social. São Paulo,Sp - Brasil Email: vitor.blotta@uol.com.br

Revista Eptic Online Vol.15 n.3 p.190-204 set.-dez. 2013 Recebido em 31/05/2013 Publicado em 02/09/2013


Entre Diversidade e Justificaçao - Vitor Sousa Lima Blota

Resumo Este artigo discute relações entre liberdades de comunicação e suas formas de regulação no Brasil, tendo por base a tese de uma relação interna entre comunicações livres e direito legítimo, desenvolvida a partir de uma reavaliação e atualização das categorias da esfera pública política e do direito no pensamento de Jürgen Habermas. O texto faz parte de um amplo diagnóstico da esfera pública política brasileira e utiliza exemplos recentes de embates entre pretensões de liberdade de expressão e regulação da comunicação no país. A proposta é demonstrar, a partir das reflexões teóricas e problemas práticos discutidos, como o exercício da liberdade de expressão que desconsidera pretensões de diversidade e deveres de justificação, incorre em contradição e violação da própria liberdade que pretende exercer.

Palavras-chave: Esfera pública política. Liberdade de expressão. Diversidade. Justificação. Circulação constitucionalmente regulada da comunicação.

Resumen El articulo discute relaciones mientres libertades de comunicación y sus formas de regulación in Brasil, tiendo por base la thesis de una relación interna mientres comunicaciones libres y leyes legitimas, desarrollado através de una reavaliación y actualización de las categorias de la esfera pública política y el derecho en la teoria de Jürgen Habermas. El texto es parte de um amplo diagnóstico de la esfera pública política brasileña, y utiliza ejemplos recientes the luchas mientres libertad de expresión y la regulación de la comunicación en el país. La proposta es comprobar, através de las reflexiones y problemas prácticos discutidos, cómo el ejecício de la libertad de expresión sin consideración por la diversidad y por lós deberes de justificación, resultan en contradicciones y violaciones de la misma libertad de expresión. Palabras-clave: Esfera pública política. Libertad de expresión. Diversidad. Justificación. Circulación constitucionalmente regulada de la comunicación.

Abstract This article discusses relations between freedoms of communication and its regulation forms in Brazil, having as basis the thesis of an internal relation between free communications and legitimate law, developed through a reassessment and actualization of the categories of political public sphere and law in Jürgen Habermas’ theory. The text is part of a broad diagnosis of the Brazilian political public sphere, and uses recent examples of struggles between freedom of expression and regulation of communication in the country. The proposal is to demonstrate, through the theoretical reflections and practical problems discussed, how the exercise of freedom of expression without consideration for diversity and justification demands results in contradictions and violations of the same freedom of expression. Keywords: Political public sphere. Freedom of expression. Diversity. Justification, Constitutionally regulated circulation of communication.

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INTRODUÇÃO

1- Pode-se dizer a partir das leituras de Habermas em Mudança Estrutural da Esfera Pública (MEEP, 2003) e Direito e Democracia (DD, 1997) que, para Kant, a autonomia individual seria composta por todos aqueles princípios de liberdade e proteção da integridade e da dignidade do indivíduo, que se desdobraram no que atualmente se entende como direitos humanos. Já a autonomia política para Rousseau significa a soberania popular de uma comunidade de valores compartilhados, que legitima em práticas de democracia direta o exercício do poder político. As relações entre esses princípios são discutidas em outras obras de Habermas sobre o tema além de MEEP e DD, como A Inclusão do Outro (2001, p. 13-126), Era das Transições (2003, p. 151174) e mais recentemente Entre Naturalismo e Religião (2007) e Ay, Europa (2009), além de ensaios importantes como e Popular Sovereignty as Procedure (1996) Further Reflections on the Public Sphere (1992). 2- Milton foi escritor inglês, autor do discurso Areopagitica, (1918) original de 1644, que propugnava a liberdade de impressão de escritos sem licença governamental. Sobre esta obra e o contexto histórico de Milton, ver Lima (2010, p. 22-23).

Somente comunicações livres tornam possível um direito legítimo e democrático, mas só um direito legítimo e democrático torna possíveis comunicações livres.

Este artigo discute relações entre liberdades de comunicação e suas formas de regulação, tendo por base essa hipótese inicial de uma relação interna entre comunicações livres e direito legítimo. Essa hipótese parte do desdobramento de uma das teses mais importantes da teoria política e da teoria do direito do filósofo Jürgen Habermas: de que não há contradição, e sim uma co-originariedade entre os princípios constitutivos do Estado democrático de direito, a autonomia individual e a autonomia política, desenvolvidos na teoria política moderna a partir de Kant e Rousseau.1 Segundo Habermas, o grande problema dessas duas tradições da filosofia iluminista derivaria de interpretações por demais subjetivistas ou “objetivistas” das relações entre autonomia individual e autonomia política. Embora diagnostiquem suas tensões e procurem de certo modo estabilizá-las, essas teorias ainda acabariam por identificar os princípios da liberdade individual e da soberania do povo como contraditórios, tendendo a privilegiar um sobre o outro (Habermas, 1996, 2003b). Os efeitos desse debate se manifestam em diversas dicotomias históricas, como liberalismo e socialismo (HOBSBAWM, 1994), os polos ideológicos “direita” e “esquerda” (BOBBIO, 1995), propriedade, liberdade e segurança contra interesse público, igualdade e solidariedade (Mesquita Neto, 2011), direitos civis e políticos versus direitos sociais e culturais, bem como as teses que opõem liberdade de expressão e regulação da comunicação, este grande debate que ocorre no âmbito da comunicação social e que será trabalhado como problema principal deste ensaio. A leitura intersubjetiva que Habermas (1996) propõe para tentar solucionar o problema, parte da tese de que não é possível fundamentar a validade e a universalidade das liberdades individuais de outro modo que num acordo democrático entre todos os real e virtualmente afetados, no que diz respeito à natureza, à extensão e às formas de garantia dessas liberdades. Nessa perspectiva, a liberdade de um sujeito só existe em conexão com a liberdade dos outros, e portanto, não há que se falar em liberdade de expressão sem formas regulativas que visam garanti-la a todos, ou limitar seus abusos. Nos tópicos que se seguem, a correlação entre comunicações livres e direito legítimo permite aplicar a tese da complementaridade entre autonomia individual e autonomia política

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3- Mesmo adepto da “livre discussão” contra as formas de imposição de verdades pela supressão de opiniões contrárias, Mill não dispensava a necessidade de normas jurídicas que garantissem essa liberdade de discussão a todos: “The liberty of expressing and publishing opinions may seem to fall under a different principle, since it belongs to that part of the conduct of an individual which concerns other people; (…) The only freedom which deserves the name, is that of pursuing our own good in our own way, so long as we do not attempt to deprive others of theirs.” Mill, 2009, p. 40 e 42) On Liberty. 4- Para uma crítica da teoria naturalista do mercado livre de Adam Smith, que procura pensá-lo como uma esfera de sociabilidade isenta de normatividade, e que cria sua própria legitimação, bem como às consequentes teorias da escolha racional, que reduzem às faculdades de sociabilidade humana a adaptações de interesses egoísticos dos indivíduos, ver Avritzer (1996, p. 7798) A moralidade da democracia. 5- Diferentemente do que se possa entender a partir de Marx e de filósofos/ economistas adeptos da teoria da escolha racional, como John Elster, o direito civil não é institucionalização automática das relações “naturais” de igualdade entre sujeitos que se encontram no mercado: “[...] não é possível reduzir a modernidade e a racionalidade ao surgimento do indivíduo egoísta capaz de utilizar uma faculdade cognitivo-instrumental para determinar quais são os seus interesses. Tal operação acaba nos obrigando a atribuir ao mercado aquilo que não é capaz de fazer, isto é, estabelecer as bases da relação consensual dos atores sociais em relação às regras da atividade econômica. Estas proveem da estrutura do direito civil, ou seja, de normas abstratas aceitas pelo conjunto dos

em análises de conflitos entre liberdades de comunicação e o caráter público das suas formas de regulação no Brasil. Ao compreender essa complementariedade a partir dessa perspectiva, os conflitos entre liberdade de expressão e regulação podem então ser interpretados a partir da relação entre liberdades de comunicação e responsabilidades de justificação. Em cada caso tratado, é possível notar que as liberdades de comunicação, no sentido mais político de “liberdade comunicativa” (GÜNTHER, 2005) - no limite um princípio de diversidade -, coexistem com formas reguladoras que garantem seu dever de possível justificação ante os envolvidos. Isso significa que não existe exercício da liberdade de expressão que não esteja sujeito a um dever de justificação em caso de crítica, vide a proibição do anonimato, art. 5º, IX, Constituição Federal (CF) de 1988. (BRASIL, 1998). Esse é o modo como serão tratadas as tensões entre essas liberdades examinadas abaixo. Caso contrário, corre-se o risco de perder tanto elas próprias quanto a exigência de uma regulação pública do setor, conforme entende o jurista Fábio Konder Comparato, no prefácio da obra Liberdade de Expressão e Direito à Comunicação, de Artur Venício de Lima (2010).

LIBERDADE DE EXPRESSÃO, LIBERDADE DE IMPRENSA E LIBERDADE DE COMUNICAÇÃO COMERCIAL: IMPRECISÕES CONCEITUAIS, EXCESSOS DA AUTORREGULAMENTAÇÃO E A CIRCULAÇÃO CONSTITUCIONALMENTE REGULADA DA COMUNICAÇÃO

A pretensão normativa a um livre fluxo de informações e comunicações na esfera pública, herdada da tese do “livre mercado de ideias”, atribuída a John Milton2 e desenvolvida por John S. Mill3, quando entendida no sentido de ausência de regulamentação, é tão irrealista e normativamente indesejável quanto as ideias smithianas de autorregulação e autocorreção naturais do mercado.4 Sem precisar explicar essa tese com casos recentes da economia internacional, como a crise do mercado imobiliário eclodida nos EUA no final de 2008, o próprio direito privado e seus institutos, como o contrato, são regulações das relações mercantis sem as quais não é possível o mercado.5 Da mesma forma, sem regulação da comunicação social e política, não haveria a possibilidade de se garantir juridicamente as liberdades de comunicação. Antes de analisar o estado atual do tema no Brasil por meio de interpretações de casos e debates sobre conflitos entre liberdade de expressão (diversidade) e regulações da comunicação (justificação), cabem alguns esclarecimentos conceituais sobre os termos correntemente utilizados neste debate público. As confusões e discussões terminológicas são elas mesmas consideradas fatores que dificultam a formação de consensos na área (Lima, 2010).

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atores econômicos e capazes de fornecer à atividade econômica sua natureza consensual.” (Avritzer, 1996, p. 92). Cf. Kashiura Jr. (2009). 6- Aqui citam decisão da Corte Inter-Americana de Direitos Humanos no caso Compulsory Membership in an Association Prescribed by Law for the Practice of Journalism (nota 10, p. 30-32) apud Mendel e Salomon, (2011, p. 11). 7- Declara o art. 19: “Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.” (Declaração Universal dos Direitos Humanos. Resolução 217A (III), de 10/12/1948 da Assembléia General da ONU). (BITTAR; ALMEIDA (2010, p. 296) 8- O estudo da UNESCO cita para tanto o Compulsory Membership in an Association Prescribed by Law for the Practice of Journalism, nota 10, parágrafo 34, bem como a Comissão Africana sobre direitos humanos, que entendeu: “[...] o principal papel da mídia e de outros meios de comunicação é assegurar o completo respeito à liberdade de expressão, promovendo o livre fluxo de informações e ideias, ajudando a população a tomar decisões baseadas em informações estruturadas, facilitando e fortalecendo a democracia” Declaration of Principles on Freedom of Expression in Africa, adotado pela Comissão Africana sobre Direitos Humanos e das Pessoas em sua 32ª Sessão, 17-23 de outubro de 2002. (Mendel; Salomon, 2011, p. 1, tradução nossa). Ver também a “Declaração sobre os princípios fundamentais relativos á contribuição dos meios de comunicação de massas para o fortalecimento da Paz e da cooperação internacional, para a promoção dos Direitos

A liberdade de expressão, quando definida de modo amplo, abrange tanto o direito de manifestação e comunicação de opiniões individuais e coletivas quanto o acesso à informação de qualidade. Isso porque violar a liberdade expressão de um é negar aos outros o acesso a essa expressão, e a recíproca também é verdadeira (Mendel; Salomon, 2011).6 Além da Declaração Universal, que estatui o direito em seu conhecido artigo 197, reconhecem-no de modo amplo também a Convenção Européia de Direitos Humanos (art. 10, 1950), a Convenção Inter-Americana (art. 13, 1969) e a Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos (art. 9, 1981). É inclusive reconhecida a importância da imprensa e dos meios de comunicação de massa na realização do direito à liberdade de expressão e dos direitos referentes ao debate democrático.8 É a partir dessa perspectiva que estudos recentes de consultores da UNESCO voltados para diagnósticos da regulação do setor no Brasil entendem a liberdade de expressão como princípio fundamental e razão de ser da própria regulação da comunicação social e política (Mendel; Salomon, 2011).9 O mesmo estudo destaca também que a liberdade de imprensa e a liberdade de comunicação comercial (como liberdade que tem uma empresa de veicular propagandas de seus produtos) são reconhecidas nessas normas internacionais como inerentes à liberdade de expressão, sem distinções normativas substanciais (Mendel; Salomon, 2011). Em relação à imprensa, uma das distinções ressaltadas pelo estudo é de que, a princípio, o sigilo de fonte no exercício profissional seria somente destinado àqueles que trabalham no setor, mas recomendação do Conselho da Europa sobre o tema estende a proteção a todos aqueles que realizam disseminação e circulação de informações por meios de comunicação, jornalistas ou não.10 Quanto à liberdade de expressão comercial, esta estaria também protegida pela liberdade de expressão, com decidiu o Comitê Europeu de Direitos Humanos em caso que questionava a proibição de propagandas em inglês na província de Quebec, no Canadá. Mesmo assim, diversas decisões reconhecem que essa liberdade seria mais limitada do que a liberdade de expressão referente a “assuntos de interesse público”, justificando regulações mais incisivas de Estados sobre a liberdade de comunicação comercial.11 Apesar dessas distinções e outros documentos que separam liberdade de expressão como sendo liberdade de opinião da pessoa (indivíduo) e liberdade de imprensa como a liberdade de informação dos órgãos de comunicação de notícias12, Venício A. de Lima (2010) destaca que o direito à liberdade de expressão individual tem sido pretendido nos discursos de entidades de imprensa, agências de propaganda e mesmo empresas fora do ramo da comunicação social que atuam na esfera pública, quando deveriam reivindicar ao invés disso, liberdade de imprensa ou de comunicação comercial. sso porque, apesar de a comunicação informativa da imprensa e a comunicação comercial formarem espaços públicos imprescindíveis para reprodução material e simbólica da sociedade, as liberdades comunicativas que permitem sua entrada na esfera pública não são as mesmas - e não podem receber a mesma proteção - daquelas de indivíduos e grupos que

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Humanos contra o racismo, o apartheid e o incitamento à guerra”, proclamada pela UNESCO em 28/11/1978. (BITTAR; ALMEIDA, 2010, p. 773-776). 9- A opinião do estudo referido segue, portanto, a defendida nesta tese: “Respecting freedom of broadcasting, although a key aspect of the guarantee of freedom of expression, does not imply that the broadcast media should be left unregulated. A wholly unregulated broadcast sector would be detrimental to free expression, since the audiovisual spectrum used for broadcasting is a limited resource and the available bands must be distributed in a rational and fair manner to avoid interference and ensure equitable access.” (Mendel; Salomon, 2011, p. 14). 10- O estudo indica a Recomendação n. R (2000)7, de 08/03/2000 do Conselho Europeu sobre o direito de jornalistas não exporem suas fontes de informação (Mendel; Salomon, 2011). 11- São indicados por Mendel e Salomon (2011, p. 11) os casos “Hertel v. Switzerland”, de 25/08/98, Aplicação n. 25181/94. Indicam também o caso “Irwin Toy Ltd. v. Quebec” (Procuradoria Geral), [1989] 1 SCR 927 (Suprema Corte do Canadá). 12- Lima (2010) destaca como o a 1ª Emenda da Constituição dos EUA separa freedom of expression e freedom of the press, bem como a Constituição Federal fala distintamente em liberdade de manifestação do pensamento (art. 5º, IV), que é um direito fundamental do indivíduo, e em liberdade de informação jornalística e vedação de qualquer forma de censura, presente no capítulo sobre comunicação social (art. 220, §1º). 13- Ver publicação sobre o tema em Miller (2004). Sobre esse papel ocupado por corporações e seus discursos, ver interessante documentário “The

desejam expressar suas opiniões sobre a realidade, sobre problemas práticos comuns, ou mesmo expressar questões pessoais ou artísticas. A confusão entre esses direitos é sintomática dos fenômenos de publicização do privado e privatização do público já destacados por Habermas (2003b) no diagnóstico de Mudança Estrutural da Esfera Pública: a entrada de organizações e corporações privadas nos espaços públicos, assumindo funções importantes de coordenação social, como a distribuição da comunicação informativa e a prestação de outros serviços públicos, que passam a ser administrados pela lógica de mercado. Curioso é que essas organizações justificam sua não submissão às exigências de publicidade e accountability da esfera pública pelo fato de serem entidades privadas, ao mesmo tempo em que, por exercerem atividades econômicas ou de informação importantes à sociedade, arrogam-se direitos fundamentais como o direito humano à opinião e manifestação do pensamento. Nos EUA, estudos jurídicos críticos e de ativismo político denominam esse fenômeno de incorporação de direitos individuais por empresas como corporate civil rights (direitos civis corporativos).13 Essa é uma grave violação do princípio da justificação, desequilibrando a relação entre autonomia individual e política por excesso do exercício de liberdades comunicativas como a liberdade de imprensa e a liberdade de comunicação comercial. É por isso que se torna necessário também esclarecer o que se entende por autorregulamentação com base no estudo da UNESCO, comparando seus resultados com o que entidades do setor no Brasil como o Conar e o recém fundado “Instituto Palavra Aberta” pretendem quando falam em autorregulamentação. Para os consultores da UNESCO, Mendel e Salomon (2011), a autorregulamentação não significa a abstenção do cumprimento de normas públicas, e deve ser necessariamente administrado por órgão que tenha condições para que seus membros não sejam influenciados por pressões econômicas ou partidárias, isto é, que tenham seu trabalho adequadamente financiado e sejam efetivamente independentes, protegendo-se contra pressões políticas por atuar também de modo responsivo perante o público, com compartilhamento de informações e contribuições.14 No caso do Instituto Palavra Aberta, fundado em 2010, trata-se de uma organização sem fins lucrativos que alega não ter interferências de grupos econômicos ou políticos.15 Pretende “promover e defender a liberdade comercial, de expressão e de imprensa”, mas apesar de reivindicar expressamente todos esses direitos, tem foco na “informação publicitária”, visto que ela garantiria o princípio da concorrência e, portanto o bom funcionamento do mercado.16 Já o Conar (Conselho de autorregulamentação publicitária), fundado 1980, é também uma associação privada sem fins lucrativos, composta em sua totalidade de proprietários de grupos de comunicação. Somente em seu conselho de ética é prevista a presença de 24 representantes da sociedade civil escolhidos pelo conselho superior da associação, enquanto que os outros 72 membros são escolhidos pelos membros fundadores e o pre-

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Corporation” (2003), dirigido por Mark Achbar e Jennifer Abbott, inspirado no livro de Joel Bakan, The Corporation: the Pathological Pursuit of Profit and Power.

sidente. O conselho de ética é responsável pela avaliação e julgamento das propagandas denunciadas, em sua grande maioria pelo consumidor17, por serem supostamente contra o Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária, elaborado pelo conselho superior do órgão em 1980.

14“Furthermore, regulation is needed to ensure plurality and diversity […]. However, due to the universally observed tendency of governments and businesses to want to minimize access of their critics and competitors to the broadcast media, it is vital that all bodies with regulatory powers in this area are protected, legally and practically, against political, commercial and other forms of interference.” (Mendel; Salomon, 2011, p. 14).

Há também duas previsões de participação de representantes de consumidores no conselho de ética, por meio de entidades privadas nacionais e sem fins lucrativos, mas esta participação não é estipulada numericamente.18

15- Em página eletrônica do Instituto Palavra Aberta, com os valores que defende, como a liberdade de expressão e a livre iniciativa, declara-se que a ONG “[...] NÃO É: Instituição setorial que serve aos interesses de um ou mais grupos. Organização política ou filiada a partidos políticos. Entidade que faz lobby ou atua para o interesse de grupos comerciais específicos.”(INSTITUTO PALAVRA ABERTA, 2011) 16- Ver mais informações no site do Instituto Palavra Aberta (2013). 17- É possível verificar que, comparando dados de 1998 com 2010 o número de processos instaurados por queixas do consumidor aproximadamente quadriplicaram (44 e 163), enquanto que provenientes de autoridade (como o próprio Conar) duplicaram (6 e 12). Este dado confere o próprio Conar em seu endereço eletrônico no tópico “Conar em números” (CONAR, 2011a). 18- O art. 64 do Estatuto Social do Conar, um dos últimos do documento garante essa presença, que não é determinada em números. “Artigo 64. O Conselho de Ética do Conar contará sempre com a representação de consumidores, através de entidades de direito privado

Apesar do esforço do órgão para exercer algum tipo de controle interno do setor, esse desequilíbrio entre públicos afetados pela comunicação comercial na própria composição dos membros e dirigentes da associação faz com que, das decisões dos aproximadamente de 300 casos analisados por ano de 1998 a 2010, só três vezes o número de anúncios “sustados” tenha passado de 50% dos analisados19, sendo que duas delas nos dois últimos anos (em 2009, 343 casos com 268 sustados e em 2010, 376 com 221). Não seria de se estranhar, todavia, pois eventuais restrições a essa liberdade possivelmente recairiam sobre veículos e agências que são de propriedade de membros do próprio conselho. Qual não é a surpresa ao se notar que o Conar é composto e gerido pelas mesmas entidades de mídia do Instituto Palavra Aberta: Associação Brasileira das Agências de Propaganda (ABAP), Associação Brasileira de Rádio e Televisão (ABERT), Associação Nacional de Editores de Revistas (ANER), Associação Nacional de Jornais (ANJ).20 Ou seja, o Conar é o Instituto Palavra Aberta, o que levanta sérias dúvidas a independência e a lisura tanto desse órgão de autorregulamentação de propaganda comercial quanto dessa organização não governamental sem fins lucrativos, que apresenta uma pauta pública equiparando liberdade de opinião e de imprensa com comunicação comercial e sustenta que a regulamentação prejudica economicamente a atividade. Claramente não é esse tipo de autorregulamentação que Habermas (1996) tem em mente quando propõe a comunidade de parceiros do direito como aquela capaz de se auto-organizar e produzir leis para si mesma, pois neste caso a lei só adquire legitimidade como tal a partir do momento que todos os possivelmente afetados por ela – e não somente aqueles que fazem a lei - possam ter condições iguais de compreender seu objetivo e efeitos, e a partir dessa compreensão, aceitá-la ou não como justificada.21 O único órgão da República que até hoje efetivamente garantiu com suas ações civis públicas e outros procedimentos algumas das normas constitucionais relativas à comunicação social foi o Ministério Público Federal (MPF).22 Ao tentar suprir a falta de regulamentação das normas do setor, o órgão acaba por promover o que se pode denominar - a partir do modelo de circulação do poder político de Habermas (1996) -, a pretensão a uma circulação constitucionalmente regulada da comunicação social e política. Não há dúvida que essa pretensão seria estimulada com a aprovação de alguns dos inúmeros projetos23 de lei que tramitam atualmente no Congresso para regulamentar normas de comunicação social, mas até o momento poucas iniciativas têm tido sucesso quando advindas do legislativo. O caso da nova lei de TV paga (PL 116), que estabelece pela primeira

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de âmbito nacional e de intuitos não-econômicos.”. A única outra disposição sobre o tema é o art. 49 do Estatuto, que é, no entanto também uma norma indeterminada: “Artigo 49. O Conselho de Ética atuará mediante representação de membro do Conselho Superior, do Vice-Presidente Executivo do Conar, de associado ou grupo de consumidores.” (CONAR, 2011b).

vez percentuais da programação destinados a produções nacionais e regionais após mais de vinte anos com essa previsão no inciso III do art. 221, CF, é uma exceção, e especialmente porque toca na questão do conteúdo, que será tratada abaixo.

RAZÕES DE FATO E DE DIREITO DA REGULAÇÃO DEMOCRÁTICA DE CONTEÚDOS: O PNDH-3, DISCURSOS DE ÓDIO E UM ELOGIO AOS FUNDAMENTOS DO “POLITICAMENTE CORRETO”

19- Cf. Conar (2011a). 20- Cf dados da seção Quem somos - entidades fundadoras em Conar (2013), e na seção Associados no Instituto Palavra Aberta (2013). 21- Ver Habermas (1997, p. 119-121). Mendel e Salomon (2011) fazem interessante transcrição de decisão da Corte Européia de Direitos Humanos em caso sobre esse caráter importante da publicidade, que obriga a lei a efetivamente “fazerse conhecer” para poder ser legitimada. Citam sobre o requisito “prescrito por lei” decisão da Corte, pela qual: “[A] norm cannot be regarded as a ‘law’ unless it is formulated with sufficient precision to enable the citizen to regulate his conduct: he must be able – if need be with appropriate advice – to foresee, to a degree that is reasonable in the circumstances, the consequences which a given action may entail.” Corte Européia de Direitos Humanos (THE SUNDAY TIMES, nota 15, p. 49 apud. MENDEL; SALOMON, 2011, p. 13). 22- Outro texto dos consultores da UNESCO destaca este controle social exercido pelo MPF na análise do panorama brasileiro de regulação da mídia. A atuação do órgão é retratada também por Venício A. de Lima (2011, p. 121-124) no texto “A liberdade de comunicação social não é absoluta”.

Para iniciar a discussão sobre a existência e a importância de uma regulação democrática de conteúdos na comunicação pública, será analisada uma tentativa advinda do Executivo para promover uma circulação constitucionalmente regulada da comunicação, objeto de grande polêmica na esfera pública política no início de 2010: as disposições sobre regulação da comunicação do III Plano Nacional de Direitos Humanos, conhecido como PNDH-3. De seu eixo orientador número cinco, “Educação e Cultura de Direitos Humanos”, a diretriz número 12 traz uma pretensão normativa muito próxima daquilo que se pode denominar “duplo-movimento institucional do direito da comunicação”, pois reclama tanto condições para uma formação mais democrática da opinião e da vontade, garantindo maior acesso à esfera pública política, quanto mais transparência e publicidade das informações relativas ao público, especialmente de entidades públicas e privadas que influenciam a opinião pública, como a imprensa e outras empresas que trabalham com gestão de informação e comunicação.24 De modo geral, o programa recebeu uma reação feroz de alguns setores mais conservadores da sociedade, provocando uma intensificação do debate público sobre os direitos humanos, apesar de ter sido lançado praticamente na virada de 2009 para 2010. Formouse um “clima de opinião” contra o programa, alegando que este teria proposto a descriminalização do aborto sem um debate devido, além de revanchismo na proposta de abertura dos documentos da ditadura, censura prévia e o controle estatal dos meios de comunicação. Apesar dos ataques midiáticos contra as propostas de políticas públicas na área, equiparadas com medidas autoritárias de esquerda25, uma análise de Sérgio Adorno (2010) sobre o PNDH-3 e sua repercussão mostram que o tema voltou a ser discutido como não era há tempos, ativando intensamente a expressão prático moral da esfera pública política nacional já no início de 2010. Outra questão benéfica ao debate foi ter deslocado o problema dos direitos humanos de sua identificação limitada com as políticas criminais e de segurança pública para outros diversos temas que os envolvem, como os direitos de comunicação e informação, igualdade de direitos entre casais hétero e homoafetivos e apoio a projeto de lei para discriminaliza-

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23Para análise de projetos de regulação da comunicação como o da deputada Jandira Feghali, que desde 1991 tramita no Congresso Nacional e até 2007 não havia sido concluído, além de lista de 16 projetos de lei que buscaram regulamentar os princípios de comunicação social da Constituição Federal de 88 entre 1999 e 2007, mas foram rejeitados pelo Congresso Nacional. Caso mais recente é um projeto de lei da “Mídia Democrática”, de iniciativa popular encabeçado pela campanha “Para Expressar a Liberdade”, organizada por diversas entidades sociais como o Fórum Nacional pela Democratização das Comunicações e a ONG Intervozes (PARA EXPRESSAR..., 2013). 24- O PNDH-3 propôs pretensões normativas diretamente relacionadas com as propostas do direito da comunicação (ver capítulo 9 desta tese): “Diretriz 22: Garantia do direito à comunicação democrática e ao acesso à informação para a consolidação de uma cultura em Direitos Humanos. Objetivo Estratégico I: Promover o respeito aos Direitos Humanos nos meios de comunicação e o cumprimento de seu papel na promoção da cultura em Direitos Humanos. [...] Objetivo Estratégico II: Garantia do direito à comunicação democrática e ao acesso à informação.” (BRASIL, 2010, p. 164 e 166). 25- Adorno (2010, p. 6 e 8) cita como exemplos os artigos publicados no Jornal Folha de S. Paulo da senadora Kátia Abreu, líder da bancada ruralista no Congresso “Direitos Humanos ou Gato por Lebre?” (“Opinião”, de 12/01/2010), e do jurista Ives Gandra Martins “Guerrilha e redemocratização” (“Tendências e Debates”, de 22/01/2010).

ção do aborto (Adorno, 2010), sendo que este último que foi retirado em reformulações posteriores ao programa. Adorno (2010) ressalta a importância da discussão ao relembrar que os planos anteriores (de 1996 e 2002) não haviam recebido tanta atenção de setores da sociedade civil. A existência de um debate público tão vigoroso sobre o PNDH-3 torna evidente a formação de uma esfera pública política nacional em torno de temas dos direitos humanos. Isso poderia ter ocorrido porque o decreto presidencial que instituiu o PNDH-3 (n. 7.037 de 21/12/2009) tinha força de lei ordinária, ou seja, poderia fundamentar políticas e decisões de agentes e órgãos públicos, enquanto que os dois programas iniciais não. Mas apesar disso, os dois primeiros tinham da mesma forma a função de orientar e fundamentar a formulação de políticas públicas nos setores referidos, e já traziam propostas muito semelhantes às atuais, que foram tão duramente questionadas. Adorno (2010) analisou entre essas propostas o debate em torno da parte do programa sobre regulação da comunicação, bem como as alegações dos setores afetados, que acusavam o plano de se tratar de medidas de censura e violação da liberdade de expressão e opinião. Mas ao mostrar que o novo programa só inova ao propor a criação de um ranking com as produções que mais violam direitos humanos26, avalia que as reações do setor foram especialmente exageradas.27 Após as ruidosas reações à primeira versão do programa, algumas das propostas foram retificadas (Decreto n. 7.177/10), e no caso do direito à comunicação, manteve-se a previsão de criação de um marco legal que regulamente o art. 221 da Constituição, mas suprimiu-se a possibilidade de punições por violações dos princípios, bem como a sugestão de “critérios de acompanhamento editorial”.28 De todo modo, Adorno (2010) faz ressalva a que tipo de “controle social” poderia ser aplicado aos meios de comunicação, pois se a existência de normas que regulam o conteúdo de programas, peças de propaganda e outras formas de comunicação não pode ser negada (art. 220, §§ 1º e 4º e art. 221, CF), a forma de aplicar essas normas e os agentes competentes para fazê-lo também precisariam respeitar os princípios de pluralidade29 e diversidade, justificando de modo satisfatório em cada caso eventual limitação da liberdade de expressão. Caso contrário, há risco de se provocar uma seletividade no uso da liberdade de expressão que leva ao que diversos especialistas em comunicação social e política denominam censura privada, ou privatização da censura. Ela ocorre não somente na medida em que determinadas informações de relevância pública são omitidas pelos meios de comunicação (BUCCI; KEHL, 2004), mas também quando, em função da concentração da propriedade privada e da predominância do modelo comercial, por exemplo, a diversidade de opiniões e a pluralidade de visões de mundo - garantias intersubjetivas das liberdades de comunicação – acabam por ser prejudicadas.30

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26Entre outras 12 propostas de ação governamental do programa na área está a n. 102: “Garantir a possibilidade de fiscalização da programação das emissoras de rádio e televisão, com vistas a assegurar o controle social sobre os meios de comunicação e a penalizar, na forma da lei, as empresas de telecomunicação que veicularem programação ou publicidade atentatória aos direitos humanos.” (BRASIL, 2010, p. 209). 27“As criticas ao PNDH‑3 são bem-vindas, porque necessárias à vida democrática. As polêmicas revelaram-se exageradas. Há mais continuidade entre as três edições do Programa Nacional de Direitos Humanos do que rupturas. Pensados na Conferência Mundial dos Direitos Humanos de Viena, esses programas foram concebidos como instrumento capaz de conferir maior unidade e coerência à proteção e à promoção desses direitos. Articulam diferentes e múltiplas iniciativas, em torno de objetivos comuns e metas programáticas, conferindo responsabilidades a agentes e agências. Não pretendem substituir os instrumentos tradicionais de fazer política institucional, tampouco os espaços onde a política é debatida, negociada e as leis são votadas. É curioso, aliás, que as criticas não tenham se detido em um quesito presente nas três edições: a exigência de monitoramento do programa, que deve ser feito periodicamente. Esse é, de fato, o espaço da critica. E nele que se pode confrontar o ideal e o real, o que se propôs e o que se fez, avanços e recuos. É por meio do monitoramento que os governos ficam sujeitos a cobranças e — mais do que isto — vulneráveis em suas tarefas de proteger a espinha dorsal da constituição política brasileira.” (Adorno, 2010, p. 19-20). 28- Ver capítulo sobre o direito à comunicação e as propostas na área de comunicação do PNDH-3 na obra Regulação das Comunicações: história, poder e direitos, de Venício A. de Lima (2011, p. 239-249).

A partir da perspectiva da co-originariedade entre autonomia individual e política destacada por Habermas, ou da relação interna entre diversidade e justificação, pratica censura privada aquele que entende como violação de sua liberdade individual a regulação que garante mais pluralidade e diversidade de vozes nos veículos de informação e comunicação (sentido “positivo” da liberdade de expressão”). Em outras palavras, aquele que alega ter sua liberdade de expressão violada não se dá conta de que não é possível exercê-la quando isso significa privar outros do mesmo direito.31 É por isso que a liberdade de expressão não é (e não deve ser) pensada como direito individual sobre, contra ou em oposição à sua regulação pela coletividade, mas de modo que sua inter-relação com outras liberdades de expressão possa ser aceita por esta coletividade como legítima. Seu sentido de liberdade “negativa” assim se completa quando se observa que seu exercício não é só uma abstenção de intervenção do outro sobre a manifestação individual do pensamento, mas também sobre a liberdade do outro, o que demanda uma responsabilidade de justificação em caso de problematização. O mesmo entendeu o filósofo Vladimir Safatle ao analisar o caso de intolerância praticado pelo deputado federal Jair Bolsonaro, que ofendeu homossexuais e afro-descendentes em rede pública de televisão em abril de 2011. No momento em que o deputado viola o objetivo da República de não-discriminação (art. 3º, IV, CF), promove atitude que não está protegida pela liberdade de manifestação do pensamento. Ou seja, não se trataria nem mesmo da manifestação de uma opinião, mas da reprodução de um preconceito condenado socialmente, o que permite sua responsabilização não só pelas violações da honra e da imagem social de quem ofendeu diretamente, mas por dano moral coletivo, crime de ameaça ou mesmo apologia ao crime.32 Mas é na esfera pública ampliada pelas tecnologias de informação e comunicação que práticas de intolerância simbólica, ou aquilo se nomeou a partir da doutrina dos EUA de hate speech33, o discurso de ódio, parecem ocorrer com mais frequência. Do cyberbullying à criação de comunidades praticantes de discursos de ódio e discriminações de qualquer tipo, ou mesmo para a ofensa deliberada e inconsequente, as reclamações e números de casos desse tipo de agressão na rede mundial de computadores levou até mesmo à criação de uma ONG especializada em monitoramento e prevenção contra violações de direitos humanos na internet, ligada à Universidade Federal da Bahia, única na América Latina e Caribe, a Safernet.34 Algumas matérias de jornal têm alertado como a internet tem sido utilizada não só para facilitar a comunicação e a formação de redes de cooperação sociais, mas também como espaço no qual os lados mais agressivos e obscuros da personalidade humana se expressam, provocando diversas experiências de desrespeito e intolerância entre os usuários. Talvez por trazer a falsa impressão de ser um meio privado, pela sensação de anonimato quando na verdade promove comunicações bilaterais e de massa, ou pela utilização muitas vezes ocorrer no espaço privado da casa e quase íntimo dos quartos, quando não nas “binas” das lan houses, que funcionam como cabines telefônicas.35

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29- Aqui o princípio da pluralidade já não é só visto como pluralidade de visões de mundo, pertencente às pretensões cognitivas dos discursos de verdade, mas como pluralismo ético-moral, isto é, a liberdade e a coexistência de autocompreensões sobre a vida boa e a melhor forma de vida para todos, pretensões do discurso prático. 30- “Será que a concentração da propriedade privada dos meios de comunicação tem alguma interferência na liberdade de expressão, na pluralidade de fontes e na diversidade de conteúdos, pilares da democracia representativa liberal? Em vários países da União Européia a resposta é definitivamente ‘sim’. Na Alemanha, na Espanha e em Portugal, as Constituições nacionais, além de impedir a censura estatal, trazem também provisões para que o Estado: a) garanta a existência de uma imprensa livre e diversa; ou b) impeça a concentração da propriedade; ou c) garanta acesso a todos os grupos sociais e políticos e assegure a diversidade na mídia. [...]Enquanto isso, entre nós, ‘o mercado’ continua absoluto como única forma admitida pela indústria das comunicações como critério e medida das liberdades de expressão e de imprensa. Qualquer alusão à necessidade de algum tipo de regulação democrática do setor, feita por quem quer que seja, será liminarmente estigmatizada como autoritarismo, stalinismo, totalitarismo. Mas de 20 anos depois do fim da ditadura, em plena democracia, continuamos a ignorar, no Brasil, a evidência de que, junto com outras atividades anteriormente consideradas como exclusivas do estado, a censura também está sendo privatizada.” (Lima, 2011, p. 104-105, grifo do autor).

Essa intolerância pode também ser provocada mesmo pela imediaticidade e a velocidade exigidas à comunicação que se dá entre os e-mails, portais, blogs e redes sociais e profissionais, vindo a estimular, como no caso dos programas humorísticos ao estilo stand up comedy, a verborragia incontida36, que precisa a toda hora gozar o outro e com isso provocar o gozo do telespectador, como no imperativo do gozo da presente na comunicação televisiva, cujos efeitos especialmente sobre crianças e adolescentes foram analisados por Maria Rita Kehl (1995) em “Imaginário e Pensamento”. Mas se proliferam de fato as práticas de intolerância a partir dessa esfera pública redimensionada pela internet, crescem ao mesmo tempo as manifestações de defesa de direitos de comunicação e reconhecimento, por meio do aumento da vigilância quanto às discriminações e preconceitos presentes nos espaços públicos gerados pelos meios de comunicação. Nas produções culturais televisivas, na imprensa e nos novos espaços virtuais de interatividade social e política, cresce o que se convencionou denominar “movimento do politicamente correto”: membros de organizações sociais – especialmente não-governamentais que defendem causas políticas e monitoram seu tratamento nos veículos de comunicação mais importantes da esfera pública política nacional. Eles escrevem para as redações, editorias, produções privadas ou públicas, exigindo retratações e ameaçando com processos judiciais, que muitas vezes são de fato ajuizados. Lançam vídeos nas redes sociais e sites do gênero, realizam protestos, e manifestações em locais públicos presenciais ou virtuais.37 Mas dispensados os eventuais exageros em suas pretensões, o que pode minar o princípio da diversidade, ao invés de se interpretar esse fenômeno como reflexo de um aumento da possibilidade de dissenso ou debate sobre a melhor forma de se comunicar nesses espaços públicos e, portanto, uma espécie de “maturidade” do debate público brasileiro, essas iniciativas chegam a ser consideradas por filósofos de bom trânsito na imprensa somente como irritantes “patrulhas ideológicas”. 38 Isso mostra como ainda há resistências a discussões sobre questões ético-morais na esfera pública nacional. A partir dessa perspectiva, parece que a discussão sobre a correção, ou o debate sobre as melhores atitudes a se tomar no espaço público não teria mais sentido depois do “fato do pluralismo”. Trata-se, no entanto, de um pluralismo relativista que, segundo Habermas (2007), advém de uma interpretação possessivo-individualista de liberdade individual. Nesse momento, limitar o debate sobre a moralidade na esfera pública se torna um excesso dessa mesma liberdade, pois não admite a diversidade de perspectivas, perdendo sua justificação. Ao final, perdem a chance os meios de comunicação e a própria esfera pública de se tornarem mais transparentes, no sentido de mais abertos à crítica. Se a comunicação que circula na esfera pública política afeta diretamente a autocompreensão dos indivíduos, contribuindo para sua formação e atuação também como seres políticos e culturais, as agências e organizações responsáveis por essa circulação precisam responder na medida da natureza (liberdade de opinião pessoal ou política, de imprensa,

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31- O dispositivo que justifica a limitação da liberdade de expressão nesse caso é o art. 5º, VIII, CF/88: “[...] ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusarse a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.” (BRASIL, 1988, grifo nosso). 32- Em sua coluna de 12/04/2011 no jornal Folha de São Paulo, Safatle (2011) tornou mais claro esse complexo argumento ao dizer que: “A democracia é o regime que reconhece o direito fundamental à liberdade de expressão e opinião. No entanto ela também reconhece que nem tudo é objeto de opinião. [...] Por isso, há certos enunciados que simplesmente não têm o direito de circular socialmente. Por exemplo, quando alguém fala que os judeus detêm o controle financeiro do mundo, que os negros são inaptos para o trabalho intelectual, que os muçulmanos são terroristas ou que os homossexuais são promíscuos e representam uma vergonha para seus pais, não está enunciando uma opinião. Na verdade, está simplesmente reiterando enunciados cuja única função é estigmatizar grupos, alimentar o desprezo e diminuir nossa indignação diante da violência contra eles. [...].” 33- Dworkin (2002, p. 396397) trabalha este conceito analisando o contexto dos EUA que, apesar de manterem uma observância estrita da primeira emenda, condenam o hate speech, os discursos de ódio e discriminação contra indivíduos, grupos ou coletividades, minoritárias ou não, ou mesmo conteúdos considerados ofensivos à moral e aos bons costumes, como pornografia, os quais poderiam justificar limitações da liberdade de expressão.

de expressão comercial ou artística) e da capacidade de difusão de suas expressões na esfera pública política, o que dependerá dos meios utilizados a da abrangência de seus sinais. A partir dessa perspectiva, os casos de conflitos políticos e jurídicos envolvendo liberdades de comunicação e suas formas de regulação não podem tratar igualmente aqueles que reivindicam liberdade de opinião individual, liberdade de comunicação comercial ou de imprensa, por exemplo, e precisam levar em conta a extensão e impacto de cada exercício dessas liberdades na esfera pública.

CONCLUSÃO A tese que procurei defender neste artigo por meio das interpretações de conflitos de comunicação no Brasil, é que as liberdades de comunicação, como a liberdade de expressão e seus derivados, estão intimamente ligados a demandas de justificação, e por isso não dispensam formas de regulação como condição de seu próprio exercício. Essa interligação advém da relação de fundo dos princípios básicos e co-originais do Estado democrático de direito segundo Habermas (1996, 2003a), a autonomia individual e a autonomia política. A relação desses princípios com as tensões entre liberdade de expressão e suas formas de regulação, por sua vez, procuraram ser lidos por meio de uma correlação ainda mais geral, que discuti de modo mais detido teoricamente na obra O Direito da Comunicação (BLOTTA, 2013), aquela entre comunicações livres, ou uma esfera pública política efetivamente democrática, e um direito legítimo, ou seja, formas de regulação que permitem a avaliação constante da validade da justificação de cada exercício de liberdade comunicativa na esfera pública. Esse direito legítimo que reflete um dever de possível justificação está também presente no exercício das liberdades comunicativas de outros discursos, como os morais e até mesmo econômicos e culturais, orientando-os e revelando o espaço social das razões que se abre a cada novo exercício de liberdade de expressão. Esse espaço social, ou espaço público e de modo mais geral a esfera pública, é constituído justamente pelas relações entre essas liberdades e responsabilidades de justificação. Com isso, procuramos interpretar os conflitos entre liberdades comunicativas e suas formas de regulação como princípios correlatos que precisam se equilibrar, e não se excluir em cada caso concreto, em todas as expressões da esfera pública política. Nesse momento de rediscussão sobre as novas regulamentações da área da radiodifusão e das comunicações eletrônicas no Brasil, nunca foi tão importante pensar na liberdade de expressão como um esforço contínuo de afinamento entre princípios de diversidade e justificação.

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REFERÊNCIAS

34- Ver trabalhos e dados da Safernet, ONG que desde 2006 mantém uma central de denúncias de violações de direitos humanos na internet, filtrando-as e encaminhando-as ao Ministério Público, bem como setor de prevenção, com campanhas para uso consciente da internet. Apesar de os dados oscilarem bastante desde 2006, comparando os dados do mês de novembro de cada ano, as denúncias de pornografia infantil lideram junto com as apologias e incitações de crimes contra a vida, a primeira na casa das 2 mil a 3 mil denúncias no mês e a segunda na casa dos mil, esta com queda de 50% no último ano. Já as denúncias de homofobia e racismo aumentaram sensivelmente em 2010 (casa dos 200 a dos 900), mas voltando a se estabilizar em torno de 200 e 300 denúncias em 2011. A xenofobia também teve aumento significativo de 2006 para 2011, chegando a 1796 denúncias em 2010, e em 2011 ficando com 501, seu o segundo maior número. (SAFER NET BRASIL, 2013) 35- Matérias sobre a disseminação de crimes contra a honra pela internet cobriram duas páginas do caderno “tec” do jornal Folha de S.Paulo em 10/08/2011. Em análise de psicóloga sobre os porquês dessas explosões de ódio e agressões simbólicas, os chamados trolls, ou haters seriam internautas que se aproveitam do suposto anonimato para expressar sentimentos de ódio que não expressariam em público. Essa posição de suposto anonimato, no entanto, seria também um estímulo para essas práticas (DEMETRIO, 2011). 36- O autor Elias Thomé Saliba, de Raízes do Riso

ADORNO, Sergio. História e desventura: o 3º Programa Nacional de Direitos Humanos. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 68, p. 5-20, mar. 2010. AVRITZER, Leonardo A moralidade da democracia. São Paulo: Perspectiva; Belo Horizonte: UFMG, 1996. BITTAR, Eduardo G.; ALMEIDA, Guilherme Assis. Minicódigo de direitos humanos. Brasília: Teixeira Gráfica e Editora, 2010. BLOTTA, Vitor Souza Lima. O direito da comunicação: uma nova teoria crítica do direito a partir da esfera pública política. São Paulo: Fiuza, 2013. BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção política. Trad. Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Unesp, 1995. BRASIL. Presidência da República. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao. htm>. Acesso em: Acesso em: 3 ago. 2013. ______. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência Da República. Programa nacional de Direitos Humanos (PnDH-3). Brasília: SDH/Pr, 2010. BUCCI, Eugênio; KEHL, Maria Rita. Videologias: ensaios sobre televisão. São Paulo: Boitempo, 2004. CONSELHO NACIONAL DE AUTORREGULAMENTAÇÃO PUBLICITÁRIA (CONAR). Conar em números. Disponível em:<http://www.conar.org.br>. Acesso em: 02 dez. 2011a. ______. Estatuto social. Disponível em:<http://www.conar.org.br>. Acesso em: 02 dez. 2011b. ______.Quem somos: entidades fundadoras. Disponível em:<http://www.conar.org.br>. Acesso em: 03 jan. 2013. DEMETRIO, Amanda. Ódio registado na rede, gera risco de violência fora dela. Folha de São Paulo, São Paulo, quarta feira, 10 ago. 2011. Caderno Tec. p. F4 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos à sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. GÜNTHER, Klaus. Schuld und kommunikative freiheit: studien zur personalen zurechnung strafbaren unrechts im demokratischen rechtsstaat. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann GmbH, 2005. HABERMAS, Jürgen. Further reflections on the public sphere. In. CALHOUN, Craig (Ed.). Habermas and the public sphere. Cambridge: MIT, 1992.

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(2002) analisou episódios de excessos e violações da honra e imagem em programas humorísticos como o CQC como “resultado de mera irreverência compulsória, forçada pelo ambiente de público ao vivo, com claque de risadas, que estimulam a irrestrição verbal dos comentaristas”. Ver matéria “O humor do Coronel” (PAVAM, 2011). 37- Um rápido exercício de memória permite trazer à mente o recente caso de propaganda com a modelo Gisele Bündchen, que foi levada ao Conar pela Secretaria de Políticas para as Mulheres, ligada ao Governo Federal, mas depois liberada, e outro caso também não tão antigo sobre o repúdio da opinião pública às declarações de moradores do bairro Higienópolis, dizendo que eram contra a criação de uma estação de metrô nas intermediações porque não queriam o aumento do contato do que denominam “gente diferenciada”. O caso levou à rápida mobilização nas redes sociais e um “churrascão da gente diferenciada” foi organizado em protesto. Ver comentários sobre os casos em matéria de Silva (2011) e matéria no blog do Anselmo (MOTTA, 2011). 38- Cf. Entrevista com filósofos e Luis FelipePondé e Roberto Romano (2011) em Programa Caminhos Alternativos da Rádio CBN.

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Entre Diversidade e Justificaçao - Vitor Sousa Lima Blota

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A REDE GLOBO E A TRANSMISSÃO DO CAMPEONATO BRASILEIRO LA RED GLOBO Y LA TRANSMISIÓN DEL CAMPEONATO BRASILEÑO GLOB0 NETWORK AND THE TRANSMISSION OF BRAZILIAN CHAMPIONSHIP

Anderson David Gomes dos SANTOS Jornalista pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e membro do grupo de pesquisa Comunicação, Economia Política e Sociedade (CEPOS). - RS - Brasil E-mail: andderson.santos@gmail.com

Revista Eptic Online Vol.15 n.3 p. set.-dez. 2013 Recebido em 25/03/2013 Publicado em 02/09/2013


A Rede Globo e a transmissão do Campeonato Brasileiro – Anderson Gomes dos Santos

RESUMO Este relato demonstra os procedimentos da pesquisa cujo objetivo foi de realizar uma revisão histórica da relação entre futebol e Indústria Cultural no Brasil, tendo como foco a presença da Rede Globo de Televisão como principal exibidora em TV aberta do Campeonato Brasileiro de Futebol. A partir do eixo teórico-metodológico da Economia Política da Comunicação, analisou-se a relação da Globo com as transmissões deste torneio, tendo como elos históricos a Copa União de 1987, o Campeonato Brasileiro de 1997 e a negociação pelos direitos das edições a partir de 2012. Esta recebeu um destaque maior por representar uma mudança significativa no processo após a atuação do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, o que vai resultar num modelo de descentralização das negociações, considerado prejudicial para este mercado, por conta das barreiras estabelecidas pela líder do oligopólio.

Palavras-chave Economia Política da Comunicação. Direitos de Transmissão. Campeonato Brasileiro de Futebol. Rede Globo de Televisão. Futebol.

RESUMEN Este informe demuestra los procedimientos de investigación dirigida a una revisión histórica de la relación entre el fútbol y la industria cultural en Brasil, centrándose en la presencia de la Red Globo de Televisión como principal expositor en la televisión abierta del Campeonato Brasileño de Fútbol. Desde el eje teórico y metodológico de la Economía Política de la Comunicación, se analizó la relación de la Globo con la transmisión de este torneo, con los vínculos históricos de la Copa Unión de 1987, el Campeonato Brasileño en 1997 y la negociación de los derechos para las ediciones a partir de 2012. Esto recibió un mayor protagonismo por lo que representa un cambio significativo en el proceso después de la actuación del Sistema Brasileño de Defensa de la Competencia, que dará lugar a un modelo de descentralización de las negociaciones, consideradas perjudiciales para este mercado, debido a las barreras impuestas por el líder del oligopolio. Palabras clave Economía Política de la Comunicación. Derechos de transmisión. Campeonato Brasileño de Fútbol. Red Globo de Televisión. Fútbol.

ABSTRACT This report indicates the research procedures aimed to a historical review of the relationship between football and Cultural Industry in Brazil, focusing on the presence of the Globo Television Network as main exhibitor on Free-to-air TV of the Brazilian Championship Football. From the theoretical and methodological axis of the Political Economy of Communication, analyzed the relationship of the Globe with the transmissions of this tournament, with the historical links the Union Cup 1987, the Brazilian Championship in 1997 and the negotiation for the media rights of the Brazilian Championship since 2012. This received a greater prominence for representing a significant change in the process after the performance of the Brazilian System of Competition Defense, which will result in a model of decentralization of negotiations, considered detrimental to this market, because of the barriers set by the leader of the oligopoly. Keywords Political Economy of Communication. Media Rights. Brazilian Soccer Championship. Globe Network TV. Football.

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A Rede Globo e a transmissão do Campeonato Brasileiro – Anderson Gomes dos Santos

INTRODUÇÃO

O projeto desta pesquisa surgiu no segundo semestre de 2010, a partir da possibilidade de definição de um processo no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), em que os acusados por atitudes anticoncorrenciais eram a União dos Grandes Clubes do Futebol Brasileiro (Clube dos 13), entidade que representava 20 clubes do país, e a Rede Globo de Televisão, líder do oligopólio da TV aberta no Brasil. A decisão sobre o caso, com a assinatura de dois Termos de Cessação de Conduta, foi dada em outubro daquele ano, após 13 anos de investigações no Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC). Isso possibilitou o acompanhamento de como se daria o novo processo de licitação, a ser realizado em 2011, e das ações dos membros do oligopólio para adquirir os direitos de exibição de um importante programa midiático. Tendo isto em vista, analisa-se como as barreiras presentes no oligopólio do setor audiovisual de transmissão gratuita da Indústria Cultural foram confirmadas no campo do entretenimento através do futebol, estabelecido culturalmente como paixão nacional. Mais especificamente, como está estruturada a transmissão do principal torneio, o Campeonato Brasileiro de Futebol, a partir da líder do oligopólio midiático, a Rede Globo de Televisão. Esta investigação apresenta ainda novas contribuições aos estudos do eixo teórico-metodológico da Economia Política da Comunicação, através da inédita análise de um bem cultural que pode gerar as mais diversas mercadorias, dentre as principais está a sua transmissão pela televisão. Buscou-se sedimentar o caminho dos estudos de comunicação sobre a transmissão de futebol, ou ao futebol em si, como um fenômeno social e cultural que merece deixar de ser um assunto periférico na discussão acadêmica. Optou-se por estudar o processo de negociação entre os personagens que construíram a situação no direito de transmitir futebol no Brasil que foi denominada como monopólio de decisões, com o entendimento que as relações estabelecidas em torno desse assunto estão incididas em jogos de poder com a presença de entidades privadas e do próprio Estado, enquanto regulador tanto do setor comunicacional quanto de atividades financeiras. Os procedimentos metodológicos aplicados para a explicitação deste processo, relatadas a seguir, tomaram como referência para a análise do objeto empírico: documentos disponibilizados pelos órgãos do SBDC; e notícias que trataram sobre o assunto.

O PROGRAMA MIDIÁTICO FUTEBOL

O futebol, dentre tantos outros esportes que tiveram suas regras desenvolvidas num mesmo período histórico, foi importante meio de exportação a todo o mundo de um ideal de conduta das elites, que o recebiam com facilidade devido ao poderio naval e comercial do Reino Unido. Também é a partir do século XIX que a Indústria Cultural começa a tomar

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forma, através da maior difusão de jornais impressos. Gastaldo (2011, p. 41, grifo do autor) afirma que a construção reflexiva deste esporte com a Indústria Cultural revela muito do que as duas formas de entretenimento se tornaram: Mais do que fenômenos paralelos, esporte e mídia constituíram-se mutuamente. A característica “espetacular” (isto é, “para ser vista”) inerente às competições esportivas e seu poder de mobilização coletiva (pela metonímia que coloca nações ou bairros dentro de campos, pistas ou ringues) articulam-se perfeitamente com o surgimento de jornais impressos em rotativas, destinados a grande número de leitores, em pleno processo de expansão urbana na virada do século. Para este espetáculo, formado a partir de uma atividade ligada ao lazer geral, não é necessário tê-lo praticado ou ser praticante amador para assisti-lo através de um meio de comunicação e entender e se emocionar com o seu funcionamento. Nas transmissões a partir de então, o torcedor não é considerado como um especialista no assunto, e sim mais um dos elementos que conformam a partida de futebol. Além disso, há o processo em que o capital age no sentido de separar a concepção da execução, concentrando a capacidade conceptual numa classe dirigente que é uma parte do capital ou representa seus interesses, nos termos de comodificação elaborados por Mosco (1999), que terá um impulso muito grande com o advento da televisão, que coloca a Indústria Cultural noutro patamar. Bolaño (2003) amplifica esta relação ao afirmar que se a televisão é importante para a constituição de uma base de consumo eficiente enquanto área para diversificação e ampliação da experiência das audiências, coloca o esporte no centro da cultura global e, nas últimas décadas, do projeto neoliberal. Tudo isso passaria a representar ao longo dos anos, e do desenvolvimento de ambas as atividades de lazer, a ideia de um “complexo esportivo-cultural-midiático”, assim explicado por Miller et al. (2001, p. 8): Este complexo de lugares coloca as mídias no coração das estruturas e práticas esportivas, porque sem a capacidade midiática para preencher os esportes de signos e mitos para grandes e diversas audiências através do globo, o esporte poderia ser relativamente menor e de uma popularidade anacrônica. A cobertura televisiva, especialmente na sua forma satelital, tem se tornado a principal moeda na economia cultural do esporte. O futebol enquanto grande negócio para a televisão brasileira aparecerá na década de 1980, justamente quando se potencializam as políticas neoliberais no mundo. A Rede Globo adquire com exclusividade a transmissão da Copa do Mundo FIFA 1982, tendo bastante sucesso na venda de cotas publicitárias, porém, sofrendo a concorrência do Grupo Record, ainda sob comando de Silvio Santos e da família de Paulo Machado de Carvalho. A Rádio Record transmitia os jogos usando uma linguagem televisiva, com a narração de Silvio Luiz, e havia mesas-redondas na TV logo após a transmissão dos jogos pela concorrente (BOLAÑO, 2004). A Globo só voltaria a adquirir em caráter de exclusividade o

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principal evento futebolístico do mundo em 2002. No que tange ao interesse deste relato, é apenas em 1987 que haverá um acordo semelhante em relação ao principal torneio esportivo disputado no país. O futebol brasileiro vivia uma crise estrutural, com os clubes deficitários financeiramente e vendo importantes jogadores (casos de Zico, Falcão e Sócrates) saindo do Brasil, após a abertura dos mercados europeus para a contratação de jogadores estrangeiros. Em julho de 1987, os presidentes de Flamengo e São Paulo, Márcio Braga e Carlos Miguel Aidar, respectivamente, e outros onze presidentes de times resolveram exigir da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) mais qualidade no campeonato nacional de futebol, donde surgiu a União dos Grandes Clubes do Futebol Brasileiro, o Clube dos 13. Os clubes resolveram, posteriormente, organizar o torneio. A Copa União contaria com 16 times, os 13 de maior torcida do país (Flamengo, Corinthians, São Paulo, Palmeiras, Vasco, Santos, Grêmio, Internacional, Cruzeiro, Atlético-MG, Botafogo, Fluminense e Bahia); mais três convidados (Santa Cruz, Coritiba e Goiás). A decisão pelo torneio se arrastou por alguns meses, a partir de julho de 1987 até um dia antes do seu início, já em setembro. Foram fundamentais para a execução os profissionais de marketing João Henrique Areias (Flamengo) e Celso Grellet (São Paulo), que foram em busca de apoios e patrocínios para o campeonato mesmo sem a certeza que o mesmo iria acontecer – já que estava difícil o acordo com a CBF. No dia 05 de setembro, eles conseguiram contratualizar a transmissão do torneio em caráter exclusivo pela Rede Globo, a emissora de TV com maior audiência do país. O contrato de transmissão, assinado no dia 5 de setembro e no valor de US$ 3,4 milhões, acaba abrindo as portas para novos parceiros, casos de Coca-Cola, Varig e a rede de hotéis Othon (VIVA..., 1987). A Rede Globo transmitiu 42 dos 78 jogos da competição, com uma partida às sextas-feiras a partir das 21h30, outra às 16h dos sábados e a última às 16h do domingo, posteriormente repassada para as 17h. Esta era definida por sorteio minutos antes da realização, com narrador e comentarista nos estúdios. O sucesso do evento, cujo modelo de comando pelos clubes era inédito no mundo, deu-se em muito graças ao apoio da líder do mercado de TV aberta no Brasil, que permitia a visibilidade do campeonato, e, junto aos recursos da Coca-Cola (US$ 17 milhões), garantia um “público invisível de 20.000 pessoas” (REDENÇÃO..., 1987). A Copa União representa um caso interessante e de sucesso para análise de uma nova etapa de mercantilização sobre o futebol, principalmente por se tratar de um confronto evidente contra a mentalidade até então pertencente aos dirigentes de futebol. Ainda assim, os anos seguintes não representaram avanços neste quesito, com a volta do comando do torneio nacional pela CBF. No campo televisivo, apesar do acordo para viabilizar a Copa União, em 1987, Lima (2012) afirma que o primeiro plano comercial do futebol, enquanto produto a ser vendido ao mercado publicitário, foi criação da Globo em 1991, contendo a transmissão de 25 partidas. Até então: “Futebol era comprado a granel. Você ‘ah, tem aqui um jogo importante’,

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vão lá discutir com o Flamengo, com o Corinthians ou com não sei quem e você vai discutir jogo a jogo uma compra do direito, ou um aluguel do direito”. Se em 1987, tivemos um caso de sucesso do evento nacional em muito por conta do auxílio da líder do mercado televisivo – ainda que os clubes acreditassem que foram muitos os jogos exibidos –, 10 anos depois a situação dos contratos de transmissão do torneio nacional mais importante do país seria questionada quanto à livre concorrência.

JULGAMENTO DO “MONOPÓLIO DE DECISÕES”

Em 21 de julho de 1997, uma queixa foi levada ao (SBDC) contra a Rede Globo de Televisão, a Globosat, a Rede Bandeirantes de Televisão, a TVA, a (CBF), o Clube dos 13 e a Associação Brasileira dos Clubes de Futebol (Clube dos Onze). Relataremos o caso referente à TV aberta, que seguiu sendo analisada até a interrupção do procedimento administrativo n. 08012.006504/1997-11. Naquele ano, o Sistema Brasileiro de Televisão (SBT) deu o lance maior em TV aberta, mas foi preterido pelo Clube dos 13 por não oferecer uma proposta que aglutinasse a TV por assinatura e o pay-per-view. Da mesma forma, o Clube dos 13 excluiu a Band por ter se associado a uma rede de TV por assinatura, a TVA, que não poderia fornecer o pacote de pay-per-view (MATTOS, 2012). A Globo e a Bandeirantes detinham a preferência pela aquisição dos direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro de Futebol posteriores a 1996, já que a cláusula constava no contrato assinado para as temporadas de 1995 e 1996, transmitidos por ambas, o que as possibilitou ver as propostas apresentadas e, posteriormente, unirem-se para vencer tanto no quesito financeiro quanto na capacidade de exploração do pay-per-view. Em 17 de fevereiro de 2000, a Secretaria de Direito Econômico (SDE) pede em seu parecer o arquivamento da investigação preliminar. A Procuradoria do CADE (ProCADE) discorda deste parecer, porque o órgão já tinha atuado em casos semelhantes contra a prática da exclusividade. Assim, em 3 de outubro de 2001, o conselheiro-relator Celso Fernandes Capilongo decidiu pela instauração do procedimento administrativo. Na decisão, o conselheiro apontou: que a transmissão de eventos esportivos tinha problemas de acordos horizontais entre as emissoras e acordos horizontais entre as equipes e relações verticais entre clubes e emissoras; a centralização da gestão dos direitos de transmissão; e a possibilidade de prejuízo aos clubes que não participam das ligas e às emissoras que não as transmitem e, consequentemente, ao consumidor. Desta forma, o relator pede a investigação sobre a “venda de direitos sobre transmissões de partidas de futebol do campeonato brasileiro” a partir do contrato assinado em 1997, para as edições de 1997 a 1999, tendo em vista o acordo entre os clubes, o acordo entre as emissoras, a exclusividade de transmissão e a cláusula de preferência (BRASIL, 2012a, p. 102).

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O processo teve que seguir os caminhos do SBDC, formalizado pelo Ministério da Justiça, até 2012, em que a Secretaria de Acompanhamento Econômico realizava o parecer econômico; a SDE investigava e instituía os processos; e o CADE realizava os julgamentos. Do parecer da SDE, apresentado em 2009, resgata-se o relato de uma demonstração das barreiras de mercado da emissora líder para conseguir privilégios nas negociações. Numa correspondência da TV Globo enviada ao Clube dos 13 no dia 28 de fevereiro de 1997, ela destaca a sua grande liderança no mercado de TV aberta e afirma que se nesta forma de transmissão não tiver garantidos os direitos de exibição, “a Globosat e SkyNet não servirão de veículo para a exibição de jogos cujos direitos de transmissão tenham por V.Sas. sido cedido a terceiros” (BRASIL, 2012b, p. 60-61). Dentre as considerações da SDE, havia a definição que Clube dos 13 e Globo seriam pactuantes de cláusulas anticoncorrenciais presentes nos contratos de transmissão. Como um dos argumentos, a Secretaria apresenta um comentário do presidente do Clube dos 13, Fábio Koff:

A Globo, durante a vigência do contrato, negociava as temporadas futuras e as alterações do produto”. No momento das negociações do produto, “não havia comunicação formal às demais proponentes do contrato original, em razão de saber que não haveria proposta mais interessante técnica e financeiramente que a proposta da Globo. (BRASIL, 2012b, p. 70-71, grifo do autor). Em outubro de 2010, após novos pareceres da ProCADE e do Ministério Público Federal e consulta aos envolvidos no processo sobre o modelo a ser constituído de venda de direitos de transmissão, uma plenária no CADE votou pela aprovação de Termos de Cessação de Conduta com a Rede Globo de Televisão e o Clube dos 13. O voto do conselheiro-relator César Costa Alves de Mattos (2010, p. 30-31) entendia que: o leilão não podia responder apenas ao maior valor pago; precisava-se manter espaço de negociação entre o Clube dos 13 e as emissoras, “de forma a completar o contrato antes e depois do certame”; e a associação dos clubes precisava solicitar garantias mínimas para a provisão do serviço, de maneira a não comprometer a qualidade ou possibilitar a “maldição do vencedor”, que ocorre quando se aposta num produto com valores superiores ao que seria possível para determinada empresa. As minutas de Termo de Compromisso de Cessação (TCC), discutidas a partir do final de setembro daquele ano, eram apresentadas à plenária como principal ação para evitar a interferência de um órgão externo no mercado, mas que garantiria o fim das cláusulas consideradas anticoncorrenciais. No caso da GLOBOPAR, o principal ponto é a renúncia à preferência, a partir do contrato em vigor (BADIN; MATTOS; GLOBO, 2012). Para o Clube dos 13, o TCC teria duração de 5 anos, com mais pontos a serem verificados, tais como: abster-se da cláusula de preferência; venda dos direitos por mídia (o que já ocorria desde 2004); e liberdade da sublicenciada para escolher as partidas (BADIN; MATTOS; RODRIGUEZ, 2012). O único voto contrário foi do então presidente do CADE, Arthur Badin (BADIN, 2010, p.

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678-679), que afirmou: O TCC admite que esse licenciado adquira todas as mídias, adquira com exclusividade as vias de transmissão e que não precise sublicenciar, de modo que nós, conselheiros do CADE, podemos estar legitimando uma situação de perpetuação do que se acusou de uma ditadura da licenciada, que pode decidir com absoluta discricionariedade o que passar, quando passar, como passar e se alguém, outra emissora concorrente vai poder também passar, e nessa hipótese, ela ainda determina o que passar. O Clube dos 13 enviou, em fevereiro de 2011, a carta-convite para as licitações. No caso da TV aberta, as mudanças centravam-se nos seguintes aspectos: captação, geração e armazenamento das imagens também pela entidade; o valor do sublicenciamento seria de R$ 40 milhões ou 20% do valor que a licenciada conseguisse; proposta mínima no valor de R$ 500 milhões; e vantagem de 10% para a Rede Globo, “considerando o apoio que a TV Globo deu ao futebol brasileiro durante os últimos 25 anos, e a maior exposição que a sua audiência propicia aos patrocinadores dos clubes” (CLUBE DOS 13, 2011, p. 3). Após uma reunião realizada com o então presidente do CADE, Fernando Furlan, no dia 1 de março, esta cláusula foi retirada do contrato por beneficiar uma das integrantes da disputa. A Rede Globo se defendeu desde o início deste processo sob o argumento da “parceria histórica” com o futebol e por ter experiência e estrutura prontas, com um maior número de geradoras no país. Para ela, a licitação não poderia considerar o preço, tomando a decisão de não participar do leilão e de negociar individualmente com cada clube. No dia da entrega e da abertura dos envelopes para a TV aberta, 11 de março, a Rede Record anunciara sua desistência porque a líder do mercado estava negociando em separado. Única a apresentar proposta, no valor de R$ 515 milhões por temporada, a RedeTV! até foi anunciada como vencedora. Porém, não só não pode assinar o contrato de transmissão, como desistiu até mesmo de ações na justiça. Os prejuízos já eram enormes para a emissora paulista, que perdeu o repasse da Série B do torneio nacional, que exibia desde 2005. O Clube dos 13 suspendeu a negociação para as demais mídias em 22 de março, quando 9 clubes já haviam assinado com a Globo. Até maio, a associação acreditava que o CADE daria as negociações em separado como irregulares, porém, o entendimento da entidade era que os TCCs referiam-se a negociações coletivas. Em 30 de agosto de 2011, a ProCADE finalizou o parecer sobre o acompanhamento do caso. De acordo com o órgão, o Clube dos 13 cumpriu com a cláusula de publicação no site da entidade na internet e ficou impossibilitado de cumprir integralmente a exclusão da cláusula de preferência (item 3.1), a venda dos direitos de transmissão por mídia (item 3.2), a definição de critérios claros e objetivos num leilão (item 3.3) e a maior flexibilidade no sublicenciamento (item 3.4). Além disso, reconhece-se que não houve negociações coletivas entre os clubes e a Rede Globo, não configurando violação ao escopo do TCC. Por conta disso, sugeriu-se que o CADE seguisse o monitoramento da venda dos direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro de Futebol da Série A até que se cumprisse o prazo do TCC (5 anos), atuando desde que volte a ocorrer negociação coletiva (RUFINO, 2012).

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O caso das negociações dos direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro de Futebol da Série A teve como desfecho um modelo que é visto como maléfico ao mercado relevante que o é para a TV aberta, ainda que não tenha infringido nenhuma determinação do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência. A centralização da exploração comercial de torneios esportivos, que em outros mercados poderia ser considerada como formação de cartel, é vista – inclusive nas discussões realizadas nos órgãos europeus pró-concorrência – como a melhor condição de negociação. Para o programa futebol se faz necessária uma cooperação entre os clubes no campo econômico. Oliveira (2009) expõe dentre as vantagens da efetivação desse sistema: a redução de custos frente às negociações individuais; a venda no pacote das partidas que causariam menor interesse, o que beneficia os clubes menores; e a possibilidade de o público poder acompanhar todo o torneio, não apenas partidas de um clube. Desse processo, mais uma vez se pode perceber o potencial da Rede Globo e das suas barreiras no mercado. Definida por Brittos (2004, p. 33) por se processar a partir de atuações dos diversos órgãos estatais e suas unidades (caso do CADE), as barreiras político-institucionais se destacam neste caso por se relacionarem diretamente com estes organismos “[...] através da obtenção de posições diante de determinantes político-institucionais, [...] incluindo ações de infraestrutura, regulação da concorrência, postura como poder concedente e opções frente à pesquisa e à tecnologia”. Ainda que indiretamente, a decisão do CADE, órgão estatal, beneficiou a líder do oligopólio midiático, de forma a manter a situação de vantagens a esta emissora na negociação pelos direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro de Futebol.

CONCLUSÕES

O mercado comunicacional como um todo, mas especialmente o seu setor televisivo, vive nos últimos 20 anos momentos de grandes disputas para romper as barreiras estabelecidas, com o erguimento de novas no lugar. Apesar disso, a Rede Globo de Televisão se mantinha e parece se manter convicta que suas barreiras de mercado, tanto as estéticoprodutivas quanto as político-institucionais, proporcionam-lhe a garantia de estar à frente da produção de audiovisual no Brasil. Para a Economia Política da Comunicação, este estudo traz o ineditismo referente ao objeto, o futebol. Eixo teórico-metodológico com preocupação sobre uma transformação social da sociedade, entender bens culturais de profundo apreço por parte das pessoas e a apropriação destes enquanto mercadoria é fundamental para fazer com que os temas discutidos possam ter um público ampliado. No caso aqui em análise, dos direitos de transmissão do futebol, é importante relatar a importância da líder do mercado na realização da Copa União, em 1987, confirmando a relevância do capital da Indústria Cultural para a manutenção dos clubes e torneios de futebol. Isto vai acabar sendo alterado, especialmente durante o procedimento administrativo que

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A Rede Globo e a transmissão do Campeonato Brasileiro – Anderson Gomes dos Santos

analisa os contratos do Clube dos 13 com a Rede Globo a partir de 1997. Esta análise se torna especial, principalmente por tratar da atuação de um órgão estatal ligado ao debate de práticas anticoncorrenciais no mercado brasileiro de TV aberta, ainda que sua definição final tenha sido de que a atitude da Rede Globo em assinar os novos contratos de forma individual, praticamente encerrando as atividades da associação dos clubes, não feria o acordo estabelecido. A Rede Globo de Televisão não fez nada de anormal, pelo contrário. Utilizou de suas barreiras de mercado para seguir com um programa midiático relevante para a sua grade de programação, mesmo tendo que pagar o dobro do valor que pretendia. A relação constituída com os clubes de futebol e com o mercado publicitário também serviu para que a assinatura de contratos fosse dada com a emissora, no entendimento de possuir melhor estrutura e mais experiência de transmissão. O padrão tecno-estético constituído ao longo das décadas foi utilizado como um dos principais argumentos para seguir com a Globo, independentemente de valores ofertados. As barreiras político-institucionais foram essenciais para a resolução do caso. Ainda assim é importante finalizar destacando que mesmo uma alteração que possibilitasse a transmissão por mais emissoras não retiraria ou impediria o processo de mercantilização sobre o jogo, que deve continuar ainda muito forte, dadas as relações intrínsecas do espetáculo esportivo com sua exibição midiática e as novas prerrogativas de utilização da imagem de atletas e de clubes por parte de empresas até então fora do futebol.

REFERÊNCIAS

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A Rede Globo e a transmissão do Campeonato Brasileiro – Anderson Gomes dos Santos

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SAÚDE E CIDADANIA: INFORMAÇÃO NOS PROJETOS POLÍTICO-PEDAGÓGICOS DAS ESCOLAS MUNICIPAIS DE MARINGÁ-PR SALUD Y CIUDADANÍA: INFORMACIÓN EN LOS PROYECTOS POLÍTICO-PEDAGÓGICOS DE LAS ESCUELAS DE MARINGÁ-PR HEALTH AND CITIZENSHIP: INFORMATION IN THE POLITICAL-PEDAGOGICAL PROJECTS OF MARINGÁ-PR SCHOOLS

Ana Paula Machado VELHO Professora Doutora do Programa de Pós-graduação em Promoção da Saúde da UniCesumar – Centro Universitário CESUMAR, Maringá-PR - Brasil, Email:anapaula.mac@gmail.com

Isabela QUAGLIA Mestranda do Programa de Pós-graduação em Promoção da Saúde da UniCesumar – Centro Universitário CESUMAR, Maringá-PR, Brasil, Email:isaquaglia@hotmail.com

Revista Eptic Online Vol.15 n.3 p.205-215 set.-dez. 2013 Recebido em 28/05/2013 Publicado em 02/09/2013


Saúde e Cidadania – Ana Paula Machado. Velho; Isabela Quaglia

RESUMO Este artigo descreve os resultados da análise de conteúdo de 13 Projetos-Políticos Pedagógicos de escolas municipais de Maringá-PR, no que diz respeito ao tema saúde e prevenção. O objetivo é mostrar que estes documentos de comunicação entre os gestores e a comunidade escolar não vêm planejando nem disseminando informações que garantam a saúde dos alunos do ambiente da escola. A pesquisa foi feita em abril de 2013, sobre os Projetos de 2012, cedidos pela Secretaria Municipal de Educação de Maringá-PR. Entre os resultados, destaca-se a falta de estratégias concretas para promover a saúde nas escolas.

Palavras-chave Saúde. Cidadania. Comunicação. Projeto Político-Pedagógico. Maringá-PR-Brasil.

RESUMEN En este artículo se describen los resultados del análisis del contenido del 13 Proyecto Político-Pedagógico - de las escuelas de Maringá-PR, con respecto al tema de la salud y la prevención. El objetivo es mostrar que estos documentos de comunicación entre los administradores y la comunidad escolar no planean ni difunden la información para garantizar la salud de los alumnos del entorno escolar. La encuesta se llevó a cabo en abril de 2013, más proyectos de 2.012, asignados por la Educación Municipal de Maringá-PR. Entre los resultados, hay una falta de estrategias concretas para promover la salud en las escuelas. Palabras clave Salud. Ciudadanía. Comunicación. Proyecto Político Pedagógico. Maringá-PR-Brasil.

ABSTRACT This article describes the results of a content analysis of 13 Political-Pedagogical Project of MaringáPR schools, about two subjects: health and prevention. The goal is to show that these communication documents between managers and the school community have not been planning and disseminating information to ensure the pupils health in the school environment. The survey was conducted in April 2013, over 2012 projects, assigned by the Municipal Education Maringá-PR. Among the results, there is a lack of concrete strategies to promote health in schools. Keywords Health. Citizenship. Communication. Political-Pedagogical Project. Maringá-PR-Brazil.

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INTRODUÇÃO

Saúde, na atualidade, é um termo definido na Declaração dos Direitos Humanos de 1948 e esse conceito é reforçado na Constituição Federal Brasileira de 1988. Esta última define a saúde como “direito de todos e dever do Estado”, indicando os princípios e as diretrizes que regularão o Sistema Único de Saúde (SUS). Direito considerado fundamental ao ser humano só se torna realidade com a participação da população em suas conquistas e com o compromisso político do Ministério da Saúde que busca: universalização, equidade, integralidade, resolutividade orientando os investimentos na promoção da saúde (BRASIL, 2005, p. 06). Pensar em uma escola promotora da saúde é acreditar em uma instituição que promove também qualidade de vida, garantindo direitos fundamentais ao cidadão. Segundo Pelicioni e Torres (1999, p. 9), pensar neste modelo de escola é “[...] implementar políticas práticas e outras medidas que se referem à autoestima dos indivíduos, à provisão de múltiplas oportunidades para seu sucesso e ao reconhecimento de bons esforços e iniciativas, bem como de realizações pessoais”. Isto quer dizer: ela oferece informações fundamentais para que o sujeito se construa de maneira saudável e exerça sua cidadania. Em outras palavras, é impossível pensar a formação de um sujeito social, político sem investir na educação e na saúde. Porém, a quantos indivíduos está assegurado o direito de se construir como sujeito e atuar na sociedade como cidadão crítico e reflexivo por meio da escola promotora da saúde? As unidades educacionais de Maringá-PR estão se estruturando por meio dos seus Projetos Político-Pedagógicos como construtoras do conhecimento em saúde? Para Pelicioni e Torres (1999, p. 3), a “[...] promoção da saúde no contexto escolar deve enxergar o ser humano de forma integral e multidisciplinar, considerando-o em seu contexto familiar, comunitário e social”. Assim como Collares e Moisés (1987) afirmam que a educação e saúde trabalham com o mesmo sujeito: o ser humano. E também com um mesmo propósito: proporcionar o desenvolvimento do bem-estar. A área de promoção da saúde prega a importância de se instrumentalizar o indivíduo com informações, para que ele possa ser peça mais atuante na própria qualidade de vida. Configura-se aí e legitima-se no Brasil e em boa parte do mundo a doutrina dos cuidados primários ou Atenção Primária da Saúde (APS), que cresceu como resposta aos interesses políticos e pragmáticos de prevenção da doença. Essa nova filosofia se fortalece no Brasil no período da década de 80, quando os movimentos sociais renascem com muita força, na tentativa de minimizar o custo social do período militar no país. O próprio Estado age em favor de mudanças na área social, que são ratificadas com a promulgação de uma nova Constituição, em 1988. A Carta Magna, desde então, contém o desenho do Sistema Único de Saúde que, em sua essência, visa a implementar um novo modelo de política de saúde pública, no qual a disseminação de informação é fundamental.

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A Associação Americana de Medicina define esse processo de organização de informação como uma iniciativa de alfabetização em saúde. Consiste exatamente em habilitar o cidadão da capacidade de obter, processar e compreender informação básica em saúde, necessária à tomada de decisões apropriadas. A não alfabetização em saúde leva a erros no uso de medicações, a não procura de ajuda médica quando necessária e à dificuldade em assumir hábitos de vida saudáveis. Ações nesta área demandam novas estratégias de reorganização do sistema de saúde, novos investimentos financeiros e também em comunicação, que redundem em mudanças de estilos de vida. Nesse cenário, a escola tem papel importante já que se propõe a constituir cidadãos educados, conscientes de seus direitos e deveres e, portanto, críticos. A esse respeito, Delors (1998, p. 51) pondera que “a educação tem como objetivo essencial o desenvolvimento do ser humano na sua dimensão social”. A Educação em Saúde enfatiza os tópicos de ensino que se baseiam na participação e na responsabilidade dos estudantes em seu processo de aprendizagem, como requisito imprescindível para a construção de seus conhecimentos e gerenciamento de sua saúde. Portanto, uma consequência prática da Educação em Saúde é que, quando a aprendizagem funciona, a pessoa se responsabiliza por um estilo de vida saudável (PELICIONI; TORRES, 1999). Em outras palavras, a educação é a base necessária para qualquer transformação social que busque contribuir para uma vida humana melhor e digna. Segundo Veiga (2004, p. 49), “[...] a educação, assim contextualizada, faz com que a escola, especialmente a escola pública, assuma importância cada vez maior como espaço-tempo em que as prioridades socioeducacionais dos cidadãos podem se concretizar”. Partindo desse princípio, trabalhar com o tema saúde na escola implica não somente em transmitir informações descontextualizadas e sim desenvolver no educando conhecimentos, competências e habilidades para que sejam adotados modos de vida saudáveis, de forma prática.

COMUNICAÇÃO E PLANEJAMENTO 1- Em 2012, o total de alunos do quarto ano com TDAH que tomavam medicação era de 136, de um universo de 3.031, o que representa um percentual de prevalência na série de 4,49%.

2 - Os dados desta pesquisa são inéditos e serão publicados em breve na dissertação da mestranda Bárbara Magalhães Barros Arco-Verde.

Mas não é isso que se tem visto no ambiente escolar na cidade de Maringá. Para ilustrar o que acontece neste município do noroeste do Paraná, cita-se, aqui, dados da Secretaria Municipal de Educação (Seduc) que mostram que 4,94%, ou seja, 530 alunos da rede de ensino fundamental usavam medicação para o Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), em 2012. Uma consulta feita recentemente com alunos do 4º ano de escolas de ensino fundamental de Maringá mostra que 18,75% dos 48 alunos que tomam medicação para o controle do TDAH, e concordaram em participar da pesquisa1, foram “aconselhados” pelos professores2. Os dados foram fornecidos pelos pais dos estudantes e coletados em abril de 2013. Informalmente, a escola está frequentemente encaminhando alunos para os neuropediatras da rede pública. E só o fato do professor ser citado como

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quem indicou o tratamento com medicamentos para a minimização dos efeitos de um comportamento hiperativo já é um grande problema. Fato que vem sendo criticado por Collares e Moysés (1986), e ainda ressaltam que, além de indicar, professores e médicos o fazem de forma inadequada. Enfim, as estatísticas acima ajudam a levantar a questão de que a escola não está contribuindo para que o cidadão goze de um de seus direitos fundamentais que é a saúde. Assim, as autoras deste artigo suscitam a hipótese de que as unidades escolares não estão lidando com o tema saúde de maneira adequada desde o processo de planejamento das unidades, que se reflete nos Projetos Político-Pedagógicos (PPP). Acredita-se que o PPP é um instrumento de comunicação entre os membros da comunidade escolar. Aquele que descreve e informa o que a comunidade pensa e de que forma se pode garantir a construção do cidadão. O Projeto Político-Pedagógico, nesse sentido, torna-se o retrato do que a escola pretende desenvolver em seu cotidiano (BRASIL, 2010). Segundo Vasconcellos (2005, p. 169), o PPP é o plano global da instituição. Para o autor, “é um elemento de organização e integração da atividade prática da instituição no processo de transformação”. Neste sentido, as escolas devem elaborar o Projeto Político-Pedagógico que contempla a finalidade de cada organização educativa, expressada nos seus processos e metas propostos. Ora, se expressa algo é porque tem como objetivo compartilhar algum conhecimento, alguma informação. E mais, se é um instrumento político, tem como essência a construção conjunta de conteúdos, de informações que organizam um grupo. “Denomina-se político porque é coletivo, político porque é consciente, porque define uma posição do grupo, político porque expressa um conhecimento próprio, contextualizado e compartilhado. Político, porque supõe uma proposta coletiva, consciente, fundamentada e contextualizada para a formação do cidadão” (EYNG, 2010, p. 26). Porém, como afirmam Gandin e Gandin (1999, p. 14) nenhuma dessas ações será concretizada se as ideias não forem [...] realizadas na prática, isto é, não transformadas em ação, servem apenas para o prazer do debate e da compreensão. Por isso são igualmente necessárias ferramentas para transformar ideias em prática. E se a educação, sobretudo a escolar, não trabalhar com a igualdade de importância nestas duas dimensões (a produção de ideias e a organização de ferramentas para torná-las realidade) não acontecerão as transformações necessárias. Para os autores, qualquer instituição, para contribuir significativamente para aquilo que se propõe, precisa ter clareza e bom desempenho em duas dimensões: (1) na riqueza e adequação das ideias que maneja; e (2) nos instrumentos apropriados para transformar essas ideias em prática (GANDIN; GANDIN, 1999, p.17). E o Projeto Político-Pedagógico é o instrumento que concretiza a ação educativa. Veiga (2004, p. 33) lembra que “[...] a construção do projeto político-pedagógico requer continuidade das ações, descentralização, democratização do processo de tomada de de-

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cisões e instalação de um processo coletivo de avaliação de cunho emancipatório”. Vasconcellos (2005, p. 50) aponta as finalidades da construção do projeto como um canal de participação efetiva. Para o autor, “[...] o PPP além de permitir a interação de pensamentos entre agentes construtores, favorece a interlocução com a comunidade, com os órgãos responsáveis pelo sistema educacional e com a sociedade no seu conjunto (a quem possa interessar)”. Nesse sentido, o Projeto Político-Pedagógico torna-se o instrumento norteador da comunicação, interação entre a comunidade interna e externa, configurando-se também em um rico instrumento de intervenção neste espaço valioso para articular ações em promoção da saúde. A democratização da gestão escolar, tendo por sustentáculo a participação dos sujeitos escolares na elaboração/implementação do PPP e na atuação dos órgãos colegiados requer, portanto, mudança de mentalidade. Implica a mudança no uso de tempos e espaços escolares, na organização do trabalho pedagógico e nas formas de comunicação e interação (SILVA, 2013).

TRANSCURSO DA PESQUISA

Nessa perspectiva, este artigo tem o objetivo de traçar um panorama de como as informações sobre saúde aparecem nos Projetos Político-Pedagógicos das escolas municipais de Maringá. Defende-se que ações que podem posicionar a escola como promotora da saúde e da cidadania devem começar a ser planejadas nos Projetos. Será que o tema saúde consta nos Projetos Político-Pedagógicos das instituições analisadas? Será que a construção de uma escola promotora da saúde está mesmo entre as preocupações das equipes que elaboram estes Projetos? Para responder a estas questões, realizou-se a análise de conteúdo de 13 Projetos de escolas municipais de Maringá, cujo intuito foi verificar como são discutidas e planejadas as atividades que visam uma educação de qualidade e a constituição de cidadãos promotores de saúde. A proposta é, futuramente, utilizar esse levantamento para propor novas estratégias de Promoção da Saúde para o Ensino Fundamental da cidade de Maringá, garantindo a cidadania aos alunos da rede municipal de educação do município. Os problemas da pesquisa já começaram no início do levantamento bibliográfico inicial que sustentou o projeto. A primeira preocupação que se teve foi compreender a legislação que regulava a elaboração dos Projetos. Porém, as séries iniciais do ensino fundamental possuem Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), que apenas orientam as decisões e ações dos gestores escolares na sua elaboração, mas não propõem modelos a serem desenvolvidos. Esses documentos, no que diz respeito à qualidade do processo de comunicação, são bastante ineficientes. Sabe-se que esses Parâmetros são frutos de políticas públicas, isto é, propostas dos gover-

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nos da União, dos Estados, dos Municípios para o atendimento de necessidades e demandas advindas da sociedade. De acordo com Eyng (2010, p. 38), “[...] as políticas educacionais são parte do conjunto das políticas públicas que as englobam e tratam das questões relativas ao provimento da educação, seguindo determinações da Constituição Federal, do Plano Nacional de Educação (PNE), da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) e de resoluções e leis complementares”. Segundo a autora, a LDB aponta nos artigos 12 e 13, que as escolas devem, de forma coletiva, incentivar a comunidade e a equipe pedagógica a desenvolver sua proposta pedagógica. Em seu art. 14, que trata da gestão democrática, a Lei apresenta o termo Projeto Político-Pedagógico da escola, enfatizando a importância da sua intenção educativa. Vasconcellos (2005) destaca que o Projeto Político-Pedagógico é o plano global da instituição. Para o autor, esse termo pode ser entendido como [...] a sistematização, nunca definitiva, de um processo de Planejamento Participativo, que se aperfeiçoa e se concretiza na caminhada, que define claramente o tipo de ação educativa que se quer realizar. Portanto, é um instrumento teórico-metodológico para a intervenção e mudança da realidade. É um elemento de organização e integração da atividade prática da instituição no processo de transformação (VASCONCELLOS, 2005, p. 169). Para Eyng (2010, p. 43), “o planejamento e desenvolvimento do currículo escolar se orientam nas determinações emanadas das políticas curriculares”. Porém, não há uma diretriz específica para adequação do currículo da educação infantil e dos anos iniciais do ensino fundamental. Há, sim, alguns apontamentos. Essa falta de modelo traz prejuízos ao conteúdo dos Projetos, como será visto mais a frente. Diante de um documento norteador, que não propõe modelos estruturais para os PPP, procurou-se perceber algum padrão estrutural nos Projetos escolhidos para a análise aqui proposta, de forma que possibilitassem sistematizar as observações sobre como lidam com o tema saúde. Porém, aí surge o segundo problema, não há modelo, padrão e, muito menos, capítulos ou subtítulos que especifiquem as ações de promoção da saúde nos projetos que chegaram às mãos das pesquisadoras. Desta forma, a saída foi propor uma análise de conteúdo desses documentos, utilizando a metodologia de análise de conteúdo de Bardin (2011). Segundo a autora, “há diferentes fases neste processo: 1) a pré-análise; 2) a exploração do material; e 3) o tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação” (BARDIN, 2011, p. 125). Assim, foi definida uma amostra por cotas das 49 escolas municipais de ensino de Maringá, que ofertam turmas de 1º ao 5º ano do ensino fundamental. A amostra por cotas se baseou em Gil (1999). Para o autor a análise de cotas também é desenvolvida em três fases: “(1) classificação da população; (2) determinação da proporção da população; e (3) fixação de cotas para cada observador ou entrevistador” (GIL, 1999, p. 104). Desta maneira, como foi possível verificar que as unidades escolares contemplavam características diferentes, a coleta de dados foi realizada em 13 das 49 escolas de ensino fundamental, divididas entre as quatro regiões da cidade (norte, sul, leste e oeste), que

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apresentam diferentes características socioculturais. Nestas regiões, foram selecionadas as escolas que possuíam o maior número de estudantes. A Secretaria de Educação de Maringá, então, repassou os Projetos Político-Pedagógicos de 2012 das escolas para que fosse realizada a análise. Utilizou-se nas citações as nomenclaturas E.M.N. (Escola Municipal Norte), E.M.S (Escola Municipal Sul), E.M.L. (Escola Municipal Leste) e E.M.O. (Escola Municipal Oeste), para identificar as escolas por região, porém, sem expor as mesmas. Destaca-se que documentos oficiais como os PPP constituem-se numa fonte fidedigna de dados, visto que representam oficialmente as escolas na Secretaria de Educação. Coube às pesquisadoras apenas selecionar o que havia de interesse e, apesar de não exercer controle sobre a forma como os documentos foram criados, o material foi interpretado e comparado de modo que possibilitasse traçar e apresentar a ação das instituições. Como estratégias de análises foram determinadas dois descritores: “saúde” e “prevenção”. Utilizando a ferramenta Localizar, no software Word, do pacote Microsoft, com vistas a determinar a frequência dos termos nos PPP e em que contexto.

O PERFIL DOS PROJETOS POLÍTICO-PEDAGÓGICOS

Os resultados da análise de conteúdo mostraram, então, que quando se fala em saúde nos PPP das 13 escolas estudadas, não se foca especificamente em promoção e prevenção. Maringá possui dez mil educandos, em 57 Centros Municipais de Educação Infantil, e 17 mil alunos dos anos iniciais do ensino fundamental, em 49 escolas municipais, conforme apresenta informações disponibilizadas pela Secretaria de Educação (SEDUC, 2012). Como foi mencionado, o levantamento de dados se deu em 13 Projetos das escolas municipais, nos quais a palavra “saúde” aparece 102 vezes, obviamente que mais de uma vez em cada documento. Em boa parte delas (31,37%), a proposta é “valorizar a vida e sua qualidade como bens pessoais e coletivos, desenvolver atitudes responsáveis com relação à saúde” (E.M.L.2, 2012, p. 116��������������������������������������������������������������������������� ), entendendo-a como “direito social”. Esses ������������������������������������ direitos sociais surgem misturados ao direito à educação e à vida digna e discorre-se sobre o fato de que devem ser garantidos a partir da participação civil da escola em associações civis, conselhos de escola, conselhos tutelares, conselhos de saúde etc. A maior parte das ocorrências (37,25%) enfatiza a discussão sobre saúde dentro da proposta curricular, na disciplina de Ciências, sugerindo como tema o Corpo Humano e Saúde. Há projetos que apontam a estrutura institucional, que deve atender às “práticas e normas de segurança; às condições e normas de higiene e saúde” (16,66%). “Outros assuntos” somam 8,82%. E, ainda, há um grupo que, quando fala em saúde, propõe conteúdos a serem trabalhados a partir de ações de “atividade física” (5,8%), como a necessidade de proporcionar oportunidades de “alongamento e relaxamento”.

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Pouquíssimos apontam particularidades que consideram problemas psíquicos e emocionais. Apenas três, na realidade, refletem sobre essa problemática, o que representa 2,94% do total de ocorrências. Um Projeto sugere o estreitamento “da relação com os pais quando o tema é saúde, sugerindo o acompanhamento e análise socioeconômica e cultural das famílias que compõem a comunidade escolar e a inserção dos responsáveis”. E acrescenta questões bastante focadas: Um desenvolvimento integral depende tanto dos cuidados relacionais que envolvem a dimensão afetiva e dos cuidados com os aspectos biológicos do corpo, como a qualidade da alimentação e dos cuidados com a saúde, quanto da forma como esses cuidados são oferecidos e das oportunidades de acesso a conhecimentos variados. A forma de cuidar, muitas vezes, é influenciada por crenças e valores em torno da saúde, da educação e do desenvolvimento infantil. Os procedimentos de cuidado também precisam seguir os princípios de promoção da saúde (E.M.N.2, 2012, p, 47). Outro Projeto é mais enfático. Destaca que é necessário envolver a família no ambiente escolar, no processo de ensino e aprendizagem, “quanto à realização das tarefas de casa, comparecimento em reuniões ou em outras convocações, falta de compromisso quanto à frequência, à saúde dos filhos, principalmente, aos problemas de hiperatividade”, diz o Projeto Pedagógico da Escola E.M.O.1 (2012, p. 28). Por outro lado, há grupos que eximem a escola de responsabilidades. “Discordamos [...] nas questões que não fazem parte da função da escola e sim da área da saúde, pois o responsável em garantir o bem estar do filho é a família e não a Escola, cabendo sim [a esta última] a oferta de um ambiente prazeroso para a sistematização do saber”. Este trecho é parte do Projeto da Escola Municipal E.M.L.4 (2012, p.18). A Escola Municipal E.M.S.3 (2012, p, 63) observou o perfil socioeconômico das famílias dos alunos, a situação de atendimento médico hospitalar e outros detalhes sobre a área da saúde para então propor ações, em conjunto com as redes de apoio, para aproximar as famílias da vida escolar, por meio de reuniões de pais, datas comemorativas, Conselho Escolar, além de parcerias com o Conselho Tutelar, a rede atenção à saúde e as universidades, como a UniCesumar. E concretiza esse planejamento citando ações de combate à dengue, de cuidados com a higiene bucal, e também de “atendimento psicológico de vários alunos na Unidade”. Quando se fala em prevenção, a situação é ainda mais complicada. Em 61,53% das 13 vezes em que a palavra aparece nos PPP se refere à “prevenção e erradicação das drogas” ou da “criminalidade”. Sendo que 30,76% das aparições citam de forma geral à busca da prevenção; e uma vez apenas (8,7%) se fala em promoção da saúde. Diante dessa realidade, vê-se que os Projetos Político-Pedagógicos não vêm sendo referência para a promoção da saúde na escola. Pouquíssimos se preocupam em construir um ambiente plural de participação em que todas as instâncias – família, sociedade e escola – da comunidade escolar possam ter voz e assumir responsabilidade na tarefa de favorecer e fortalecer comportamentos que estimulem e promovam a saúde. Um detalhe importante a se destacar foi a constatação de que os documentos apresentam

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frases similares, quase com a mesma estrutura. “Atividade física na produção de saúde (Alongamento e relaxamento)”, por exemplo, aparece em três Projetos. Desse modo, é possível concluir que a redação pode ter sido feita mais por obrigação em apresentar o documento à Secretaria de Educação do que por consciência da importância do PPP para a efetividade da ação da escola.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É importante destacar que se apresentou aqui uma breve discussão sobre as questões de saúde na escola. Utilizou-se parte dos dados que estão sendo levantados para uma dissertação que visa discutir em profundidade como os PPP se refletem na preocupação da comunidade em construir uma escola promotora da saúde. Há outros fatores que compõem o universo de condições que irão produzir o sujeito sadio e não são discutidos aqui, tais como a alimentação, a renda, o meio ambiente, entre outros aspectos. Porém, a frequência e o contexto que os Projetos Político-Pedagógicos apresentam a palavra saúde, foco deste artigo, já denotam uma profunda deficiência no que diz respeito à escola. É preciso que se reveja o debate do tema nas unidades escolares. Sugere-se que as autoridades de educação e saúde comecem, por exemplo, a fornecer modelos mais consistentes a serem seguidos pelos Projetos Político-Pedagógicos, exigindo mais comprometimento das equipes gestoras na produção deste documento. Os Projetos necessitam, também, ir além das proposições gerais, apontando de forma mais significativa ações concretas que minimizem os problemas atuais que envolvem a educação. Entre eles, sem dúvida, está à saúde do ambiente escolar e dos alunos. Hoje, o ato de disponibilizar conhecimento aos cidadãos passa definitivamente pela responsabilidade do Estado e as ações de comunicação, sejam elas institucionais ou sociais, dispõem de estratégias que facilitam o acesso por um número significativo de pessoas. Muitas vezes, porém, esse processo vem sendo cerceado por pesados condicionamentos. É necessário que os PPP sejam instrumentos de comunicação abertos, divulgados, que circulem de maneira ampla no ambiente escolar e em outras plataformas cada vez mais comuns na vida de pais, alunos, professores e gestores, como as tecnologias digitais. Precisa-se garantir que os membros da comunidade escolar não fiquem aquém das possibilidades de acesso ao que lhe é fundamental para uma vida digna. É preciso que a escola utilize todos os instrumentos para combater um mal crônico da nossa sociedade, que chamamos de exclusão: seja ela informacional, intelectual, digital, de cidadania etc. Muitos problemas de saúde, lembra Capra (1982), são gerados por fatores econômicos e políticos, que só podem ser modificados coletivamente, por meio de uma ação que determine o envolvimento de pessoas em larga escala. A responsabilidade individual deve estar acompanhada da responsabilidade social. E, neste cenário de assistência social à saúde, a escola é responsável pela circulação de informações fundamentais. É nela que o conhecimento científico se transforma em ferramenta para toda a sociedade. E esse é um tipo de

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ação, reforça Capra, que não pode ser fornecido, simplesmente, à população, mas deve ser praticado, diariamente, por todos os atores envolvidos neste quesito: o da promoção da saúde.

REFERÊNCIAS

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