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Revista eletrônica quadrimestral vinculada ao Observatório de Economia e Comunicação (OBSCOM) e ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Sergipe Volume 15, número 2, mai.-ago. 2013. ISSN 1518-2487 OBSCOM - UFS Coordenação Prof. Dr. César Ricardo Siqueira Bolaño Profa. Dra. Verlane Aragão Santos PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO - UFS Coordenação Prof. Dr. Carlos Eduardo Franciscato Prof. Dr. César Ricardo Siqueira Bolaño REVISTA EPTIC ONLINE Diretor Prof. Dr. César Ricardo Siqueira Bolaño (UFS - Brasil) Editor Geral Prof. Dr. Ruy Sardinha Lopes (USP-Brasil) Editores Adjuntos Profª Drª Anita Simis (UNESP-Brasil) Prof. Dr. Francisco Sierra (Un. Sevilla – España) Prof. Dr. Luis A. Albornoz (Un. Carlos III - Espanha Projeto Gráfico Rachel Ferrari e Ruy Sardinha Apoio Técnico Joanne Mota (UFS – Brasil) Elizabeth Azevedo Souza (UFS – Brasil) Conselho Editorial Prof. Dr. Abraham Benzaquen Sicso, FUNDAJ, Brasil Prof. Dr. Alain Rallet, Université Paris-Dauphine, França Prof. Dr. Alain Herscovici, UFES, Brasil Prof. Dr. Césare Galvan, FUNDAJ, Brasil Profª. Drª Delia Crovi Druetta, UNAM, México Prof. Dr. Dênis Moraes, UFF, Brasil Prof. Dr. Diego Portales, Universidade del Chile, Chile Prof. Dr. Domenique Leroy, Université Picardie, França Prof. Dr. Edgard Rebouças, UFP, Brasil Prof. Dr. Enrique Bustamante, UCM, Espanha Prof. Dr. Enrique Sánchez, Universidad de Guanajuato, México Prof. Dr. Francisco Rui Cádima, UNL, Portugal Prof. Dr. Giovandro Marcus Ferreira,UFES, Brasil Prof. Dr. Gaëtan Tremblay, Université du Québec, Canadá Prof. Dr. Graham Murdock, Loughborough University,

Expediente

Prof. Dr. Guillermo Mastrini, UBA, Argentina Prof. Dr. Helenice Carvalho, UNISINOS, Brasil Prof. Dr. Isabel Urioste, Universite de Technologie de Compiegne, França Prof. Dr. Joseph Straubhaar, University of Texas, Estados Prof. Dr. Juan Carlos de Miguel, EUH, Espanha Prof. Dr. Luiz Guilherme Duarte, UPX, Estados Unidos Prof. Dr. Marcelo Kischinhevsky, UERJ, Brasil Profª Drª Márcia Regina Tosta Dias, UNIFESP, Brasil Prof. Dr. Marcial Murciano Martinez, UAB, Espanha Prof. Dr. Marcio Wohlers de Almeida, UNICAMP, Brasil Prof. Dr. Marcos Dantas, UFRJ, Brasil Prof. Dr. Nicholas Garham, University of Westminster, Reino Unido Prof. Dr. Othon Jambeiro, UFBA, Brasil Prof. Dr. Pedro Jorge Braumann, Instituto Politécnico de Lisboa,Portugal Prof. Dr. Peter Golding, Northumbria University, Reino Unido Prof. Dr. Philip Schlesinger, University of Glasgow, Reino Unido Prof. Dr. Pierre Fayard, Université de Poitiers – Accueil, França Prof. Dr. Ramón Zallo, Universidad Pais Vasco, Espanha Prof. Dr. Sergio Augusto Soares Mattos, UFBa- Brasil Prof. Dr. Sergio Capparelli, UFRGS, Brasil Prof. Dr. William Dias Braga, UFRJ-Brasil Pareceristas desta Edição Prof. Dr. Abraham Benzaquen Sicsú (UFPE- Brasil) Profª Drª Anita Simis (UNESP-Brasil) Prof. Dr. Cesar R.S. Bolaño (UFS-Brasil) Profª Drª Jacqueline Lima Dourado (UFPI- Brasil) Prof. Dr. Juliano Mauricio de Carvalho (UNESP-Brasil) Prof. Dr. Laurindo Leal Filho (USP- Brasil) Profª Drª Lilian Cristina Monteiro França (UFS- Brasil) Prof. Dr. Luiz Afonso Albornoz (U. Carlos III – Espanha) Prof. Dr. Marcelo Gil Ikeda (UFC-Brasil) Prof. Dr. Marildo José Nercolini (UFF-Brasil) Prof. Dr. Murilo Cesar Ramos (UnB- Brasil) Dr. Rodrigo Murtinho de Martinez Torres (FIOCRUZ- Brasil) Prof. Dr. Ruy Sardinha Lopes (USP-Brasil) Prof. Dr. Sérgio Mattos (UFRB-Brasil) Profª Drª Silvia Garcia Nogueira (UEPB- Brasil) Dossiê Temático Comunicação Pública: cenários e perspectivas Coordenadores: Prof. Dr. Laurindo Leal Filho MSc Ivonete da Silva Lopes

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Apresentação

Embora, como afirma Murilo Cesar Ramos em entrevista publicada no presente número, o Brasil tenha perdido a posição de vanguarda, em relação a alguns países da América Latina e México, no tocante à democratização de seus sistemas de comunicação – e sempre vale a pena relembrar a inexistência de uma lei geral das comunicações afeita às importantes evoluções do setor, em especial, a convergência digital, uma vez que nosso código de telecomunicações data de 1962 – a criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) representou, nas palavras de nosso entrevistado, um resquício de democracia. Assim, seus cinco anos de existência (lei n.11.652, de 7/04/2008) merecem avaliação crítica. A existência da EBC, além de se afirmar como alternativa ao sistema – e interesses – de radiodifusão privado, recolocando em discussão o papel do Estado na constituição de uma comunicação mais inclusiva e democrática, abre espaço para que se reflita sobre o “caleidoscópio de conceitos” (Heloisa Matos) que a discussão sobre a comunicação pública e o direito à comunicação envolve. Se, entretanto, a reflexão conceitual é fundamental, envolvendo também uma análise crítica dos processos históricos e dos diversos agentes sociais que levaram à constituição dos sistemas públicos de radiodifusão no Brasil e no mundo, a atenção às políticas públicas, às normatizações, modelos de gestão e financiamento, bem como ao conteúdo do que aí é veiculado são também peças essenciais e matéria prima para um balanço crítico sempre necessário. A grande recepção que a chamada a este Dossiê Temático teve reflete, não só a premência desta questão, mas também o quanto a academia não tem se furtado a refletir e criar conhecimento sobre questões essenciais às práticas e cotidiano de nossa sociedade. A presença de artigos oriundos das mais diversas regiões e instituições – ECA-USP, UFBA, UFF, UFRJ, UFS, UFSC, UnB, UNESP, UNIFOR, UNISO – dão uma pequena mostra da relevância do pensamento comunicacional brasileiro e do quanto a academia tem a contribuir . Notará o leitor acostumado com nossa Revista que o dossiê aqui apresentado ganhou um espaço mais dilatado. Dada a qualidade dos artigos, aquilatada por nossos pareceristas, a quem agradecemos o empenho e contribuição, optamos pela publicação de um número bem maior do que o usual, 12 artigos, não publicando, excepcionalmente, nossa seção Artigos e Ensaios.

Revista Eptic Online maio-ago 2013 Vol.15 n.2


Apresentação

Embora alguns artigos publicados nesse Dossiê relatem resultados de pesquisas concluídas ou em andamento, seu vínculo mais estreito à temática aí desenvolvida implicaram a decisão de alocá-los juntos aos demais. Desta forma, nossa seção Investigação complementa, juntamente com a Resenha do livro da professora da Universidade Federal do Piauí, Jacqueline Dourado, Rede Globo: mercado ou cidadania?, a presente edição com 3 relatos de Investigação. O primeiro, de Silvana Lemos, aborda a questão da inclusão digital ao analisar o projeto “um computador por aluno”, do governo federal; em seguida Clotildes Avelar Teixeira e Alcenir Soares dos Reis, da Universidade Federal de Minas Gerais analisam os vínculos entre políticas de cultura e processos informacionais ao se deterem nas questões do patrimônio imaterial. Finalmente, Carmen Ciller e Sagrario Beceiro, da Universidade Carlos III, de Madri, apresentam os primeiros resultados de uma pesquisa em curso sobre o número de coproduções cinematográficas entre a Espanha e os demais países, salientando, sobretudo, a importância da constituição de bancos de dados que permitam um acesso mais pormenorizado sobre esses bens culturais. Por fim, gostaríamos de expressar nossos agradecimentos e reconhecimento a Ivonete da Silva Lopes e Laurindo Leal, coordenadores do Dossiê aqui publicado, pela valiosa contribuição e profissionalismo. Boa leitura!

Cesar R.S. Bolaño Diretor

Ruy Sardinha Lopes Editor

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apresentação

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Dossiê Temático Comunicação Pública: cenários e perspectivas

O dossiê temático Comunicação Pública: cenário e perspectivas ratifica o empenho da Revista Eptic online em acompanhar e analisar criticamente as transformações que ocorrem no campo da comunicação. Historicamente, a práxis comunicativa sob a denominação pública, em nível nacional, é relativamente recente na sociedade brasileira. Surge com a constituição da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), em 2007. Entretanto, a experiência com a radiodifusão não-comercial no país iniciouse há quase 50 anos com a instituição das TVs Educativas, caracterizadas durante esse período por raros modelos de sucesso e pela abundância de crises. Outro formato de radiodifusão distinto do comercial foi introduzido pela Lei do Cabo (Lei nº 8.977/1995), com a reserva dos chamados canais básicos de acesso gratuito para os poderes judiciário e legislativo, além de universidades e entidades comunitárias ou educativas-culturais. A partir das várias nomenclaturas existentes no país para denominar a radiodifusão que se contrapõe ao modelo comercial, aqui chamada de comunicação pública, esta edição da Revista Eptic visa contribui para mapear e, de certa forma, sistematizar a produção acadêmica que discute a temática sob o viés da Economia Política da Comunicação (EPC). Passados cinco anos de constituição da EBC, pensamos ser este um momento apropriado para provocar a reflexão crítica sobre aspectos teóricos, metodológicos e empíricos da comunicação pública no Brasil. Na abertura desse dossiê, trazemos a entrevista do professor da UnB, Dr. Murilo César Ramos. A partir da sua trajetória como pesquisador do campo das políticas de comunicação e representante da sociedade civil no Conselho Curador da EBC, Ramos analisa os primeiros cinco anos de atividades e aponta grandes desafios à empresa pública de comunicação. Os desafios mencionados pelo entrevistado podem ser resumidos em três áreas. A primeira é a infraestrutura, a necessidade da emissora chegar com sinal de qualidade à população; o outro, é institucional. Na concepção de Ramos, o maior problema foi atrelar a EBC precisa à estrutura de comunicação de governo. Enfatiza a necessidade de haver alguma mediação na escolha do presidente da empresa, hoje feita pelo presidente da república. Por fim, aponta como sendo imprescindível consolidar a programação, especialmente o jornalismo, que na avaliação dele precisa: “ incomodar mais, hoje ainda é muito comportado, tímido, receoso de incomodar a Secom”.

Revista Eptic Online Vol.15 n.2 p.4-5 mai-ago 2013


dossiê temático comunicaçào pública: cenários e perspectivas

Na sequência, são apresentados 12 trabalhos de mestres e doutores oriundos das mais conceituadas instituições de ensino do país. Os de autoria de Heloisa Matos e Patrícia Gil e de Luiz Felipe Ferreira Stevanim apresentam uma discussão conceitual sobre comunicação pública. Os artigos de Renata Rocha, Márcio Acserald, Eugênio Bucci e Edna Miola abordam os processos políticos, os atores envolvidos na mobilização social para a constituição EBC, a democratização da televisão brasileira e a independência das emissoras como requisito para o desenvolvimento da comunicação pública de qualidade. Márcia Detoni reflete sobre a inserção da publicidade, prática cada vez mais frequente, em alguns canais públicos como TV Cultura (São Paulo) e a CBC Television (Canadá). Segundo a autora, a necessidade de recorrer ao mercado para financiar as atividades acaba gerando uma crise de legitimidade e identidade nessas emissoras. O emprego da tecnologia para a diversificação da programação é o foco do artigo de Viviane Lindsay, a autora estuda a adoção da multiprogramação pela TV Cultura; e Nelson Toledo Ferreira reflete sobre a comunicação pública na construção simbólica da representação política. O dossiê traz, ainda, resultados de pesquisas que demonstram a amplitude do tema comunicação pública. O artigo de Nélia Del Bianco, Carlos Esch e Sonia V.Moreira, por exemplo, analisa um ano de atividade do Observatório da Radiodifusão Pública na América Latina que, entre as tarefas executadas, mapeou a estrutura de gestão e funcionamento da radiodifusão pública no continente. O trabalho de Josenildo Guerra, Rogério Christofoletti, Maria José Baldessar e Samuel Pantoja Lima avalia os serviços prestados pela Agência Brasil (AB), um dos veículos da EBC. Os autores testam uma nova metodologia para mensurar a diversidade de conteúdo, a pluralidade de vozes e a existência de cobertura sobre políticas públicas na AB. O jornalismo opinativo na TVV, emissora comunitária de Votorantim, em São Paulo, é o foco do texto de de Miriam Carlos Silva. Boa leitura!

Laurindo Leal Filho

Ivonete da Silva Lopes

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Entrevista EBC: os avanços e os desafios depois de meia década Murilo Cesar Ramos Jornalista, mestre e doutor em Comunicação pela Escola de Jornalismo da Universidade de Missouri-Columbia (EUA). Pós-doutorado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), 2004, e pela Universidade de Columbia, em Nova York, 2011. É pesquisador do Laboratório de Políticas de Comunicação (LaPCom) e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UnB. Desde 2009 é representante da sociedade civil no Conselho Curador da EBC

Por Ivonete da Silva Lopes

Ao longo de sua trajetória acadêmica iniciada em 1974 na Universidade de Brasília (UnB), o professor Murilo César Ramos se tornou um dos nomes mais revelantes do campo das políticas de comunicação no Brasil. Nesta entrevista, ele analisa os cinco anos de atividades da Empresa Brasil de Comunicação (EBC). Menciona como avanço nesse período a veiculação de uma programação plural voltada à construção da cidadania. Entretanto, aponta grandes desafios à EBC, entre eles, o de rever o modelo instituicional da empresa para garantir maior autonomia em relação ao governo e chegar até a audiência com sinal de qualidade.

. A América Latina registra avanços democráticos na política de comunicação com a revisão de marcos regulatórios e, especialmente, com o fortalecimento da comunicação pública. Nesse contexto de transformação, como você vê a situação do Brasil. O país tem acompanhado essas mudanças ou está aquém dos países vizinhos? O Brasil até o começo dos anos 2000, final dos anos 1990, era conhecido na América Latina como país que tinha o movimento mais estruturado, formado por diversas entidades profissionais, sindicais, e acadêmicas, em favor de mudanças normativas voltadas à questão da democratização das comunicações. Movimento liderado pelo

Revista Eptic Online Vol.15 n.2 p.6-11 mai-ago 2013 Entrevista realizada em abril de 2013


EBC: os avanços e os desafios depois de meia década

Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC). Enfim, tínhamos a tradição regional mais consolidada de militância da sociedade civil voltada para as comunicações, como tínhamos talvez o maior acúmulo de teses e projetos. O Brasil parecia ser vanguarda nesse processo. Das mudanças ocorridas na Venezuela desde o final dos anos 1990 para cá, outras mudanças importantes ocorreram, na Bolívia, Equador, Argentina. O Uruguai também prepara as suas. E agora, muito recentemente, também o México, uma surpresa geral, aprovou uma nova lei para as comunicações, num processo encabeçado por um governo conservador. E, nós, continuamos estacionados, curtindo resquícios das esperanças que se tinha de mudanças amplas para se ter uma comunicação mais democrática no Brasil. Estamos hoje muito aquém dos países vizinhos da América do Sul e, agora, também, do México. O Brasil ficou para trás nos processos de se implantar novas regras para a televisão e o rádio, para as comunicações em geral. O que chamei de resquícios se manifestam em dois movimentos, duas mudanças concretas: a criação da EBC, em 2007, iniciativa tardia ocorrida no início do segundo mandato de Lula, e uma nova lei para a televisão por assinatura, a Lei nº 12.485, de 2011, que reregulamentou o setor, sob a ótica das questões de conteúdo e do incentivo à produção audiovisual independente. A Empresa Brasil de Comunicação (EBC) foi, de fato, uma exceção honrosa nesses últimos dez anos, mas ela foi uma medida circunstancial. Ela não veio na esteira de uma regulamentação mais ampla do setor. Foi um ato parcial de vontade do governo. E pior, começou pela boca do então ministro Hélio Costa. Não fosse o fato de o Ministério da Cultura já vir articulando o I Fórum Brasileiro de TV Pública, e a emenda teria saído pior que o soneto. Incentivado por Lula, Costa anunciara uma ‘televisão pública’ que, se concretizada, teria se transformado muito provavelmente em um mero arranjo governamental. O I Fórum, do qual participavam entidades representativas das emissoras educativas, culturais, legislativas, universitárias, comunitárias, foi o que impediu que aquele arranjo acontecesse.

A constituição da EBC foi uma medida pontual do governo Lula. A ausência de uma regulamentação geral das comunicações tem prejudicado o desempenho da EBC? É claro que seria interessante se ter todo o ambiente das comunicações, do rádio e da televisão principalmente, com uma regulamentação nova. A partir dele você criaria uma regulamentação tanto da comunicação pública sem fins lucrativos, como é o caso da EBC, e da comunicação comercial com fins lucrativos, mas ambas em regime público, de modo a facilitar a regulação pelo Estado. Mas, indepentemente disso, a lei da EBC [Lei nº 11.652, de 2008] funciona bem. Não há necessariamente relação entre uma coisa e outra.

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EBC: os avanços e os desafios depois de meia década

A contrução da Rede Nacional de Comunicação Pública sob a liderança da TV Brasil está baseada na afiliação voluntária das TVs Educativas. Cinco anos depois da instituição da EBC, a afiliação ainda é pequena e a cobertura restrita. A ausência de regulamentação não está prejudicando a formação da rede pública de televisão? É possível que sim, mas eu prefiro ver isso de uma outra maneira. Quando se fez o Fórum Nacional de Televisão Pública, não havia a ideia de se partir para um modelo de rede. A lei da EBC chegou com um modelo centralizado; no caso, com a TV Brasil como uma espécie de cabeça-de-rede. Isso ficou mal resolvido. A EBC se considera mesmo uma cabeça-derede; as demais, em especial as ainda chamadas de educativas, não querem perder sua autonomia, e eu acho que elas têm certa razão. Isso é um problema decorrente da concepção do modelo de rede a EBC. Metaforicamente falando é como se tivéssemos optado pelo modelo da BBC [British Broadcasting Company], uma grande televisão pública centralizada, em vez do modelo PBS [Public Broadcasting Service] dos Estados Unidos, modelo que funciona mais no estilo cooperativo.

Os movimentos já citados, que atuam pela democratização da comunicação, criticaram a forma como foi conduzido o projeto da EBC e, especialmente, pela adoção de um modelo de gestão muito atrelado ao executivo federal. Houve avanços nesses cincos anos? A EBC está mais democrática? De fato, como já mencionei, houve no processo de criação da EBC duas situações. A primeira foi benéfica, a marginalização do ministro das Comunicações Hélio Costa do processo de criação do que viria a ser a EBC. Em seu lugar, para resolver o impasse criado pela reação do MinC e das entidades do chamado campo público contra a participação no processo do referido, entrou o recém-empossado ministro da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, Franklin Martins. Por conta disso e, ao final do processo, EBC foi dividida em duas: uma parte dela foi destinada ao Ministério da Cultura e outra à Secom. Pela lei da EBC, o Presidente da República nomeia os ocupantes de dois cargos-chave na estrutura da empresa, o de presidente executivo da EBC e o diretor geral. A indicação do primeiro coube, em última análise; a do segundo, ao MinC. Esse arranjo conjuntural não durou seis meses, e a Cultura foi literalmente afastada da gestão da EBC. O maior problema decorrente desses arranjo foi atrelar, de direito e de fato, a EBC à estrutura de comunicação do governo. O que, em tese, pode reduzir a sua vocação democrática. Daí a importância de se fazer, hoje, com urgência uma revisão do modelo institucional da empresa. É preciso, por exemplo, fazer com que haja algum tipo de mediação na nomeção do presidente da EBC. Hoje, o Presidente da República nomeia um nome da sua livre escolha. Da mediação poderia participar o Conselho Curador, ao lado de representantes do Poder Executivo. O eventual escolhido poderia ser sabatinado pelo Congresso Nacional. Enfim, não tenho tanto certeza quanto ao método, embora me sinta seguro quanto à

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necessidade de mudanças no modelo. É preciso também dar mais transparência ao Conselho de Administração. Por conta de uma lei de 2010, vai entrar um representante dos funcionários vai se incorporar àquele Conselho. Eu entendo que o Conselho de Administração tem que estar aberto, por exemplo, para que algum representante do Conselho Curador dele participe. O Conselho Curador está voltado para as questões de conteúdo, de programação, de zelar para que a EBC cumpra suas finalidades leais. Mas, para isso é fundamental que esteja presente também no Conselho de Administração, onde as questões orçamentárias e tecnológicas são resolvidas.

A discussão do projeto do operador nacional de rede pública vem se arrastando há um bom tempo, parece que não há progresso. O operador de rede é a alternativa para a ampliação da cobertura da EBC? O Conselho Curador conceitualmente teve que lutar para que a questão do operador de rede fosse discutida no seu âmbito. A posição da presidente da EBC na época [Tereza Cruvinel] era que por se tratar de um assunto da administração, não cabia ao Conselho Curador fazer essa discussão, e ela foi feita. O Conselho Curador tirou a posição formal para que não fosse feita a parceria públicoprivada. Na ocasião da criação da Telebras, foi sugerido que se a consultasse para ver se havia interesse em ser a executora do projeto. O Conselho Curador teve que fazer um esforço muito grande, uma disputa, para poder discutir o assunto. O operador de rede, em tese, é a maneira de consolidar o sistema nacional de rádio e televisão. Não é uma decisão simples. É um projeto que requer uma decisão não só política de fazer o que está na lei, mas depende da alocação suficiente de recursos para executar o projeto. A discussão está estagnada. Ela esbarra primeiro na decisão se deve ser feita ou não a parceria público-privada; segundo, se a União tem recursos suficientes para executar o processo.

Qual a sua posição sobre essa parceria público-privada ? Pessoalmente, desde que feitas ressalvas contratuais e o processo seja conduzido com a maior transparência, eu tendo a ver como uma possibilidade. Não tenho uma posição ideológica fechada sobre a parceria público-privada. Desde que tudo esteja muito claro, os termos de responsabilidade contratualmente resolvidos, é uma forma de se viabilizar o projeto tendo o aporte financeiro que o Estado dificilmente teria. A Telebras demonstrou simpatia [em executar o projeto], mas não tem condições de assumi-lo. É uma empresa pública com responsabilidades estatais grandes para atender o que foi estipulado para ela para o Plano Nacional de Banda Larga (PNBL). A PPP poderia ser uma solução, é uma

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medida muito atravessada ideologicamente, às vezes fica difícil você manter o diálogo. Isso aconteceu no Conselho Curador, evidentemente o Conselho estaria aberto para retomar esse diálogo, mas a oportunidade não surgiu até agora.

Você critica o artigo 223, da Constituição Federal, por trazer a divisão entre público, privado e estatal. Afirma que o texto acaba beneficiando o setor privado. Em relação à completaridade, a televisão pública dever a audiência ou manter-se como complementar ao sistema comercial? Não existe, pela minha ótica normativa, sistema privado de rádio e televisão no Brasil. A Globo, o SBT, enfim, todos funcionam, estão no ar e no mercado por meio de uma outorga de concessão. No caso das rádios FMs, de permissão. Esses são instrumentos de outorga de serviço público, é como qualquer concessão de serviço pública, seja de ônibus urbano ou para explorar uma rodovia, ou para gerar ou distribuir energia. A concessão acarreta direitos e deveres, você até pode explorá-las comercialmente porque o contrato permite, mas os deveres têm que estar muito bem estabelecidos no contrato. A família Marinho não é dona da Globo, em sentido estrito. Ela pode ser dona dos equipamentos, dos instrumentos físicos que fazem o negócio funcionar, dos prédios, mas o meio pelo qual circula, o espectro electromagnético, é público. Ela só opera porque o Estado assim assegura, mas mediante obrigações contratuais de concessionário. Radiodifusão no Brasil é serviço público, ainda que o concessionário possa explorar comercialmente a outorga e ganhar dinheiro. A diferença entre a TV Brasil e a TV Globo é o modelo de exploração, comercial ou não comercial, com fins de lucro, sem fins de lucro. O artigo 223 da Constituição Federal é uma armadilha, que visa dar o máximo de segurança jurídica ao agente privado e um mínimo de deveres. Concordo que as programações possam ter diferenças, no caso dos operadores comercial e não comercial, mas isto não significa que o agente privado possa usar a sua outorga de concessão como bem entenda, ao arrepio inclusive do que reza a Constituição, deixando para o operador não comercial, ‘complementarmente’, a programação responsável, cidadã, que busca altos padrões não apenas estéticos, mas também de conteúdos. Diferentes também são os modos de financiamento; o comercial pela publicidade, o não comercial por fundos públicos, pelos próprios orçamentos públicos, por apoios culturais, doações, prestações de serviço. O grande desafio da televisão pública não comercial é legitimar-se diante da sociedade, de maneira tal que ela não ponha em dúvida a necessidade de participar do seu financiamento, por meio de taxas ou impostos. O modelo da EBC contempla essa diversidade de fontes de financiamento, ainda que a principal delas, a Contribuição para a Radiodifusão Pública esteja sendo questionada em juízo pelas operadoras des telefonia, por entenderem que o fundo de onde ela vem, o Fundo de Fiscalização das Telecomunicações, o Fistel, não seja a fonte legalmente adequada. Uma disputa que espero que a radiodifusão pública não comercial vença.

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EBC: os avanços e os desafios depois de meia década

Na sua concepção, quais são os maiores desafios da EBC? O primeiro é a revisão, como disse, do seu modelo institucional, de modo a firmar a sua autonomia diante dos governos. A EBC tem que ficar o mais afastada possível das instâncias responsáveis pela propaganda do governo, de qualquer governo. Da Secom, em última instância. Ela pode ser vinculada ao ministéro das Comunicações ou da Cultura, pois tem que haver um ministério supervisor. Isso é necessário, está na lei. É parte da regra, como ocorre com os Correios, Petrobras, as empresas públicas têm um ministério supervisor. Mas, no caso da EBC, não pode ser a Secom.. Esse é o grande desafio institucional. O segundo é a consolidação da programação. O jornalismo tem que ser mais autônomo e agressivo, tem que incomodar mais, hoje ainda é muito comportado, tímido, receoso de incomodar a Secom. De resto, a EBC hoje, a TV Brasil em particular, possui uma programação plural, voltada aos direitos humanos, inclusão social, à criança, ao adolescente; enfim, voltada à construção da cidadania. Ela tem, pois, que construir uma programação que não seja meramente ‘complementar’, mas que faça a diferença e seja referência para a sociedade. Vejo ainda o desafio de buscar uma relação cada vez menos conflituosa com seus parceiros de serviço público não comercial: os estados, as emissoras de alcance regional, a própria TV Cultura de São Paulo, a Rede Minas, a TV Piratini [Rio Grande do Sul] . Outro desafio é chegar com a programação até as audiências, com sinal de qualidade, comparáve a qualquer outra televisão. São grandes desafios para os próximos cinco anos.

Com a ampliação dos meios de distribuição audiovisual, a popularização da Internet, a multiplicidade de canais televisivos; neste contexto de oferta diversificada, qual o papel prioritário da comunicação pública? Vou usar uma metáfora do professor francês, teórico da comunicação, Dominique Wolton, que eu tenho usado com alguma frequência: a televisão pública tem que fazer o laço social, precisa ter um campo de atuação cada vez maior. Não tem como fugir da necessidade de ser uma televisão de serviço público, não comercial, que faça esse laço social, ao revés de uma televisão comercial com suas programações que, ressalvadas as exceções que confirmam a regra, se caracteriza pelo mínimo denominador comum. Uma televisão comercial fragmentadora, que estilhaça a realidade, que aliena as pessoas. Um país com a diversidade cultural do Brasil, com a nossa unidade linguística, não pode correr o risco de não ter um instrumento de propagação da nacionalidade em todas as suas dimensões. Eu acho que esse é um papel nobre, que só pode ser desempenhado pela televisão de serviço público, não comercial.

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Alternativas ao conceito e à prática da comunicação pública Alternativas al concepto y la práctica de la comunicación pública Alternatives to the concept and pratice of public communication

Heloiza Helena Matos e Nobre Doutora em Ciências da Comunicação e mestre pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECAUSP). Realizou estágio pós-doutoral junto ao GRESEC (Groupe de Recherche sur les Enjeux de la Communication), Université Stendhal, Grenoble III, em 1995 e 2007. Como docente e pesquisadora da USP, volta a colaborar com a ECA desde 2011 E-mail:heloizamatos@gmail.com

Patrícia Gil Doutoranda do PPGCOM da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e integrante do Grupo de Pesquisa Comunicação Política e Comunicação Pública Email: patriciagil@terra.com.br

Revista Eptic Online Vol.15 n.2 p.12-27 mai-ago 2013 Recebido em 25/02/2013 Publicado em 15/05/2013


Alternativas ao conceito e à prática da comunicação pública – Heloiza Helena M. e Nobre, Patrícia Gil

RESUMO O artigo apresenta uma visão crítica sobre a conceituação da comunicação pública aproximada às práticas políticas e governamentais. Para tanto, propõe uma síntese das táticas de comunicação ao longo dos últimos 70 anos de história brasileira, distinguindo vícios e rupturas como forma de identificar traços da cultura política que ainda influenciam a visão atual de comunicação pública. A partir de contribuições teóricas no campo da esfera pública e da deliberação, propõe alguns princípios norteadores de uma comunicação que contribua para o fortalecimento da esfera pública no País.

PALAVRAS-CHAVE Comunicação Pública. Esfera Pública. Deliberação. Comunicação Política. Comunicação Governamental

RESUMEN El texto presente uma visión crítica de los conceptos de la comunicación pública acercada a las prácticas políticas y gubernamentales. Se propone una síntesis de las tácticas de comunicación durante los últimos 70 años de la historia de Brasil, distinguiendo los vicios y interrupciones como forma de identificar los rasgos de la cultura política que todavía influyen en la visión actual de la comunicación pública. A partir de las contribuciones teóricas en el ámbito de la esfera pública y la deliberación, propone una serie de principios rectores de comunicación que contribuyen al fortalecimiento de la esfera pública en el País PALABRAS CLAVE Comunicación Pública. Esfera Pública. Deliberación. Comunicación Política. Comunicación Gubernamental

ABSTRACT The paper presents a critical view of the concept of public communication which approximates to political and governmental practices. We propose a synthesis of communication tactics over the past 70 years of Brazilian history, distinguishing vices and breaks as a way to identify traits of the political culture that still influence the current view of public communication. From theoretical contributions in the field of public sphere and deliberation, the paper proposes some guiding principles of communication that contribute to the strengthening of the public sphere in the country.. KEYWORDS Public Communication. Public Sphere. Deliberation. Political Communication. Governmental Communication

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Alternativas ao conceito e à prática da comunicação pública – Heloiza Helena M. e Nobre, Patrícia Gil

Introdução As tentativas de se entender a trajetória e os desafios da comunicação pública no Brasil têm sido feitas em meio a um processo de amadurecimento teórico que passa ainda pelo uso do conceito em diferentes direções. No presente artigo, pretendemos distingüir as abordagens dos temas da comunicação governamental, comunicação pública e comunicação política. Como ponto de partida, propomos a separação desses três conceitos e entendemos que, apenas a partir desta operação, será então possível começar a formular uma proposta atual para uma política da comunicação pública no Brasil. É preciso reconhecer, no entanto, que a confusa aplicação dos conceitos de comunicação pública e política têm vínculo com a história do País. Vícios e equívocos acumulados ao longo dos anos estão impregnados nas práticas atuais e não podem ser desconsiderados se estivermos diante de uma abordagem propositiva, ancorada em preceitos ideais, mas preocupada com as possibilidades de sua realização pragmática. Para tanto, remontamos aos pressupostos que guiaram as práticas políticas na história republicana do País, especialmente a partir da consolidação de estruturas formais que guiaram as relações entre governos e sociedade em diferentes momentos. Nesse sentido, este artigo também apresenta uma breve revisão de alguns marcos na comunicação governamental nos últimos 70 anos, identificando características de uma cultura política que colaborou para configurar práticas e relações de poder. O recorte histórico escolhido (entre o final da década de 30 e o governo de Luis Inácio Lula da Silva) justifica-se pela busca do terreno em que se assentaram as práticas brasileiras em comunicação governamental, a partir do surgimento da mídia de massa e da estruturação de órgãos para a elaboração de estratégias de propaganda. Tentamos, desta forma, localizar recorrências e dissonâncias em diferentes fases da modernização do País. O olhar para o passado tem como finalidade, portanto, a proposição de um passo à frente: entre semelhanças e rupturas, apontamos alternativas para a prática e para o conceito de comunicação pública alinhado com os princípios da democracia deliberativa. A retrospectiva e as novas perspectivas na área fazem parte de estudos realizados no âmbito do Grupo de Pesquisa Comunicação Pública e Comunicação Política, acolhido na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. O artigo está dividido em três partes que, juntas, caminham para uma seção propositiva. Na primeira parte, abordam-se as diferenciações dos conceitos de comunicação pública, política e governamental. Na segunda, são revisadas as táticas de interpelação do cidadão pelo Estado em diferentes momentos da histórica brasileira – a saber: o governo populista de Getúlio Vargas; o período da ditadura militar; os governos democráticos que se seguiram. É a partir da terceira parte que nos aproximamos de uma fase mais recente do País, com indicações de práticas e novos direcionamentos para uma comunicação pública de fato. Por fim, resgatarmos as reflexões teóricas sobre esfera pública e apresentamos os primeiros encaminhamentos para se repensar uma política na área.

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1. Caleidoscópio de conceitos Para Jaramillo López (apud KOÇOUSKI, 2012), as diferentes tentativas de conceituar a comunicação pública apresentam, em comum, a abordagem sobre o que efetivamente é esse caráter público, em quais cenários essa comunicação ocorre e a partir de quais princípios ela se estabelece (destacando a visibilidade, a inclusão e a participação). A dimensão pública contrasta com a interpessoal e é por meio dela que cidadãos livres debatem sobre temas de interesse comum e tentam alcançar um entendimento compartilhado. Desta forma, pressupõe-se que a comunicação pública se desvincule de uma abordagem privada e restrita para se realizar em um espaço de debate mais amplo. “Em palavras simples, comunicação pública é a que se dá na esfera pública” (LÓPEZ, 2011, p.64). Na perspectiva habermasiana, a esfera pública se consolida a partir de um ideal em que o debate se realiza entre pessoas com igual oportunidade de acesso, em livre argumentação e dotadas de uma capacidade argumentativa racionalizada a ponto de, juntas, alcançarem um entendimento sobre seus problemas. Um conjunto de procedimentos realizados nessa ambiência configuraria um poder comunicativo e permitiria então que as demandas localizadas na periferia da estrutura social pudessem alcançar o centro do sistema – ou seja, o poder administrativo (HABERMAS, 1997). Assim, “a esfera pública é também um espaço intermediário entre as discussões políticas conduzidas pelos atores administrativos centrais e as conversações entre os atores cívicos periféricos” (MARQUES, 2009, p. 16). Entendemos que o conceito de público está relacionado ao interesse comum (e não privado), ou seja, à intenção de defesa do societal e não do societário (NOBRE, 2011). A defesa se dá por meio do debate e este se realiza em diferentes e múltiplas esferas. Para que se processe, o debate deve ter visibilidade, deve permitir a inclusão e a participação de diferentes atores comunicantes. Nesse sentido, “trata-se de uma comunicação eminentemente democrática, pela profundidade de sua natureza e por sua vocação” (LÓPEZ, 2011, p. 65). Estes parecem ser pontos consensuados entre diferentes autores que tratam dos conceitos em comunicação pública no Brasil (KUNSCH, 2011; DUARTE, 2011; MATOS, 2006; WEBER, 2011; GOMES; MAIA, 2008). A questão mais controversa entre diferentes abordagens se localiza, então, em torno dos cenários em que a comunicação pública se torna possível e se materializa. Um dos mais influentes autores dos estudos realizados na área durante o processo de consolidação democrática no Brasil, o francês Pierre Zémor (2005) enfatiza a centralidade do Estado, como instituição política e administrativa, no encaminhamento da comunicação pública (DUARTE, 2011). Sua abordagem é a de normatização das ações do governo, numa exigência de um espírito eminentemente público como o norteador das ações pragmáticas de difusão de mensagens, de atendimento ao cidadão e de elaboração de políticas públicas a partir do interesse coletivo. O autor conclama as instituições de governo a uma comunicação cívica, no sentido de diferenciar uma comunicação governamental guiada por interesses políticos privados. Mas ao apresentar uma exigência normativa às instituições do poder central, corremos o risco de tratar a comunicação pública circunscrita a determinados limites burocráticos.

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Evitando esse fechamento, López (apud KOÇOUSKI, 2012) descreve cinco dimensões da comunicação pública: política, organizacional, mediática, estatal e da vida social. A comunicação governamental estaria vinculada especificamente ao cenário ou dimensão estatal, e sobre a qual devem imperar todos os princípios normativos em prol de uma ação de governo mais cívica, como saudavelmente propõe Zémor (2005). Mas, muito em função dos traumas da tradição política brasileira, há um conjunto de estudiosos que encampam a bandeira da defesa de um serviço estatal realmente comprometido com os princípios democráticos (WEBER, 2011; DUARTE, 2011; KUNSCH, 2012). Nesse intuito engajado e exigente, no entanto, acabam por restringir a abordagem de uma comunicação pública a um conjunto de regras e compromissos voltados restritamente ao exercício da comunicação em esferas de governo. A dimensão política, no entanto, ainda facilmente se confunde com a da vida social. Entendemos que a comunicação política, estrito senso, deve ser entendida como aquela que articula os jogos de disputa ou manutenção de poder, envolvendo, portanto, momentos eleitorais, debates partidários e ainda as abordagens ideológicas intragoverno ou em ambientes legislativos nos quais se diferenciam grupos organizados que tentam ocupar o espaço institucionalizado de tomada de decisões. Com isso pretendemos buscar uma distinção procedimental, em que fique clara a matéria com a qual a comunicação política trabalha – o jogo de poder. Esta é a distinção mais clara da dimensão da vida social, caracterizada pelos movimentos da sociedade civil que se organizam (dentro da perspectiva da mobilização social, que é foco de López, 2011) para tentar romper o bloqueio do poder administrativo para expor demandas sociais localizadas nas diferentes esferas públicas periféricas. No mundo da vida, por outro lado, discussões de cunho político tomam lugar no cotidiano das pessoas, bem como em organizações cívicas, permitindo a expressão de argumentos acerca de questões que podem ser encaminhadas ao poder central. Nosso entendimento é o de que são significativas todas as iniciativas de se exigir que o exercício da comunicação em órgãos públicos se volte especificamente para o interesse da sociedade e não segundo a perspectiva de governos ou de estratégias políticas. Mas há uma evidente diferença de papéis e de atores em cada dimensão: ainda que imbuídos do espírito público, agentes que atuam em instância de governo e segundo seus fluxos e procedimentos estão agindo segundo os preceitos da comunicação governamental. Da mesma maneira, aqueles que articulam um discurso eminentemente ligado a instituições políticas atuam em comunicação política; ou os que colaboram para que as organizações participem de um debate cívico e socialmente responsável ainda assim atuam em comunicação organizacional. O locus de fala não é irrelevante. Isso não significa que todas as narrativas postas em circulação e em negociação por estes agentes na sociedade não possa fazer parte de um debate público maior, como propõem Oliveira (2004), Mancini (2008) e Kunsch (2011). Mas o conceito da comunicação não pode se confundir com práticas especializadas, como as citadas. É o próprio debate, independente das instâncias e das instituições, que caracteriza a esfera pública (GOMES, 2006) e, de forma extensiva, a comunicação pública. Dela também faz parte o cidadão desinstitucionalizado, ou seja, aquele que está nas praças e participa

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das conversações cotidianas – com propósitos políticos específicos ou não – e que faz uso do conjunto de argumentos postos a circular por governos, organizações, entidades da sociedade civil, mídia ou até (por que não?) por indivíduos que compartilham mensagens e discutem alternativas na internet. A comunicação pública ocorre naquele campo que entremeia a sociedade e o Estado e no qual uma pluralidade de vozes toma seu lugar (MATOS, 1999). Os sistemas de radiodifusão pública estão inseridos nesse contexto se imbuídos do espírito comunitário, mas não são a expressão máxima da comunicação pública, como se considerou no Brasil, em virtude de sua tradição política de fomento e controle midiático. A consideração dessa pluralidade de atores reunidos na esfera pública é pressuposto para a deliberação, aqui entendida como um processo discursivo fundamentado no diálogo e na troca justificada de razões, a partir da qual os cidadãos podem alcançar um entendimento livre de constrangimentos ou coerções (BOHMAN, 2009). Trata-se, pois, de uma ação eminentemente colaborativa, o que se alcança a partir da prática da conversação. Um segundo movimento da deliberação é aquele que envolve o processo de tomada de decisões (NOBRE, 2011) e talvez o mais longo passo a se alcançar. Em ambos os processos, é crucial o engajamento de cidadãos no debate público, em condições de igualdade de acesso e de participação. Para Habermas (2008), a deliberação precisa cumprir três funções para se constituir como essencial no processo democrático: mobilizar e reunir questões relevantes e informações necessárias, especificando interpretações; processar tais contribuições discursivamente por meio de argumentos adequados, sejam eles favoráveis ou contrários a uma questão; e gerar atitudes racionalmente motivadas – favoráveis ou contrárias a uma questão –, as quais possuem grande probabilidade de determinar o resultado de decisões procedimentalmente corretas. Diante do processo de legitimação como um todo, o papel facilitador da esfera pública política é, principalmente, o de preencher somente a primeira dessas três funções e, além disso, de preparar as agendas Essas demandas advindas do mundo da vida passariam então a pressionar as esferas administrativas que, por sua vez, devem responder aos agentes para que possam se legitimar como representantes escolhidos pela sociedade. Para tanto, deve haver uma política deliberativa que auxilie esse poder comunicativo da esfera pública a romper os bloqueios das instituições centrais (MARQUES, 2009). São os princípios dessa política deliberativa que pretendemos expor na última parte do presente artigo. Ela pressupõe o funcionamento de uma imprensa livre e diversa, numa sociedade mídia centrada. Para que tal política possa ser vislumbrada, vícios acumulados na história política do Brasil devem ser revisitados, especialmente aqueles que excluíram elementos centrais de uma democracia deliberativa, como livre debate, participação e porosidade das esferas administrativas para os argumentos da sociedade.

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2. Táticas de uma comunicação instrumentalizada A imbricação do público com o político institucionalizado, que ainda hoje confunde os conceitos na área da comunicação, já se mostrava presente no uso massivo do rádio durante a chamada era Vargas, mantendo-se uma marca predominante no controle da imprensa após o golpe militar de 1964 e persistindo nas relações chamadas “de mercado” estabelecidas pelos governos da transição democrática. Nosso ponto de partida, portanto, é a intenção de desentranhar o caráter eminentemente público da ação governamental, denunciando, em contrário, o uso político de uma comunicação que deveria voltar-se ao fortalecimento de uma esfera pública ampla, diversa e reconhecida pelo poder administrativo diante de sua força expressiva dos anseios da sociedade. Para compreender como a comunicação governamental inicia um processo de instrumentalização, analisamos como o governo do presidente Getúlio Vargas foi marcado por modelos de comunicação moldados para justificar e fortalecer sua base de sustentação política. A relação de Vargas com os militares e com o integralismo se evidenciava tanto nos discursos (com seu apelo aos referenciais de força e disciplina), quanto nos instrumentos de imposição e proibição. O uso massivo da radiocomunicação amplificou os propósitos do governo imposto, em especial diante do surgimento das massas urbanas e do deslocamento de contingentes de populações do interior do País para as grandes cidades. Esse movimento migratório minava as estruturas regionais oligárquicas de poder, contra as quais Vargas se opunha. Reunido nas grandes cidades, no entanto, esse público também precisava ser controlado diante do movimento operário crescente, notadamente de inspiração italiana, contra o qual o governo Vargas reagiu por meio de atos de censura e repressão. Com o propósito de controle, uma nova Constituição conferiu à União o poder de explorar e definir a concessão da radiocomunicação, incorporando mais tarde novas possibilidades de censura dos meios de comunicação (JAMBEIRO, 2009). Neste contexto, instaurou-se o golpe e se iniciou o Estado Novo. Em paralelo, o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), diretamente ligado ao gabinete presidencial, especializou-se na produção de peças persuasivas em rádio, cinema (com o cinejornal e grande concentração de produção de filmetes) e em mídia impressa (com destaque para o boletim O Brasil de Hoje e Amanhã, com os discursos do presidente). A convivência entre censura e propaganda política, institucionalizada e instrumentalizada na era Vargas, estendeu-se à gestão comunicacional no período militar a partir do golpe de 1964, aprofundada pelo Ato Institucional n.º 5 em 1969. Velasco e Cruz (1986) evidenciam um projeto político ancorado na propaganda governamental, com o objetivo de apresentar à sociedade uma visão unitária de País, sem possibilidade de alternância de governo. Com os militares, o DIP de Vargas foi substituído pela Assessoria Especial de Relações Públicas da Presidência da República (AERP), instituição de planejamento e gestão da propa-

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ganda governamental, que respondia pela articulação da estratégia maior de comunicação para a legitimação do regime. Instalada no gabinete militar, a AERP zelava pela retórica de um desenvolvimento econômico proporcionado pela segurança nacional, em nome da qual a repressão se justificava. A comunicação governamental se estabeleceu como voz única, com evidente função de controle social. Esse projeto conjugava o radicalismo militar nos porões da repressão, enquanto, na superfície, se impunha uma capa de ordem. As peças de propaganda mais subliminar começaram a compor a tática de comunicação governamental, valorizando temáticas pelas quais os discursos de ordem buscavam a concordância passiva. O início das transmissões em televisão fez desta o centro das táticas dos governos militares em comunicação governamental. Veio também da ação estatal o grande impulso da produção televisiva, o que resultou no desenvolvimento da indústria da propaganda e das produtoras em TV. Os esforços de justificação do regime de exceção se concentraram especialmente nas produções de peças publicitárias para televisão, as quais, por sua vez, alimentavam financeiramente todo um complexo de comunicação– das produtoras, editoras, agências de propaganda e emissoras. As estratégias de comunicação política foram lapidadas pelas táticas mercadológicas advindas do mundo da propaganda, sob forte influência norte-americana, que também marcaram o crescimento das agências de publicidade. Houve uma ruptura no discurso que se formatava em torno de figuras mitificadas: o antigo líder cultuado (Vargas) foi substituído pela valorização das instituições de governo como garantidoras da unidade, do desenvolvimento, da paz social e a segurança. Esta institucionalização contou com a salvaguarda da Constituição de 1967 (JAMBEIRO, 2009), imposta pelos militares, segundo a qual a liberdade de expressão manteve-se condicionada a critérios dúbios de ordem e moral – que, desrespeitados, abriram espaço para a censura. Ao lado da tática da propaganda governamental, o período militar reforçou a repressão, que se espraiou na forma de perseguição pontual a cada divergente, em especial oposicionistas na imprensa, no movimento estudantil, no meio cultural e no próprio ambiente político institucionalizado – atores que passaram a ocupar, nos meios de comunicação de massa, espaços de ampla visibilidade. A amplitude das telas de televisão e a concorrência no espaço público midiatizado tornaram-se os fatores que alteraram sobremaneira as táticas de comunicação governamental no período militar. Mas a partir da segunda metade dos anos 70, após a derrocada do milagre brasileiro, a classe empresarial passou a integrar a campanha pela abertura política, insatisfeita também com a promessa não cumprida de eleições diretas a governador. Com a reação arbitrária do governo (recesso do Congresso e restrição à propaganda eleitoral), a resistência foi às ruas para denunciar as torturas nas prisões. A indústria da comunicação de massa se juntou ao despertar da sociedade civil (CRUZ, 1986).

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Foi a partir de então que esses novos sujeitos começaram a compor a cena pública e a participar da comunicação pública, fortalecidos pela visibilidade nos meios a partir da gestão Figueiredo. Este é, a nosso ver, o elemento marcante da transição democrática. A consolidação da indústria televisiva e a inserção do Brasil entre as sociedades denominadas media-centric não podem ser considerados eventos isolados do processo político a partir dos anos 80, mas, ao contrário, fenômenos intimamente relacionados. A mídia foi um instrumento nesta transição do regime militar para a Nova República, quando a política se apresentou cada vez mais sofisticada e espetacularizada. A década de 80 descobriu o potencial da televisão para fornecer um repertório de significados e valores, constituindo-se no centro produtor da propaganda política. A televisão projetava o imaginário social em programações ricas de sentido para a experiência popular – explorando o consumo de uma comunicação cada vez mais livre da censura. Cenários ideologicamente construídos pela propaganda política já não eram suficientes para legitimar a nova ordem. A visibilidade desses “outros mundos” sugeria novas experiências sociais, numa articulação televisiva entre arcaico e moderno, rural e urbano, nacional e internacional, folclórico e massivo – extremos próprios de uma sociedade em transição A atividade política teve então que se reconfigurar. “Os políticos (enfrentaram) adicionalmente a necessidade de ajustar-se aos parâmetros de comunicação e formas de expressividade peculiares da televivência” (CARVALHO, 1999, p. 106). A visibilidade massiva tornou-se mandatória para o exercício da política profissional e moldou todo um novo jeito de conceber e estruturar a comunicação governamental e política. Assim, se a política fez uso da comunicação de massa, especialmente no contexto de transição democrática em que novos atores ganharam papel central, a indústria cultural também se amparou na política para construir novos sentidos sociais, o que se tornou possível mediante a vinculação entre sujeitos, não mais entre bens e mercados. Na gestão de José Sarney teve início a administração “científica” da comunicação e do marketing social (voltado à mobilização a favor do governo) (PINTO, 1988). Os inimigos eram outros: o “monstro da inflação” tornou-se o mal a ser combatido, e não mais os comunistas. O discurso voltado a questões sociais e à redemocratização (sem ênfase na autoridade do Estado) deu o tom à comunicação do governo Sarney. Quando as eleições diretas enfim ocorreram, Fernando Collor de Mello destacou-se em função de um grau de profissionalização inédito em campanhas baseadas em marketing político. Sob o manto da artificialidade, o personagem foi criado e inserido no contexto político: buscava a adesão dos que, durante anos, ansiavam por mudanças, e que, naquele momento, pensavam poder se realizar a partir daquela nova figura legitimada pela mídia. Mas o personagem não resistiu, e, após o impeachment, Itamar Franco se colocou como o elo entre os Brasis do interior e das metrópoles. Sob sua gestão, a comunicação de governo reforçou o argumento do mercado, exaltando a globalização, ao mesmo tempo em que reforçava a interiorização do desenvolvimento e o combate à corrupção – expondo um Brasil heterogêneo e com profundas diferenças sociais e culturais (MATOS, 2011). A ideologia do Estado-Nação começava a ser desmontada, o que se acelerou nos governos

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que se seguiram. Fernando Henrique Cardoso retomou um processo iniciado sob Collor. As privatizações e a racionalização do controle inflacionário imprimiram à comunicação governamental um tom de objetividade, com explanação educativa de conteúdos e campanhas de cunho civilizatório (MATOS, 2011). As peças de propaganda na gestão FHC podem ser divididas ente aquelas que exploravam aspectos do desenvolvimento econômico-social e as que enalteciam a participação da sociedade civil (interiorização do desenvolvimento, valorização das cooperativas – influência da origem acadêmica do presidente). O que fica claro na publicidade institucional desse período é que a marca do novo não se encontra no regime político (como na gestão Sarney), não se encontra no Estado ou em sua autoridade (como na gestão Collor), não se encontra no Brasil unido em torno de questões éticas (como na gestão Itamar). A publicidade institucional do governo FHC exibe uma sociedade que vive um processo de transformação de hábitos e mentalidades. Não há grandes negações, grandes aflições representadas na publicidade. (MATOS, 2011, p.54)

Embora o ambiente político indicasse uma consolidação democrática (com partidos disputando visibilidade e instituições sociais desfraldando suas bandeiras), a comunicação governamental não escapou do tradicional, instrumentalizando-se a partir das estratégias de marketing e do uso intensivo da mídia. A inovação aprofundou-se com a internet na metade dos anos 90, com os governos começando a usar as novas tecnologias para a prestação de informação pública (sites como balcões de serviços). Todavia, as ferramentas de debate (fóruns e sistemas de comunicação instantânea) na rede permaneceram subutilizadas, sem estimular a participação do cidadão.

3. Novas experiências em comunicação pública Os dois mandatos de Luis Inácio Lula da Silva (contemplando o período de 2002 a 2010) colocaram em prática iniciativas para ampliar a participação de setores da sociedade civil em debates temáticos. Foram ampliados os espaços de discussão sobre o que deveria, posteriormente, ser convertido em políticas públicas setoriais. Um dos instrumentos desse modelo de comunicação foram as conferências nacionais, organizadas em esferas municipais, estaduais e nacionais, sobre temas como educação, saúde, juventude, ciência e tecnologia, meio ambiente, igualdade racial e outros. Foram realizadas 74 conferências, com a participação de 6,5% da população brasileira, segundo survey realizado por Avritzer (2012). Embora haja maior participação nos níveis local e regional das conferências, Avritzer (2012) concluiu que esse padrão continua nas etapas nacionais. As conferências são eventos realizados desde a década de 40 no Brasil, mas foram impulsionadas nos últimos dez anos. A nosso ver, a inovação entre o modelo de debate configurado nas conferências e as formas de comunicação governamental que prevaleceram na história política brasileira está na possibilidade de se criar um “sistema integrado de

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participação e deliberação” (FARIA apud AVRITZER, 2012, p.8). É preocupante, no entanto, o fato de 57,5% dos participantes das conferências negarem ter recebido qualquer informação prévia à realização das reuniões, o que evidentemente prejudica o debate e as potencialidades de deliberação acerca das políticas desejadas, na avaliação de Avritzer (2012). Embora o autor argumente que ainda não está suficientemente claro se as decisões tomadas nas conferências foram realmente implantadas, ele indica também um conjunto de elementos que apontam para uma intensa troca discursiva durante os debates (AVRITZER, 2012, p.18) Iniciativas como as conferências são diferenciais em relação ao modelo de comunicação governamental praticado até então, que priorizou, historicamente, as táticas de persuasão, difusão ou marketing – com ênfase, portanto, às abordagens de massa em detrimento da observação de questões locais, no âmbito das cidades. O modelo de debate promovido nas localidades, onde as pessoas podem expressar suas demandas e efetivamente participar de conversações políticas, tende a se aproximar mais de uma estratégia de comunicação afeta às relações públicas. Por isso é fundamental desprender a comunicação pública das amarras estatais, ou seja, inseri-la efetivamente na esfera pública, entendida como “um domínio da nossa vida social onde algo como a opinião pública se pode formar” (HABERMAS apud SILVEIRINHA, 2010, p.33). Entretanto, há certas condições das quais a esfera pública depende para se efetivar – ou seja, para ser capaz de gerar o feedback da sociedade em direção às instituições tomadoras de decisão. Uma delas é a independência do sistema dos media, que, vigiantes, podem detectar quebras de confiança ou retornos que deveriam conferir legitimidade aos governos estabelecidos. A segunda condição é anular a “privação social e a exclusão cultural dos cidadãos”, que colaboram para um acesso e uma participação diferenciadas na comunicação (HABERMAS, 2008). Todavia, o reconhecimento da esfera pública como locus de expressão exige, por antecipação, a interiorização dos direitos do cidadão – entendidos segundo prismas diferentes. Por exemplo: a capacidade do agente de reconhecer-se como participante social, de elaborar uma posição própria e expressar-se de forma a valorizar a sua posição (e a de seu grupo de referência). Um cidadão que não acredite ter o direito de participar de conversações e discussões públicas, que não valorize o que tem a dizer e que se sinta incapaz de comunicar isso aos outros de forma adequada dificilmente terá condições de integrar a rede social da comunicação pública (MATOS, 2009, p. 124-125).

O Balanço de Governo (BRASIL, 2011) apresentado pela Presidência da República em relação aos anos de gestão de Lula aponta, além das conferências, um conjunto de instrumentos voltados à promoção de um “diálogo permanente e de respeito pela autonomia dos movimentos e pela democratização das decisões” (BRASIL, 2011). Entre eles, a realização de mesas de negociação; conselhos de políticas públicas; audiências públicas; fóruns e

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ouvidorias. Todos esses são considerados eventos estimuladores de debate e integraria um “sistema nacional de democracia participativa” (BRASIL, 2011). Se esses são indicadores de uma ação governamental mais aberta ao feedback da sociedade, entendemos necessário incluir, à luz dos princípios normativos que regem a teoria da esfera pública, novos questionamentos acerca das condições para que a deliberação realmente seja estimulada numa política de comunicação pública.

4. Esfera pública e deliberação Para Jürgen Habermas, a esfera pública é, “antes de mais, um domínio da nossa vida social onde algo como a opinião pública se pode formar” (HABERMAS apud SILVEIRINHA, 2010, p.33). São condições para isso: a igualdade de oportunidades para a participação dos cidadãos e a ausência de coerção para que possam expressar-se publicamente. Essa característica de livre expressão racional de juízos e opiniões ocupou lugar de destaque na teoria habermasiana. A esfera pública foi, então, descrita a partir de dois elementos: a publicidade e a crítica (MARQUES, 2008, p. 23 e 24). A primeira torna o argumento público. Já a segunda reside na possibilidade de confrontar opiniões sobre um tema de interesse geral. A imprensa de opinião que nascera na sociedade burguesa favorecia tanto a publicidade quanto a crítica, o que inspirou as concepções iniciais de esfera pública por Habermas. Dava visibilidade aos temas caros à coletividade, fazendo a mediação sociedade-Estado por meio do exercício crítico, possibilitado ainda pelo debate face a face ocorrido em espaços físicos – salões e cafés. A comunicação ganhara assim o poder de regulação da vida social. Mas sua função política exercia-se basicamente na preponderância do interesse coletivo sobre o individual; e sua força estava em que, por meio do debate racional, as demandas fossem identificadas, processadas e conduzidas ao Estado, na expectativa de um retorno na forma de políticas eficientes e satisfatórias. A legitimação do Estado democrático se daria, portanto, a partir da prática comunicacional (SILVEIRINHA, 2010). Ao considerar mais tarde a importância de um conjunto plural de vozes que não apenas aquelas vinculadas à esfera pública dominante, a teoria habermasiana reconheceu que o debate não advém exclusivamente do saber letrado ou nobre, mas das experiências cotidianas que o mundo da vida reserva. Nesse sentido, Marques (2008, p. 26) enfatiza que o conceito de esfera pública está ligado à ideia de troca, fluxo e processo discursivo e não ao local ou espaço de debate. À visão de sólido e limitado, sobrepõe-se a dinâmica própria do movimento de informações e opiniões. A regulação desse fluxo entre sociedade e governo é apresentada por Habermas sempre de forma ideal, com o objetivo de descontaminar o debate público das influências do poder político, e também da ordem econômica da sociedade, preservando, assim, o interesse coletivo como elemento normatizador da esfera pública. Esta normatização para o fomen-

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to do debate permite pensar um modelo de circulação de poder entre o centro do sistema (formado pelas instituições administrativas do Executivo, pelo Legislativo, Judiciário) e a periferia (associações civis, igrejas, academias, ligas, instituições culturais que atuam nos ambientes carentes de maior auto-organização). Esta relação é baseada na interdependência: os que estão no centro precisam da legitimação (para a qual o voto é um instrumento privilegiado) da periferia, onde são tematizadas e discutidas as questões consideradas relevantes e de interesse comum para a sociedade. A partir do debate racional, essas questões são encaminhadas para o núcleo, onde são deliberadas, mas já tendo sofrido, neste ponto, uma inversão na origem da demanda. Nesse aspecto, é essencial questionar a proposta normativa e sua viabilidade. Entre os critérios expostos por Habermas para uma repolitização da esfera pública, a paridade e o acesso aos espaços de argumentação dependerão, por sua vez, de condições propícias que capacitem os cidadãos a também disputar o direito à igualdade e à participação dos debates. Em sociedades em desenvolvimento como o Brasil – mas não só –, isso passará essencialmente pela solução prévia para alguns entraves entre as “precondições do processo deliberativo” (COHEN apud AVRITZER, 2012, p. 17). Diante do alerta acerca dessas precondições, propomos que uma política voltada ao estímulo da comunicação pública considere previamente os entraves para uma deliberação aberta, livre, ampla, plural e paritária. Cidadãos politicamente autônomos são aqueles capazes de identificar suas necessidades, processá-las argumentativamente e avaliar quais políticas sociais seriam efetivas. Em seguida, deveriam participar de deliberação pública sobre o tema até que essas políticas realmente fossem implantadas e seus resultados pudessem ser acompanhados pela sociedade. Este processo não é viável quando “grupos e indivíduos politicamente desarticulados ou desvalorizados socialmente têm suas demandas constantemente restringidas às dinâmicas comunicativas de contextos privados ou “alternativos” que fazem parte das margens do processo deliberativo” (MARQUES, 2008, p. 32). Uma política para o fortalecimento da comunicação pública deve estar relacionada, portanto, à redução das defasagens sociais e culturais, habilitando os cidadãos concernidos a definir juntos as questões de interesse comum que devem ser encaminhadas coletivamente. Numa sociedade moldada em torno das dinâmicas midiáticas, parece inevitável, por exemplo, que essa política tenha ainda uma articulação com ações de educomunicação, com a valorização do associativismo, com iniciativas que fortaleçam a prática tanto da conversação midiatizada como da interação face a face já nas comunidades de origem, onde as demandas são identificadas. Mas é ainda fundamental que programas estruturados nas esferas de governo favoreçam sua porosidade ao movimento social de base que deve emergir e ter ampla visibilidade. É preciso, portanto, empoderar a sociedade para a participação, por meio da construção de vínculos entre projetos de redução de desigualdade e experiências de exercício político. Uma política com tais preocupações libertaria a comunicação pública do aparelho do Estado e de seus constrangimentos políticos para recuperar a esfera pública em sua força expressiva e democrática. Tal comunicação deve ser compreendida como política de inclusão

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e redutora do “descompasso cognitivo” (MATOS, 2009a). As alternativas para uma política de comunicação pública que aqui foram sinalizadas merecem ser aprofundadas. Para tanto, propusemos um novo contorno para seu conceito e avaliamos quão distantes estivemos em nossa história dos princípios ideais que regem uma democracia deliberativa. Alguns movimentos já foram realizados recentemente para se reverter marcas do passado. O futuro, agora, deve ser avaliado diante de propostas de comunicação pública que se vinculem ao desenvolvimento humano e social.

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O público em disputa: debates sobre a televisão pública nas políticas brasileiras de comunicação El público en disputa: debates sobre la televisión pública en las políticas brasileñas de comunicación The public in dispute: debates about public television in brazilian communication policies

Luiz Felipe Ferreira Stevanim Doutorando e Mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Jornalista do Ministério da Saúde. Membro do Grupo de Pesquisas em Políticas e Economia Política da Informação e da Comunicação (PEIC/ UFRJ). Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: lfstevanim@yahoo.com.br

Revista Eptic Online Vol.15 n.2 p.28-43 mai-ago 2013 Recebido em 26/02/2013 Publicado em 15/05/2013


O público em disputa: debates sobre a televisão pública nas políticas brasileiras... - Luiz F. F. Stevanim

RESUMO O debate sobre a radiodifusão pública no Brasil encontra seu primeiro dilema a partir da Constituição de 1988, que menciona a complementaridade entre os sistemas público, estatal e privado, sem tentativas posteriores de regulamentação. A discussão sobre esse tema costuma apresentar dois caminhos de vinculação para o público – Estado ou sociedade –, além de também ser corrente a visão que associa o campo à vocação que se opõe ao comercial. Na primeira década do século XXI, o tema ganhou vigor na agenda social brasileira e algumas definições foram alcançadas no Fórum Nacional de TVs Públicas, em 2007, e na I Conferência Nacional de Comunicação, em 2009. Este artigo busca entender a diversidade de concepções sobre o sistema público de mídia existentes no Brasil, a fim de situar o debate no qual emerge uma nova política do Governo Federal para o setor, com a criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC)..

PALAVRAS-CHAVE Radiodifusão pública; Sociedade civil; Estado; Políticas de comunicação; Fórum Nacional de TVs Públicas.

RESUMEN El debate sobre la radiodifusión pública en Brasil enfrentase con su primer dilema en la Constitución de 1988, que menciona la complementariedad entre los sistemas públicos, estatales y privados, sin intentos posteriores de regulación. La discusión sobre este tema presenta dos caminos de vinculación para el público – el Estado o la sociedad –, además es corriente la visión que asocia el campo a la vocación que se opone al comercial. En la primera década del siglo XXI, el tema cobró fuerza en la agenda social brasileña y algunas definiciones se han alcanzado en el ‘Fórum Nacional de Televisão Pública’, en 2007, y en la Primera Conferencia Nacional de Comunicación en 2009. Este artículo intenta comprender la diversidad de puntos de vista sobre el sistema de medios públicos en Brasil, con el fin de situar el debate en el que emerge una nueva política del Gobierno Federal para el sector, con la creación de la Empresa Brasil de Comunicação (EBC). PALABRAS CLAVE Radiodifusión pública; Sociedad civil; Estado; Políticas de comunicación; Foro Nacional de TVs Públicas

ABSTRACT The debate about public broadcasting in Brazil meets his first dilemma in the 1988 Constitution, which mentions the complementarity between public, state and private systems, without posterior attempts of regulation. The discussion on this topic usually has two paths of interpretation to the public – the state or the society. Moreover it is frequent the view opposed to the commercial. In the first decade of this century, the theme gained force in the brazilian social agenda and some definitions have been achieved in the ‘Fórum Nacional de TVs Públicas’ in 2007 and in the ‘Conferência Nacional de Comunicação’ in 2009. This article seeks to understand the diversity of views about the public system of media in Brazil, in order to situate the debate in which emerges a new Federal Government policy to the sector, with the creation of Empresa Brasil de Comunicação (EBC. KEYWORDS Public Broadcasting; Civil Society; State; Communication Policies; Fórum Nacional de TVs Públicas

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1. Fronteiras de sentido: que radiodifusão pública queremos?

O debate brasileiro sobre a radiodifusão pública é anterior à Constituição de 1988, mas é nela que reside o cerne da discussão sobre a natureza dos sistemas de mídia. O texto do artigo 223, presente no Capítulo da Comunicação Social, menciona o princípio da complementaridade entre o público, o privado e o estatal. No entanto, a carência de regulamentações deixa um vazio de sentido sobre as fronteiras de cada uma das três esferas, o que é agravado pelo interdito sobre o tema da comunicação na agenda social brasileira, só recentemente com alguns sinais de superação. 1 - Sob a organização de Orlando Senna, à época secretário de Audiovisual do Ministério da Cultura, os esforços do Fórum congregaram a Secretaria de Comunicação Social (Secom), a Casa Civil e os Ministérios das Comunicações, da Justiça, da Educação, de Ciência e Tecnologia e da Fazenda.

A articulação em torno do I Fórum Nacional de TVs Públicas, realizado em 2007, permitiu que a sociedade civil chegasse a um conjunto de reivindicações para o sistema público de mídia. Convocado pelo Ministério da Cultura em 2006, o encontro reuniu as associações nacionais de televisões universitárias (ABTU), legislativas (Astral), comunitárias (ABCCom) e público-educativas (Abepec), além de pesquisadores, representantes de movimentos sociais e integrantes de oito ministérios do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (20032010)1 Depois de sistematizar estudos e propostas para o setor, durante etapas preparatórias, o Fórum foi realizado em maio de 2007, em Brasília. Uma carta com reivindicações, gerada a partir dos debates, foi entregue ao Presidente da República, que já tinha expressado a intenção de consolidar uma “rede pública nacional” de televisão. No contexto desse debate, em que se viam manifestados os diferentes projetos da sociedade civil para a TV Pública, o Governo Federal anunciou a criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), a gerir os serviços de radiodifusão na esfera federal, dentre eles um canal público de televisão, que iria ao ar em dezembro de 2007. Diante da diversidade de proposições advinda do encontro entre Estado e sociedade civil, não se pode dizer que havia um projeto homogêneo para a radiodifusão pública no Brasil. Pelo menos entre os participantes do Fórum, o único consenso era o de que o tópico merecia a atenção do Poder Público, seja por meio de incentivo às instituições existentes ou pela criação de uma nova organização, de perfil agregador. Entretanto, a ideia de que o Estado deveria direcionar políticas para o setor não era (e ainda não é) opinião generalizada na sociedade, já que não faltaram protestos depois do anúncio de criação da TV Brasil, sob o argumento de que o governo “desperdiçava” dinheiro público e pretendia oferecer ingerência sobre as comunicações, como nos editoriais da Folha de São Paulo (2007; 2009). Este artigo busca analisar as diferentes visões sobre a televisão pública encontradas no debate brasileiro da primeira década do século XXI. A abordagem começa pelos sentidos que o sistema público assume no Brasil, levando em conta as regulamentações incipientes sobre o setor. Em seguida, são analisadas as propostas apresentadas no I Fórum Nacional de TVs Públicas, como antessala da implantação do projeto de uma TV pública nacional. A análise busca oferecer um panorama sobre o que tem sido discutido sobre o tema no país, para que se possa entender o papel atual exercido pela EBC nas comunicações brasileiras.

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2. Concepções e práticas de regulamentação do “público” nas comunicações brasileiras

O Estado se afirmou como o principal ator da radiodifusão pública, sem, no entanto, estabelecer instrumentos de autonomia, bem como sem favorecer um desenho equilibrado entre o estatal e o privado. Mesmo nos governos ditatoriais de Getúlio Vargas (1937-1945) e dos militares (1964-1985), quando se verificou um fortalecimento do Estado pela via autoritária, as emissoras estatais permaneceram à margem das privadas – e foi exatamente durante essas etapas históricas que a radiodifusão se consolidou como comercial. A noção de sistema público surgiu na Constituição Brasileira de 1988, sem que houvesse esclarecimento sobre sua natureza. Segundo relato de Venício Lima (2008), o tópico foi introduzido na agenda constitucional por obra do então deputado Artur da Távola, que propunha a criação de uma matriz encabeçada “por instituições da sociedade e que funcionasse independente do Estado e do capital”, entendendo cada um desses agentes como forças sociais básicas de uma democracia. No entanto, a complementaridade não deveria ser um artifício para “eximir o sistema privado de radiodifusão de suas responsabilidades de ‘serviço público’ que simplesmente não pode existir sem a autorização e a fiscalização do Estado e da sociedade” (LIMA, 2009). No campo normativo, pelo menos quatro referências, além desse artigo constitucional, fornecem pistas para o sentido conferido ao público na radiodifusão brasileira. O primeiro marco é o Decreto-Lei 236 de 1967, gestado no governo militar para complementar o Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT). Além de legitimar a censura, a lei vincula a finalidade das televisões educativas à educação formal e massiva por meio da “transmissão de aulas, conferências, palestras e debates” (art. 13), assim como proíbe a propaganda comercial e o patrocínio dos programas. Em vigor ainda hoje, o decreto é mais restritivo do que propositivo, ao vedar o caráter comercial sem apontar caminhos para a radiodifusão pública. O segundo indicativo surge com a cabodifusão, por meio da lei no 8.977 de 1995, conhecida como Lei do Cabo. O artigo 23 impõe às operadoras de serviço a reserva dos “canais básicos de utilização gratuita” (legislativos, comunitários e universitários). Apesar do ligeiro avanço representado pela garantia de espaço a esse conjunto de emissoras, não há preocupação nesta lei em relação à produção de conteúdo e aos princípios que deveriam nortear os canais públicos. Além disso, a legislação se restringe à tecnologia do cabo, sem qualquer menção às demais modalidades de TV por assinatura (MMDS e DTH) e quanto mais às emissoras do sinal aberto. Desse modo, uma das principais pautas de reivindicação das televisões comunitárias, legislativas e universitárias é a possibilidade de livre recepção. Na prática, a Lei do Cabo favoreceu principalmente a consolidação dos canais de TV governamental, financiados pelos três poderes públicos.

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O terceiro momento normativo trata da criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), a operar os serviços de radiodifusão do Governo Federal (de acordo com a Lei 11.652 de 2008). Dentre as missões da nova entidade, está “fomentar a construção da cidadania, a consolidação da democracia e a participação na sociedade, garantindo o direito à informação, à livre expressão do pensamento, à criação e à comunicação” (artigo 3º). Além da operação da rede de rádios e televisões públicas ligadas ao Executivo Federal, a ela cabe a contraditória missão de desenvolver a comunicação governamental, tanto pela distribuição de publicidade legal dos órgãos federais quanto pela transmissão de atos e matérias do governo. A iniciativa difere-se dos dois registros legais anteriores, porque é a única que se preocupa com os princípios éticos diferenciais da matriz pública e com a natureza da programação. O debate entre Poder Público, movimentos sociais e parte do segmento empresarial, em torno da I Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), representa a quarta definição conceitual e o primeiro esforço, em vinte anos, em esclarecer os limites dos três sistemas mencionados pela Constituição de 1988. O diferencial dessa formulação se deve ao fato de que ela resultou de um processo de articulação da sociedade em defesa de uma comunicação mais democrática. Os participantes da Confecom acertaram que é preciso:

Regulamentar o Artigo 223 da CF, definindo os sistemas público, privado e estatal. O primeiro deve ser entendido como aquele integrado por organizações de caráter público geridas de maneira participativa a partir da possibilidade de acesso universal do/a cidadão/s a suas estruturas dirigentes e submetido a controle social. O segundo deve abranger todos os meios de entidades privadas em que a natureza institucional e o formato de gestão sejam restritos, sejam estas entidades de finalidade comercial ou não comercial. O terceiro deve compreender todos os serviços e meios controlados por instituições públicas vinculadas aos poderes do Estado nas três esferas da Federação. Para cada um dos sistemas, devem ser estabelecidos direitos e deveres no tocante à participação na gestão, modalidades de financiamento e obrigações quanto à programação. (CONFECOM, 2009, p.27) Segundo a conceituação apresentada pela Confecom, poderia ser entendida como pública uma televisão comunitária com gestão participativa e acessível aos cidadãos de seu entorno, sem discriminação ou partidarismo. Também se entende como pública as televisões ligadas à estrutura estatal, desde que estejam submetidas a controle social e sua esfera de gestão permita a incorporação ampla dos segmentos da sociedade. Já no plano conceitual, as posições sobre os sistemas públicos de comunicação apontam ora para uma maior aproximação com o Estado, ora para com a sociedade civil. Uma instituição fortalecida pela ação estatal ou uma rede com mecanismos de participação popular costumam ser reivindicações correntes, ocupando cada uma delas um dos pólos da disputa de sentido. Não se tratam de posturas definitivas, uma vez que a realidade não permite separações maniqueístas – tais leituras servem, no entanto, para revelar tendências notadas entre pesquisadores, gestores, militantes e trabalhadores do campo público. A primeira das interpretações, que podemos chamar de concepção estatista, pauta-se

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pelo quadro tal como ele é, recusando a aceitar a esfera pública como um meio termo entre o Estado e o mercado (RAMOS, 2007). Essa visão se enraíza no pensamento de Antonio Gramsci (2007), para quem o conjunto de organismos privados de hegemonia, isto é, a sociedade civil, ocupa um lugar distinto dos aparatos institucionais de poder, sob o nome de sociedade política ou Estado – mas ambas as esferas formam o complexo culturalideológico, que na tradição marxista recebe o nome de superestrutura. 2 - Como defende Marcos Dantas, citado por MARTINS, 2008

Para essa compreensão, não há diferença entre o estatal e o público2 : o Estado, público por natureza, estaria encarregado de organizar os sistemas públicos, em oposição à matriz privada ainda hegemônica. Um dos argumentos mais fortes dessa defesa reside na análise das experiências internacionais, pois, na maior parte dos países, com destaque para a Europa, o sistema de radiodifusão se divide entre privado-comercial e público-estatal. Em uma segunda visão, de perfil associativista, define-se o campo pelo que ele ainda não é, mas poderia ser. Na tentativa de valorizar a capacidade de gestão das organizações sociais (CABRAL, 2009), o público assume o sentido do que é ao mesmo tempo não estatal e não comercial. A partir da defesa da complementaridade entre os sistemas, como forma de “corrigir o inquestionável desequilíbrio histórico existente” (LIMA, 2009), essa leitura guarda alguma afinidade com a noção de “esfera pública” em Habermas (1984), um espaço livre que pertence à ação dos sujeitos sociais. Esse parece ser o sentido presente na Constituição Brasileira e na tentativa de esclarecimento conceitual buscada pela I Confecom. Essa dificuldade em distinguir o público, o estatal e o privado na radiodifusão brasileira levou à formulação de outras definições, mais próximas à realidade do universo midiático. Na prática, o campo se associa a um sentido de “não comercial”, isto é, ao conjunto de iniciativas voltadas para finalidades criativas e não para o consumo. Sejam comunitárias, legislativas, universitárias ou “educativas”, todas essas televisões se colocam, de alguma maneira, à margem do mercado e das amarras dos índices de audiência, ainda que a busca por experiência inovadoras tenha encontrado barreiras no baixo orçamento e nas políticas editoriais pouco autônomas. Daí nasceu aquela que é a concepção mais corrente sobre TV pública no Brasil. O perfil não comercial deriva de uma noção segundo a qual “o entretenimento, esse pujante ramo do comércio, não tem nada a ver com a comunicação de caráter público”, como afirma Eugênio Bucci (MINISTÉRIO DA CULTURA, 2006, p. 13). Então presidente da Radiobrás, Bucci apresentou ao Fórum de TVs Públicas um texto com um título revelador (que, por si só, tem a virtude de dizer muita coisa): A televisão pública não faz, não deveria dizer que faz e, pensando bem, deveria declarar abertamente que não faz entretenimento. A crítica de Bucci se dirige às práticas televisivas voltadas para a formação de hábitos de consumo e assim concorda Laurindo Leal Filho (2007, p.14), ao dizer que esse tipo de conteúdo se mostra “inconciliável com uma programação mais reflexiva, balizadora do modelo público”. Essa identificação entre o público e o não comercial também é notada no cenário internacional: segundo o relatório publicado em 2000 pela UNESCO, um dos princípios da TV pública é a chamada distinctiveness, que “deve conduzir emissoras públi-

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cas a inovar, criar novos formatos, novos gêneros, definir o ritmo do mundo audiovisual e conduzir as outras redes de radiodifusão na sua trilha” (UNESCO, 2001, p.13, tradução nossa). Essa visão, que inclui o fomento à crítica e à liberdade criativa, faz sentido frente a um contexto histórico no qual a televisão vem se pautando pela busca da audiência e pelo incentivo ao consumo. Mas aí reside um risco para as políticas de comunicação: o entretenimento não é condenável por si só, mas sim pelas formas que assume. Do contrário, seríamos levados a equívocos tais como o de pensar que a melhor política de televisão é aquela que não faz televisão, como se pode apreender da frase do próprio Bucci (ibidem, p. 19): “O negócio da televisão pública não é entretenimento e, indo mais longe, não é sequer televisão: é cultura, é informação, é liberdade.” Apesar do sentido original da palavra remeter à “distração”, as experiências provaram que o público elabora interpretações para o mundo a partir de programas ficcionais ou lúdicoafetivos, como aponta uma tradição extensa de pesquisas que consideram o papel da comunicação na formação do imaginário popular, em âmbito nacional, regional ou local, com destaque para a telenovela (MARTÍN-BARBERO; REY, 2001). É preciso, portanto, buscar um entendimento da radiodifusão pública para além do não comercial, estabelecendo um conjunto de princípios próprios do campo – para os quais as disputas de sentido e práticas entre os atores sociais são fontes vivas.

3. O horizonte do campo público: O que querem os atores que debatem a televisão pública no Brasil A diversidade de atores envolvidos no I Fórum Nacional de TVs Públicas contribuiu para agregar um campo até então disperso, mas com uma agenda que convergia para a presença do “público” na comunicação. Chamadas pelo Ministério da Cultura em 2006 a participar de um debate há muito requisitado pelo setor, as televisões educativas, universitárias, comunitárias e legislativas sistematizaram suas demandas em torno do fortalecimento do “campo público de comunicação”, uma esfera que abarca instituições com diferenças quanto à natureza jurídica e à finalidade comunicativa. Em comum, essas TVs têm apenas o fato de comporem o sistema não comercial, em contraponto aos atores privados com finalidades de lucro. Na prática, reúnem desde agentes estatais, como os órgãos de comunicação dos poderes públicos, que levam ao ar as emissoras institucionais, até entidades de natureza privada, mas voltadas para assuntos relativos a comunidades de interesse e que desfrutam, portanto, de um perfil público. O Fórum representou o primeiro esforço de articulação entre essas instituições, a fim de conquistar, como expressado nos documentos da 2ª edição do encontro (2009), “um campo público de televisão editorialmente independente, que estimule a formação crítica do indivíduo para o exercício da cidadania e da democracia.” A arquitetura horizontalizada do sistema público, com possibilidade de articulação técnica

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e interlocução entre as várias entidades, era defendida tanto pelos setores representativos envolvidos no encontro quanto pelo segmento do governo ligado ao Ministério da Cultura na gestão do ministro Gilberto Gil (2003-2008). Entre as principais reivindicações das TVs do campo público, estava a criação de uma infraestrutura digital única e pública, acessível a todas as emissoras. Também na concepção do secretário de Audiovisual do Ministério da Cultura, Orlando Senna, à época do I Fórum:

Do mesmo jeito que o cidadão percebe o poder público como um todo na cadeia articulada entre municípios, estados e a União, o telespectador deveria poder estabelecer a conexão entre as diversas TVs do campo público, num processo de formação de amplas bases de audiência que beneficiaria a todas. (MINISTÉRIO DA CULTURA, 2006, p. 11)

Dado os agentes indutores do debate, não é de se estranhar a recorrência de certa abordagem do campo público de televisão como um vetor de fomento à produção cultural. Nessa linha, a TV pública atuaria como um “veículo difusor da produção audiovisual oriunda dos distintos agentes culturais da sociedade”, segundo Orlando Senna (ibidem, p. 09), permitindo formas híbridas (público-privadas) de financiamento e de produção. Mais do que uma política específica do setor de comunicações, o que se estava discutindo era um modelo integrado de políticas públicas, em que iniciativas de promoção cultural e educacional e de inclusão digital poderiam convergir para o território da televisão. Nessa linha de pensamento, o ministro Gilberto Gil defendia a aproximação da TV pública com escolas, universidades e comunidades como centros produtores de conteúdo, rompendo com uma orientação centralizadora notada até o passado recente brasileiro, que “explica por que hoje certas regiões e estados do Brasil têm menos presença na televisão pública” (ibidem, p.06). Sob esse ponto de vista, o Estado poderia ser um articulador da rede de comunicação, não o produtor direto predominante. Para além das propostas que circulavam nas instâncias de poder, as organizações da sociedade civil defendiam o fortalecimento do Estado como indutor do campo público de comunicação. O documento-síntese do encontro, a chamada Carta de Brasília, recebia positivamente o projeto já anunciado de criação de uma rede pública de TV pelo Executivo Federal e recomendava que esta deveria “ampliar e fortalecer, de maneira horizontal, as redes já existentes” (I FÓRUM NACIONAL DE TVS PÚBLICAS, 2007). A Carta de Brasília é um manifesto em defesa do apartidarismo e da independência das televisões públicas. Com o propósito de tornar vigente a complementaridade entre os sistemas de radiodifusão, a sociedade civil organizada entendia como projeto ético-estético da TV pública “a expressão maior das diversidades de gênero, étnico-racial, cultural e social brasileiras, promovendo o diálogo entre as múltiplas identidades do País” (ibidem). Desse modo, tanto as competências de gestão e de fiscalização quanto a definição das diretrizes de programação deveriam partir de um órgão colegiado, composto por segmentos sociais e culturais representativos – portanto, a reivindicação era de um sistema público vinculado

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mais à sociedade e menos ao Estado. De acordo ainda com o manifesto, caberia ao Poder Público, na figura da União, o encargo do financiamento, por meio de incentivos à produção audiovisual. Quanto às linhas de programação, o documento toca em pontos previstos na Constituição pelo artigo 221, para os quais o campo público assumiria posição de destaque: modelos produtivos independentes e regionais, além de parceria com o cinema nacional. Ainda que não devesse se orientar por critérios mercadológicos, a TV pública deveria assumir a sua vocação de veículo de massa e não segmentado. Para cumprir seus objetivos diferenciais junto aos telespectadores, foi ainda recomendado pela Carta de Brasília que essa matriz desenvolvesse parâmetros inovadores de aferição de audiência e qualidade. Como se trata de um primeiro esforço de formulação de propostas, os Cadernos do Fórum e a Carta de Brasília têm muito mais o caráter de reconhecimento do setor e de manifesto em defesa dos princípios públicos, do que propriamente o de delimitar um programa de ação para Estado e sociedade civil. Que espaço caberia a cada instância na plataforma única de rede digital? O que seria feito das instituições já existentes no setor, especialmente as educativas estaduais, diante da entrada do Governo Federal como indutor? Como garantir mecanismos de controle público sobre as TVs comunitárias, caso se pretenda considerá-las como parte do campo? Por que não estender o debate para outras plataformas tecnológicas, como os meios digitais e o rádio, já que a convergência aponta para um conceito amplo de comunicações? São questões que permaneceram sem resposta. A compreensão de que cabe ao Estado custear, de forma estável, o sistema público é uma defesa tanto das televisões público-educativas, quanto das comunitárias, universitárias e legislativas. As propostas contidas no Grupo de Trabalho que abordou a questão financeira no I Fórum Nacional de TVs Públicas apontam para uma diversidade de fontes públicas de financiamento: leis de incentivo; linhas de crédito do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES); promoção cultural por parte de empresas estatais; e publicidade institucional dos órgãos federais, estaduais e municipais. Nos casos da desoneração tributária e da renúncia fiscal, o financiamento é indiretamente público, mesmo quando incide sobre o setor privado, pois são mecanismos que utilizam recursos do Estado. Além das TVs do campo público, dois grupos militantes da comunicação expuseram suas concepções e propostas no debate: o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) e o Coletivo Brasil de Comunicação Social (Intervozes). Enquanto as associações de televisões públicas priorizaram seus problemas específicos, a agenda de reivindicação dessas duas entidades apresentava uma pauta mais generalista, com indicativo da reforma estrutural do setor, para que os direitos e o exercício da cidadania estivessem garantidos. É no discurso do FNDC, por exemplo, que emerge pela primeira vez entre as organizações da sociedade civil a ideia de que o debate deveria ir além da televisão: O FNDC entende que a instituição de um real sistema público de comunicação não pode ser efetivada com a exclusão dos segmentos da radiodifusão sonora. Esta compreensão não se dá somente porque quase todas as entidades que operam sistemas de televisão possuem ao seu

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lado uma similar geradora de programação radiofônica. O casamento dos dois segmentos é essencial no momento em que a introdução da tecnologia digital permitirá o tráfego de todos os sinais de comunicação, independentemente de suas características ou naturezas, por “estradas” públicas e únicas. (MINISTÉRIO DA CULTURA, 2007, p. 89) Com raízes na Frente Nacional por Políticas Democráticas de Comunicação (FNPDC), que agregou profissionais e parlamentares em torno do propósito de garantir um viés democrático na agenda da comunicação durante a Assembleia Constituinte, o FNDC se formou em 1991, sendo oficializado em 1994. Dele participam entidades representativas de jornalistas, psicólogos, estudantes de comunicação, rádios comunitárias e trabalhadores de rádio e TV, que atuaram em debates decisivos para o setor, como o processo de elaboração da Lei do Cabo a concretização de um espaço de debate social na I Conferência Nacional de Comunicação. No documento publicado pelo FNDC durante o encontro, o público é compreendido como “não estatal”, pois no conjunto de emissoras comunitárias e universitárias “reside o potencial de desenvolvimento de um legítimo sistema público” (ibidem, p. 81). O FNDC antevê os riscos do modelo a ser implantado pelo Governo Federal, com perfil estatal e verticalizado, que relegaria as emissoras já existentes a um espaço de segunda categoria. De acordo com a proposta da entidade, a gestão da matriz pública deveria assumir um caráter profissionalizado, não atrelada a governos ou ao mercado, estando subordinada a um Conselho Deliberativo de formação paritária. Por sua vez, o Intervozes deriva de um movimento mais recente pelo direito à comunicação, em esforço inicial junto ao Projeto de Governança Global e à Campanha CRIS Brasil (Communication Rights in the Information Society). Por ocasião do Fórum de TVs Públicas, o Intervozes (2007) propôs uma leitura ampliada do sistema público, correspondendo ao conjunto de emissoras públicas, universitárias, comunitárias e privadas sem fins lucrativos, além dos operadores de rede públicos e as centrais públicas de comunicação, a serem criadas como espaço de capacitação e formação de políticas participativas. Desse universo estão excluídas as TVs e rádios estatais, operadas pelos três poderes da República, e as privadas comerciais. De acordo com a entidade, a sustentação do modelo estaria ancorada em mecanismos de gestão independente e financiamento diversificado. Como se vê, as organizações da sociedade civil envolvidas na discussão do I Fórum enxergavam o sistema público a partir de diferentes ângulos – as concepções e propostas estão sistematizadas na Tabela 1. Desse debate ficaram ausentes as empresas privadas de radiodifusão, que também integram os “aparelhos privados de hegemonia” que compõem a sociedade civil, na visão de Antonio Gramsci. Assim, o uso da expressão “sociedade civil”, no contexto do encontro, acabou se restringindo às associações de televisões, sindicatos e grupos militantes ligados ao debate da democratização da comunicação, frequentemente com uma inspiração ideológica de esquerda. Mas esse recorte se deve antes à ausência do ator privado comercial no debate do que propriamente a um desvio de sentido.

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TABELA 1 – Políticas para o sistema público de comunicação: Síntese das propostas da sociedade civi Organização

O que é

Breve histórico

Propósito

Abepec

ABTU

Associação Brasileira de Televisões e Rádios Legislativas

Associação Brasileira de Televisão Universitária

Fundada em 1998, reúne 20 televisões público-educativas

Criada em 2003, congrega atualmente 54 rádios e TVs legislativas

Instituída em 2000, possui atualmente 52 instituições de ensino superior (IES) associadas

Defesa de uma TV pública independente, cuja programação

Representar o interesse das emissoras legislativas perante poderes, órgãos e associações públicas e estimular o debate sobre o papel desses veículos

Colaborar no desenvolvimento dos canais de TV universitária no país, em qualquer formato, meio e tecnologia, estimulando a sua multiplicação e contribuindo para o aprimoramento dos profissionais do setor

- Reconhecimento das TVs e rádios legislativas como canais de informação, educação e participação popular

- Programação deve ser orientada por Conselho Consultivo

esteja a serviço do cidadão e da sociedade

- Fortalecimento e expansão do campo público já existente - Definição dos princípios do sistema público

Posições no I Fórum (Configuração jurídica e institucional)

Astral

Associação Brasileira de Emissoras Públicas, Educativas e Culturais

- Atualização da legislação sobre TVs educativas (Decreto 236 de 1967)

- Entrada no sinal aberto e na TV Digital

- Ampliação das cotas de canais destinados à radiodifusão pública, com a facilitação do acesso de instituições sociais às novas outorgas - Projeto de estender a todas as IES a utilização dos canais universitários no cabo (incluindo os centros de pesquisa) - Regulamentação do artigo 221 da Constituição

Posições no I Fórum (Financiamento e Migração digital)

- Criação de um modelo de financiamento que preserve a subordinação das TVs públicas aos interesses da sociedade e possibilite a realização de sua missão

- Investimento que permita a conservação do acervo de imagem (emissoras legislativas de pequeno porte não dispõem de recursos para manter seus arquivos)

- Fundo para a formação de uma rede de produção para as emissoras públicas, nos moldes do DOCTV

- Necessidade de superar a burocracia das Casas Legislativas que entrava a atualização tecnológica

- Investimento em equipamentos para a digitalização das emissoras públicas (captação, edição e transmissão) – recursos federais, a fundo perdido,de modo a compensar a grande defasagem existente

- O financiamento privado é uma questão que inflige um princípio ético, já que o patrocinador poderá ter matérias de interesse sendo votadas na Casa Legislativa

- Estímulo à política de expansão dos canais universitários na internet - Criação de mecanismos que permitam a captação de recursos para a TV pública (flexibilização das restrições à publicidade comercial, fundos de financiamento de TV educativo-cultural, investimento direto do Estado, incentivo às inversões privadas na programação educativocultural).

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Organização O que é

Breve histórico

ABCCom

FNDC Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação

Coletivo Brasil de Comunicação Social

Criada em 2000 – na época eram 35 canais associados

Movimento criado em 1991 e formalizado em 1994

Iniciou suas atividades em 2002 e, em 2003, tornou-se uma associação civil sem fins lucrativos

Luta pela democratização da comunicação, como parte comunitários nas relações com de um esforço maior pelas garantias de acesso a serviços o poder público, ser porta-voz de seus anseios, principalmente públicos, ao trabalho e a condições de vida dignas para junto ao Ministério das todos os brasileiros Comunicações, à

Reúne ativistas, profissionais e estudantes de Comunicação Social em torno da luta pelo direito à comunicação

Representar os canais

Propósito

Intervozes

Associação Brasileira de Canais Comunitários

Anatel e ao Congresso Nacional - Os canais comunitários devem funcionar como verdadeiros centros de mídia comunitária, com salas de aulas e estúdios de acesso público – criação de escolas de mídia comunitária

Posições no I Fórum (Configuração jurídica e institucional)

- Política de estímulo para ocupação dos canais básicos de utilização gratuita nas localidades que contam com operadoras de cabodifusão - Participação social: todos são produtores de conteúdo

- Financiamento: fundos públicos e legalização da publicidade institucional

Posições no I Fórum (Financiamento e Migração digital)

- Canal da Cidadania na TV Digital: transmissão de programas das comunidades locais – perfil público e não estatal - Garantia de espaço na TV Digital para todos os canais básicos de utilização gratuita e que eles não sejam explorados pela União e sim pelos administradores do sinal das TVs comunitárias

- Emissoras universitárias e comunitárias são o potencial do sistema público - Controle público sobre os sistemas privado e estatal. Controle direto sobre o sistema público. - Gestão: Conselho Deliberativo paritário, formado por segmentos sociais - Descentralização e regionalização do sistema público

- Financiamento diversificado garante independência - Os canais públicos teriam seu orçamento acrescido de uma verba extraordinária para o financiamento da migração de sua infra-estrutura para o ambiente digital - Criação de uma taxa por domicílio, que associe o financiamento dos canais públicos com a manutenção de uma rede metropolitana sem-fio de internet em alta velocidade (voz, dados e vídeo)

- Sistema público: composto por entidades públicas, comunitárias e universitárias (ficam de fora estatais e comerciais) - Produção descentralizada: produtores independentes e regionais - Centrais públicas de comunicação: núcleos de produção e capacitação comunicativa - Conselho Nacional de Comunicação Pública (CNCP): deve ser criado para definir as políticas de gestão do sistema público. Formado pela sociedade civil e pelo Governo Federal. - Fundo de Comunicação Pública, gerido de maneira pública pelo CNCP, a partir de recursos de orçamento do Estado, taxação sobre publicidade, pagamento pelo uso do espectro, impostos sobre aparelhos de TVs e doações - Nova política de uso e ocupação do espectro, com a redefinição das outorgas ocupadas, expandindo a presença das emissoras públicas no sinal aberto - A legislação da comunicação social eletrônica precisa ser atualizada

Tabela elaborada a partir dos documentos do I Fórum Nacional de TVs Públicas e de outros textos publicados por essas organizações

A disputa entre as concepções de sistema público que se seguiu ao I Fórum Nacional de TVs Públicas alcançou a etapa concreta da formulação de políticas, com a implantação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC). Entretanto, as negociações de interesse e pontos de vista não cessaram, especialmente porque, dois anos depois do primeiro encontro, a sociedade civil retomou o debate na segunda edição do encontro, em sentido inverso de

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agregação: agora eram as organizações sociais voltadas para a comunicação que convidavam o governo a participar. A nova configuração de forças, posterior à criação da TV Brasil e a suas realizações iniciais, permitiu que os grupos militantes e as associações civis concebessem propostas mais sistematizadas e abordagens críticas do processo em andamento, durante o II Fórum de TVs Públicas, em maio de 2009. O entendimento do novo encontro foi o de que o sistema público não estatal deve considerar a Lei da EBC (Lei 11.652 de 2008) como diretriz normativa, respeitando princípios tais como a autonomia em relação ao Estado para definir produção, programação e distribuição de conteúdo, além da participação da sociedade civil no controle das ações, respeitando-se o critério de representação plural (II FÓRUM NACIONAL DE TVS PÚBLICAS, 2009). Ainda de acordo com o documento produzido, a chamada Segunda Carta de Brasília:

A diferença fundamental entre os dois sistemas [estatal e público] é que, no sistema de radiodifusão público não estatal, as diretrizes de gestão da programação e a fiscalização devem ser atribuição de órgão colegiado deliberativo, representativo da sociedade, no qual o Estado ou o governo não devem ter maioria. (ibidem)

Não foi o que se efetivou na prática. A diversidade de concepções dentro do próprio governo, em torno dos projetos para a TV pública, cedeu lugar ao predomínio do vetor de forças favorável ao protagonismo do Estado. Essa concepção centralista, em oposição à visão descentralizada defendida pela sociedade civil, não se fez notar somente no anúncio equivocado do ministro das Comunicações à época, Hélio Costa, de que o governo pretendia criar uma televisão pública porque dispunha de pouco espaço na mídia comercial – o que terminou por afastá-lo da condução das políticas sobre o tema. O ator que então assume o lugar de principal indutor do processo, o então ministro da Secretaria de Comunicação Social, Franklin Martins (2007, grifo nosso), anunciava que:

a ideia é partir do que o Governo Federal tem no momento atual. Ele tem o quê? Tem a Radiobrás e tem a TV educativa do Rio e do Maranhão. A ideia é fundir essas duas estruturas. Isso dá uma espinha dorsal para uma programação que ao mesmo tempo se abre para a parceria com o conjunto de TVs culturais, educativas, universitárias existentes no país, como o caso da TV Cultura. Então a ideia é estabelecer uma parceria que vá aos poucos formando uma rede pública de televisão, porque nós não temos uma rede pública de televisão estruturada no Brasil. Nós temos o quê? Várias TVs públicas, universitárias, culturais, mas que você não pode dizer que constituem uma rede pública, com projeto próprio, com uma parceria definida. É isso que o Governo Federal pretende: exercer um papel de liderança dentro disso, que seja capaz de convocar, de trazer para o mesmo movimento o conjunto de emissoras com esse caráter.

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3 -Declarações feitas durante o II Fórum Nacional de TVs Públicas.

Essa também era a compreensão da primeira presidente da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), a jornalista Tereza Cruvinel, para quem a instituição criada não tinha a pretensão de hegemonizar, mas de liderar o campo público. Dentro do projeto que então é formulado, a concepção central enxerga a TV pública como um veículo de massa, que deve se voltar para a busca do maior número de telespectadores, assumindo um papel social destacado3 . No entanto, frente à centralização exercida pela EBC, o que terá sido feito das reivindicações das entidades do campo público? Há espaço para a participação social nesse novo cenário? São problemáticas ainda em curso, de um processo não consolidado, que precisam de respostas.

4. Considerações finais: Perspectivas para os próximos anos O cenário que se seguiu à criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), do final de 2007 ao início de 2008, representou uma oportunidade de reestruturação do campo público de comunicação, na direção do fortalecimento de uma rede encabeçada pelo Governo Federal. Uma nova análise que se estenda especificamente sobre a EBC precisa ser feita em espaço oportuno. Por ora, o objetivo desta reflexão foi entender o contexto de debate que antecedeu à elaboração de uma nova política para a televisão pública, que reverberou sobre a estrutura da nova instituição. Mais do que definições claras sobre os sistemas de comunicação, as políticas e as leis brasileiras realizaram omissões ou produziram engessamentos, como aquele que restringe a TV educativa à educação formal. O Fórum Nacional de TVs Públicas, em suas duas edições, e a Conferência Nacional de Comunicação vieram à contramarcha dessa tendência, como consequência da articulação entre os atores sociais. O mesmo se dá com a legislação da EBC, que emerge como o primeiro estatuto legal que menciona as características da televisão pública – e permanece, portanto, como marco para as regulamentações posteriores. O que se espera é a continuidade do debate sobre a televisão pública no Brasil – temática que ganhou um espaço inédito de mobilização de entidades e agentes políticos com o I Fórum Nacional de TVs Públicas. Para essa discussão a EBC também pode contribuir, como fomentadora de reflexões sobre o tema da comunicação pública, dentro e fora da TV, em seminários e audiências públicas. Somente a disputa de sentido na sociedade, por meio do enfrentamento e do diálogo, poderá conduzir ao aperfeiçoamento das políticas públicas para o setor.

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A comunicação pública na construção simbólica da representação política La comunicación pública en la construcción simbólica de la representación política Public communication in the symbolic construction of political representation

Nelson Toledo Ferreira Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Juiz de Fora/MG - UFJF, doutorando em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense, Niterói/RJ-UFF, bolsista Capes. Email:neotolledo@hotmail.com

Revista Eptic Online Vol.15 n.2 p.44-57 mai-ago 2013 Recebido em 19/02/2013 Publicado em 15/05/2013


A comunicação pública na construção simbólica da representação política - Nelson Toledo Ferreira

RESUMO A proposta deste artigo é refletir sobre a comunicação pública na construção simbólica da representação política, funcionando como principal mecanismo de mediação e de interação entre representantes e representados. Nesta perspectiva, o conceito de representação política desloca o seu foco da autorização, das eleições e do accountability , tradicionalmente na linha das Ciências Políticas, para os dispositivos midiáticos e seus impactos nas sociedades contemporâneas, objetos de estudos das teorias da Comunicação, que podem promover a aproximação dos cidadãos dos seus governantes, criar consensos, tecer laços de pertencimentos identitários, amenizar crises e escândalos políticos. A revisão histórica das principais teorias de representação revela a evolução das disputas discursivas em arenas midiáticas, como principais elementos deste debate, o que deixa questionamentos sobre a legitimidade, formas não eleitorais de representação política e um cenário político cada vez mais produzido pela lógica de mercado

PALAVRAS-CHAVE Comunicação pública; Representação política; Mídia; Informação política

RESUMEN El propósito de este artículo es reflexionar sobre la comunicación pública en la construcción simbólica de la representación política, que funciona como el principal mecanismo para la mediación y la interacción entre representantes y representados. En esta perspectiva, el concepto de representación política cambia su enfoque a la autorización de las elecciones y la “rendición de cuentas”, de acuerdo con la ciencia política tradicional, a los dispositivos de los medios de comunicación y su impacto en la sociedad contemporánea, los objetos de estudio de las teorías de la comunicación que puede promover el acercamiento de los ciudadanos a sus gobernantes, la construcción de consensos, tejer vínculos de afiliación de identidad, mitigar las crisis y los escándalos políticos. Una revisión histórica de las principales teorías de la representación revela la evolución de las disputas medios arenas discursivas, como elementos clave de este debate, lo que deja preguntas sobre la legitimidad, las formas no electorales de representación política y el panorama político producido cada vez más por la lógica del mercado PALABRAS CLAVE La comunicación pública, La representación política, Media, La información política

ABSTRACT This paper suggests reflecting on the public communication in the symbolic construction of political representation works as the main mechanism for mediation and interaction between representatives and represented. In this perspective, the concept of political representation shifts its focus the authorization of elections and accountability to media devices and their impact on contemporary society - objects of study of the theories of communication, it can promote the approach of the citizens of their rulers, develop consensus, weaving bonds of identity affiliations, mitigate crises and political scandals. A historical review of the major theories of representation reveals the evolution of disputes discursive arenas media, as key elements of this debate, which leaves questions about the legitimacy, non-electoral forms of political representation and political landscape increasingly produced by market logic. KEYWORDS Public communication; Political representation; Media; Political information

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Introdução As principais discussões teóricas sobre comunicação pública priorizam mecanismos pelos quais ampliam canais de participação política e favorecem a transparência sobre recursos públicos e ações políticas, desencadeadas pelos governantes, na promoção da cidadania. No entanto, é necessário discutir também o tema como estratégias de grupos políticos e econômicos, partidos e candidatos, para construírem uma imagem positiva de seus interesses e perspectivas, e, com isso, trabalharem discursivamente no nível simbólico para reforçar e recriar a idéia de representação política junto aos seus públicos. Neste sentido, o debate contemporâneo sobre democracia passa necessariamente sobre estes conflitantes mecanismos de representação política, impactados por um cenário redesenhado pela centralidade da mídia nos processos sociais. Alguns teóricos chegam a apontar uma crise de representação política decorrente do enfraquecimento ideológico dos partidos, da personificação política, do descrédito e apatia dos cidadãos no engajamento político, dentre outros motivos (CHADWICK, 2006; LEAL, 2005; MIGUEL, 2010; ALBUQUERQUE, 2002). Diante deste contexto, partimos do pressuposto que para discutir representação política, nas democracias ocidentais, faz-se necessário uma constante atualização de conceitos, na medida em que a sociedade se transforma num ritmo vertiginoso e se torna cada vez mais complexa, tendo as novas tecnologias de comunicação como principal base teórica destas discussões. A crise de representação política parte da idéia do conflito, que é intrínseco ao cenário político, exigindo sempre novas reflexões e reconfigurações que acompanhem as mutações na economia, no mundo e no sentido do trabalho, na consolidação dos fenômenos globalizados e, em suma, nas séries de mudanças dos mais diversos setores, que afetam diretamente o nosso cotidiano. Com isso, o repensar a esfera pública, o espaço político, a participação e mobilização populares, a circulação da informação política, os meios deliberativos potencializados na sociedade civil e, principalmente, as novas demandas sociais, que irrompem no tecido social, exigem novas leituras. A relação entre representantes e representados já não se limita apenas a uma noção de democracia representativa com foco nas eleições e nem em discussões tradicionais sobre a autonomia dos primeiros em relação aos segundos, sobre os processos de escolha dos representantes, prestação de contas e legitimidade. A mídia interfere em todo o contexto, exigindo novos argumentos neste debate, uma vez que, na sociedade atual, as pessoas percebem e dão sentido aos fenômenos sociais e à própria realidade em que vivem através dos meios de comunicação, sejam os comerciais, mantidos por grupos econômicos e políticos; sejam os institucionais, mantidos por centros do poder legislativo ou executivo. Fato, é que os meios de comunicação transformam-se em amplas arenas de luta simbólica, pois o que é registrado pelos meios é o que passa a existir na realidade. Como se o que não tivesse a visibilidade midiática não existisse e não tivesse importância. Nisso decorre que as representações midiáticas criam um ambiente em que se definem o pensamento,

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julgamento e ação dos indivíduos na sociedade, e esta ideia é cada vez mais apropriada no cenário político. Diante deste cenário, a proposta deste artigo é refletir sobre estas mutações na esfera política, reforçando o papel da comunicação pública como um dispositivo estratégico de reforçar simbolicamente a representação política junto aos cidadãos, o que significa um reposicionamento teórico sobre o tema sob a ótica da epistemologia do campo da comunicação. Apesar da discussão sobre a interface da Comunicação com inúmeras disciplinas como Psicologia, Sociologia, Ciências Políticas, Lingüística, Semiótica e muitas outras, o conhecimento produzido por teóricos da Comunicação e a ênfase das pesquisas do processo comunicacional vêm delimitando e mostrando a importância deste campo para o entendimento da sociedade contemporânea, principalmente, no contexto político. Nesta perspectiva, acreditamos que o debate sobre representação política, que na maioria das vezes é centrado tradicionalmente nas teorias das Ciências Políticas e da Sociologia, deixa lacunas para o entendimento desta intrincada relação comunicação e centros de poder. E quando nos referimos à mídia, não se trata dos veículos de comunicação de massa tradicionais, mas todo o complexo sistema de mídia, no qual a comunicação pública faz parte e vem ganhando novos espaços, trabalhando de forma estratégica com a finalidade de influenciar a agenda política e criar enquadramentos nas questões públicas, buscando posicionar e reposicionar seus receptores alvo nesta intrincada disputa política midiática. Há de se ressaltar o papel fulcral da comunicação pública para garantir o direito à informação, na medida em que nas sociedades democráticas é também o principal meio que permite o acesso dos cidadãos aos direitos civis, sociais e políticos, que são imprescindíveis para a emancipação da cidadania. No entanto, é necessária uma reflexão crítica como esta representação política criada como um produto de marketing, de pesquisas de opinião, de belas imagens e de discursos bem elaborados, por uma constante profissionalização da comunicação pública, pode maquiar a verdadeira idéia de democracia representativa. Como efeito, tal cenário pode contribuir para que laços de pertencimento dos cidadãos com partidos e representados se tornem cada vez mais frágeis, flutuantes e não representem, de forma efetiva, a vocalização das novas demandas sociais.

Revisão histórica do conceito de representação política Pitkin (1967) apontava que para compreender como o conceito de representação entrou no cenário político é necessário contextualizar com o desenvolvimento histórico das instituições, a interpretação sobre o papel das mesmas na sociedade e o próprio desenvolvimento etimológico da palavra. Percebe-se que a complexidade do termo é enfatizada pela autora desde o final da década de 60, mas sempre com o vínculo com as transformações das sociedades. O livro de Hanna Pitkin, The Concept of Representation, publicado em 1967, nos Estados Unidos, é considerado um marco teórico nestes debates, revelando uma visão inovadora da representação política como uma atividade social, fugindo da noção ortodoxa até então empregada para designar a representação.

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Desde a obra Leviathan, de Hobbes, em 1651, quando foi aplicado a primeira ideia de representação na teoria política, no sentido da agência legal, autorização de alguém para agir por outro, o termo foi sofrendo atualizações na teoria política, passando pelas revoluções democráticas do final do século XVIII e pelas mutações políticas institucionais do século XX. (...) o sufrágio, a divisão em distritos e proporcionalidade, os partidos políticos e os interesses e políticas, a relação entre as funções legislativas e executivas. Estas lutas políticas precipitaram um corpo considerável da literatura, sistematizada de tempos em tempos, enriquecida e redirecionada pela teoria política. Desse material colossal, apenas duas questões conceituais inter-relacionadas podem ser discutidas até aqui: a “polêmica sobre o mandato e a independência” e a relação entre a representação e democracia. (PITIKIN, 2006, p.67)

A autora categorizou a representação política em representação formalista, descritiva, simbólica e substantiva. A primeira enfatiza a noção de representação sob duas dimensões: por autorização prévia e por responsividade, ideias estas defendidas inicialmente por Hobbes e pelo modelo liberal, respectivamente. Já a segunda, dá ênfase à relação entre representantes e representados, como se o primeiro espelhasse por meio das semelhanças o segundo. No terceiro caso, leva em conta o significado que o representante tem para aqueles que estão sendo representados. E, finalmente, a representação substantiva referese à substância do que é feito, ou seja, são as atividades dos representantes, as ações realizadas em nome e no interesse dos representados, é que são avaliadas. Em todos os casos, observa-se que a representação política ultrapassa o cenário eleitoral para a legitimação do exercício do poder por determinados grupos. Nesta perspectiva, a concepção de representação política já trazia consigo uma exigência de legitimação construída através de processos de identificação entre os representados com seus representantes, o que exigia medidas eficazes para que ocorressem estes sentimentos de pertencimento dos cidadãos a determinados grupos e não a outros, com demandas comuns, discursos comuns, percepções comuns. Nesta configuração, a opinião pública começa a potencializar sua importância nestes debates, inclusive, favorecida pelas tecnologias de comunicação. Em meados de 90, Bernard Manin traz contribuições importantes para o tema da representação, fazendo uma análise da evolução das democracias representativas, buscando um denominador comum entre elas ao longo de suas histórias no que se refere à eleição dos representantes pelos governados, à independência parcial dos representantes, à liberdade de opinião pública e às decisões políticas tomadas após os debates. Sua principal crítica recai sobre o processo de seleção dos governantes pelas eleições, o que ele considera um arranjo aristocrático das elites. Manin (1995) traz com sua teoria o debate sobre polêmica de que os meios de comunicação estariam substituindo os partidos políticos na mediação entre representantes e representados, reforçando a importância da liberdade da opinião pública neste processo. Com o autor, é reforçada a chamada democracia da audiência, na qual os líderes políticos tinham um apelo maior do que as ideologias dos seus respectivos partidos.

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(...) Em primeiro lugar, os canais de comunicação política afetam a natureza da relação de representação: os candidatos comunicam diretamente com seus eleitores através do rádio e da televisão, dispensando a mediação de uma rede partidária. A era dos ativistas, burocratas de partido ou “chefes políticos” já acabou. Por outro lado, a televisão realça e confere uma intensidade especial à personalidade dos candidatos. (...) o que estamos assistindo hoje em dia não é a um abandono dos princípios do governo representativo, mas a uma mudança do tipo de elite selecionada: uma nova elite está tomando o lugar dos ativistas e líderes de partido. A democracia de público é o reinado do “comunicador”. O segundo fator determinante da situação atual são as novas condições em que os eleitos exercem o poder. Reagindo a estas mudanças, os candidatos e partidos são ênfase à individualidade dos políticos em detrimento das plataformas políticas.( MANIN, 1995, p.22-23)

Com as transformações profundas na sociedade, com algumas características deste novo período, o qual alguns teóricos denominavam pós-modernidade, capitalismo tardio ou sociedade pós-industrial, a ênfase recai sobre uma intensa fragmentação dos segmentos sociais e suas novas bandeiras de lutas, que se impõem no cenário político, embaralhando ainda mais a concepção de representação política. As bases que sustentaram os partidos políticos e suas representatividades começam a perder espaço nesta luta simbólica, deixando de ser tão homogêneas e com demandas comuns. Com isso, os partidos políticos enfraquecem nos seus posicionamentos ideológicos, uma vez que tinham como suporte principal as classes sociais para definições de suas representações políticas, repercutindo nos modelos de sistema político que defendiam, cenário que se confirma até os dias atuais. Trata-se de um fenômeno mundial, inclusive na Europa com a forte tradição dos partidos políticos. Chadwick (2006) lembra que um dos principais argumentos para esta crise partidária é que as sociedades pós-industriais já não contam com classes sociais e grupos homogêneos que deram origem aos partidos nos séculos XIX e XX. “(...) como as sociedades tornaram-se fragmentadas, os partidos políticos tem visto suas bases sociais murcharem ou tornarem-se repletas de clivagens sociais. (CHADWICK, 2006, p.145). O autor ainda reforça que os eleitores são agora muito mais propensos a flutuar livres de identificação partidária e a fazer avaliações mais racionais de plataformas políticas. Nisso, as identidades políticas parecem menos fixas, fazendo com que os cidadãos exijam formas mais flexíveis e complexas de expressar diferentes visões políticas e não vêem os partidos como os únicos capazes de acomodar tais diversidades ideológicas (CHADWICK, 2006, p.146). Entram em cena, as organizações da sociedade civil e formas não eleitorais de representação, buscando potencializar a voz de determinados segmentos, até então excluídos do processo político e da tomada de decisões, exigindo, com isso, que suas demandas fossem incorporadas nos debates e assegurassem novos direitos sociais e políticos. Neste contexto, a mídia reforça seu papel crucial na vocalização das demandas destes novos segmentos e suas lutas por direitos na sociedade.

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Young (2000), no seu livro Inclusion and democracry, traz para o debate uma nova abordagem sobre representação, tendo como foco principal o conceito de “perspectivas sociais”, visando, principalmente, os chamados grupos minoritários que aparecem com mais força no cenário político, como mulheres, negros, homossexuais e outros. Por esta ótica, cada um dos novos segmentos que irrompem no tecido social a partir da década de 90, fruto dos novos tempos, tem perspectivas diferenciadas em relação a algumas temáticas, que são necessárias para serem incorporadas nas discussões políticas dos regimes democráticos atuais. Mais uma vez, os processos midiáticos reaparecem como mecanismos de visibilidade das demandas destes novos segmentos. Young (2006) aproxima suas análises de uma visão deliberacionista da democracia e da representação política tentando abarcar a inclusão social destes novos grupos, pois a multiplicidade dos pontos de vistas ampliaria a noção de realidade e contribuiria para o processo democrático.

Numa sociedade complexa e com milhões de pessoas a comunicação democrática consiste em discussões e decisões fluidas, sobrepostas e divergentes, dispersas tanto no espaço como no tempo. O que são relações comunicacionais inclusivas em tais sociedades fluidas, descentralizadas de massa? No contexto dessas sociedades as queixas que apontam o caráter excludente das normas de representação. As pessoas muitas vezes reclamam que os grupos sociais dos quais fazem parte ou com os quais tem afinidade não são devidamente representados nos organismos influentes de decisão, tais como legislaturas, comissões e conselhos, assim como nas respectivas coberturas dos meios de comunicação. (YOUNG, 2006, p.140)

Outra pesquisadora que acrescenta novos elementos à discussão sobre representação política, com vínculos com a opinião pública e com a mídia é a italiana Nadia Urbinati. No seu trabalho Representative Democracy: principles and genealogy publicado em 2002, Urbinati (2002) defende a representação política como fundamental para o funcionamento da democracia, baseada no discurso público que valoriza a política democrática, potencializando as vozes dos cidadãos em todo o processo político, não só na escolha dos seus representantes. Nesta perspectiva, Urbinati (2002) considera a representação política vinculada ao estimulo à participação política e à expressão da vontade popular, transformando-se, assim, em uma forma de organização política. Para Urbinati (2002), a representação política amplia a noção de participação, na medida em que considera que um caráter deliberativo permitiria uma constante recriação e aperfeiçoamento do que entendemos por democracia. A autora inclui nesta discussão a noção de advocacy, como uma vontade superior e apaixonada às causas e demandas dos seus constituintes com certa autonomia de julgamento, o que distancia representantes dos representados, reforçando a importância da representação política como mola propulsora dos regimes democráticos. Urbinati (2002) faz uma defesa dos expertises, que seriam porta-vozes aprimorados dos seus representantes, o que é questionado por alguns teóricos sobre a legitimidade desta prerrogativa.

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Em outros textos posteriores ao lançamento do seu livro, Urbinati (2006) reforça que a representação é cada vez mais entendida como um fator intrínseco para a constituição da opinião pública por meio de seu papel reflexivo (deliberação) bem como essencial para definição de vias de influência do Estado (URBINATI, 2006, p.2). Nesta perspectiva, surgem emergentes formas não eleitorais de representação, uma vez que na época atual o mundo está preenchido por atores extra territoriais, que interferem em todo o processo de representação, como movimentos sociais transnacionais, dentre outros. A autora ressalta que o desenvolvimento das sociedades contemporâneas afetadas pelo mercado, tecnologia e vasto volume de informações fez com que a ideia de representação chegasse a um ponto de ruptura. A idéia do Estado representando povos é parcial e serve, atualmente, apenas para algumas questões. Urbinati (2006) enfatiza que os discursos que fornecem razões de legitimidade são pluralizados e cada vez mais públicos, mesmo que a representação eleitoral continue a ser referência para o poder do Estado, hoje em dia os espaços para reivindicações de representação rompem seus limites e se tornam mais abertos e segmentados por temas e novos sujeitos. Nestas discussões, a mídia revela toda sua força como protagonista no cenário político contemporâneo. Na virada do século XX para o XXI, a discussão sobre representação política reaparece através das instituições representativas como mediadoras entre o Estado e a sociedade, reforçando o papel da esfera pública nos debates. Também neste período começam a aparecer estudos que se concentram na inclusão e exclusão de grupos marginalizados, gerando novas formas de abordagem teórica sobre a representação (FABRINO, 2008; CHADWICK,2006; AVRITZER, 2007). As instituições representativas passaram por mudanças importantes que forçam a inclusão do caráter informal discursivo em uma esfera marcada pelo pluralismo e diversidade, como agentes que se auto autorizam (ONGs, fundações, grupos de interesses) e entidades que representam (fóruns deliberativos, painéis, conferências temáticas). Nesta revisão histórica, o objetivo não é discutir detalhes sobre estas teorias e sua validade na formulação dos conceitos de democracia e de representação, mas revelar o papel fundamental e central da mídia e, consequentemente, da opinião pública, nestas discussões, que foi ganhando espaço nas últimas décadas. É através da visibilidade midiática, da potencialização da opinião pública e das transformações impactadas pela centralidade da mídia nos processos sociais, econômicos e políticos, que estas discussões ganham força, forçando que os significados de representação política passem a ter novas leituras e perspectivas relacionais. Percebe-se, com isso, o papel cada vez mais ativo e presente da comunicação pública neste processo de lutas simbólicas através das arenas midiáticas. Se os meios massivos comerciais têm o poder de fiscalizar e monitorar a sociedade, denunciando e cobrando ações em prol da democracia, a mídia institucional trabalha no sentido inverso, ao construir simbolicamente uma ideia positiva de instituições, líderes políticos e governos, podendo inclusive construir uma realidade que lhes convém, maquiando o verdadeiro sentido e percepção dos cidadãos em relação à democracia e, consequentemente, à representação política.

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Comunicação pública no cenário político atual Os governos, partidos e líderes políticos utilizam cada vez mais as pesquisas de opinião, estratégias de marketing e gastos em altas somas em publicidade e mídia institucional para assegurar a simpatia e o apoio de públicos específicos e de determinados segmentos sociais. O que vale é a sedução do discurso publicitário, do agregar valores às imagens mais belas e criar mecanismos de identificação, dentro de uma lógica de mercado, que passam muito mais por questões subjetivas do que ideológicas. Trata-se de um trabalho contínuo e monitorado de comunicação para que surta seus reais efeitos de aproximação do cidadão eleitor de seus representantes, além de se tornar uma ferramenta importante para amenizar crises, escândalos políticos e garantir o consenso e a aprovação de mandatos e administrações públicas. Atualmente, os resultados das eleições são bons exemplos que demonstram que o êxito se dá não pela melhor proposta para uma comunidade, um estado ou um país, mas o candidato que teve um melhor desempenho frente às câmeras, uma imagem melhor nos outdoors ou que tem um discurso publicitário que emociona mais o eleitorado. A comunicação se reverte de uma arma estratégica, desde a sua utilização nas campanhas políticas até no desenvolvimento dos mandatos parlamentares e executivo. De acordo com Duarte (2002) a comunicação pública, no início de sua história, era considerada uma ferramenta autoritária de controlar e cercear a opinião pública e o direito de expressão, como o conhecido Departamento de Imprensa e Propaganda, da época de Vargas, em meados da década de 30. No entanto, nos dias atuais, este tipo de comunicação aparece como uma importante estratégia no disputado mercado político para o consumo dos cidadãos eleitores. O aprimoramento e o entusiasmo acadêmico sobre o tema levou inclusive a formação de uma literatura específica e teorias que tratam das peculiaridades da comunicação pública, visto que controla os fluxos informativos dos diferentes agentes envolvidos no processo de interação entre Governo, cidadãos e sociedade civil. Duarte (2002) enfatiza que a importância de qualificar a gestão pública para garantir transparência, identificar as demandas sociais, definir políticas públicas integradas com a comunidade, promover o interesse público, estimular a participação popular, garantir o debate público, estimular a cidadania, dentre outros quesitos, reforçam a ênfase na comunicação pública na contemporaneidade para dinamizar as relações de poder entre representantes e representados. Zémor (1995) acrescenta que o exercício da comunicação pública pode contribuir com a promoção do conhecimento cívico e, com isso, garantir um debate público sobre questões importantes da sociedade, reforçando uma troca entre governantes e governados. É através dos processos comunicativos que as organizações, sejam públicas ou privadas, podem absorver as identidades múltiplas dos cidadãos e transformá-las em discursos que estabeleçam uma ponte entre os indivíduos, enquanto consumidores, funcionários, cidadãos e elas próprias. Se o próprio conceito de comunicação passa pela ideia de “tornar comum”, esta aproximação discursiva é o trunfo das organizações modernas (públicas ou privadas) para reforçar suas ideologias. Neste contexto, os inúmeros estudos empíricos no campo da comunicação revelam a conotação política destas ações, nesta interface, cada

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vez mais crescente, entre os campos político e midiático. Nesta perspectiva, a disputa simbólica sobre as relações de poder entre representantes e representados se dá na arena midiática. Por um lado, os meios massivos comerciais selecionam e enquadram notícias conforme seus interesses ligados a grupos econômicos e políticos e, por outro lado, cada segmento político busca reposicionar estas notícias e acontecimentos – até mesmo criando factóides – para construir uma representação política simbólica que permita o consenso e aprovação dos seus públicos alvos. House organs, releases, press kit, entrevistas coletivas, vídeos institucionais, portais com múltiplas plataformas midiáticas, twitter, redes sociais, dentre inúmeros outros produtos e serviços produzidos pelas assessorias de comunicação, cada vez mais técnicas e especializadas, para potencializar a comunicação pública, forçam enquadramentos importantes nesta disputa midiática com os meios massivos comerciais. Um fato incontestável é que, nos dias atuais, as prefeituras, governos do estado e federal são os maiores empregadores destes profissionais da comunicação - jornalistas, publicitários, designers gráficos, webdesigners, fotógrafos, dentre outros-, o que revela a importância de se construir simbolicamente dispositivos de publicização de suas ações e políticas públicas, visando o consenso, a credibilidade, o apoio político dos cidadãos e a construção simbólica da representação política. Diante do exposto, o conceito de representação política se reverte de um verniz produzido por todo este aparato comunicacional. A construção simbólica desta relação entre representantes e representados se torna o desafio maior do que algumas problemáticas tradicionais apontadas pelas Ciências Políticas como autorização, prestação de contas, escolha dos candidatos, independência dos políticos em relação aos seus representados, visto que a mídia prioriza determinados elementos e cria realidades que podem inclusive maquiar esta noção de legitimidade da representação política nas sociedades contemporâneas, trabalhando de forma simbólica mecanismos de identificação.

A constante intercessão entre os campos político e midiático

1-O conceito é baseado na obra Frame analysis, do sociólogo americano Erving Golffman (SOARES, 2009, p.57)

Nesta abordagem da centralidade da mídia no contexto político há de se considerar as representações jornalísticas e as suas práticas discursivas na construção de significados e visões do mundo, interferindo na produção de sentidos dos indivíduos e, consequentemente, na prática social dos mesmos, refletindo diretamente no cenário político, através de processos de agendamento e enquadramentos. Diante disso, os meios de comunicação são considerados importantes formas de representação política por conseguirem com eficácia disseminar conteúdos simbólicos, priorizando determinadas temáticas em detrimento de outras, e, definindo um agendamento do que é importante para a sociedade por conta da sua visibilidade midiática. E a partir disso, um outro processo se inicia, que é o enquadramento, “marcos interpretativos construídos socialmente, que permitem as pessoas atribuírem sentido aos acontecimentos e às situações sociais”1. A ênfase a determinadas palavras, imagens, metáforas e retóricas em um discurso acaba por legitimar determinadas

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ideias, obscurecendo outras menos visíveis nestas construções textuais e/ou imagéticas, construindo percepções direcionadas de realidade, de acordo com interesses de grupos. Outros debates contemporâneos sobre o impacto da mídia na esfera política são alguns resultados de estudos que vêem demonstrando que as pessoas estão consumindo menos notícias e mais entretenimento (PRIOR, 2007; BENNET & IYENGAR, 2008), com a ampliação dos canais de televisão pagos, que oferecem um leque maior de programação para as pessoas, o que pode estar gerando uma apatia política crescente. Prior (2007) afirma que com o advento da tv mudou a exposição de notícias, conhecimento e participação políticos. Em sua opinião, a maior possibilidade de escolha das programações da mídia vem impactando o consumo de notícias políticas em prol do entretenimento.Prior (2007) enfatiza que a influência do ambiente de mídia sobre a democracia é um fato e que o declínio da audiência de notícias da rede, ao longo das últimas décadas, pode ser analisado como um sintoma do enfraquecimento pelo interesse político e um constante desaparecimento do dever cívico de participação e de envolvimento com as questões públicas. De acordo com Bennet e Iyengar (2008) as novas tecnologias estão afetando a composição dos públicos, a prestação de informações e a experiência política, transformando a mídia de massa em uma platéia fragmentada. Estes autores também acreditam que o desprendimento individual dos grupos e o aumento da capacidade de consumidores escolherem entre uma infinidade de mídia impactam o efeito destas mídias na sociedade. Para eles, este novo cenário acaba por criar uma desconfiança dos políticos, uma noção de que os processos são excessivamente manipulados por consultores e líderes, além de dar uma sensação nos indivíduos de exclusão do processo, gerando apatia política. No entanto, em posição contrária a estes estudos, Holbert, Garrett e Gleason (2010) acreditam que a exposição constante aos conteúdos da mídia podem reforçar atitudes, garantir uma exposição seletiva, tendo as novas tecnologias com um papel determinante na formação dos ambientes políticos. Para os autores, o deslocamento do conteúdo de notícias para o entretenimento não se traduz automaticamente em um enfraquecimento dos efeitos políticos da mídia, uma vez que o cenário atual fornece aos cidadãos uma gama cada vez maior de opções de entretenimento que se concentra as questões políticas. Nestas considerações, é relevante considerar que os campos midiáticos e políticos se misturam, oferecendo uma base cognitiva para que os indivíduos se posicionem na sociedade, façam suas escolhas, construam seus discursos e participem ou não da vida social, da política, da economia e da cultura. E quando falamos em mídia não estamos delimitando os meios massivos como jornais, tvs, rádio e Internet, mas também ao conteúdo produzido por determinadas instituições e organizações, que são também importantes fontes de agendamento, tendo uma postura ativa ou reativa em relação aos enquadramentos dos meios massivos na sociedade, buscando sensibilizá-los na tentativa de incluir ou excluir temáticas, o que ocorre com muitos partidos políticos através de sua imprensa partidária, principalmente, em períodos eleitorais. Miguel (2003) aponta que:

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Os diversos grupos de interesse presentes na sociedade disputam a inclusão ou exclusão de temas na agenda, bem como sua hierarquização, mas quem ocupa a posição central são os meios de comunicação de massa, conforme tem demonstrado a ampla literatura sobre a chamada agenda-setting (definição de agenda). A mídia é, de longe, o principal mecanismo de difusão de conteúdos simbólicos nas sociedades contemporâneas e, uma vez que inclui o jornalismo, cumpre o papel de reunir e difundir as informações consideradas socialmente relevantes. (...) os grupos de interesses e mesmo os representantes eleitos, na medida em que desejam introduzir determinadas questões na agenda pública, têm de sensibilizar os meios de comunicação. (MIGUEL, 2003, p.132)

2-O conceito de Cenário de Representação Política (CR-P) foi elaborado por Venício Artur de Lima, em 1994, como uma estrutura simbólica, contraditória e dinâmica, que assinala os limites os quais se dão os conflitos políticos. (...) lugar e objeto da articulação da hegemonia, no qual se refletem e se constroem os significados da política ( SOARES, 2007, p.157)

Sob esta ótica, várias investigações empíricas têm revelado como os meios de comunicação foram parciais em relação às disputas eleitorais nas últimas décadas e na construção de cenários de representação política2, apoiando candidatos comprometidos com a elite econômica do país para a manutenção de seus interesses. Mas, percebe-se que apesar do inegável poder dos meios, como introduzimos no início deste texto, um complexo sistema de fatores revelaram que estes meios não são tão definidores na política, como alguns teóricos apregoavam, uma vez que existem filtros e processos de seleção do que os cidadãos ouvem, assistem, lêem, fragmentando cada vez mais as demandas e a opinião pública. E nesta perspectiva, as disputas midiáticas para construir sentido às ações políticas se tornam cada vez mais freqüentes e acirradas.

Conclusão Os debates sobre os impactos da mídia na percepção que a sociedade civil tem da política, dos partidos e de seus líderes refletem que os significados e sentidos de democracia e de representação política estão cada vez mais deslocando seus focos de estudos para o campo da Comunicação. Por mais que os aportes teóricos das Ciências Políticas norteiem as discussões, o elemento mídia é crucial nesta nova conjuntura, reconfigurando todo o entendimento da relação de poder entre representados e representantes. Com isso, é necessário que novas pesquisas empíricas fundamentem esta intercessão constante dos campos político e midiático, na medida em que as novas tecnologias reproduzem, a cada dia, um novo cenário em que a excessiva demanda por informações na sociedade moderna resulta em um sentimento confuso de descrédito e desconfiança quanto às questões políticas e seus representantes. No entanto, ao mesmo tempo reforça um conhecimento político, uma identidade e um orgulho cívico criados pela gama de informações proporcionada pelas inúmeras mídias, que fazem com que os indivíduos filtrem e selecionem aquelas que sejam mais afins com suas atitudes. E é justamente nesta fragmentação de audiência, que vão sendo criadas as grandes disputas simbólicas nas arenas midiáticas. Por um lado, os meios massivos tentam denunciar, informar, fiscalizar e monitorar os chamados centros do poder. Por outro lado, a comunicação pública busca reforçar a transparência de ações, promover a cidadania, a consulta pública aos segmentos envolvidos para tomar as melhores decisões políticas. No entanto, o forte do trabalho de

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uma comunicação pública é criar o consenso, a aceitabilidade das ações políticas, de utilizar de forma estratégica a contra informação para amenizar escândalos e crises, de tecer laços de pertencimentos dos representantes junto aos seus representados. Nesta manobra estratégica, permitida pela potência e influência da mídia no comportamento das pessoas na sociedade contemporânea, fica o questionamento se estes vernizes aplicados nas administrações públicas, nos grupos e líderes políticos não colocam em risco à democracia e a legitimidade da representação política. Por mais que os cidadãos não sejam ingênuos e têm contato com uma infinidade de informações de vários canais midiáticos, podendo comparar conteúdos e chegar a uma lógica política, filtrando e selecionando o que acreditam, é fato que o poder midiático de agendar e enquadrar assuntos torna-se cada vez maior na sociedade, interferindo de forma impactante no cotidiano das pessoas. E neste emaranhado de estratégias midiáticas e jogos do poder, o sentido simbólico de democracia e de representação merecem novas leituras para que possam dar conta dos desafios teóricos para entender o dinamismo e a lógica da conjuntura política atual.

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Observatório da radiodifusão pública na América Latina: balanço de um ano de atuação Observatorio de la Radiodifusión Pública en América Latina Observatory of Public Broadcasting in Latin America.

Nelia R. Del Bianco Professora da Universidade de Brasília, Brasil. Doutora em Comunicação pela ECA-USP e Pós-doutorado pela Universidade de Sevilha. Cofundadora do Observatório de Radiodifusão Pública na América Latina. E-mail: nbianco@uol.com.br

Carlos Eduardo Esch Professor da Universidade de Brasília, Brasil. Doutor em Sociologia e Ciências da Comunicação pela Universidade Complutense de Madri. Cofundador do Observatório de Radiodifusão Pública na América Latina. E-mail: caduesch@hotmail.com

Sonia V. Moreira Professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil, Doutora em Comunicação pela ECA-USP. Cofundadora do Observatório de Radiodifusão Pública na América Latina. E-mail: soniavm@gmail.com

Revista Eptic Online Vol.15 n.2 p.58-73 mai-ago 2013 Recebido em 25/02/2013 Publicado em 15/05/2013


Observatório da radiodifusão pública na AL... - Nelia Del Bianco, Carlos Esch, Sonia V. Moreira

RESUMO Este artigo traz um balanço sobre a atuação do Observatório da Radiodifusão Pública na América Latina durante um ano. Relaciona ações de acompanhamento de notícias, análises dos sistemas de radiodifusão e projetos de pesquisa em desenvolvimento. Apresenta uma síntese dos resultados parciais alcançados em investigações como mapeamento da estrutura de funcionamento e de gestão da radiodifusão pública; pesquisa de opinião com o objetivo de verificar o nível de satisfação do cidadão brasileiro em relação as rádios e TVs públicas; e análise de conteúdo da programação de emissoras no continente.

PALAVRAS-CHAVE radiodifusão pública, políticas de comunicação, programação, rádio e TV pública.

RESUMEN El articulo ofrece una visión general sobre las acciones del Observatorio de la Radiodifusión Pública en América Latina durante su primer año de funcionamiento. Relaciona las acciones de seguimiento de noticias, el análisis de los sistemas de radiodifusión y los proyectos de investigación en desarrollo. Presenta un resumen de los resultados parciales obtenidos en las investigaciones como el perfilamiento de las estructuras de operación y administración de la radiodifusión pública, una encuesta como el objetivo de verificar el nivel de satisfacción del ciudadano con respecto a la radio e televisión pública brasileña, y una análisis de contenido de las programaciones de las estaciones en el continente. PALABRAS CLAVE Palabras-clave: radiodifusión pública, políticas de comunicación, programación, rádio y TV pública.

ABSTRACT This article provides an overview on the performance of one year of the Observatory of Public Broadcasting in Latin America. It reports actions such as follow-up news, analysis of broadcasting systems and research projects in development. It also summarizes the results attained in carried investigations, including a mapping of the structure of operation and management of public broadcasting; a survey aimed to verify the level of satisfaction regarding the Brazilian public radio and television, and content analysis of the programming in stations all over the continent. KEYWORDS public broadcasting, communication policies, content, public radio and television

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No final década de 90, registra-se no contexto ibero-americano a emergência de um novo tipo de organismo ou instituição direcionado(a) à observação e análise do comportamento de setores, atividades e serviços relacionados à informação, à comunicação e à cultura. Geralmente denominados como observatórios, esses organismos monitoram empresas em geral e instituições governamentais que desenvolvem um papel estratégico no acompanhamento de políticas públicas, na transmissão de comportamentos e valores ou monitoram a economia sob a perspectiva da produção, emprego e consumo. A emergência desses espaços de análise insere-se no âmbito de um movimento social mais amplo, no qual administrações públicas, organizações de caráter supranacional, instituições acadêmicas, sindicatos e fundações da mais variadas vertentes, criam instrumentos de acompanhamento de fenômenos sociais, tecnológicos e políticos de tipologias distintas com o objetivo de monitorar de forma sistemática o cotidiano e a evolução de discussões sobre setores e temáticas específicas. No campo da comunicação, o monitoramento surge diante da preocupação com a capacidade dos meios massivos de influir no pensamento do público ao qual são dirigidos. Por essa razão, os observatórios se especializaram em organizar, classificar, quantificar e avaliar a abordagem que determinados temas ou questões sociais recebem na mídia. Três temáticas têm dominado as análises dos observatórios conforme identificaram Albornoz e Herschmann (2006) em pesquisa destinada a conhecer o perfil e a atuação dos observatórios de informação, comunicação e cultura estabelecidos nas principais cidades de onze países ibero-americanos: a) os que são dedicados a avaliar as tendências das indústrias culturais e a colaborar na formulação de políticas culturais; b) os que acompanham o desenvolvimento da Sociedade da Informação e a implantação de novas tecnologias de informação e comunicação; e c) os observatórios direcionados a fiscalizar os conteúdos veiculados pelos meios de comunicação. Do conjunto analisado não foi encontrado observatório algum com foco exclusivo na radiodifusão pública, ainda que em alguns o tema chegou a ser abordado de forma transversal. 1 -Integram o Observatório os bolsistas de iniciação científica da Fundação Ford Beatriz Barbosa Libonati da Silva (UERJ), Daphne Arvellos Dias (UnB), Lorena Forti (UERJ), Monique Silva Rodrigues (UnB), Catarina Cristina Ribeiro, (UnB), Nathália Koslyk Pontes (UnB) e Priscila Raquel Crispi Viegas (UnB) e a bolsista de iniciação científica do CNPq Lorena Forti.

Com o propósito de cobrir essa lacuna, pesquisadores das universidades de Brasília e do Estado do Rio de Janeiro, autores deste artigo, criaram em 2011 o Observatório da Radiodifusão Pública da América Latina com apoio da Fundação Ford1 . Trata-se de um espaço público online (www.observatorioradiodifusao.net.br), de tipo think tank, que promove discussões, análises e diagnósticos referentes aos avanços e impasses na estruturação e manutenção dos sistemas de radiodifusão pública na América Latina, utilizando para isso indicadores e ferramentas metodológicas de caráter quantitativo e qualitativo. Seu objetivo é tornar-se uma instância geradora de informações que subsidiem a academia, meios de comunicação e/ou organizações que atuam na área da comunicação ou tenham interesse em questões pertinentes à área, seja por meio de diagnósticos, notícias e pesquisas que promovam uma compreensão ampla, abrangente e realista do contexto legal, econômico e político da radiodifusão pública nos países da região. Como espaço permanente de discussão online, o Observatório dispõe de ferramentas de compartilhamento de conteúdos, postagem de comentários, realização de enquetes e fóruns de discussão abertos aos interessados, além de realizar o acompanhamento diário de

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fatos e notícias sobre o tema. Ao mesmo tempo em que acompanha e analisa notícias, o Observatório mantém uma biblioteca online com referências sobre mais de 200 títulos entre artigos, livros, teses e dissertações publicados na área. No período compreendido entre 2011 e 2012, o Observatório publicou mais de 250 notícias referentes a temas diversos, entre os quais: estratégias de expansão dos canais de rádio e TVs, mudanças no marco legal do setor em vários países, digitalização da transmissão de canais públicos, constituição de novos mecanismos de financiamento do sistema público, renovação da programação com lançamento de editais de produção, coberturas jornalísticas especiais e reestruturação administrativa e de gestão de emissoras. A criação desse espaço de discussão foi motivada pela percepção de que estavam em andamento mudanças no cenário da radiodifusão pública do continente desencadeadas a partir da ascensão ou reafirmação no poder de governos de partidos de esquerda nas duas últimas décadas. Em geral, são governos que buscam promover rupturas com o passado político imediato e se caracterizam pela adoção de políticas de corte eminentemente social, como programas de transferência direta de renda com o objetivo de combater a pobreza. Outra marca distintiva desses governos é a postura contrária à política neoliberal da década de 90, seja na condução da economia ou na forma de gestão da estrutura estatal. Na elaboração e consecução de políticas públicas, esses governos fazem uso de mecanismos de consulta aos cidadãos, tais como consulta pública, plebiscito e referendum popular (RODAS, 2009, p. 55-57). Por estarem comprometidos historicamente com grupos de defesa da democratização dos meios de comunicação, a maioria dos governantes de esquerda iniciou processo de reorganização dos canais educativos, culturais ou estatais, aproximando-os de preceitos que os caracterizam como serviço público. A reforma em desenvolvimento permite afirmar que existem tentativas consistentes de implantar mudanças em vários países – algumas tímidas e outras audazes – nos marcos normativos da mídia pública. A forma como esse processo está ocorrendo pode dar pistas sobre o grau de maturidade de cada país para estabelecer consenso social em torno da proposta de oferecer à população um serviço público de comunicação independente e democrático.

Pesquisas em andamento Um dos objetivos do Observatório da Radiodifusão Pública é promover reflexão contínua sobre as características conceituais que marcaram a institucionalização e o funcionamento das emissoras públicas na América Latina, considerando as múltiplas características culturais e políticas do continente. Para cumprir esse objetivo tem realizado um conjunto de pesquisas qualitativas e quantitativas sobre o setor, conforme destacado a seguir.

2 - Fazem parte do Tratado Constitutivo da União de Nações Sul-Americanas Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Chile, Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Uruguai, Suriname e Venezuela.

1. Marco conceitual dos sistemas públicos de radiodifusão latino-americanos.

Avalia os sistemas de radiodifusão pública dos países que integram a Unasul2 , com suas respectivas emissoras de rádio e televisão, visando identificar modelos de gestão, formas e fontes de financiamento, processos de produção e distribuição de conteúdos, além de verificar a existência de mecanismos de participação da sociedade na gestão e avaliação

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da qualidade da programação. Para essa análise, tomou-se como referência os princípios estabelecidos pela Unesco (2001) que definem as características fundamentais que devem marcar o funcionamento da radiodifusão pública: a) universalidade – ser acessível a todos os cidadãos independente de sua posição social ou poder econômico; b) diversidade – refletir interesses públicos diversos (e divergentes) ao oferecer ampla variedade de programas no que se refere a gêneros, público e temas abordados; c) independência – operar como fórum no qual as ideias possam ser expressadas livremente, o que significa independência contra pressões financeiras, comerciais ou influência política; d) diferenciação – oferecer um serviço distinto das outras emissoras, não se limita a produzir programas para audiências negligenciadas por outra mídia ou a abordar assuntos ignorados pela mídia tradicional de informação; trata simplesmente de um modo de organizar e produzir diferente, sem exclusão de qualquer gênero. 3 - Embora se possa atribuir às emissoras comunitárias o caráter público, elas não constituem parte do estudo porque pertencem ao campo da direito privado, ou seja, estão sob controle de fundações e/ou associações de moradores que, em tese, podem gerir a emissora para atuar em defesa de interesse social e facilitar o acesso não discriminatório do cidadão a meios de comunicação. No entanto, ocorre que indivíduos e instituições – por interesses políticoseleitorais, financeiros, religiosos ou de outro tipo – algumas vezes se apropriam do espectro de radiodifusão comunitária com outras finalidades que não sejam o interesse da comunidade na qual está inserida.

4-Não fazem parte desta amostra Suriname e Guiana.

5-O Observatório da Radiodifusão Pública traz uma análise do sistema de cada país com suas respectivas emissoras na seção ‘países’.

A partir dessa referência foram analisadas normas, leis e diretrizes que constituem o marco regulatório da mídia pública em cada país. Dentro de cada sistema foram estudadas ainda 140 emissoras classificadas como públicas, selecionadas a partir dos seguintes critérios: a) as que estão sob controle do Estado direta ou indiretamente, seja por meio de concessões para uso sem fins lucrativos a fundações, empresas e universidades públicas; e b) as que recebem financiamento público3 . No período de 2011-2012, a análise abrangeu a totalidade das rádios e TVs públicas de 10 dos 12 países da Unasul4 , com exceção do Brasil que, por possuir o maior número de emissoras, o mapeamento alcançou até 2012 um terço das rádios (80) e dois terços das TVs (35)5 .

2. Cidadão e meios públicos no Brasil.

Pesquisa de opinião com o objetivo de verificar o nível de satisfação do cidadão brasileiro em relação às emissoras públicas de rádio e televisão. Faz um levantamento de distintas posturas e opiniões da audiência sobre o perfil da programação, avalia o funcionamento, o financiamento e a qualidade da produção das emissoras públicas. A investigação é realizada pela Internet de modo que ouvintes e telespectadores, de qualquer parte do país, possam participar acessando o link: https://pt.surveymonkey.com/s/cidadaoemeiospublicos. Trata-se de um estudo inédito e de caráter aprofundado, o primeiro do gênero com abrangência nacional, com questionário contendo mais de 30 perguntas sobre o tema. A meta é conseguir a participação de 2.500 ouvintes/telespectadores até o final de 2014.

3. Diversidade e processos participativos em emissoras públicas de rádio e TV

Análise da ecologia de mídia, da diversidade de princípios e de programação dos sistemas midiáticos identificados como públicos. Trata-se de um estudo de campo (observação e análise de extratos da programação) em que se verifica como as emissoras identificadas como públicas “praticam” a diversidade nas suas produções. Aspectos da produção de emissoras da Argentina, Colômbia, Equador e Venezuela foram analisados em 2012. A pesquisa será estendida aos demais países em 2013.

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4. Mapeamento das condições técnicas de funcionamento de rádios públicas e sua adaptação ao digital 6-Ver resultado da pesquisa em BIANCO, N.R.D e ESCH, C.E. Rádios Públicas Brasileiras: condições de funcionamento, gestão e adaptabilidade à tecnologia digital. Anuário Internacional de Comunicação Lusófona 2012, nº 10, p. 85-99. Disponível em http://www. anuariolusocom.blogspot. com.es/

A pesquisa realizada em 2011 mapeou as condições de funcionamento, financiamento e gestão de 51 das 80 emissoras de rádios públicas brasileiras associadas a ARPUB - Associação das Rádios Públicas do Brasil. Foram avaliados impasses e oportunidades que impactam na sustentabilidade dessas emissoras frente aos desafios que se apresentam com a digitalização da transmissão e a convergência midiática. Observou-se que o setor está em processo de reorganização impulsionado, em parte, pelas mudanças na forma de gestão no âmbito das rádios sob controle do governo federal6 . 5. Acervo de áudio das rádios públicas do Brasil

Em parceria com Associação das Rádios Públicas do Brasil (ARPUB), o Observatório realizou em 2012 um mapeamento dos acervos de áudio das rádios públicas brasileiras, visando saber que tipo de material possuem armazenado e qual a política para sua preservação e manutenção. Com a pesquisa, obteve-se um diagnóstico sobre a situação atual dos acervos que fornecerá subsídios à elaboração futura de um projeto nacional de recuperação e digitalização da memória produzida pelo rádio público. Participaram da investigação 51 das 80 emissoras associadas à ARPUB.

6. Radiodifusão pública e os desafios da comunicação digital

As mudanças ocorridas no panorama audiovisual nos últimos anos em nível mundial, com o desenvolvimento das tecnologias digitais, das plataformas de propriedade pagas e dos novos serviços de comunicação online, também têm afetado o tradicional duplo sistema de radiodifusão e a concorrência editorial (em termos de qualidade e diversidade dos conteúdos), tornando necessário aos organismos de radiodifusão públicos e privados diversificar as suas operações e encarar novas plataformas de distribuição. Toby Mendell (2011, p.19-20) sugere que, com o uso de novas plataformas digitais, os meios públicos possam constituir um espaço de credibilidade e confiabilidade e desempenhar o papel de construir pontes em meio à fragmentação da mídia. Significa utilizá-las para aumentar a acessibilidade dos seus serviços para oferecer novas opções, incluindo os serviços de mídia interativos, de modo a alcançar todos os públicos e, em particular, os jovens. O Observatório já fez um primeiro mapeamento sobre o uso de plataforma multimídia (site, redes de sociais, canais de interatividade e interação) em 140 rádios e TVs. Em 2013 pretende aprofundar a análise para entender como as emissoras aproveitam o ambiente digital para ampliar a prestação de serviços e cumprir suas competências como serviço público.

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O cenário contemporâneo da radiodifusão pública Os resultados parciais das pesquisas em andamento e o acompanhamento diário de notícias sobre o setor permitem evidenciar cinco aspectos que caracterizam a transformação dos sistemas de radiodifusão, que evoluem de uma perspectiva marcada pelo caráter educativo/cultural/governamental para uma noção de serviço público (BIANCO, ESCH E MOREIRA, 2012). Entre os principais pontos destacam-se os listados a seguir. 1. Radiodifusão pública é uma novidade na América Latina

O estudo sobre marco conceitual que preside os sistemas públicos de radiodifusão indica que a noção de radiodifusão pública, de acordo com as características apontadas pela UNESCO, ainda é uma novidade e um desafio para grande parte da América Latina. Para mudar é preciso enfrentar o passado, considerando que a maioria das emissoras não comerciais surgiu de iniciativas de governos ou de instituições vinculadas ao aparato estatal e, nesta condição, herdaram uma estrutura administrativa centralizada, marcada pela atuação sem independência editorial e financeira, pela não submissão a mecanismos democráticos de transparência e accountability. Na América Latina, os sistemas de radiodifusão não comercial têm sido estruturados com base em duas tradições: 1) associado à noção de educativo e cultural; e 2) vinculado à agenda governamental e estatal. As emissoras educativas inicialmente tiveram como foco oferecer programas de ensino e aprendizagem que pudessem reduzir o analfabetismo e elevar o nível educacional, visando facilitar a introdução de novas tecnologias consideradas indispensáveis ao desenvolvimento da região, especialmente nas décadas de 60 e 70. Passada essa fase, dedicaram-se ao conteúdo cultural e musical. As emissoras estatais, dependentes de recursos do orçamento do Estado para o seu funcionamento, converteram-se em porta-vozes de governos e foram, em muitos casos, utilizadas como meio para atingir fins políticos ou promover autoridades. Seu teor ‘oficialista’ permaneceu inalterado tanto em governos ditatoriais como em gestões democráticas, com algumas variações nas instâncias de influência por parte do ouvinte/ espectador como, por exemplo, no compromisso com a diversidade da programação, com as formas de acesso e participação da audiência etc. Essa herança é a parte mais difícil de transformar no momento, em que pesem iniciativas de aproximação dos princípios da radiodifusão pública em alguns países, entre os quais Brasil, Argentina, Equador, Colômbia e Chile. Ocorre que as emissoras educativas e governamentais amargaram a perda gradual de audiência e de credibilidade e, ainda, tiveram sua sustentabilidade ameaçada, nas décadas de 1980 e 1990, pela crise financeira mundial que impulsionou mudanças estruturais na definição do tamanho do Estado (BRESSERPEREIRA e GRAU, 1999). Não havia respaldo político para propostas de investimento de dinheiro público em canais operados de modo ineficiente e com audiência insatisfatória. Em consequência, as emissoras passaram a enfrentar, em diferentes graus a depender do país, uma crise estrutural decorrente de diversos fatores, como aponta o pesquisador chileno Valério Fuenzalida (1998): a) má administração industrial/empresarial em consequência de uma direção executiva sujeita à interferência política que gera descontinuidade

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de metas, com muitos casos de corrupção e de irresponsabilidades impunes; b) falta de sustentabilidade econômica, agravada pela estratégia de subsistir ignorando os interesses da audiência e sem estabelecer mecanismos para diversificar o financiamento; c) programação pouco atraente, que não seduz o grande público, não renova a audiência e a mantém restrita à um caráter marginal. Outro aspecto a ser considerado é a posição marginal que as emissoras educativas e governamentais ocuparam historicamente como parte do sistema de radiodifusão. Na maioria dos países da América Latina, o sistema é dominado por uma mídia comercial forte, influente, concentrada nas mãos de poucos e que detém a maior parcela da publicidade tanto da iniciativa privada como da estatal. As emissoras públicas – que poderiam atuar por complementaridade, oferecendo conteúdos para audiências negligenciadas pela mídia comercial, distinguindo-se pela diferenciação da programação, pluralismo de ideias e produção jornalística independente – acabaram sendo marginalizadas seja pela falta de investimentos para renovação de sua produção ou pela instrumentalização política de governos. Com o tempo, a maioria ficou estigmatizada como sinônimo de programação de baixa qualidade técnica, sem atrativos e oficialista.

2. Radiodifusão pública é um conceito em construção na América Latina

A partir das pesquisas realizadas é possível identificar um conjunto de iniciativas que visa enfrentar esse passado de atrelamento governamental e aproximar as emissoras do sistema da noção de público. As cinco tendências de mudança identificadas nesta análise ocorrem de forma desigual na região (BIANCO, ESCH E MOREIRA, 2012), considerando: 7 -Ver “Bolívia aprova lei que dá mais poder a Morales sobre a imprensa”. O Globo de 29.07.11. Disponível em http://oglobo.globo. com/mundo/bolivia-aprovalei-que-da-mais-podermorales-sobre-imprensa2709810 8-O texto legal abrange temas como democratização e universalização; serviços de interesse público; órgãos colegiados; defensoria pública de comunicação audiovisual; abono social; desmonopolização; participação de cooperativas; conteúdos nacionais; emissoras de rádio e TV estatais participativos; vozes da sociedade civil; televisão e infância e meios universitários e educativos. 9 -Em entrevista concedida a CNN em espanhol em 10.04.2012. Disponível em http://www.youtube.com/ watch?v=oENxzcQ-DuE

a) Construção de novo marco regulatório

Observa-se que há um movimento em busca do equilíbrio para o perfil do sistema de radiodifusão, no sentido de redimensionar o espectro radioelétrico de modo mais igualitário entre as emissoras públicas, estatais, comunitárias e privadas. Trata-se de uma mudança estrutural chave, que pode ser o início de uma “reforma agrária do ar”, movimento que defende o rompimento com o histórico monopólio do setor privado. São exemplos dessa iniciativa: i.) a nova lei de telecomunicações da Bolívia (2011) reserva para o Estado 33% do espectro eletromagnético, outros 33% para o setor privado e 34% para organizações sociais e indígenas7 ; ii.) na Argentina, a Ley de Servicios de Comunicación Audiovisual nº 26.522, em vigor desde 20098, estabelece que os três segmentos – governo, empresas privada e organizações sociais – possuem igual condição na disputa por um canal ou frequência no espectro. Não se trata de uma divisão igualitária do espectro, explica o pesquisador argentino Guillermo Mastrini9, mas significa que uma em cada três licenças para explorar um canal ou frequência deverá ser destinada ao setor das organizações sociais; iii) Desde 2009 tramita na Assembleia Nacional Equatoriana o texto de nova Lei de Meios que prevê a regulação das frequências, com a distribuição de forma equitativa de 33% entre os setores público, privado e comunitário. Proposição nesse sentido também está em discussão no Uruguai desde 2012.

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Observatório da radiodifusão pública na AL... - Nelia Del Bianco, Carlos Esch, Sonia V. Moreira b) Mudanças na natureza jurídica das emissoras 10-A experiência de constituição de empresas não é nova na América Latina. Em 1992 o Chile criou uma companhia para administrar a TV Nacional do Chile (TVN), empresa autônoma do Estado, dotada de patrimônio próprio, que busca se auto financiar. De acordo com a sua lei de criação a empresa não pode depender de recursos públicos do Estado. Embora busque atuar com independência, o presidente da emissora é escolhido diretamente pelo Presidente da República e os outros seis membros da diretoria são designados pelo Presidente com a anuência do Senado. 11- Atualmente a empresa é responsável pela Agência Brasil, Radioagência Nacional, TV Brasil, TV Brasil Internacional, Rádios MEC AM e FM, além das Rádios Nacional do Rio de Janeiro, AM e FM de Brasília, da Amazônia e do Alto Solimões. A EBC Serviços, um braço da empresa, assumiu a operação e a gestão de mais de 20 serviços prestados à Secretaria de Comunicação Social do governo federal nas áreas de televisão, rádio, clipping e publicidade, além da operação da NBR – a TV do Governo Federal.

12-Embora tenha como propósito atuar com independência, o corpo dirigente da empresa (presidente, membros dos conselhos fiscal e administrativo) ainda é nomeado, exclusivamente, por autoridades do governo federal. 13 -Lei de criação da EBC nº 11.652/2008. 14-Ministerio de Telecomunicaciones presidirá radio y televisión públicas. El Universo, 08 de janeiro de 2010. Disponível em http://www.eluniverso. com/2010/01/08/1/1355/ m i n i s t e r i o telecomunicacionespresidira-radio-televisionpublicas.html

A maioria das emissoras de rádio e TV públicas em funcionamento na América Latina está vinculada ao aparato estatal, de forma direta ou indireta, ou seja, subordinada a um ordenamento jurídico que nem sempre favorece a gestão administrativa eficiente e, sobretudo, autônoma. O caso brasileiro é emblemático porque, como regra geral, ainda que exista uma ampla sobreposição de legislação, não há padrão jurídico único para as emissoras públicas. São 17 as modalidades jurídicas que amparam o funcionamento de emissoras públicas. Soma-se a esse aparato jurídico a subordinação de parte das emissoras a secretarias de governo, prefeituras municipais, universidades estaduais e federais, entre outras instituições do aparato estatal. Para geri-las é necessário enfrentar um sistema burocrático que limita as ações de captação e gestão de recursos, contratação e demissão de funcionários e até compra de equipamentos e material de consumo. Para tentar reverter essa condição, o estatuto jurídico de empresa pública de radiodifusão tem sido o caminho adotado por alguns países para assegurar maior flexibilidade de gestão10. A experiência não é nova na América Latina. Em 1992, o Chile criou uma companhia para administrar a TV Nacional do Chile (TVN), empresa autônoma do Estado, dotada de patrimônio próprio, que buscava se autofinanciar. De acordo com a sua lei de criação, a empresa não pode depender de recursos públicos do Estado. Embora busque atuar com independência, o presidente da emissora é escolhido diretamente pelo Presidente da República e os outros seis membros da diretoria são designados pelo Presidente com a anuência do Senado. A constituição de empresas públicas tem sido uma oportunidade para se fazer o reordenamento jurídico de emissoras estatais em alguns países. No caso brasileiro, por exemplo, a criação da Empresa Brasil de Comunicação – EBC foi a alternativa encontrada para unificar e gerir, sob controle social, as emissoras federais existentes11. Como empresa, a EBC passou a ter instrumentos legais para renovar a grade de programação mediante a criação do comitê de programação, de normas de concursos de produções independentes, de licenciamento eletrônico de conteúdo e também de gestão de pessoas e administração financeira. O modelo de gestão se concentra em três conselhos – administrativo, financeiro e curador – e uma diretoria executiva12. A ideia é que os conselhos se regulem entre si e regulem o andamento da empresa – financeiramente, administrativamente e, sobretudo, em relação ao cumprimento do seu compromisso social na produção e transmissão de conteúdos e no uso do seu espaço na TV e no rádio13. Postura semelhante teve o Equador, com a criação da Empresa Pública Televisión y Radio de Ecuador E.P. – RTVEcuador. Em funcionamento desde 2010, a empresa é definida por lei como de direito público, com personalidade jurídica e patrimônio próprio, dotada de autonomia financeira, econômica, administrativa e de gestão. Na prática, embora seja denominada como pública, a EPRTVEcuador possui estrutura e direção ainda dependentes do governo14. Na Bolívia, o presidente Evo Morales criou em 2009 a empresa Bolívia TV com o objetivo de recuperar o caráter governamental da emissora15. A decisão foi estratégica, para fazer

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15- No site da emissora essa característica está evidenciada: “Com a chegada do presidente Evo Morales e a aplicação da Constituição Política do Estado Plurinacional da Bolívia se começou a recuperar os valores éticos do canal estatal. Dessa maneira se determinou criar a Empresa Bolivia TV com o objetivo de refletir a realidade nacional de uma maneira concreta e veraz. A partir daí que a informação difundida pelo canal se constitui na oficial do Estado Plurinacional da Bolívia.” (tradução livre dos autores). Disponível em http://www. boliviatv.bo/ 16-Na análise não foram consideradas as emissoras que dispõem apenas de um canal de e-mail ou telefone para participação da audiência sem indícios transparentes – relatórios, por exemplo - de que opiniões e críticas sejam analisadas e consideradas na gestão da programação. 17-Ley 335, de 1996, que modifica parcialmente a Ley 14 de 1991 e a Ley 182 de 1995, ao criar a TV privada na Colômbia. Disponível em: http://www. secretariasenado.gov.co/ senado/basedoc/ley/1996/ ley_0335_1996.html.

frente aos canais privados que começaram a se multiplicar na década de 1990. A ENTB (Empresa Nacional de Televisión Boliviana), que antecedeu a Bolívia TV, mantinha uma programação informativa e educativa. Com o crescimento das redes privadas, porém, a empresa reduziu o espaço para informações estatais a fim de enfrentar a concorrência das emissoras comerciais. Depois das mudanças iniciadas por Morales em 2009, o caráter oficial voltou a prevalecer na empresa Bolívia TV. E, finalmente, na Argentina foi criada a empresa estatal Radio y Televisión Argentina Sociedad del Estado (RTA S.E.). Encarregada de gerir os canais estatais, a TV Pública Canal Siete e a Rádio Nacional, a RTA S.E. é empresa pública mas dependente do Poder Executivo Federal.

c) Instituição de mecanismos de participação social

A adoção de um modelo de gestão que incorpore mecanismos de participação da sociedade na discussão de diretrizes e políticas ainda não está totalmente disseminada na América Latina como prática que permite a consolidação da independência administrativa e intelectual de emissoras em relação ao poder estatal. Pela análise realizada, pode-se observar que os mecanismos de monitoramento e acompanhamento pelo público – ouvidorias, conselhos, clube de ouvintes, canal de atendimento ao ouvinte – estão em funcionamento apenas em 34% das TVs e 22% das rádios entre as 140 emissoras analisadas pelo Observatório16. Caso exemplar é o da Colômbia, que instituiu em lei a obrigatoriedade de uma ouvidoria em todas as emissoras públicas e privadas de TV17. Especificamente para o sistema de comunicação com o cidadão em emissoras públicas, a Colômbia criou a oficina de “Peticiones, Quejas, Sugerencias y Reclamos”. De acordo com a resolução 245, de 2011, todas as emissoras da RTVC devem disponibilizar quatro canais de acesso ao cidadão como linha telefônica gratuita, chat, correio eletrônico e caixa postal. Pelas regras ficou estabelecido o prazo de 10 dias para resposta às demandas encaminhadas pela audiência. No Brasil, a ouvidoria da EBC destaca-se pela organização e por ter regras claras de institucionalização. De acordo com norma interna referendada pelos conselhos de Administração e Curador foi estabelecido que o ouvidor-geral da empresa tem a colaboração de três ouvidores adjuntos: um para o Sistema de Rádio, um para Agência Brasil e outro para a TV Brasil. Todos eles, assim como o ouvidor-feral, têm mandatos de dois anos, requisito fundamental para que atuem com inteira independência em relação à diretoria-executiva. A função da ouvidoria na estrutura da empresa é complementar à atividade do Conselho Curador: atua na coleta e busca de respostas da diretoria executiva às críticas, reclamações e sugestões dos telespectadores, ouvintes e usuários dos canais de rádio e TV. O ouvidor presta contas aos usuários através de programas semanais de 15 minutos nas emissoras da empresa. A ouvidoria emite relatórios mensais com análise de demandas encaminhadas pelos ouvintes e, ainda, disponibiliza um canal para a audiência enviar mensagens. Além desses mecanismos internos é preciso garantias estruturais de participação pública na definição de políticas amplas para o setor. Alguns avanços foram identificados na América Latina, seja por meio da criação de agências reguladoras ou conselhos consultivos e deliberativos com representação de segmentos da sociedade. A configuração desses

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mecanismos varia de acordo com o grau de evolução do países. Há os que são meramente consultivos e outros de natureza deliberativa e/ou de fiscalização. Varia também o tipo de atuação – desde aqueles que são independentes e autônomos aos que são vinculados ao Estado. São exemplos: i) Consejo Consultivo Honorario de los Medios Públicos – criado em 2009 na Argentina, composto por 16 membros, sendo seis representantes do governo, sua missão é fiscalizar o cumprimento dos objetivos da Rádio e TV públicas; ii) Consejo Consultivo de Rádio Televisión de Perú (CONCORTV) – criado em 2004, possui nove integrantes e conta com apenas um representante do governo. Funciona como organismo autônomo e independente que contribui com o desenvolvimento da radiodifusão e melhoria da qualidade dos serviços oferecidos à sociedade; iii) O Consejo Nacional de Televisión (CNTV) do Chile opera desde 1970. É constituído por 11 membros, sendo que o Presidente do Conselho é nomeado pelo Presidente da República com aprovação do Senado. Como órgão constitucional independente possui personalidade jurídica própria e atua na fiscalização dos serviços de TV, inclusive exerce vigilância sobre o conteúdo da programação. A criação de órgãos consultivos ou agências de monitoramento representa um avanço no modelo tradicional de radiodifusão pública, mas chama atenção o fato de que em parte deles a autonomia é relativizada pela forte presença do governo. d. Diversificação das fontes de financiamento

18-O Fondo de Responsabilidad Social tem como objetivo financiar projetos de desenvolvimento e promoção da produção nacional, formação de produtores nacionais de obras audiovisuais em rádio ou televisão, educação para a percepção crítica das mensagens difundidas pelos serviços de rádio e televisão e pesquisas relacionadas à comunicação e divulgação de mensagens através do rádio e da televisão.

O ponto mais frágil dos sistemas de radiodifusão pública na América Latina está na dependência de recursos do Estado. A situação levanta questionamentos sobre o nível de independência editorial, uma vez que o governo, como financiador, detém o poder de indicar diretores e assim manter a gestão sob controle. A criação de fundos próprios de financiamentos da mídia pública audiovisual é experiência em andamento em alguns países. Em outros, porém, ainda há resistências por parte da população, que considera abusiva a cobrança de taxas ou o aumento de impostos. Uma dessas experiências é a criação de fundos público formados a partir da cobrança de taxações de segmentos econômicos. Um exemplo é o da Argentina: a Rádio e Televisión Argentina Sociedad del Estado - RTA S.E. é financiada com 20% dos impostos estabelecidos pela Ley de Servicios de Comunicación Audiovisual. A Colômbia criou em 2012 o Fondo para el Desarrollo da la Televisión y Contenidos constituído por recursos governamentais destinados à RTVC (Radio Televisión Nacional de Colômbia). Na Venezuela, o financiamento do sistema se dá através do Fondo de Responsabilidad Social18, criado a partir da Ley de Responsabilidad Social de 2001, composto por recursos provenientes da contribuição dos prestadores de serviços de rádio e televisão para divulgação de imagem e/ou som produzidos dentro do país. O Brasil instituiu a Contribuição para o Fomento da Radiocomunicação Pública com recursos oriundos do Fundo de Fiscalização das Telecomunicações (Fistel) quando aprovou a lei de criação da EBC. Desde a sua criação em 2008, no entanto, a contribuição nunca pode ser aplicada na EBC porque sua constitucionalidade está sendo questionada na justiça pelas empresas de telecomunicação do país. Outra alternativa é o sistema de autofinanciamento pela publicidade nos moldes do que é aplicado no Chile, sempre apontado como alternativa à manutenção da independência

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de governos. No entanto, desde 2008 se discute no Senado daquele país um projeto de lei que permita à TVN (Televisión Nacional de Chile) receber recursos do Estado para garantir o cumprimento de sua missão de canal público, impedindo-a de se equiparar aos demais veículos comerciais. Na linha da diversificação das fontes de financiamento, a TV Perú, a Rádio Nacional e a Rádio La Crónica contam com patrocinadores e usam a publicidade de forma complementar, sem uma tática agressiva de marketing. Seguindo esta tendência, as recém-criadas Empresa Pública Televisión y Radio de Ecuador E.P. e a TV Pública del Paraguay também têm liberdade para firmar convênios para patrocínio de programação, produção, intercâmbio de programação e assistência técnica e financeira. e. Renovação da programação e abertura para mercado independente

Uma das principais justificativas para a manutenção de emissoras de rádio e TV públicas é a possibilidade que representa de complementar a programação oferecida pelas emissoras comerciais. A manutenção de programação alternativa depende de fontes diversificadas de financiamento. Uma estratégia para alcançar esse objetivo tem sido a implementação de políticas públicas governamentais de fomento para produções independentes que possam “oxigenar” a grade de programação das emissoras públicas. O uso de fundos distribuídos por meio de editais tem sido uma das maneiras de democratizar o acesso aos recursos públicos por parte dos produtores independente, porque abre a possibilidade para a participação de vozes diferentes em produções que explorem linguagem e conteúdos distintos. No Brasil existe um conjunto expressivo de programas de fomento à produção audiovisual em nível nacional e regional. No âmbito nacional, o incentivo mais conhecido é o DOCTV – Programa de Fomento à Produção e Teledifusão do Documentário Brasileiro, criado em 2003 como política de incentivo à TV Pública e à produção de documentários. No Chile, por meio do Fondo-CNTV e do Consejo Nacional de Televisión (CNTV) são financiados 30 programas televisivos por ano, realizados por produtores independentes ou canais de televisão. Prática semelhante tem a Comisión Nacional de Televisión (CNTV) da Colômbia, que a cada ano abre chamadas dirigidas a diretores, realizadores e produtores independentes para que inscrevam projetos de programas de qualidade, criativos e que expressem a diversidade de vozes.

19-Disponível em http:// www.leyresorte.gob.ve/ leyresorte/100

Nesse contexto, a Ley de Responsabilidad Social en Rádio y Televisión da Venezuela, conhecida como Ley Resorte19, talvez seja a proposta mais agressiva de investimento em produção independente na América Latina. Regulamenta questões relativas a produção, distribuição e veiculação de conteúdo de mídia de massa. A Ley Resorte estabelece ainda cotas de conteúdo nacional e independente para todas as emissoras, inclusive as públicas. Com isso, são exibidas pelo menos sete horas diárias de programas produzidos no país. Dessas horas, pelo menos quatro horas são de programas viabilizados por produtores independentes (BRAZ, 2010, p. 190-192). Ao lado dos fundos e incentivos direcionados à produção, uma parte das TVs públicas

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passaram por mudanças significativas, na última década, especialmente na renovação de equipamentos de produção e transmissão e na reorganização da grade de programas. Exemplo disso podem ser vistos na TV Pública Argentina, TV Señal Colômbia, Ecuador TV e TV Brasil. A partir da análise da grade de programação, Moreira, Forti e Libonati (2012) identificaram que uma parte significativa das emissoras de TV da América Latina tem priorizado conteúdos infanto-juvenil; dramaturgia, englobando cinema e documentários; cultura, educação, meio ambiente e ciências; jornalismo e esporte cidadania e direitos humanos; e programação religiosa. Essa produção está direcionada a oferta de conteúdos que defendem a valorização da identidade nacional, o pluralismo de ideias e opiniões, a cultura de paz, a proteção ao meio ambiente, respeito a dignidade de pessoas, proteção a família e ao desenvolvimento sustentável. Há uma nítida preocupação desses veículos em estar presente em todo o território com critérios de qualidade e equilíbrio entre informação, formação e entretenimento. Em que pese os esforços em oferecer diversidade de conteúdo nem todos os países conseguiram criar canais próprios para veicular notícias institucionais e ainda ocupam espaço na grade de programação de TVs denominadas como públicas que deveriam seguir os princípios de independência e pluralismo. É o caso da Ecuador TV, que possui um programa próprio do presidente da República, e da TV Pública da Argentina, que veicula programa sobre as atividades e serviços do exército argentino. Distinguem-se desse cenário, a Colômbia e o Brasil. Ambos constituíram canais institucionais de TV próprios vinculados ao poder executivo para transmissão de atos oficiais, programas de autoridades, além de noticiários, reportagens, documentários e séries. No caso brasileiro, algumas produções podem ser divididas nas temáticas: educação, saúde, empreendedorismo, cultura, desenvolvimento e sustentabilidade, além de oferecer prestação de serviços. 20-EBC divulga como será a cobertura das eleições 2012. Observatório da Radiodifusão Pública da America Latina, disponível em http://www. observatorioradiodifusao. net.br/index.php?option=c om_t&view=article&id=106 6:ebc-divulga-como-sera-acobertura-das-eleicoes-201 2&catid=50:destaques&Ite mid=366

Observa-se, ainda, esforços das emissoras de rádio e TV públicas no sentido de produzir jornalismo de qualidade e equilibrado, deixando de lado o ranço da cobertura governista que historicamente caracterizou as emissoras estatais. Há emissoras que estabeleceram esse compromisso por meio da divulgação de guias editoriais, a exemplo da Ecuador TV e da TV Brasil. A EBC tem lançado documentos de orientação aos jornalistas para realização de coberturas específicas, a exemplo da eleição para presidente da república e prefeitos municipais20. As rádios públicas seguem nesse processo de mudança a clássica segmentação, dividindo-se entre as de conteúdo informativo e jornalístico e aquelas que possuem foco na programação musical/cultural, abrangendo do clássico ao popular.

3. Superação do “passivo simbólico”

Os dados parciais da pesquisa “Cidadãos e Meios Públicos” indicam que o maior desafio da radiodifusão pública esteja em mudar a percepção ou imagem que se cristalizou no público em relação às emissoras de rádio e TV. É notória a desconfiança do cidadão para tudo o que é público, invariavelmente associado às estruturas estatais de governo. E a percepção que se tem o estatal é alimentado por vivências cotidianas do cidadão marcada

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pelas distintas formas de exclusão social (falta de moradia, de saúde, de educação entre muitas outras), além da incapacidade e da inoperância da administração pública em oferecer serviços públicos básicos de modo satisfatório. A associação do estatal a algo ruim também impregna a visão de radiodifusão pública. Em uma análise primária dos dados obtidos até o momento, os respondentes da nossa pesquisa têm se manifestado de modo muito mais conceitual e idealizado, situando a perspectiva que possuem das rádio e TVs públicas a partir das funções eles gostariam e acreditam que deveriam ser exercidas e desempenhadas por estes meios. Essas posturas podem ser sintetizadas por manifestações como estas: a) “...os meios públicos deveriam ser instrumentos originais de comunicação que ajam conforme interesse público, coisa difícil no nosso país...; b) “...devem ser espaços onde a voz comunitária tem espaço. Ou melhor, onde a mídia se volta para produção de conteúdo que enriqueça a sociedade... c) “...na minha maneira de ver deveriam ser emissoras que veiculam programações alternativas às já exibidas nos veículos de comunicação abertos e por assinatura; d) “...deveriam ser lugares de liberdade de expressão e de criatividade...” Mas há um segundo grupo de manifestações dentro da pesquisa que revela uma visão negativa, representada por um conjunto de manifestações que critica os meios públicos em duas dimensões. A primeira, de natureza eminentemente política: a) “...lugar de politicagem do governo...”; b) “...lugar de propaganda descarada dos governos...”; c) “...programação direcionada para o governante do momento. Rabo preso...”; d) “...são governistas ao extremo, menos públicas...”; e) “...apesar de públicas, são emissoras controladas pelo governo...”. A segunda dimensão da crítica apresentada pelos participantes é referenciada em aspectos como a qualidade de produção e de linguagem dos programas veiculados: a) “...uma coisa chata e maçante...”; b) “...com má qualidade da programação...”; c) “... grade de programação com pouca diversidade de programas; pouco investimento...”; d) “...as rádios públicas não se mostram convidativas aos ouvintes na forma como são feitas e na forma como são transmitidas (..), já as televisões públicas atendem apenas a interesses específicos dos espectadores, e por isso acabam sendo acessadas somente e apenas quando há algum interesse muito pontual”. Essas primeiras manifestações indicam a existência de um enorme “passivo simbólico” dos meios públicos no Brasil e, até mesmo, nos demais países do continente americano. Essa ideia é baseada no interacionismo simbólico (BLUMER, 1982): o ser humano é concebido como um ser que age no presente, sendo influenciado não só pelo o que aconteceu no passado, mas também pelo que acontece no momento em que interage com aquele objeto simbólico. Os significados que o homem constrói são, portanto, produtos simbólicos que surgem da interação. Ou seja, o significado é decorrente da interação dos elementos envolvidos no processo social. No passado foi cristalizada uma ideia negativa da radiodifusão pública, pelos motivos históricos anteriormente apontados, que interage com o momento presente, uma imagem da qual as pessoas parecem não querer atualizar com base na percepção de que algo está mudando. É de tal forma poderosa essa visão negativa que ela as impedem de entrar em contato com a renovação da programação das emissoras de rádio e TV de modo positivo, levando a pré-julgamento: “…eu não conheço muito bem

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essa área e não vejo muitas dessas TVs, mas se for público, com certeza é chato”. Com base nessas primeiras impressões, o Observatório iniciou uma reflexão sobre os desafios que se apresentam perante a mídia pública nacional para enfrentar as complexas circunstâncias históricas, culturais, econômicas e políticas que contribuíram para a manutenção desse passivo simbólico. Nesse sentido, também interessa elaborar análises sobre as estratégias de enfrentamento desse problema por parte de todos os setores relacionados com as emissoras de rádio e televisão do país que tenham função pública.

Anotação final Para a equipe do Observatório tem sido desafiador estabelecer um marco conceitual que fundamente a radiodifusão pública no continente em processo de transformação, cujos contorno ainda aparecem indefinidos a considerar que se trata de um processo histórico amplo e complexo. Optou-se por realizar essa análise não a partir de um modelo exógeno ideal de sistema público, a exemplo de BBC e do PBS, mas promover um levantamento de como as entidades públicas do continente ligadas à radiodifusão estão se posicionando como organismos públicos na apropriação e reelaboração dos princípios tradicionais que pautam a noção de "mídia pública" definidos pela UNESCO. O trabalho tem sido conduzido na expectativa encontrar parâmetros comuns que contribuam para a identificação de características peculiares às emissoras públicas, sempre deixando espaço para as respectivas e devidas distinções culturais de cada ambiente nacional. O avanço das pesquisas permitirá estabelecer em médio prazo indicadores que possam medir o grau de proximidade dos sistemas de radiodifusão dos princípios consagrados pela UNESCO como característicos de mídia pública. Fazê-lo neste momento sem entender as mudanças em curso poderia significar uma incompreensão da natureza processual que marca a construção de políticas de comunicação na região.

Referências Bibliográficas ALBORNOZ, Luis e HERSCHMANN, Micael. Os observatórios ibero-americanos de informação, comunicação e cultura: balanço de uma breve trajetória. E-compós, v. 7, 2006. Disponível em http://www.compos.org.br/seer/index.php/e-compos/issue/view/7. BIANCO, N. R. D., ESCH, C. E., MOREIRA, S. V. Radiodifusão pública: um desafio conceitual na América Latina. Estudos em Comunicação, v. 12, p. 155-181, 2012. BLUMER, H. . El interaccionismo simbólico: perspectiva y método. Barcelona: Hora, 1982. BRAZ, R. Estado e comunicação: uma análise dos modos de regulação da radiodifusão no Brasil e na Venezuela (Dissertação). Universidade de Brasília, 2010.

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BRESSER-PEREIRA, L. C. e GRAU, N. C. (Orgs.). O público não-estatal na reforma do Estado. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999. FUENZALIDA, V. Situación de la televisión pública en América Latina. Lima, Felafacs, Diálogos de la comunicación, nº 53, Dezembro,1998. MENDELL, Toby Serviço público de radiodifusão: um estudo de direito comparado. Brasília: UNESCO, 2011. MENDEL, T. e SALOMON, E. O ambiente regulatório para a radiodifusão: uma pesquisa de melhores práticas para os atores-chave brasileiros. Unesco, Série Debates CI nº 7 – Fevereiro, 2011. MOREIRA, S. V., FORTI, L., LIBONATI, B. Diversidade e processos participativos em emissoras públicas de rádio e TV. XI Congreso Latinoamericano de Investigadores de la Comunicación – ALAIC. Montevideo, maio, 2012. RODAS, Germán. Reforma o revolución: ¿un debate indispensable en America Latina? In RODAS, G (org.). America Latina Hoy - ¿Reforma o revolución?. México: Ocean Sur, 2009. UNESCO. Public Broadcasting: Why? How?. 2001. Disponível em 20/Fev/2010 em http:// unesdoc.unesco.org/images/0012/001240/124058Eo.pdf

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Mídia Pública e Publicidade: parceria de alto risco Médios Publicos y Publicidad: parceria de alto riesgo Public Broadcasting and Advertising: a high-risk partnership

Marcia Detoni Jornalista e professora de Jornalismo da Universidade Mackenzie de São Paulo. Doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP). E-mail: marcia.detoni@usp.br

Revista Eptic Online Vol.15 n.2 p.74-86 mai-ago 2013 Recebido em 27/02/2013 Publicado em 15/05/2013


Mídia Pública e Publicidade: parceria de alto risco – Marcia Detoni

RESUMO A redução de verbas do Estado no orçamento de emissoras de prestação de serviço público em vários países do mundo, inclusive no Brasil, tem forçado rádios e TVs públicas a recorrer a patrocínios e publicidade para o financiamento de suas operações. Um olhar sobre a experiência da canadense CBC Television e de outras emissoras internacionais revela que a publicidade, adotada como alternativa de sobrevivência, levou emissoras públicas à banalização e a uma forte crise de identidade e legitimidade. Este artigo propõe uma reflexão sobre o tema

PALAVRAS-CHAVE meios de comunicação públicos, publicidade, CBC

RESUMEN La reducción de los fondos estatales en el presupuesto de las emisoras de prestación de servicio público en diversos países de todo el mundo, incluso Brasil, han obligado canales de radio y televisión a depender de los patrocinios y de la publicidad para financiar sus operaciones. Una mirada a la experiencia de la televisión canadiense CBC y otras emisoras internacionales revela que la publicidad, adoptado como un medio de supervivencia, ha llevado a trivialización de las emisoras públicas y a una grave crisis de identidad y legitimidad. Este artículo propone una reflexión sobre el tema. PALABRAS CLAVE medios de comunicación públicos, publicidad, CBC

ABSTRACT The reduction of state funding in the budget of public service broadcasting in various countries around the world, including Brazil, have forced the public radio and TV stations to rely on sponsorships and advertising to fund their operations. A look at the experience of the Canadian CBC Television and other international broadcasters reveals that advertising, adopted as a means of survival, led to the trivializing of public broadcasters and to a serious crisis of identity and legitimacy. This paper proposes a reflection on the subject. KEYWORDS public media, advertising, CBC

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������������������������������������������������������������������������������� Desde os anos 1980, com o fortalecimento das ideias neoliberais, a mídia financiada por verbas públicas enfrenta uma série crise, com cortes nos orçamentos e pressão por audiência. Muitas emissoras públicas mundiais, entre elas a CBC/Radio-Canada, a RAI italiana, a France Télévisions/Radio France, a RTP portuguesa, a ARD/ZDF alemã e a RTVE espanhola, passaram a utilizar cada vez mais a publicidade para complementar o orçamento, ao lado de outras estratégias, como venda de produtos, aluguel de equipamentos e até prestação de serviços comerciais. Metade dos custos das operações da CBC Televison já é paga por publicidade, e temos exemplos semelhantes no Brasil, onde a defesa do Estado mínimo levou a cortes nas verbas destinadas a emissoras do chamado campo público. De acordo com informações divulgadas por membros do Conselho Curador da TV Cultura, a participação do governo do Estado de São Paulo no orçamento da Fundação Padre Anchieta, que administra a emissora, correspondia a cerca de 80% em 2003. Em 2012, a verba caiu para 50%. O restante vem sendo obtido com publicidade, royalties e serviços. (RODRIGUES, 2011; CULTURA E MERCADO, 2012). A introdução de publicidade em emissoras públicas é polêmica. Os defensores do sistema misto de financiamento dizem que a publicidade em si não corrompe o cumprimento da missão pública. Usados de forma criteriosa e ética, os patrocínios e comerciais podem pagar programas inovadores e conectados às aspirações sociais. Um relatório do Senado francês sobre o financiamento do audiovisual público, divulgado em 2000, afirma, inclusive, que, para a geração mais jovem, a ausência de anúncios comerciais na TV pública pareceria suspeita, “um sinal de algo elitista, portanto tedioso, mesmo quadrado”. Na opinião da comissão de parlamentares que examinou o financiamento do audiovisual na França, a publicidade “usada com moderação” impede que as redes públicas se isolem do cenário audiovisual e possam enfatizar sua diferença. (WRTC, 2002, s/p). A prática tem mostrado, no entanto, que unir publicidade e interesse público não é tarefa fácil. Este artigo busca contribuir com elementos para uma maior reflexão sobre o financiamento de emissoras públicas em uma época de cortes orçamentários e buscas de alternativas. O texto apresenta a visão de diversos estudiosos e profissionais da mídia sobre o uso da publicidade em emissoras de serviço público, com destaque para a experiência da CBC/Radio-Canada, que tenta sobreviver com programas que agradem a audiência e atraiam anúncios. As entrevistas apresentadas no artigo foram realizadas por telefone e e-mail entre setembro de 2011 e janeiro de 2012 para tese de doutorado sobre mídia de serviço público defendida na Universidade de São Paulo (USP).

Missão pública x publicidade Há um entendimento entre os profissionais e estudiosos da mídia pública que o cumprimento da missão de prestação de serviço à sociedade depende de um sistema de financiamento e gestão livre de pressões políticas e comerciais. Os mecanismos encontrados ao redor do mundo para financiar a mídia pública são os mais variados: verbas disponibi-

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lizadas diretamente pelo governo, taxas cobradas dos usuários, taxas cobradas de emissoras comerciais, taxas cobradas de indústrias ligadas às telecomunicações (fabricantes de aparelhos, operadoras de serviços de telecomunicações, ou fornecedores de energia elétrica), doações, vendas de programas, merchandising, prestação de serviços a terceiros, patrocínios e anúncios publicitários. Nenhum desses modelos de financiamento garante, no entanto, a tão desejada independência editorial, ou assegura os recursos necessários para o cumprimento do mandato. Qualquer sistema escolhido envolve uma luta constante pela manutenção da autonomia editorial, com governos manipulando a concessão de fundos para “domesticar” ou ”adoçar” as emissoras. Mesmo em países democráticos e desenvolvidos, como aponta o pesquisador Dave Atkinson, do Centre d’études sur les médias, da Laval University, de Quebec, os governos têm usado “a arma orçamentária” para fazer com que os diretores das emissoras públicas saibam que estão sendo observados (ATKINSON, 1997, p.65). Mesmo quando o recurso não sai diretamente dos cofres públicos, como no caso da BBC de Londres, cuja taxa paga pelos residentes entra, sem intermediação, na conta da corporação, o Parlamento e o governo têm o poder de interferir no montante cobrado, impedindo, por exemplo, a correção inflacionária no valor da taxa, ou determinando a sua redução, ou até mesmo sua supressão. O diretor da Escola de Jornalismo, Mídia e Estudos Culturais da Universidade de Cardiff, Justin Lewis, observa que, sob o governo de Margareth Thatcher (1979-1990), “a BBC tornou-se tímida e mesmo subserviente em relação a pessoas muito críticas” (LEWIS, apud ATKINSON, 1997, p. 71). Um estudo coordenado por Lewis sobre a cobertura da guerra do Iraque pelo noticiário noturno das quatro maiores TVs britânicas em 2003 contrariou as alegações do governo Blair (1997-2007) de que a BBC fazia um esforço antiguerra. A pesquisa revelou que, das quatro emissoras, a BBC foi a que usou mais fontes governamentais e militares britânicas no noticiário. Também foi a emissora que menos utilizou fontes iraquianas ou independentes, como a Cruz Vermelha, e a que deu menos informações sobre mortes de soldados e civis na guerra. Além disso, a BBC foi a emissora que mais vezes apontou a possibilidade de o Iraque utilizar armas de destruição em massa, sem questionar a existência delas. O estudo mostra como a independência editorial e o cumprimento da missão pública dependem, acima de tudo, de uma vigilância constante por parte dos profissionais da mídia pública e da própria sociedade para evitar interferências indevidas por parte do Estado. Mas vários especialistas alertam que a substituição de verbas públicas por fontes privadas de financiamento não é uma alternativa eficaz. O World Radio and Television Council (WRTC), organização internacional de defesa da mídia pública apoiada pela Unesco, com sede no Canadá, acha que a publicidade até pode ser incorporada à mídia pública, mas de forma moderada. É aceitável a dependência de fontes comerciais de financiamento para a mídia de serviço público se levarmos em conta que ela deve sua existência ao desejo de proteger esse setor cultural das pressões comerciais? A resposta mais fácil, talvez, e também a mais realista, particularmente em relação à receita publicitária, é dizer que pode ser aceitável desde que não interfira nas obrigações incumbentes sobre as emissoras públicas. Mas, depois de certo nível, se a necessidade de financia-

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mento comercial se tornar uma preocupação dominante para os profissionais dessas empresas e mudar a natureza da programação, nós devemos obviamente nos preocupar (WRTC, 2002, s/p, tradução nossa).

A BBC, a NHK japonesa e a ABC australiana, que vetam completamente a publicidade e os patrocínios, insistem que a prestação de serviço à sociedade deve ser totalmente financiada com recursos públicos para a garantia de uma programação de qualidade, cujo conceito envolve o foco nas questões de interesse público e no desenvolvimento cultural e educativo em contraposição ao entretenimento de apelo fácil. Atkinson responsabiliza a publicidade pela perda de identidade e de qualidade de emissoras públicas de países cujos governos neoliberais relutam em continuar financiando o setor: Vendo sua audiência derreter-se ao longo dos últimos anos, a televisão pública optou por mudar sua programação e jogar as cartas da comercialização, aumentando o número de transmissões capazes de obter a maior audiência possível. Mais filmes, mais ficção, mais eventos esportivos, mais entretenimento, como dizem os americanos. [...] Mudanças também foram feitas na grade de transmissão, relegando os programas culturais e colocando os programas mais atraentes nos horários de maior audiência (ATKINSON, 1997, p.26, tradução nossa).

Um estudo encomendado pela BBC em 1999 comparando 20 emissoras públicas em quatro continentes revelou que quanto mais as emissoras dependiam da receita publicitária mais elas perdiam em qualidade e distinção. O mesmo estudo mostrou que o financiamento por cobrança de taxa garante às emissoras uma base financeira estável para planejar suas atividades e assumir certos riscos concebendo formas de programação mais criativas (MCKINSEY, 1999, apud WRTC, 2002) Alinhando-se aos resultados desse estudo, Atkinson defende que tanto os anúncios comerciais como o patrocínio, classificado por ele como outra forma de publicidade, devem ser proibidos, uma vez que a busca do anunciante é por uma audiência capaz de consumir seus produtos. Isso significa, segundo ele, que os estratos sociais fora do perfil consumidor serão obviamente ignorados na programação. Além disso, financiar a mídia pública por meio de fundos públicos cria uma relação contratual com os ouvintes ou telespectadores, com os profissionais se comprometendo de forma mais intensa com a proposta de prestação de serviço. Autores como Atkinson (1997) Raboy (1997), Aufderheide (2000) e Jacubowicz (2007) concordam que vetar a publicidade é fundamental para legitimar a permanência da mídia pública num mercado cada vez mais competitivo, onde emissoras comerciais brigam por anúncios. Nesse contexto, segundo eles, não é nenhuma surpresa que a mídia eletrônica privada reclame de competição injusta. Por que o Estado investiria dinheiro dos cidadãos em emissoras públicas com programação semelhante ou até pior que a oferecida pela mídia privada? Para os estudiosos mencionados, a mídia pública somente sobreviverá à nova realidade contemporânea (livre comércio, desregulamentação, globalização, grandes conglomerados de mídia, transmissões transcontinentais, tecnologia digital e interativa,

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abundância de canais, novas plataformas de produção e distribuição de conteúdos) se conseguir encontrar uma função social que a diferencia dos meios privados. Essa nova função, na visão deles, é o fortalecimento de uma esfera pública, ou seja, a criação de um espaço social onde os cidadãos possam obter conhecimento e informação, debater questões de interesse público e expressar a própria opinião, numa via de mão dupla entre profissionais e o público.

A experiência canadense No Canadá, a mídia pública não conta com uma verba fixa arrecadada por meio de uma taxa específica, como ocorre com a BBC de Londres, tampouco recebe doações generosas do público, como a PBS americana. O orçamento da CBC/Radio-Canada é composto de verbas do governo federal e de receitas obtidas com publicidade, patrocínios, venda de programação por assinatura, merchandising, direitos de retransmissão, aluguel de equipamentos, aplicações financeiras e serviços digitais, entre outros. Os recursos federais são liberados ano a ano, de acordo com os debates no parlamento em torno de quanto deve ser destinado à corporação. Esse valor, embora tenha crescido nominalmente nos últimos anos, vem decaindo em termos percentuais em virtude de contenção de despesas e desvalorização inflacionária (TAYLOR, 2011; CBC, 2012). Em 2011, de acordo com o relatório oficial da corporação, o orçamento foi de $1.768 bilhão de dólares canadenses, moeda cuja cotação, em fevereiro de 2013, praticamente equiparava-se à americana. O governo repassou 65% desse total ($1.1 bilhão), o restante foi arrecadado via publicidade ($368 milhões) e outras fontes de receita ($300 milhões). O governo não renovou um fundo especial de $60 milhões que destinava à produção de programas canadenses havia dez anos e pediu uma redução 10% nos gastos, num esforço cobrado de todos os departamentos e agências governamentais para fazer frente às pressões da crise financeira mundial. A pressão financeira por parte do governo tem tornado a CBC/Radio-Canada cada vez mais dependente de verbas publicitárias e de outros serviços, que financiam pouco mais da metade dos gastos com as emissoras de TV. Já o rádio é totalmente livre de publicidade desde 1974 (CBC, 2012). Nas últimas décadas, a CBC/Radio-Canada tem sido constantemente forçada a fechar emissoras, demitir pessoal e vender instalações e equipamentos para equilibrar as finanças, em meio a acalorados debates no parlamento e na mídia. Em 2012, a CBC custou $34 dólares para cada canadense, enquanto os britânicos pagaram o equivalente à $ 124 dólares per capita e os noruegueses, à $ 146 dólares (CBC, 2012). Mesmo custando cada vez menos aos cofres públicos, a rede enfrenta a oposição de políticos e representantes do setor privado, que defendem não apenas mais cortes no financiamento, mas a própria privatização da emissora.

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Em novembro de 2011, a CBC completou 75 anos, ensejo que motivou novos pronunciamentos sobre o desempenho e relevância da corporação, principalmente por parte de políticos conservadores e do setor comercial, que alegam não haver necessidade de o Estado financiar serviços de mídia num ambiente com mais de mil canais e pessoas interconectadas por meio da internet e de outras plataformas digitais. Na opinião deles, o financiamento da CBC representa uma vantagem injusta em relação à concorrência privada (VONGDOUANGCHANH, 2011; TAYLOR, 2011). Quanto a este último argumento, o presidente/CEO da CBC, Hubert Lacroix (2011), observa que se trata de uma falácia, já que o governo canadense investe no setor privado de mídia cerca de $900 milhões por ano em benefícios diretos ou indiretos, como fundos especiais para a produção de programas e isenção de impostos, entre outros.

Audiência Um levantamento realizado em outubro de 2011 pela empresa de pesquisa Harris–Decima mostrou que a maioria apoia o financiamento público da corporação, embora não haja entusiasmo quanto a um possível aumento nas verbas: 46% dos entrevistados acham que os recursos devem permanecer nos níveis atuais, enquanto 23% pedem um aumento; 22% defendem cortes e 12% gostariam de ver todas as verbas eliminadas (DITCHBURN, 2011). Outra pesquisa encomendada, em 2009, pela organização de defesa da mídia pública Friends of Canadian Broadcasting já havia revelado apoio à CBC: 74% gostariam de ver rede mais forte em suas regiões e 63% acreditam que CBC vale o dinheiro pago pelo contribuinte. Esse apoio não se reflete, no entanto, nos índices de audiência medidos para fins publicitários. Desde os anos 1970, a CBC/Radio-Canada não tem mais a supremacia na TV, tanto em inglês quanto em francês. Dados de 2011 mostram que a CBC Television (em inglês) manteve nos últimos anos em torno de 9% de audiência no horário nobre, o que é considerado pouco pelos críticos. Analistas observam, no entanto, que todas as emissoras têm perdido audiência e publicidade num mercado de mídia cada vez mais fragmentado. Entre os veículos da CBC, o rádio sempre foi considerado “a joia da coroa”, tanto pela qualidade da programação quanto pelos altos índices de audiência, com as emissoras públicas livres de anúncio e liderando com folga a audiência (LOFARDO, 2011). Quanto à internet, a CBC vem superando as redes comerciais em números de acesso. A CBC.ca é o site mais popular de notícias, com 4.8 milhões de acesso por mês. (GELLER, 2011; SAVETHENEWS.ORG, s/d).

Esfera pública? Como corporação nacional pública, a CBC deve oferecer uma ampla gama de conteúdos que “informem, iluminem e ofereçam entretenimento” (CANADÁ, 1991). Mais de 90% da produção da CBC/Radio Canada é local, cumprindo o mandato público que deu origem à corporação ainda em 1936. O plano estratégico da emissora prevê nos próximos anos mais investimentos em “histórias feitas por canadenses, sobre canadenses para canadenses” e “maior diversidade no ar”. A corporação também promete investir em novos canais (em

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diversas plataformas) e nova programação para atender a audiência regional, as minorias e os estrangeiros, que chegam em números cada vez maiores em virtude de programas de imigração estimulados pela falta de mão de mão de obra do país (CBC, 2012) Atuando, nos últimos anos, como uma grande provedora de conteúdos, a corporação tem oferecido uma programação variada, contemplando desde canais de rádio e TV generalistas - com drama, esportes e notícias para um público amplo - até canais segmentados “All News” ou destinado a grupos aborígenes em plataformas tradicionais ou digitais. Enquanto a programação no rádio (em inglês e francês) e na Télévision Radio-Canada é bastante elogiada por sua qualidade informativa, educativa e cultural, com índices mais altos de audiência, a CBC Television, em inglês, enfrenta fortes críticas. A rede é acusada de adotar uma linha popularesca e comercial em busca de audiência, como a transmissão de partidas de hockey (uma paixão canadense) em horário nobre, ou de programas de entretenimento semelhantes aos oferecidos pelas redes privadas. Ian Morrison, porta-voz da ONG Friends of Canadian Broadcasting, um grupo de vigilância e defesa do sistema canadense de programação audiovisual, disse em entrevista a esta pesquisadora que a disputa pela audiência acabou afastando a CBC Television dos valores definidos por lei: No Canadá, a rádio CBC é uma emissora pública e a única que opera numa base pancanadense. Embora longe de ser perfeita, ela funciona como um espaço público, encorajando o acesso e a participação do cidadão na vida social tanto na esfera nacional quanto nas esferas regional e local. A CBC Television, ao contrário, é 55% financiada por fontes comerciais e mostra isso. Decisões sobre a programação são tomadas com vistas ao aumento da audiência; 48% da audiência anual da emissora no horário nobre assiste hockey profissional. Poucos de seus programas são destinados às crianças e a outros públicos. Enquanto o rádio está significativamente alinhado com os valores da esfera pública e da participação na vida pública, a televisão, de maneira geral, não está. Eu concordo com os autores que defendem uma redefinição da missão da CBC.

Morrison não acredita na possibilidade de pressão editorial por parte dos anunciantes. Isso, segundo ele, não acontece na CBC, que conta com um código de conduta em relação à publicidade, vetando anúncios que contrariem os valores contemporâneos da sociedade canadense ou promovam representação injusta. Mas, segundo o ativista, a dependência da receita publicitária força a emissora a optar por programas banais que atraem maior audiência. O professor emérito da Alberta School of Business e autor de artigos sobre a CBC Colin Hoskins, também em depoimento a esta pesquisadora, faz a mesma avaliação. Segundo ele, “a CBC/Radio-Canada tem um histórico de apresentar planos com visões sólidas dentro do espírito público, mas que acabam não se concretizando na programação”. Na opinião dele, a dependência de verbas publicitárias afetou significativamente a qualidade da CBC Television: A principal emissora nacional (às 22h) está ficando cada vez mais leve e semelhante às emissoras comerciais. Por exemplo, quase todos os noticiários nacionais têm agora uma notícia sobre hockey no gelo. Do mesmo modo, boa parte das notícias não são realmente notícias, mas

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histórias de interesse geral. Em contraste, o noticiário nacional da rádio CBC (às 18h) é consideravelmente mais informativo sobre as principais questões e os principais eventos nacionais e internacionais. Isso se deve, provavelmente, ao fato de o rádio não ter publicidade. A busca pelos dólares da publicidade explica porque a CBC Television transmite tantos jogos de hockey no gelo a cada semana do campeonato. Mas não precisamos de uma emissora pública transmitindo jogos de hockey. As redes privadas e os canais esportivos estão muito interessados em fazer isso. Um último exemplo: cerca de três ou quatro anos atrás, a CBC TV transmitia uma série de ficção chamada “Inteligence”. Foi aclamada pela crítica e vendida para vários países. A CBC a cancelou alegando que os índices de audiência domésticos não eram bons o suficiente e a substituíram por um programa brando de ação chamado “Borders”.

Patrick Watson, ex-presidente do Conselho de Diretores da CBC-Radio Canada (19891994) e um dos mais conhecidos jornalistas e apresentadores do país, também apontou, em entrevista, falhas na programação da CBC TV em inglês: Está obcecada em vender comerciais e praticamente não se parece mais com uma emissora pública. Mesmo os programas de drama e artes tem um tom popularesco. O antigo compromisso com a excelência em artes foi amplamente abandonado. Shakespeare e os clássicos, elementos essenciais no passado, foram abandonados. Tem havido muita imitação de dramas leves americanos, quiz shows e outros formatos. Estranhamente, a eclosão de um fino trabalho teatral nos palcos comunitários não teve reflexos na rede nacional.

Pelos mesmos motivos, o editor da renomada revista canadense Maclean´s Magazine (única revista nacional semanal do país) e colaborador como comentarista da CBC, Andrew Coyne, não vê mais relevância nas transmissões da CBC Television: Quando mostro para as pessoas a programação de diferentes emissoras e peço a elas se estão sintonizadas na TV pública ou na privada, é �������� impossível dizer. Você não pode mais presumir que o melhor está na pública. Já não se pode mais fazer esse tipo de diferenciação. Se você olhar para a experiência particular da CBC no serviço em inglês�������������������� , ������������������ há uma grande concordância de que não tem produzido um grande número de programas de qualidade, parte por causa das incertezas sobre o que ela deve ser.

Para Coyne, a CBC enfrenta um grande dilema; está divida entre dois mandatos que as pessoas querem lhe dar: Alguns dizem que a CBC deve produzir programas especiais de alta qualidade para gostos em menor escala - que outros argumentam já estarem sendo oferecidos pelo mercado -, mas as pessoas ainda usam esse tipo de argumento tradicional. Por outro lado, há pessoas dizendo que, se o público está financiando a rede, ela deveria fazer programas para uma ampla audiência, unificando a nação. E o pessoal da CBC enfrenta dificuldades para produzir ambos. A emissora não tem produzido um grande número de programas de alta qualidade, nem tem obtido grande audiência. Fica no meio.

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Coyne salienta que o foco no aumento da audiência tem levado, em alguns casos, à descaracterização da função pública, principalmente no horário nobre:

Com as restrições orçamentárias enfrentadas nas últimas décadas, as perspectivas da CBC foram reduzidas���������������������������������� ,��������������������������������� e eles tentaram, o que é compreensível, buscar esse dinheiro no mercado publicitário. Mas quanto mais eles perseguem esse dinheiro��������������������������������������� ,�������������������������������������� mais eles acabam sofrendo daquela patologia de buscar a mais ampla audiência possível em vez de atender as demandas da audiência a que servem. A estratégia da CBC nos últimos anos tem sido produzir mais programas populares de audiência de massa e comprar alguns deles. [...] É estranho que a CBC com mandato para supostamente produzir programas de qualidade compre programas populares americanos de jogo como o Jeopardy. Por que estão fazendo isso? Querem ser a emissora do povo e isso é o que o povo quer.

A pesquisadora na área de mídia e cultura da Atkinson Foundation, escritora premiada, jornalista de um dos principais jornais canadenses (The Globe and Mail) e colaboradora como comentarista da CBC Television Kate Taylor observa, por sua vez, que a escolha dos altos postos de comando da corporação reflete a busca da emissora por audiência. “Kirstine Stewart, diretora-geral do serviço em inglês, é uma populista que veio para a CBC de canais comerciais”, disse ela em entrevista para esta pesquisadora. Stewart admite a estratégia de usar programas populares para atrair audiência. Em declarações no site da emissora, em 2009, a direitora-geral da CBC Television disse não ter recursos financeiros suficientes para preencher a grade só com produções canadenses. “Eu honestamente não tenho condições de fazer isso com o orçamento que nos é dado. Quando colocamos programação americana fizemos isso dentro do que permite o nosso mandato”. A diretorageral salientou, no entanto, que os programas populares americanos são um chamariz para outras importantes produções canadenses. Às vezes, e quase frequentemente, aquele programa americano traz um grande número de telespectadores que podem apreciar nossos programas canadenses depois dele. Nós realmente descobrimos depois da introdução de Jeopardy na nossa grande no ano passado que o espaço das 20 horas cresceu 30%. Isso se deve em parte ao Jeopardy, como porta de entrada, e, em parte, aos produtores que estão fazendo programas melhores. É uma combinação da qual temos de tirar vantagem para garantir o maior número de telespectadores para os programas canadenses (STEWART, 2009, s/p)

Além de Jeopardy (show de perguntas e respostas produzido pela CBS americana), a CBC Television tem buscado audiência e receitas publicitárias com outros dois programas de entretenimento típicos da televisão comercial: Battle of The Blades (semelhante à “Dança dos Famosos” do Faustão, com convidados famosos do hockey e do skate formando duplas para mostrar suas habilidades na patinação) e “Dragons´Den” (reality show de franquia internacional semelhante ao “O Aprendiz”, da Record, no qual aspirantes a empreendedores têm de desenvolver planos de negócios e apresentá-los a um painel de homens e mulheres de negócio bem-sucedidos).

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Frente a tais escolhas da CBC Television, Hoskins se diz “cético” em relação à construção de um espaço de diálogo na TV em inglês ou de uma programação conectada com a cultura, a educação e as questões sociais. O que se tem feito mais, segundo ele, tanto na TV como na internet em termos de conexão com o público, é buscar comentários da audiência e depois divulgá-los, “geralmente como uma desculpa para programas baratos”. Para Morrison, a CBC Television deveria redefinir sua missão, alinhando-se mais à programação plural do rádio, com foco em questões relevantes da vida pública canadense. Em artigo reproduzido no website da organização Friends of The Canadian Broadcastig por ocasião dos 75 anos da CBC/Radio-Canada, o especialista em comunicação e professor da McGill University, de Montreal, Marc Raboy (2011, s/p) relembrou os motivos que levaram à criação da corporação e o alerta feito na época por Graham Spry, um dos líderes do movimento pró-mídia pública no Canadá: “Não pode haver liberdade completa e democracia suprema se os interesses comerciais dominarem o vasto e majestoso recurso das transmissões de mídia eletrônica”. Spry já antecipava o poder de comunicação do rádio e da TV, “que não deveriam ser adaptados a propósitos estreitos de propaganda e publicidade por companhias irresponsáveis sem nenhum controle ou regulação popular”. Raboy observa que a mídia púbica, apesar de todo o bem que já ofereceu e pode oferecer, ocupa um espaço cada vez menor no espaço midiático canadense. Na opinião dele, a melhor forma de comemorar os 75 anos da CBC seria organizar um novo movimento de defesa da mídia pública para cobrar do governo a promessas feita em 1936: uma rede de emissoras que fortalecesse o debate democrático. Fontes múltiplas de financiamento são bem-vindas, mas a experiência internacional mostra que só a forte participação do Estado no financiamento das emissoras públicas pode garantir a tranquilidade necessária para uma programação plural e de relevância social.

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O Ministério da Cultura e a construção da TV Brasil: processos políticos, atores e mobilizações El Ministério de Cultura y la construcción de TV Brasil: Procesos políticos, actores e movilizaciones The Ministry of Culture and the construction of TV Brasil: Political processes, players and movilizations

Renata Rocha Mestre em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Doutoranda do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da UFBA, com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Pesquisadora do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (CULT), também da UFBA. Salvador, Brasil. Email: renataptrocha@gmail.com

Revista Eptic Online Vol.15 n.2 p.87-101 mai-ago 2013 Recebido em 25/02/2013 Publicado em 15/05/2013


O Ministério da Cultura e a construção da TV Brasil – Renata Rocha

RESUMO Este trabalho propõe analisar a atuação do Ministério da Cultura, na gestão do Presidente Lula e dos Ministros Gilberto Gil e Juca Ferreira, na construção do que seria o primeiro serviço público de radiodifusão no Brasil, enfatizando os debates e formulações que trazem a televisão pública para o âmbito da cultura e a criação e implantação da TV Brasil, emissora pertencente à estatal Empresa Brasil de Comunicação. Embora consideremos o caráter transversal do tema, nos deteremos nas mobilizações dos atores vinculados ao Ministério da Cultura. As ações de outros setores do Governo Federal serão abordadas apenas para subsidiar a compreensão da conjuntura política no período.

PALAVRAS-CHAVE cultura. comunicação. políticas culturais. televisão pública. Brasil

RESUMEN El presente estudio busca analizar la actuación del Ministerio de Cultura, en el gobierno del presidente Lula y de los ministros Gilberto Gil y Juca Ferreira (2003-2010), en la construcción de lo que sería el primer Servicio Público de Radiodifusión en Brasil, con énfasis en las discusiones y formulaciones que aproximan la televisión pública del campo de la cultura y en la creación y la implementación de TV Brasil emisora que pertenece a la Empresa Brasil de Comunicación. Aunque consideremos la naturaleza transversal del tema, examinaremos, más específicamente, la movilización de los actores vinculados al Ministerio de Cultura. Las acciones de otros sectores del Gobierno Federal se abordarán para apoyar la comprensión de la situación política en el período PALABRAS CLAVE cultura. comunicación. políticas culturales. televisión pública. Brasil

ABSTRACT This study aims to analyze the performance of the Ministry of Culture, in the administration of President Lula and the Ministers Gilberto Gil and Juca Ferreira, the construction of what would be the first public service broadcasting in Brazil, emphasizing the discussions and formulations that bring to public TV the field of culture and the creation and deployment of TV Brazil, belonging to state broadcaster Empresa Brasil de Comunicação. Although we recognize the cross-sectional nature of the subject, we will consider the mobilization of actors linked to the Ministry of Culture. The actions of other sectors of Federal Government will be noticed only to support the understanding of political situation in the period KEYWORDS communication. cultural policies. public broadcasting television. Brazil

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O Ministério da Cultura e a construção da TV Brasil – Renata Rocha

1- Werner Rumphorst (2007, p. 1) aponta, em sua Lei Modelo, as características fundamentais de um Serviço Público de Radiodifusão (SPR), a saber, ele deve ser: feito para o público, financiado pelo público e controlado pelo público. 2- O conceito de mobilização, segundo Michel Dobry (1988), se insere em uma linha de ação, coincidindo sempre com uma “jogada” (coup move) – atividade tática (ato ou comportamento), individual ou coletivo, por parte dos protagonistas em um contexto conflitivo, com repercussões no comportamento de outros atores. 3- As sucessivas crises que permeiam o contexto de construção do campo público de radiodifusão no Brasil e, mais especificamente, o processo recente de construção da Empresa Brasileira de Comunicação/TV Brasil, pode ser caracterizado por “mobilizações restritas” em “conjunturas (extremamente) fluidas”, com causas e conseqüências de impacto social relativamente pequeno. Nesse sentido, é de grande valia considerar as crises “a la vez como movilizaciones y como transformaciones de estado – pasos a estados críticos – de los sistemas sociales” (p. 27).

4- Os limites da ação estatal são porosos já que são o resultado de um processo permanente de desafios, restauração e reletigimação, protagonizado por pessoas, grupos e instituições “estatais” e “não estatais (tradução da autora)

Inicialmente, partimos do pressuposto de que a TV pública1 brasileira ainda é um projeto em construção. Durante a gestão do Governo Lula (2003-2010), alguns importantes passos foram dados para a implantação de um sistema televisivo nacional com finalidade pública, a partir da mobilização2 de diversos atores sociais, em especial agentes estatais ligados ao Ministério da Cultura (MinC) – e de outras instituições (ministérios, secretarias e órgãos públicos de áreas como comunicação, educação, etc.) –, profissionais e membros de organizações e associações da sociedade civil que lutam pela ampliação do direito à comunicação, além de profissionais e órgãos representativos dos interesses dos grandes empresários da área de comunicação do Brasil, em especial a radiodifusão. Por este motivo, para a consecução desta análise, deverão ser analisadas, a partir do ponto de vista dos atores ligados ao MinC, as interações entre diversos atores sociais, em meio a um processo de continuadas crises políticas em uma conjuntura bastante fluida3. O Ministério da Cultura, ao incluir em seu âmbito de atuação a comunicação, mais particularmente através do audiovisual, contribuiu para o surgimento de processos de disputa e consenso com outros setores do governo, da mídia, do poder legislativo e da sociedade civil. Tais atores se relacionam no contexto conjuntural de criação e, posteriormente, de construção da Empresa Brasil de Comunicação e de sua emissora, a TV Brasil, a partir da reestruturação de órgãos pré-existentes, realocação de funcionários e demais recursos disponibilizados para tal fim. A perspectiva de análise da noção de crise como continuidade, levantada por Dobry contribuiu bastante para as reflexões empreendidas neste trabalho. Tal processo foi constantemente demarcado por consecutivas crises e embates não apenas entre os movimentos sociais e os atores estatais, como entre estes últimos, no seio do próprio governo, haja vista que os “límites de la acción estatal son porosos ya que son el resultado de un proceso permanente de desafíos, restauración y re-letigimación, protagonizado por personas, grupos e instituciones “estatales” y “no estatales”4 (BOHOSLAVSKY e SOPRANO, 2009, p. 30). Além disso, com menor ou maior grau de mobilizações e de mudanças de estado, é possível afirmar que a televisão pública brasileira, desde a proposta de seu surgimento, encontra-se em permanente crise, ou em um estado crítico, seja ela conceitual, institucional ou política.

O MinC e as políticas culturais para o audiovisual Em meio às propostas e ações empreendidas, a atuação do Ministério da Cultura (MinC) na gestão Gilberto Gil/Juca Ferreira inaugura, no Brasil, um processo de gestão democrática e efetiva, no que diz repeito às políticas culturais. Em primeiro lugar o ministério se destacou pela reivindicação de uma noção “antropológica” de cultura. Em seu discurso de posse, por exemplo, Gilberto Gil explicita que “as ações do Ministério da Cultura deverão

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ser entendidas como exercícios de antropologia aplicada” (GIL, 2003). Torna-se possível a inclusão, em seu âmbito de atuação, de outras modalidades de bens simbólicos, como as culturas populares, afro-brasileiras, indígenas, de gênero, das periferias, midiáticas etc. Duas importantes consequências desta escolha são a ampliação do público-alvo do ministério, pois suas políticas passam a abranger a totalidade da população como produtora de cultura (e não apenas como receptora) e não somente artistas e criadores; e a transversalidade da atuação do MINC, que resulta em sua participação em discussões antes consideradas específicas de outros ministérios (BRASIL, 2007a). Em relação à área audiovisual em particular, a nova Secretaria do Audiovisual (SAv), inicialmente comandada pelo cineasta Orlando Senna, reafirma a necessidade de se considerar a dupla natureza do audiovisual: seu viés artístico, cultural, simbólico; e sua face empresarial, industrial-tecnológica e mercadológica. Seguindo as linhas gerais do MinC, essa perspectiva ampliou, também de maneira inédita, a atuação da Secretaria, elevando o audiovisual, considerado em sua acepção mais ampla, à condição de tema estratégico do Estado. Embora necessária e frequentemente reivindicada pelos principais teóricos que se debruçam sobre o tema, tal abrangência não se deu sem tensões, que envolveram instituições e agentes diversos, incluindo setores do próprio Governo Federal. Um exemplo, no âmbito regulatório, foi a frustrada proposta de transformação da Agência Nacional de Cinema (Ancine) em Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav), órgão que abarcaria todo o audiovisual. A proposta enfatizava a ampliação da dimensão do conceito e abrangência dos segmentos de mercado audiovisual e o combate à monopolização desse setor, com o objetivo de fiscalizar e regular os serviços de telecomunicações, radiodifusão e comunicação eletrônica de massa, TV a cabo, por assinatura, via satélite e multicanal, além de jogos eletrônicos, telefonia celular e internet que transmitam conteúdos audiovisuais e cinematográficos. (BRASIL, 2004) [...] interpretamos a intenção de constituir uma agência não mais adstrita somente à questão do fomento econômico e à normatização de mercado, mas à implantação de um perfil que remete à escolha político-ideológica de ativismo em defesa da indústria audiovisual nacional, bem como de questões de valorização simbólica da cultura, tratando de conceitos como “brasilidade”, direitos sociais, soberania, ética, diretrizes de política cultural como regionalização, descentralização, educação pela imagem e direitos do cidadão à fruição artística e cultural. (FORNAZARI, 2006, p. 663). A sugestão trouxe à agenda pública um polarizado debate sobre o estabelecimento de políticas culturais efetivas para as comunicações, e sobre as diretrizes na regulação do setor. No entanto, uma forte campanha, empreendida pelos radiodifusores, grandes produtores cinematográficos e articulistas da imprensa escrita, tornou patente a dificuldade de se obter um consenso em torno da matéria, culminando com o recuo absoluto do governo. Cinco anos após o episódio, Gilberto Gil avalia a “jogada” como um erro tático, diante da mobilização dos outros atores/protagonistas da crise.

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O que havia, o que é que acontecia ali naquele momento? Primeiro, a capacidade de resistência ainda muito maior por parte das forças do anacronismo, das forças do modelo anterior, do modelo que está indo para sua extinção; segundo, uma inabilidade nossa, no sentido que devíamos ter sido mais cautelosos, talvez estivéssemos guardados para maturar politicamente, costurar [...] Nossa capacidade de conquistar apoios, de convencer do valor estratégico daquele salto, que nos fortalecesse, que nos desse capacidade de composição com parceiros suficientemente fortes ou que ao nosso lado nos faria suficientemente fortes para nos opor aos interesses conservadores, se nós tivéssemos tido essa habilidade, talvez estivéssemos falando em Ancinav agora, como fizemos com a Lei Rouanet, esperamos amadurecer e tal. Mas, de todo modo, foi um gesto importante que eu associo a uma similaridade com uma desobediência civil. É como se o Ministério da Cultura tivesse feito ali um ato de desobediência civil [...] dentro do próprio Governo (GIL, 2010, p. 208, grifos nossos). 5- A discussão em torno da elaboração dessa lei pode ser exemplificada como um dos vários momentos de descompasso e divergência nas mobilizações empreendidas por atores estatais. O Ministério das Comunicações demonstrava sua aproximação com as empresas de radiodifusão − como declarava o ministro Hélio Costa: “a radiodifusão é uma empresa que vem há 50 anos prestando um enorme serviço no rádio a na televisão para a população brasileira [...] Temos que defender a indústria nacional, e a indústria nacional é a radiodifusão.” (EM ENTREVISTA..., 2007). Já o Ministério da Cultura, colocava-se numa posição mais plural e abrangente, ao propor “atuar, no debate sobre regulação e normatização da atividade, buscando a harmonização da exploração das diversas plataformas de distribuição e, ao mesmo tempo, o fortalecimento dos diversos segmentos da indústria audiovisual brasileira”. (SENNA, 2005).

Interessante perceber, nesta análise, a caracterização dos outros atores implicados na situação como “conservadores” e “anacrônicos” e o posicionamento de alguns destes atores dentro do próprio Governo.

6- A Associação Brasileira das Emissoras Públicas, Educativas e Culturais (ABEPEC), a Associação Brasileira de Televisão Universitária (ABTU), a Associação Brasileira de Televisões e Rádios Legislativas (ASTRAL) e a Associação Brasileira de Canais Comunitários (ABCCOM).

No ano de 2006, o MinC, através da SAv e da Secretaria de Políticas Culturais, com o apoio da Presidência da República e do Ministério da Educação, e em conjunto com as associações de emissoras não comerciais6, se volta à elaboração de reflexões e diagnósticos sobre a televisão pública no país, com vistas a contribuir para a construção do I Fórum Nacional de Televisões Públicas, realizado em maio de 2007. Em entrevista, Senna explica as razões do capitaneamento do processo pelo MinC:

Outros embates e atuações relevantes foram o estímulo ao debate em torno da convergência digital da comunicação social eletrônica; as discussões e posicionamento em torno do projeto de uma lei geral das comunicações5; e o fomento à produção de conteúdo, através dos editais anuais de produção e difusão e de programas que incentivam a produção audiovisual independente e de forma regionalizada; e por fim, a formulação de um projeto de televisão pública para o país que resultou na criação de uma rede nacional de TV com finalidade pública: a TV Brasil.

A criação da TV Brasil Desde o início da gestão Gil, o tema da TV Pública faz parte da agenda estratégica de debates do Ministério da Cultura (MinC). Em 2003, o então Secretário de Audiovisual, Orlando Senna, ao expor as propostas de políticas para o audiovisual do órgão, sustenta que “o veículo exponencial desse vasto plano, desse enorme desejo, será a televisão e, neste sentido, a idéia é re-dimensionar a rede pública de TV. Projeta-se a instalação e operação de uma Rede Pública de Televisão lastreada em cerca de mil canais culturais, educativos, universitários e comunitários existentes no país, a ser operada com participação e coresponsabilidade da sociedade” (SENNA, 2003).

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Mas porque o Ministério da Cultura? Porque alguém tem que fazer. Além disso, o Ministério das Comunicações, como está colocado na organização do governo executivo, do executivo brasileiro, é apenas tecnológico. Trata da tecnologia, não trata da criação de televisões, não trata de formatação de televisões públicas, não trata de nada disso. O lócus normal seria realmente o Ministério da Cultura, não teria outro. Talvez uma junção com o Ministério da Educação, um trabalho em conjunto com o Ministério da Educação (SENNA, 2009, p. 171) 7- Constam do documento elementos-chave para a discussão acerca da temática, bem como dados históricos, aspectos legais e financeiros dessas instituições, sugestões para a implantação do sistema público de televisão brasileiro e demandas específicas, como, por exemplo, o acesso aos canais digitais.

Os materiais reunidos a partir deste primeiro momento resultaram na publicação “I Fórum Nacional de TV’s Públicas: Diagnóstico do Campo Público de Televisão - Caderno de Debates”7, em 2006. Em seguida, o governo organizou oito grupos de trabalho – com a participação de técnicos de oito ministérios, das agências reguladoras do cinema e das telecomunicações, organizações da sociedade civil, universidades e representantes das quatro associações de emissoras com finalidade pública –, cuja sistematização foi publicada em um segundo volume: “I Fórum Nacional de TV’s Públicas: Relatório dos grupos temáticos de trabalho” (2007b). Os materiais buscavam contribuir para a preparação e organização das plenárias de debate do I Fórum Nacional de Televisões Públicas, realizado em maio de 2007, nove meses após o início do processo. O evento convocou e mobilizou representantes das emissoras com finalidade pública, ativistas da sociedade civil e profissionais da cultura, em um profícuo debate, representando um passo primordial do processo que se segue (BRASIL, 2007b). Cinco meses após as plenárias do I Fórum Nacional de Televisões Públicas, o poder executivo editou a Medida Provisória (MP) nº 398, em 10 de outubro de 2007. Pela primeira vez, uma lei brasileira faz referência aos princípios e objetivos dos serviços de radiodifusão pública. Em 07 de abril de 2008, a MP 398 é convertida na lei n.º 11.652, que institui os princípios e objetivos dos serviços de radiodifusão pública explorados pelo Poder Executivo ou outorgados a entidades de sua administração indireta; autoriza a criação da empresa pública Empresa Brasil de Comunicação S.A. (EBC), vinculada à Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República etc. (BRASIL, 2008a). Em seu Art. 2º, ficou estabelecido como princípios para a prestação do serviço de radiodifusão pública: I-complementaridade entre os sistemas privado, público e estatal; II-promoção do acesso à informação por meio da pluralidade de fontes de produção e distribuição do conteúdo; III-produção e programação com finalidades educativas, artísticas, culturais, científicas e informativas; IV-promoção da cultura nacional, estímulo à produção regional e à produção independente; V-respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família; VI-não discriminação religiosa, político partidária, filosófica, étnica, de gênero ou de opção sexual; VII - observância de preceitos éticos no exercício das atividades de radiodifusão; VIII - autonomia em relação ao Governo Federal para definir produção, programação e distribuição de conteúdo no sistema público de radiodifusão; e IX-participação da sociedade civil no controle da aplicação

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dos princípios do sistema público de radiodifusão, respeitando-se a pluralidade da sociedade brasileira. (BRASIL, 2008a). A lei determina também a existência dos conselhos Administrativo, Fiscal e Curador do sistema e indica a conformação da Diretoria Executiva da EBC. O diretor-presidente e o diretor-geral são nomeados diretamente pelo Presidente da República, enquanto os outros diretores são indicados e passíveis de destituição pelo Conselho de Administração, formado por cinco membros indicados por órgãos da administração federal, além do Diretor-Presidente. Já o Conselho Curador, formado por vinte e dois membros, tem um representante eleito pelos funcionários da EBC; quatro Ministros de Estado, representando o Governo Federal; dois representantes do Congresso Nacional e quinze “representantes da sociedade civil”, designados pelo presidente da República. É importante ressaltar que o decreto n.º 6.689 prevê a realização de uma consulta pública a entidades da sociedade civil para a eleição dos representantes da sociedade civil no Conselho Curador. É importante ressaltar que a lei não previu dispositivos que garantissem, de forma objetiva, a nomeação de conselheiros desvinculados de interesses políticos. Além disso, embora esteja autorizado a imputar, por maioria absoluta, o “voto de desconfiança” à diretoria ou a um diretor em particular, o Conselho Curador possui funções mais consultivas que deliberativas (BUCCI, 2008). Por outro lado, a legislação não propõe alternativas para assegurar a fiscalização entre os poderes executivo e legislativo, como, por exemplo, a necessidade de aprovação do Senado para a nomeação dos membros. Em relação ao financiamento, os recursos da EBC devem ser constituídos por: dotações orçamentárias, prestação de serviços, doações, publicidade institucional, publicidade dos órgãos de administração federal, de rendimentos de aplicações financeiras etc. Não há determinação de uma percentagem máxima de recursos advindos dessas fontes, mas a publicidade institucional não pode ultrapassar 15% da programação (BRASIL, 2008a). Se por um lado a multiplicidade de fontes financiadoras facilitaria a captação de recursos, por outro, a dependência financeira de instituições específicas poderia impossibilitar o desenvolvimento de um quadro programático dentro dos princípios públicos. Em 12 de junho de 2008, a EBC incorporou a Radiobrás, com seu patrimônio, seus funcionários, direitos e obrigações, ganhando condições de gestão. Passaram a fazer parte da estrutura da nova empresa: os canais de radiodifusão e comunicação pública: a TV Pública (TV Brasil), uma agencia pública de notícias (Agencia Brasil) e oito emissoras de radio: Radio Nacional AM do Rio de Janeiro, Radio MEC AM (RJ), Radio MEC FM (RJ), Radio Nacional FM (Brasília), Radio Nacional AM (Brasília), Radio MEC FM (Brasília), Radio Nacional da Amazônia (Manaus) e Radio Mesoregional Alto Solimões (Tabatinga AM) (BRASIL, 2008b, p. 03, grifo nosso). Ao mesmo tempo, a EBC continuou prestando ao Governo Federal os serviços de transmissão e divulgação de atos administrativos e das políticas públicas que ficavam a cargo da antiga Radiobrás, através da EBC Serviços, destinada também a gerar receitas próprias para o financiamento complementar. Neste aspecto, faz-se necessário reconhecer a rele-

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vância do orçamento da Radiobrás, além do seu capital humano e equipamentos, embora a incorporação de um órgão estatal de comunicação por um sistema de radiodifusão que se propõe público indicasse um retrocesso quanto ao princípio constitucional de complementaridade entre os sistemas.

Gestão: Debates, entraves e processos A EBC foi legalmente constituída em 31 de outubro de 2007, quando foram nomeados os membros do Conselho Fiscal e do Conselho de Administração, bem como sua diretoria executiva, então composta pela diretora-presidente, Tereza Cruvinel, pelo diretor-geral, Orlando Senna, e quatro diretores: Helena Chagas (Jornalismo), Delcimar Pires (Administrativo e Financeiro), Mário Borgneth (Relações e Rede) e Leopoldo Nunes (Conteúdo e Programação). Cabe ressaltar a participação destacada do MinC na composição inicial da diretoria da EBC, em consequência, inclusive, de sua grande atuação na elaboração do projeto. Dos seis diretores, três eram oriundos do órgão: o ex-Secretário de Audiovisual Orlando Senna, o ex-Assessor Especial do Ministro da Cultura e principal articulador do I Fórum Nacional de Televisões Públicas Mário Borgneth e o ex-Presidente da Ancine Leopoldo Nunes. Em 17 de junho de 2008, a assessoria de comunicação da EBC anunciou o afastamento do diretor-geral, Orlando Senna, e do diretor de relacionamento e rede, Mario Borgneth, sem, contudo, explicitar as razões. Segundo matéria do Observatório do Direito à Comunicação, o episódio resultou das divergências entre os diretores e a presidência do órgão, acerca do processo de definição da Rede Brasil − constituída pela TV Brasil e demais emissoras educativas estaduais −, principalmente no que se refere aos conteúdos produzidos pela EBC a serem veiculados nacionalmente (VALENTE, 2008). Em carta endereçada aos produtores audiovisuais, Senna explicita que pediu sua exoneração “por discordar da forma de gestão adotada pela empresa”, que estaria marcada pela concentração de “poderes excessivos na Presidência, engessando as instâncias operacionais, que necessitam de autonomia executiva para produzir em série, como em qualquer TV” (SENNA, 2008). O episódio teria, ainda, outros contornos a serem destacados: A saída dos dois diretores diminui o peso do grupo ligado ao Ministério da Cultura na direção da EBC, do qual sobrou apenas o diretor de programação e conteúdos, Leopoldo Nunes. Desde a montagem da EBC, instalou-se uma tensão entre estes diretores e aqueles ligados ao ministro da Secretaria de Comunicação Social do governo, Franklin Martins. A presidente Tereza Cruvinel foi sua indicação, bem como a diretora de jornalismo, Helena Chagas. Vinculado à secretaria, ainda que menos diretamente, esteve Delcimar Pires, que assumiu a Diretoria de Administração. O time foi completado por José Roberto Garcez, então presidente da Radiobrás, na Diretoria de Serviços (VALENTE, 2008).

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Tal composição indicava a existência de duas grandes vertentes na condução das emissoras da EBC, em especial da TV Brasil, com o grupo do ministro Martins mais e a corrente do Ministério da Cultura. A saída dos dois diretores, para Tereza Cruvinel, não significava perda de espaço da produção audiovisual no projeto da EBC e da TV Brasil. “Até por que o diretor de conteúdo, Leopoldo Nunes, não saiu, e ele é uma expressão importante deste segmento” (apud VALENTE, 2008). No entanto, em abril de 2009, também Leopoldo Nunes é exonerado, não sem controvérsias, após entrevista polêmica à Revista Fórum, na qual descreve a gestão da EBC como “ineficiente” (NUNES, 2009). 8- Ao fim da gestão ocupavam os cargos de direção da Empresa: a diretora de jornalismo Nereide Berão, o diretor de serviços José Roberto Garcez; diretor de suporte Roberto Gontijo; o diretor jurídico Marco Antonio Fioravante. A direção administrativa-financeira, por sua vez, foi extinta. O decreto n.º 6.689 determina, também a criação do cargo de SecretárioExecutivo, então ocupado por Ricardo Collar. Cf: http:// www.ebc.com.br/empresa/ estrutura-administrativa, acesso em 05 ago. 2010.

Com a saída de Senna, o cargo de diretor geral foi assumido por Paulo Rufino. Já os cargos de direção de relacionamento e rede e de direção de conteúdo deixaram de existir como tais, adquirindo nova nomenclatura8. Para o Ministro Gil, a missão do Ministério na construção do projeto de TV pública, naquele momento, já estaria cumprida: Já no final da minha gestão, quando os primeiros sintomas de crise apareciam na relação entre o todo da direção da TV pública e a parte Ministério da Cultura, quando isso apareceu, eu fui lá e disse claramente a Hélio [Costa, ministro das Comunicações], eu disse a Franklin Martins [ministro da Comunicação Social]: “Olha, o que diz respeito ao Ministério da Cultura, o que diz respeito ao ministro falar em nome do Ministério da Cultura, não se preocupe. Não existe Ministério da Cultura na direção da TV pública. Não é assim que o ministro vê, não é assim que o Ministério vê [...]. Nosso papel foi dizer: há uma TV pública que precisa se fazer, há um conjunto de agentes nacionais interessados nessa confecção, há uma urgência, há uma demanda do tempo, da atualidade, das necessidades do mundo contemporâneo, que se faça uma televisão pública de qualidade no Brasil. O Ministério da Cultura vai contribuir quando for chamado. Nós nos antecipamos no sentido de fazer o chamamento para a consciência dessa necessidade de uma TV pública. Isso fizemos e acabou, nosso papel foi esse (GIL, 2010, p. 210). Para Orlando Senna, esta questão não estaria entre as mais relevantes da situação crítica que atravessa, desde os momentos iniciais, o projeto de construção de uma emissora pública no Brasil. Para o ex-diretor da EBC, “a questão de que havia algum tipo de atrito entre os jornalistas e cineastas, que tenhamos uma presidente que não é adequada, etc. Tudo isso que se fala está num segundo plano e tem um segundo plano” (SENNA, 2009, p. 172). O grande entrave da EBC/TV Brasil estaria relacionado a questões estruturais, ausência de participação da sociedade civil e, ao mesmo tempo, forte presença do Estado em sua gestão: Temos uma empresa inteiramente amarrada, totalmente imobilizada pela sua própria estrutura jurídica. Segundo, a presença da sociedade na TV Brasil se faz necessária, ou seja, tudo bem que no início teria que ter um tipo de organização vinda do governo para poder começar, etc. Mas a essa altura já seria o momento de a TV Brasil ter um conselho escolhido pela sociedade e ter uma presidência, uma criação que viesse deste conselho, escolhido pela sociedade. E também, basicamente a coisa que talvez seja a pior de todas, um grande equívoco, porque gera esses outros, é estar ligada a uma secretaria de governo. Não existe isso em nenhum

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lugar do mundo. É um invento do Brasil que a TV pública tem que estar ligada ao Estado, ao mais alto escalão do Estado. [...] E, claro, também houve o próprio ministro e a própria presidente da TV Brasil dizendo que esse fato é irrelevante. Então, tem muito trabalho pela frente. Tem muita correção ainda. Não temos a TV pública, mas eu tenho a esperança de que a sociedade brasileira não só merece a TV pública, como vai saber fazê-la. De fato, uma televisão que se pretenda pública, e não estatal, não deveria estar na área de influência do órgão responsável pela comunicação social da Presidência. A vinculação da emissora à Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República atenta contra a Constituição Brasileira no que diz respeito à manutenção de um dos mais importantes princípios para a prestação do serviço de radiodifusão pública: a complementaridade entre os sistemas privado, público e estatal. Tal princípio também consta no Art. 2º do decreto n.º 6.689, de 11 de dezembro de 2008, que aprova o Estatuto Social da EBC. Para o ex-presidente da Radiobrás e membro do Conselho da TV Cultura, Eugênio Bucci, a TV pública, se vinculada ao Ministério da Cultura, seria mais autônoma e “menos permeável às pressões da agenda da Presidência da República” (apud CRUZ, 2008). A questão, no entanto, mostrava-se mais complexa. Segundo o pesquisador Jonas Valente, Se por um lado é fato que a vinculação ao Ministério da Cultura poderia garantir a proximidade de um projeto mais afeito à promoção de conteúdos culturais, por outro a capacidade de estruturação de uma experiência como esta em ministérios com baixo peso político em um governo hegemonizado por forças conservadoras é extremamente limitado. Neste sentido, o que garante a sobrevivência de um projeto de TV pública de caráter minimamente contra-hegemônico é a presença de forças comprometidas com este projeto político com presença nos núcleos de poder do Estado. No caso do governo federal brasileiro, a Presidência da República (VALENTE, 2009, p. 144). Diante de tal constatação, é possível apreender a existência de um complexo embate, no interior do governo, em relação ao lugar ocupado por uma televisão, que se propõe pública, em suas políticas. A intricada e necessária relação com as comunicações e seu lugar nas políticas empreendidas pelo Governo Lula foi, sem dúvidas, um ponto crítico para o encaminhamento da proposta de transversalidade do Ministério da Cultura. Não existiu, durante a gestão, um consenso sobre a atuação nesta área. Portanto, apesar da sensibilidade do MinC para com o tema, suas propostas constantemente se opuseram aos interesses de outros setores da Administração Estatal sendo, na maioria das vezes, obrigado a recuar diante da desigualdade das forças existentes.

Programação e audiência Em relação à programação da TV Brasil, a grade inicial foi unificada desde dezembro de 2007, a partir da programação fragmentada da TV Nacional de Brasília, TVE-Rio e TVE-Ma.

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Em artigo publicado no jornal Correio Braziliense, em 05 de dezembro de 2009, a diretorapresidente da EBC, Tereza Cruvinel, destacou, em relação à programação que: ... Na TV Brasil temos o Jornal Visual, um noticiário exclusivo para os que não ouvem. Temos o Programa Especial, que discute com os próprios deficientes, famílias e especialistas as formas de convívio, as novidades médicas e o enfrentamento do preconceito. Temos o Assim Vivemos, belíssimos documentários sobre experiências de superação (...). Vamos a outros temas. Só na TV Brasil há um programa semanal de musica erudita. Um elitismo? Seria, se não houvesse na mesma grade uma vasta oferta de programas musicais, valorizando todos os gêneros populares. Samba na Gamboa, com Diogo Nogueira, é um sucesso que tem atraído os mais jovens, distanciados do gênero musical que melhor expressa nossa síntese cultural. Temos ainda o Segue o Som, a Bossa Sempre Nova, o Clube do Choro, gravado em Brasília, o Som na Rural, feito no Nordeste, entre outros títulos (CRUVINEL, 2009). Além disso, a programação da TV Brasil também exibia, à época, os documentários do Programa DOCTV (quinta-feira) DOCÁfrica (sábados) DOCLatino-americano (sábados), contribuindo, ainda que de maneira restrita, para a difusão da produção independente brasileira. Acerca da definição de cotas específicas para a produção regional e independente, de forma a possibilitar a circulação plural de mensagens, a Lei 11.652 garantia “os mínimos de 10% (dez por cento) de conteúdo regional e de 5% (cinco por cento) de conteúdo independente em sua programação semanal, em programas a serem veiculados no horário compreendido entre 6 (seis) e 24 (vinte e quatro) horas.” (BRASIL, 2008a). Embora fosse uma porcentagem muito baixa, a objetivação de uma diretriz tão importante, como esta, representou um grande avanço para o debate sobre a regionalização da produção. A TV Brasil, em canal aberto, tinha, ao fim do ano de 2009, canais próprios apenas no Rio de Janeiro, Brasília, São Paulo e Maranhão. Embora seu sinal fosse retransmitido pela banda C (parabólicas) – o que representa mais de 17 milhões de antenas espalhadas por todo o país, alcançando mais de 50 milhões de brasileiros - este universo, entretanto, é tão disperso que não chega a ser objeto de pesquisas de audiência. A Rede Brasil, por sua vez, tinha 22 emissoras associadas com alcance geográfico muito variado nos diferentes estados. E, por fim, através das operadoras de TV por assinatura, o sinal alcançava mais de seis milhões de domicílios (CRUVINEL, 2009).

(In)Conclusões Pretende-se com este estudo, não apenas trazer à tona o viés cultural necessário ao estudo dos meios de comunicação, mas também vislumbrar a possibilidade da construção de um projeto viável de televisão pública que contemple os ideais de universalidade, diversidade e pluralidade, independência e diferenciação (UNESCO, 2006) e, ao mesmo tempo, se adeque ao contexto cultural brasileiro.

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Entretanto, até o final do Governo Lula, o projeto brasileiro de construção de uma emissora pública, possuiu uma trajetória continuadamente crítica. Os avanços foram poucos se comparados aos problemas encontrados: a fragilidade da Rede Pública de TV, a falta de infra-estrutura, a incapacidade de atingir o país como um todo e os baixos níveis de audiência. Além disso, a EBC permanece vinculada à Secretaria de Comunicação Social da Presidência e assume, também, a comunicação estatal, com a incorporação da Radiobras. Já o Ministério da Cultura, apesar da participação ativa na construção do projeto nacional de TV pública, teve sua atuação gradativamente diminuída ao longo do processo de estruturação da TV Brasil. Ao fim do Governo, esta participação resumia-se à realização de algumas parcerias para exibição de conteúdos e elaboração conjunta de editais de produção audiovisual para a emissora. Tendo em vista o fato de que a construção da TV pública no país esteja em curso e seja ainda bastante incipiente, cabe ressaltar, por fim, que a efetividade deste conceito não diz respeito apenas a características definidas e aspectos pré-estabelecidos, mas mostrase como um processo que depende da mobilização efetiva e constante dos mais diversos atores para a sua consecução. Apenas sob esta perspectiva será possível constituir uma emissora que corresponda, de fato, às necessidades e expectativas do público, exercendo sua função de proximidade, abrindo espaço às diversidades, promovendo novas maneiras de expressão, inovando nas linguagens e nos produtos, trazendo a cidadania para a tela; e promovendo a mobilização social.

Referências Bibliográficas BARBALHO, Alexandre. Política cultural. In: RUBIM, Linda (Org.). Organização e produção da cultura. Salvador: EDUFBA, 2005. p. 33-52. BOHOSLAVSKY, Ernesto y SOPRANO, Germán, Una evaluación y propuestas para el estudio del Estado en Argentina. In: _____ (ed.), Un Estado con rostro humano. Funcionarios e instituciones estatales en Argentina (desde 1880 a la actualidad), Buenos Aires, PrometeoUNGS, 2009. pp. 9-55. BOURDIEU, Pierre, Las estructuras sociales de la economía, Buenos Aires, Manantial, 2002, capítulo I.2: El Estado y la construcción del mercado, pp. 107-143. BRASIL. Lei Ordinária n.º 11652, de 07 de abril de 2008. Institui os Princípios e Objetivos dos Serviços de Radiodifusão Pública Explorados pelo Poder Executivo ou Outorgados a Entidades de sua Administração Indireta; Autoriza o Poder Executivo a Constituir a Empresa Brasil de Comunicação - EBC; Altera a Lei 5.070, de 7 de Julho de 1966; e dá outras providências. [Brasília], 2008. Disponível em: <http://www.ebc.com.br/empresa/lei-no-11652.pdf>. Acesso em: 15 jan. 2010. [2008a]. ______. Ministério da Cultura. Minuta original do projeto pela criação da Agência Nacional

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“TV Brasil” e a democratização da televisão brasileira no atual cenário de concentração midiática “TV Brasil” y la democratizacion de la television brasileña en el presente senário de concentracion midiática “TV Brasil” and the democratization of brazilian television in the current midiatic concentration scenario

Prof. Dr. Márcio Acselrad Mestre e Doutor em Comunicação pela UFRJ. Professor Titular de Teoria da Comunicação, de Estética e de Psicologia Social da Universidade de Fortaleza. Coordenador do Cineclube Unifor, do Cineclube Gazeta e do Laboratório de Estudos do Humor (LABGRAÇA) Email: macselrad@gmail.com

Natália Maia Flavia de Lima Bacharel em Direito pela Universidade de Fortaleza Email: nathy_martin@hotmail.com

Revista Eptic Online Vol.15 n.2 p.102-120 mai-ago 2013 Artigo recebido em 11/02/2013. Publicado em 15/05/2013


A TV Brasil e a democratização da televisão brasileira - Marcio Acselrad, Natália Flavia de Lima

RESUMO O processo de globalização imprimiu uma nova realidade social, política e econômica ao planeta. Trouxe à tona uma nova tendência mercantilista de aglomeração de empresas em grandes grupos empresariais cujas atividades ultrapassam as fronteiras. As empresas de mídia também se adequaram a esta nova realidade, de modo que em muitos países percebe-se uma situação de concentração midiática, com poucas empresas atuantes no setor. Este cenário concentrado torna-se preocupante na medida em que a mídia trabalha com bens simbólicos, de caráter valorativo, influenciando opiniões e estilos de vida. O fato de que a quase totalidade de empresas ligadas aos meios de comunicação é privada, revela uma necessidade urgente de se tomar medidas para preservar o pluralismo de conteúdo na mídia, próprio de um regime democrático. A Constituição Federal prevê esta necessidade, em seu artigo 223, ao determinar que os meios de comunicação devem seguir o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal. Neste sentido, o presente trabalho busca compreender o fenômeno da concentração midiática, suas conseqüências e visa ainda considerar as possíveis soluções para esta problemática. Situando-se no contexto brasileiro, analisamos a nova emissora pública criada pelo Governo Federal - TV Brasil, e o efetivo potencial democratizante que ela pode representar, considerando os seus modelos de gestão, financiamento e programação.

Palavras-chave TV Brasil. Democratização. Globalização. Concentração. Gestão.

RESUMEN El proceso de globalización imprimió una nueva realidad social, política y económica a el planeta, creando una nueva tendencia mercantilista de aglomeración de empresas en grandes grupos de empresarios cujas actividades ultrapasan todas las fronteras. Los emprendimientos mediáticos también se adecuaran a esta nueva realidad. En muchos países se nota una situación de concentración mediática, con pocas empresas actuantes en el sector. Este senario concentrado torna-se preocupante en la medida en que los medios trabajan con bienes simbólicos, de carácter valorativo, influenciando opiniones y estilos de vida. La casi totalidad de las empresas ligadas a los medios de comunicación es privada. La Constitución Federal afirma que esta necesidad debe seguir el principio da complementariedad de los sistemas privado, público y estatal. En este sentido, el presente trabajo busca comprehender el fenómeno de la concentración mediática, sus consecuencias bien como considerar las posibles soluciones para la problemática. Situando-se en el contexto brasileño, hemos analizado la nueva emisora pública creada por el Gobierno Federal – la TV Brasil, y el efectivo potencial democratizador que la misma puede representar, considerando sus modelos de gestión, financiamiento y programación. Palabras-chave TV Brasil. Democratización. Globalización. Concentración. Gestión ABSTRACT The globalization process created a new social, political and economical reality in our planet. It made clear a new mercantilist tendency of big conglomerates whose activities go way past national borders. Media companies also followed this tendency in a way that, in many countries, we can notice a situation of media concentration, with very few companies controlling the area. This scenery of concentration is a problem due to the fact that the media deals with symbolic material, influencing the opinions and life styles of many. Since most of these companies are private ones, we are faced with an urgent need to take measures to preserve the pluralism of media content which is a priority in democratic systems. In Brazil, the Federal Constitution points to that need in its article 223, determining that communication media must follow the principle of complementarity between the private, public and state systems. Bearing this in mind, the present article wishes to understand the phenomena of media concentration as well as its consequences as well as to consider the possible solutions to such problem. Within the Brazilian context, we analyze a relatively new broadcasting company created by the Federal Government called TV Brasil and the democratic potential it may represent considering its models of management, financing and programming. Key-words TV Brasil, Democratization, Globalization, Concentration

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Democratização da Mídia

A ideologia capitalista não encontra resistência em se impor como dominante na sociedade, precipuamente porque as empresas de mídia, grandes interessadas na manutenção do sistema econômico que privilegia a sua classe, detêm o poder de controlar as informações, seja editando ou ocultando fatos que possam ensejar em manifestações e reivindicações populares que sejam contra os seus interesses, ou que possam até mesmo culminar em uma revolução social. A liberdade de imprensa, princípio básico de qualquer regime que se defina democrático, acaba configurando em argumento para legitimar condutas abusivas dos meios de comunicação, que se apoderam desse discurso para coibir qualquer tentativa estatal de regulamentação neste setor. Este princípio, entretanto, se pauta na noção de que a mídia representa a sociedade, servindo de instrumento para consolidação da liberdade sobre a opressão, da democracia sobre a ditadura. Em lugar disso, percebemos uma outra ditadura, que veste a roupagem da neutralidade, e por isso é ainda mais perigosa. A preponderância quase total do modelo comercial na mídia brasileira traz consigo a dificuldade de que seja retratado o pluralismo nos meios de comunicação, fundamental à consolidação efetiva da democracia. É de fácil constatação que os meios de comunicação comerciais têm dado pouco espaço para a diversidade de idéias, comportamentos, ideologias ou variadas manifestações culturais presentes no país. Existe um padrão comportamental e ideológico transmitido por essas empresas, que sozinhos não são capazes de expressar a multiplicidade de estilos de vida da sociedade brasileira. Apesar do aumento do número de canais comerciais disponíveis, essa pluralidade não alcança o conteúdo transmitido. Há pouca diversidade na programação, já que esta segue parâmetros que visam o lucro e não a formação cultural do telespectador. Dênis de Moraes (2003, p.191) entende que as empresas midiáticas exercem dois papéis fundamentais: o de “agentes discursivos”, entusiastas do modelo de sociedade de consumo, convencendo a sociedade a aderir a essa ideologia, e de “agentes econômicos”, vendendo seus produtos, obtendo lucro e “intensificando a visibilidade de seus anunciantes.” A chamada grande mídia fabrica o consenso sobre a superioridade das economias abertas, insistindo que não há saída fora dos pressupostos neoliberais. O eixo ideológico consiste em enquadrar o consumo como valor universal, capaz de converter necessidades, desejos e fantasias em bens integrados à ordem da produção. (MORAES, 2003, p.188)

Entendemos a exaltação de tais valores pela mídia como sendo extremamente nociva à sociedade, já que marginaliza qualquer tentativa de movimentação em prol da justiça social, exclui a grande maioria da população do processo de identificação cultural e tende a promover uma despolitização profunda na sociedade.

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Mídia, democracia e cultura O individualismo que caracteriza a contemporaneidade delega aos meios de comunicação a função de atuar como vetor de reconhecimento da sociedade. As metrópoles aglutinam diferentes tribos e culturas, com influências das mais diversificadas, e não há entre estes diferentes grupos uma interação capaz de promover uma identificação cultural, a não ser pelo meio tecnológico. Entretanto esse papel não pode ser cumprido efetivamente se não há a participação da sociedade na construção das identidades divulgadas pela mídia. Para Martín-Barbero (2003, p.68-69), isso se dá principalmente por atribuir-se aos meios de comunicação a função de mero “instrumento de propagação cultural”, ignorando a potencial “competência comunicativa das comunidades”. O que ocorre no atual modelo, segundo o autor, é que a propagação cultural se dá de cima para baixo, ou seja, “uma comunicação na qual os emissores-criadores continuem sendo uma elite e as maiorias continuem sendo meros receptores e espectadores resignados”. O que se propõe é um modelo de incentivo a atuação da comunidade nos meios de comunicação, de maneira a diminuir as exclusões sociais, assumindo as comunidades o papel de mediador, participando ativamente do processo comunicativo, no lugar de figurarem como meros consumidores de informação. Com relação a este modelo proposto, no qual se estimula uma participação mais ativa da sociedade, Paulo Roberto Figueira Leal (2007, online) relembra que “com o advento das tecnologias digitais de informação e comunicação, pensar os receptores de modo ativo tornou-se um caminho mais condizente com a natureza dos novos meios”. O debate da democratização dos meios de comunicação está cada vez mais ganhando espaço. Para Ramonet (2003, p. 250) isso se deve ao fato de que há cada vez mais pessoas em contato com o conhecimento, e que nunca houve um momento histórico em que a população tivesse um nível educacional tão alto - enquanto que o nível cultural da mídia encontra-se cada vez mais medíocre. Para o autor, chegará um momento em que estes dois níveis se chocarão, e aparecerão cada vez mais categorias sociais insatisfeitas com o discurso “infantilizante” proposto pelos meios de comunicação atuais, e a demanda por informação de qualidade aumentará vertiginosamente. Mastrini (2008, p. 56) discorre sobre as possíveis soluções para o cenário altamente concentrado da mídia atual. A dificuldade reside no fato de que essa concentração já está consolidada, e não é tarefa simples legislar retroativamente, obrigando as empresas a vender propriedades que já adquiriram. Uma saída mais tangível, segundo o autor, seria “subsidiar através de fundos públicos o surgimento de novos meios de comunicação”, ainda que esta seja mais onerosa ao Estado. Martinéz (2008, p.17) sustenta que para que se garanta a pluralidade essencialmente democrática nos meios de comunicação é necessário um equilíbrio entre as empresas de mídia privada e estatal. O que se busca não é um domínio total do Estado sobre esse setor, pois no monopólio estatal também há pouca liberdade de informação. Tampouco se deseja que a indústria dos meios de comunicação se deposite unicamente nas mãos de particulares. Neste contexto a televisão pública alcança o status de veículo representante da sociedade, enquanto a mídia comercial e estatal representa os interesses das empresas

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e do Estado respectivamente.

As experiências de TVs públicas no mundo No cenário mundial, diversos modelos de televisão pública foram postos em práticas, seguindo particularidades específicas de cada região. As diferenças decorrem principalmente do tipo de gestão e modelos de financiamento, que acabam por fim determinando uma maior ou menor ingerência estatal na atividade. Stevanim (2010, p.7) entende que essas diferenças decorrem das diversas maneiras possíveis de se conceber a definição de público ou até mesmo de Estado. Na Europa, os meios de comunicação são definidos como um serviço público, enquanto que nos EUA estabeleceu-se apenas que estes deveriam estar subordinados ao interesse público. Apesar de tais definições, a priori, aparentarem ser apenas construções subjetivas do mesmo termo, acabaram por ensejar conseqüências profundas na maneira como foram estruturados os sistemas públicos de televisão nestas duas regiões do globo. (STEVANIM, 2010, online) Para Paulo Roberto Leal (2007, online), o ideal de bem público em alguns países da América Latina - inclusive no Brasil - foi “distorcido por uma perspectiva patrimonialista do Estado, em que atores privados exercitaram a prática de colonização da coisa pública”, de modo que o processo de reestruturação da ingerência da coletividade sobre bens dessa natureza foi retardado.

BBC Segundo Fernando J. Ruiz (2008, p.117), os meios de comunicação funcionam como bons indicadores da situação democrática de uma determinada região. Partindo deste pressuposto, os meios de comunicação britânicos apontam a existência de uma democracia já bastante amadurecida e consolidada, que se reflete em uma postura mais ativa dos cidadãos e uma atuação mais transparente do Estado. O governo britânico optou pelo modelo monopolista de radiodifusão para evitar que se desenvolvesse um cenário caótico diante das inúmeras empresas interessadas em atuar no setor de radiodifusão – como havia ocorrido em território americano. Solucionou-se então a questão fundindo as seis maiores empresas concorrentes, que passaram a constituir a BBC (até então British Broadcasting Company, Limited), em 1922. Quatro anos depois, a companhia empresarial foi fechada e transformada em corporação pública, a partir da recomendação de uma comissão constituída por iniciativa do governo, passando então a se chamar British Broadcasting Corporation. (LEAL FILHO, 1997, p. 63-64) Durante o governo de Margareth Tratcher, a BBC sofreu fortes pressões para admitir a publicidade como forma de financiamento, de modo que em 1985, o órgão de pesquisas da Corporação (Broadcasting Research Unit) resolveu convocar diversos setores de profissionais ligados à radiodifusão para estabelecer os princípios norteadores do sistema público britânico. Leal Filho (1997, p.60-63) descreve os oito princípios estabelecidos na ocasião, e

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que ainda hoje regem a esfera pública da comunicação britânica: universalidade geográfica, apelo universal (abranger todos os gostos e interesses), universalidade de pagamento, independência (tanto de interesses particulares quanto do governo), identidade nacional e comunidade, atenção especial às minorias e estímulo à competição por qualidade, e não por números, na atividade de radiodifusão. No que se refere à gestão da BBC, Stevanim (2010, p.9) descreve Dois órgãos formam o corpo dirigente da corporação: o Truste e o Conselho Executivo. O primeiro é composto por doze controladores indicados pelo monarca e determina as estratégicas em longo prazo da instituição, além de zelar pelos interesses dos contribuintes. Já o Conselho, composto por dez membros executivos e seis não-executivos, é um corpo de profissionais que opera os serviços prestados pela corporação, através das prioridades determinadas pelo Truste.

O modelo de financiamento do sistema público de comunicação britânica se dá através da licença paga (license fee), que garante a sua independência financeira – e conseqüentemente ideológica – tanto do mercado quanto do Governo.

PBS Em 1967 foi criado o Corporation for Public Broadcasting (CPB), com a função de coordenar o serviço público de rádio e televisão nos Estados Unidos e assegurar que tais estações não seriam alvo de influências políticas ou favoritismos. O setor de radiodifusão americano desde o princípio foi entregue à iniciativa privada, de modo que coube ao serviço público uma posição de mera complementaridade. A Public Broadcasting System (PBS), rede de TV pública fundada em 1969, possui desde o seu surgimento uma estrutura fragmentada, descentralizada, que visa atender aos mercados locais - já que não tem condições de competir com as gigantes corporações midiáticas presentes no país. Trezentas e cinqüenta e seis estações de televisão, espalhadas por todos os estados federativos, compõem atualmente a PBS, sendo a maioria dirigida por universidades, associações comunitárias nãolucrativas, agências do governo e escolas locais e que hoje alcançam aproximadamente 99% da população americana. (MCLOUGHLIN, 2006, p.2) O modelo de financiamento da PBS tem caráter misto: 15% da verba é repassada pelo governo através da CPB, 25% é obtida através de campanhas de arrecadação junto aos telespectadores (realizadas de três a quatro vezes ao ano), e alguma parte provém do capital privado: “alguns programas e séries são financiados por empresas que pagam para colocar seu logotipo no início ou fim de cada apresentação.” (CARRATO, 2002, p.10) No que tange ao conteúdo exibido pelas emissoras que compõem a PBS, a maioria não produz os próprios programas. Ângela Carrato (2002, p. 10) especifica que

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Na realidade, o papel da PBS é de aprovar ou rejeitar os programas e séries que lhes são oferecidos, levando-se em conta os critérios que devem pautar uma programação educativa e cultural. No passado, muitas das emissoras que integram a PBS eram produtoras. Atualmente, só a WGBH, de Boston, mantém este perfil. São várias, no entanto, as emissoras integrantes da PBS que realizam co-produções inclusive com TVs européias, a exemplo da BBC e do Channel Four, da França.

A programação escolhida pelas emissoras goza de total autonomia e independe de qualquer aprovação externa, seja da CPB ou do Governo. Em julho e dezembro de 2003 foram realizadas duas pesquisas para avaliar a percepção do público referente ao serviço oferecido pela rede pública no país. Os resultados conclusivos, listados por L R Ickes, demonstram que “mais de 50% dos americanos acreditam que a programação informativa da PBS é mais confiável do que a proveniente de outras fontes, tais como a FOX ou a CNN - menos de 15% acreditam que a PBS é menos confiável.” No que diz respeito à parcialidade das notícias transmitidas, a maioria da população adulta dos Estados Unidos não acredita que a programação informativa da rede pública seja tendenciosa: “apenas um em cada dez americanos detectaram uma tendência liberal e aproximadamente um em cada dez detectaram uma tendência conservadora.” (ICKES, 2006, p.60-61, tradução nossa)

TVN Na América Latina, a criação da TVN chilena merece destaque pelas peculiaridades acerca de sua construção. Criada em 1968, passou a funcionar efetivamente somente dois anos depois, durante o governo de Salvador Allende - até então como uma TV estatal. Após o golpe militar de 1973, a TVN serviu de aparato ideológico do Estado militarizado e ditatorial. (ORTIZ, 2010, p.10) Com o fim da ditadura, em 1989, a TVN passou por profundas reformas, sendo transformada em TV pública. Teresa Otondo (OTONDO, apud ORTIZ, 2010, p.10) menciona que A refundação da TVN representou uma mudança radical no modelo de televisão pública usual na América Latina, baseada em três pontos: ruptura com o modelo estatal, gestão democrática da empresa e independência financeira do governo para garantir o cumprimento da missão – representação democrática e plural na gestão e na programação – para ser a televisão de todos os chilenos.

Constituindo-se então como uma empresa pública do Estado, com autonomia de gestão, programação e financiamento, a TVN passou a funcionar sob o modelo comercial, buscando no mercado sua fonte de sustentação, ainda que tenha subsistido a preocupação em manter padrões culturais condizentes com o interesse público. Com alguns programas de caráter mais “comercial”, tais como telenovelas e esportivos (necessários para a competição com as empresas privadas), atualmente a TVN é líder de audiência no Chile.

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A regulamentação normativa concernente à TV pública no Brasil

Celso Antônio Bandeira de Mello (1998, p.433) diferencia serviço público de atividade econômica, caracterizando o primeiro como sendo atividade própria do Estado e a segunda delegada preferencialmente às empresas privadas, cabendo ao Estado intervir somente quando há ameaça ao interesse coletivo. A atividade de radiodifusão enquadra-se como serviço público, ainda que apresente certas peculiaridades. A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 223 “caput” disciplina que “compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observado o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal”. Desta forma, é prevista a atuação de empresas privadas neste setor, cabendo ao Estado garantir que seja cumprida a complementaridade mencionada no artigo. É de conhecimento geral a existência tanto do sistema privado quanto do estatal nas empresas de comunicação. O sistema público, porém, ainda suscita questionamentos. Para se estabelecer uma análise conclusiva acerca do efetivo cumprimento deste artigo é necessário que esteja claro o que se define por empresa pública de radiodifusão. Pedro Ortiz (2010, p.6) define alguns critérios a serem levados em consideração As relações de uma TV que se pretende pública com o governo são o ponto de partida para a definição de um modelo, a começar pelo marco jurídico-institucional, a composição, finalidade e forma de eleição ou condução dos conselhos gestores, o financiamento, os critérios de programação. Todos são aspectos fundamentais que definirão em que medida uma televisão pode ou não ser pública.

Para Jonas Valente (2009, p.94), o elemento diferenciador entre TVs privadas, públicas e estatais seria a “titularidade do veículo ou a natureza institucional de seu explorador”. Sendo assim, se o ente operador for uma organização privada, a TV se caracteriza por privada; se o ente for um dos três poderes da Federação configura-se como estatal; e por fim, enquadra-se como pública a TV operada por uma “companhia estatal com uma estrutura institucional que lhe garanta autonomia de gestão e financeira.” Entretanto, o autor ressalva que tal definição ainda acarreta equívocos, pois o Decreto-Lei 236-67, que regulamenta o serviço de radiodifusão no Brasil, em seu artigo 14, dispõe que além da União, Estados e Municípios, também poderão executar serviços de televisão educativa as Universidades e Fundações. Desta forma, ainda que o ente operador seja uma Fundação privada ou um órgão Estatal, o caráter educativo (ou público) não estará comprometido, desde que não haja fins comerciais - já que o próprio Decreto-Lei 236, no artigo 13 “parágrafo único” veta a veiculação de publicidade em sistemas televisivos desta natureza. Sob estas circunstâncias, estando o referido Decreto-Lei ainda em vigor, Alexandre Fradkin (2007, online) preceitua que no Brasil, “sob o aspecto estritamente legal, só existem dois tipos de emissoras de televisão: a comercial e a educativa. Qualquer outra denominação

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que esteja sendo utilizada não possui respaldo legal.” Em 2009, foi realizado o II Fórum Nacional de TVs Públicas, no qual diversas associações ligadas ao setor da comunicação social se reuniram para debater questões relativas ao sistema público de radiodifusão brasileiro. Dentre as conclusões alcançadas pelo Fórum (MINISTÉRIO DA CULTURA, 2009, online), o conceito de TV pública não se confunde com o de TV estatal A diferença fundamental entre os dois sistemas é que, no sistema de radiodifusão público não-estatal, as diretrizes de gestão da programação e a fiscalização devem ser atribuição de órgão colegiado deliberativo, representativo da sociedade, no qual o Estado ou o governo não devem ter maioria.

Breve Histórico de TVs educativas no Brasil No Brasil, assim como nos EUA, as TVs públicas foram colocadas em uma posição de mera complementaridade, exercendo um papel secundário no setor de radiodifusão. Enquanto a primeira emissora privada (TV Tupi) teve sua inauguração ainda nos anos 50, o sistema público foi regulamentado somente em 1967, com o Decreto-Lei 236. A partir deste Decreto foi criada a Lei n° 5.198, que deu origem a Fundação Centro Brasileiro de TV Educativa (FCBTVE), pelo Governo Federal, que, de acordo com seu regulamento, (BRASIL, 1967, online) objetiva a “produção, aquisição e distribuição de material áudio-visual destinado à televisão educativa, contribuindo, direta ou indiretamente, para a expansão e o aperfeiçoamento do sistema de televisão educativa no país.” A partir daí, os Estados federativos passaram a criar suas emissoras públicas, figurando como pioneira a TV Universitária de Pernambuco, resultado da parceria do governo com a Universidade Federal (UFPE), em 1968. Um ano depois foi ao ar a TV Cultura de São Paulo, emissora gerida pela Fundação Padre Anchieta. Em 1975, o Governo Federal criou a Empresa Brasileira de Radiodifusão (Radiobrás), a partir da Lei 6.301, mesmo ano em que foi criada a TVE, emissora pública ligada ao governo militar. Na década de 1990, período em que o ideal neoliberal foi impulsionado pela então recente derrocada do socialismo (materializada com a queda do muro de Berlim), essa nova tendência econômica refletiu também no setor de radiodifusão, especialmente no sistema público, que sofreu uma forte redução das receitas orçamentárias. Com a eleição do presidente Lula em 2002, tanto a Radiobrás quanto a Acerp (responsável pela manutenção da TVE-Brasil) sofreram uma reestruturação com o objetivo de torná-las mais eficientes e democráticas. O resultado dessa reestruturação foi a fusão das duas empresas, em 2008, que juntas deram origem à Empresa Brasileira de Comunicação (EBC).

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TV Brasil No dia 2 de novembro de 2007, dia em que se inaugurou o sistema de TV digital no Brasil, foi ao ar pela primeira vez a TV Brasil, emissora da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), criada a partir da Medida Provisória 398, posteriormente convertida na Lei 11.652. O Decreto 5.820, de 2006, que regulamentou a implantação do Sistema Brasileiro de Televisão Digital Terrestre (SBTVD-T), em seu artigo 13 previu a exploração de quatro canais digitais, pela União: um do Poder executivo, um ligado à educação, um destinado à cultura e um canal de cidadania. Em 2006, o Ministério da Cultura reuniu os quatro setores de emissoras televisivas sem fins lucrativos (educativas, legislativas, universitárias e comunitárias) para debater questões referentes ao fortalecimento do sistema público de televisão, processo que resultou no Fórum Nacional de TVs públicas, em 2007. Nas palavras do então ministro da cultura, Gilberto Gil (MINISTÉRIO DA CULTURA, 2006) O pressuposto deste I Fórum é a percepção – cada dia mais consensual – de que a realização plena e qualificada da televisão pública brasileira é uma das agendas estratégicas para o desenvolvimento cultural do Brasil e a consolidação de um país socialmente justo e antenado nas forças criativas do povo brasileiro

As conclusões alcançadas neste Fórum estão materializadas na “Carta de Brasília”, que defende uma TV pública independente em termos de linha editorial e controle governamental, e uma programação que “estimule a formação crítica do cidadão e valorize a produção independente e regionalizada, expressando a diversidade de gênero, étnico-racial, de orientação sexual, regional e social do Brasil.” (VALENTE, 2009, p.122) Em abril do mesmo ano, um Grupo de Trabalho Interministerial reuniu órgãos do governo, tais como a da Secretaria de Comunicação Social, Casa Civil, Ministérios da Cultura, Educação e Comunicações, bem como representantes da Radiobrás e da Acerp, a fim de propor diretrizes e medidas para a implantação do sistema brasileiro de televisão pública, no âmbito do Poder Executivo Federal, e da rede nacional de televisão pública. Dentre as questões discutidas estava o formato jurídico-institucional e os modelos de gestão e financiamento que teria a nova emissora pública de comunicação.

Gestão e Controle De acordo com a Lei 11.652, a EBC está vinculada à Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (SECOM), e possui mais cinco instâncias internas de gestão: Diretoria-Executiva, Conselho Fiscal, Conselho de Administração, Assembléia Geral e Conselho Curador. É neste último que se dá a participação da sociedade, já que de seus vinte e dois membros, quinze são representantes da sociedade civil - além de quatro representantes do Poder Executivo (ministros da Cultura, Educação, Ciência e Tecnologia, e da SECOM), dois membros indicados pelo Congresso Nacional e um representante dos funcionários da EBC, escolhido na forma do Estatuto da Empresa.

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Dentro desta estrutura de gestão, o resultado é que “cabe ao Presidente da República indicar cerca de 80% dos membros do Conselho Administrativo e 95% dos integrantes do Conselho Curador (responsável pelas diretrizes e linha editorial)”, de modo que várias críticas foram tecidas a respeito da vinculação excessiva da gestão ao Governo Federal. (BARBOSA, 2008, online) É o Presidente da República quem indica também os representantes da sociedade civil, “segundo critérios de diversidade cultural e pluralidade de experiências profissionais.” (BRASIL, 2008) Para diversas entidades da sociedade civil que participaram do Fórum de TVs Públicas esta estrutura é insatisfatória, e não corresponde ao ideal de democratização e participação social a qual se baseava o projeto inicial proposto e debatido neste evento. Em agosto de 2006, tais entidades se reuniram e divulgaram o manifesto “Pela gestão democrática na TV Pública” (INTERVOZES, 2007, online), que critica a ingerência preponderante do Governo Federal, e a diminuta participação da sociedade. Com um conselho indicado pelo presidente, a TV pode já nascer sem autonomia e independência, objetivo maior de uma emissora que se pretende pública. Não é a mera existência de um órgão gestor que confere à emissora este caráter. É preciso que ele seja plural e representativo, preservando a independência em relação a governos e ao mercado, funcionando com base na gestão democrática e participativa.

Para Jonas Valente (2009, p. 151), além da ausência de representantes de entidades sociais no Conselho Curador e a indicação dos membros deste Conselho pelo Presidente, outro fator contribui para a falta de representatividade democrática: é o que diz respeito às próprias atribuições dadas a esta instância, que se restringe a questões meramente principiológicas e genéricas, não alcançando todos os setores da estrutura da Empresa. Segundo o autor “tal restrição retira do Conselho a prerrogativa de influir em questões estratégicas referentes ao modelo de financiamento e aos canais de distribuição, quedando-se restrito apenas à programação da TV.” Desde a sua criação, em 2007, o Conselho Curador da EBC já realizou duas audiências públicas – uma em 2009, outra em 2010, reunindo diversas entidades da sociedade civil, com o objetivo de abrir espaço para o debate acerca da programação das emissoras públicas – tanto da TV Brasil quanto da Rádio Nacional. Para Luiz Gonzaga Belluzzo (online), presidente do Conselho Curador, “A audiência pública vai impulsionar o desenvolvimento da TV Brasil, tornando-a cada vez mais um veículo livre, democrático e plural”.

Modelo de Financiamento A proposta do modelo de financiamento previsto para o sustento da EBC sofreu pressões tanto por parte de empresários do setor televisivo comercial – que exigiam que não fosse permitida a veiculação de comerciais por conta da alta competitividade do mercado – como também de entidades ligadas ao setor público, que temiam uma vinculação excessiva à dotação orçamentária do Governo Federal, o que poderia desencadear na perda de autonomia da emissora. Desta forma, buscou-se um equilíbrio nas receitas, ainda que

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a dotação orçamentária tenha se configurado como fonte principal, e haja previsão de veiculação de publicidade (desde que institucional ou estatal), não sendo permitida, entretanto, que esta exceda o tempo total de 15% da programação. O artigo 11, da Lei 11.652/08, que estabelece os recursos que constituirão a receita da EBC, prevê, além da dotação orçamentária: a prestação de serviços; doações por entes públicos ou privados; apoio cultural; veiculação de publicidade institucional ou de órgão da administração pública; acordos ou convênios com entidades nacionais e internacionais, públicas ou privadas; entre outros. O parágrafo 1° do mesmo artigo define apoio cultural como sendo o “pagamento de custos relativos à produção de programação ou de um programa específico, sendo permitida a citação da entidade apoiadora, bem como de sua ação institucional, sem qualquer tratamento publicitário.” (BRASIL, 2008) Entende-se, portanto, que é permitido o patrocínio de programas por empresas privadas. Jonas Valente (2009, p.161) prevê que esta possibilidade pode ter um caráter nocivo à autonomia da emissora No momento em que este (patrocínio) ocorre por programa, cria-se uma ingerência do patrocinador que pode ser direta no seu conteúdo, já que este se arvora o mantenedor daquela atração ou indireta, cabendo a ele grande poder sobre a existência ou não do programa.

Além das fontes já citadas, a Lei 11.652 também institui a Contribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública, a ser paga anualmente pelas prestadoras do serviço de radiodifusão ou comunicação em geral – inclusive empresas de telefonia. Do total arrecadado, o mínimo de 75% deverá ser repassado à receita da EBC. A contribuição não se configura um novo ônus para os setores, já que equivale a 10% da Taxa de Fiscalização de Funcionamento do Fundo de Fiscalização das Telecomunicações (Fistel) já paga pelas empresas. Estima-se que a EBC arrecade mais R$ 150 milhões – além dos R$ 350 milhões já previstos da dotação orçamentária. O artigo 11, inciso XII, da mencionada Lei prevê também a possibilidade de “rendas provenientes de outras fontes, desde que não comprometam os princípios e objetivos da radiodifusão pública estabelecidos nesta Lei.” (BRASIL, 2008)

Conteúdo e Programação Valério Fuenzalida (FUENZALIDA, apud VALENTE, 2009, p.178) classifica três tipos de programação que fazem parte dos modelos seguidos pelas televisões públicas ao redor do mundo: propaganda político governamental, que já esteve mais em voga em períodos ditatoriais, mas alguns resquícios perduraram mesmo após os processos de redemocratização; educativo-formal, também bastante presente no período de governo militar, principalmente no Brasil, com uma rede de programas de cunho pedagógico formal (tais como telecursos), que visam suprir a necessidade de educar em larga escala e complementar o ensino precário das escolas públicas; e alta cultura e debate acadêmico, com programas voltados a discussões mais aprofundadas, de caráter elitista, já que requerem um embasamento teórico-cultural não comum entre camadas populares.

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A respeito deste último tipo, Fuenzalida levanta o seguinte questionamento: é legítimo que haja uma programação de difícil assimilação por camadas populares em uma emissora que se dispõe a atingir minorias? De acordo com o nosso entendimento, sim. Primeiro porque a televisão pública não visa atender unicamente às minorias, mas a todos os setores da sociedade, inclusive os mais intelectualizados. E em segundo lugar, acreditamos que tais programas ajudam na manutenção do nível de qualidade da programação que se espera em uma emissora pública, e que em cujo foco não se devem manter unicamente os índices de audiência. Entretanto, ainda que manter altos níveis de audiência não seja o objetivo principal, é necessário que haja uma certa satisfação por parte dos telespectadores, de modo que a televisão pública tenha razão de existir. Para isso Irene Meijer (MEIJER, apud VALENTE, 2009, p.181) propõe uma avaliação da atuação das emissoras pelo “impacto” produzido por elas na população, não consubstanciado necessariamente em número de receptores, mas no nível de satisfação destes. Jonas Valente (2009, p.181) resume o modelo de avaliação proposto por Meijer da seguinte forma É necessário incorporar como alvo um terceiro perfil de audiência para além da polarização entre cidadãos e consumidores, o “enjoyer” (desfrutador). Assim, as emissoras não deveriam apenas encarar os indivíduos como cidadãos a serem informados e envolvidos no processo democrático, mas como receptores com demandas simbólicas lúdicas e estéticas a serem satisfeitas.

A programação da TV Brasil, segundo a jornalista e diretora-presidente da EBC Tereza Cruvinel (2009, online), segue o padrão de oferecer conteúdos diferentes dos transmitidos pelas emissoras comerciais, como uma forma de complementar e permitir que haja uma maior pluralidade nos meios de comunicação. De acordo com Cruvinel, “a programação procura observar a diversidade. O Jornalismo da TV Pública deve dar espaços, em sua pauta, para temas que nem sempre estão na agenda da mídia em geral.” No que se refere à busca por audiência ou por uma programação de qualidade, a jornalista afirma ainda: “a audiência é importante sim, e trabalhamos por ela, sem abdicar da natureza diferenciada e complementar da programação, focada em cultura, informação, debate e formação da cidadania.” Um importante avanço trazido pela Lei 11.652/08, que criou a EBC, foi prever a realização de audiências públicas periódicas para debater acerca da programação; coletar críticas e sugestões sobre a programação da TV Brasil e das emissoras de rádio da empresa e indicar as mudanças necessárias para que a programação das emissoras cumpra de maneira mais adequada a missão para a qual foi criada. Uma audiência foi realizada em junho de 2010, no Rio de Janeiro. Para a então presidente do Conselho Curador, Ima Vieira A participação do público é fundamental para a construção da EBC, tanto das entidades organizadas como dos ouvintes e telespectadores em geral. É partir dessas contribuições que podemos definir os rumos para que o conteúdo gerado pelos veículos da empresa cumpra da melhor forma possível a sua missão pública (EBC, 2011, online)

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Dentre a programação da TV Brasil, ganha destaque os programas infantis, com quase 25% do tempo de transmissão semanal, além de jornais, debates, entrevistas, programas pedagógicos, entre outros. A preponderância da programação infantil é explicada por Leopoldo Nunes, ex-diretor de programação e conteúdos da EBC, pela nova conjuntura da sociedade contemporânea, na qual as crianças passam boa parte do tempo livre assistindo à TV, de modo que esta passa a ser uma das principais formadoras de valores da nova geração. (NUNES, apud VALENTE, 2009, p.184) Em contrapartida, apenas uma pequena porcentagem da programação destina-se aos jovens. Tal cenário torna-se preocupante, para Valente (2009, p.186) tanto porque a juventude constitui um “segmento etário altamente participativo”, como também pelo fato de que é essa parcela da população que está mais em contato com as novas mídias, tais como a internet. Desta forma, o autor alerta que “o atendimento precário da juventude de hoje significa a perda de vínculo com o público adulto da próxima geração.”

CONCLUSÃO O fenômeno da concentração midiática, decorrente da globalização e de políticas neoliberais, resulta em um cenário de oligopolização, de modo que poucas empresas passam a controlar o mercado cultural de massas, bem como as informações transmitidas por esse meio. Desta forma cria-se uma situação indesejável de controle social por uma esfera privada, que se beneficia com a estrutura da sociedade de consumo, ajudando, portanto, a promover esses valores. A concentração midiática aparece em escala global, com os gigantescos conglomerados que controlam meios de comunicação em vários países, e em vários tipos de mídia; em escala nacional, com o número reduzido de emissoras no país; e em escala regional, com grupos de mídia que dominam o mercado estatal e também praticam a propriedade cruzada. Ainda que a Constituição Federal vigente proíba expressamente o oligopólio midiático, o cenário de mídia brasileiro apresenta um quadro desproporcional em relação à imensa extensão territorial do país. Não se pode, contudo, afirmar categoricamente a presença de uma estrutura de oligopólio, já que não existe um número exato que configure e confirme essa situação, principalmente porque a interpretação que comumente se faz do Decreto 236/67, que determina o número de emissoras permitido por entidade, é de forma a considerar entidade como pessoa física. Entretanto, o domínio majoritário, quase absoluto, de empresas privadas no setor representa um risco à diversidade de opiniões transmitidas pelos meios de comunicação em massa, e ao pluralismo de culturas e estilos de vida. Neste sentido, a criação de uma emissora pública como TV Brasil representa um grande avanço, no que se refere à democratização dos meios de comunicação. Analisando o modelo de gestão, concluímos que a participação da sociedade civil poderia ser mais efetiva, ainda que esta represente mais da metade da composição do Conselho Curador, e haja audiências públicas periodicamente, pois tais atuações se restringem ape-

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nas a discussões ligadas à programação. Há ainda a ingerência preponderante do Presidente da República no processo de nomeação dos principais cargos, o que pode gerar uma interferência na independência da emissora com relação ao governo. No que se refere ao modelo de financiamento, concluímos que a vinculação do orçamento ao governo federal faz-se necessária, na medida em que um modelo de licença paga, como o adotado em alguns países da Europa, não seria compatível com a renda anual de grande parte dos brasileiros. Posto também que tal vinculação orçamentária não atinge o conteúdo transmitido, já que o controle desta instância é exercido pelo Conselho Curador. No que tange à programação, percebemos que o objetivo de complementar o conteúdo transmitido pelas empresas privadas está sendo efetivado, e percebe-se a disposição em abordar uma maior diversidade de idéias, buscando debater questões sob novas perspectivas, expondo vieses diferentes dos oferecidos pelos meios de comunicação comerciais.

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A TV Brasil e a democratização da televisão brasileira - Marcio Acselrad, Natália Flavia de Lima

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Sobre a independência das emissoras públicas no Brasil Sobre la independencia de la radiodifusión pública en Brasil Of the independence of public broadcasting in brazil

Eugênio Bucci* Jornalista, graduado em Comunicação Social e em Direito pela Universidade de São Paulo, é doutor pela Escola de Comunicações e Artes da USP, onde atualmente é professor na graduação e pós-graduação. Dirige o curso de pós-graduação em Jornalismo na ESPM . Email: ebucci@usp.br

Revista Eptic Online Vol.15 n.2 p.121-136 mai-ago 2013 Recebido em 08/02/2013 Publicado em 15/05/2013


Sobre a independência das emissoras públicas no Brasil – Eugênio Bucci

RESUMO Em 2008, a Lei nº 11.652 criou a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) a partir da fusão da antiga Radiobrás e da TVE do Rio de Janeiro. Apesar dos avanços na cultura da comunicação pública trazidos pelo advento da EBC, sua estrutura legal faz com que seja problemático caracterizá-la como uma emissora pública. Com base no exemplo da EBC, o presente artigo pretende debater as diferenças entre emissoras públicas, estatais e governamentais e a importância da independência – tanto dos governos como dos anunciantes – para o melhor desenvolvimento da comunicação pública de qualidade.

PALAVRAS-CHAVE EBC – comunicação pública – emissoras públicas – independência

RESUMEN En 2008, la Ley Nº 11.652 creó la Empresa Brasil de Comunicação (EBC) desde la fusión de Radiobrás y de la TVE de Rio de Janeiro. A pesar de las mejoras en la cultura de la comunicación pública trajo por el advenimiento de EBC, su estructura legal hace que sea problemático caracterizarla como un organismo público de radiodifusión. A partir del ejemplo de EBC, este artículo tiene como objetivo discutir las diferencias entre las emisoras públicas, estatales y gubernamentales y la importancia de la independencia – tanto del gobierno como de los anunciantes – para el mejor desarrollo de la comunicación pública de calidad PALABRAS CLAVE EBC – comunicación pública – radiodifusión pública – independencia

ABSTRACT The Empresa Brasil de Comunicação (EBC) was created in 2008 on behalf of Bill number 11,652. It was the merging of two other national companies: Radiobrás and Rio de Janeiro’s TVE. Although the creation of EBC represents a remarkable progress in the national culture of public communication, its legal structure bears difficulties to precisely define it as a public broadcaster. Based on EBC’s case, this article aims to discuss the differences between public, state and governmental broadcasters as well as the importance of independence – either from the government and the advertising market – for the better development of quality public communication. KEYWORDS public communication – public broadcasting – independence

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Introdução otimista *Colaborou para a confecção deste artigo o estudante de jornalismo (ECA-USP) Ruan de Sousa Gabriel

1- Um levantamento dessas emissoras foi apresentado no livro Em Brasília, 19 horas, uma das fontes deste artigo. “Além de quatro estações de rádio, a empresa [Radiobrás] contava com duas emissoras de TV, uma agência de notícias na internet e outros serviços. Entre as rádios, lá estava a histórica Nacional do Rio de Janeiro, que, nas décadas de 1940 e 1950, foi o fator de integração nacional do Brasil. Em 2003, a Radiobrás era responsável também pela Rádio Nacional da Amazônia, em ondas curtas, cobrindo toda a Região Norte, e por outras duas emissoras, ambas no Distrito Federal, uma FM e outra AM – esta com capacidade de atingir potencialmente o país inteiro durante a noite, quando as ondas médias viajam com mais facilidade. Uma das estações de TV, a NBr, encarregada de cobrir os atos do presidente da República e do Poder Executivo Federal (a NBr estava para o governo federal assim como a TV Senado estava para o Senado ou a TV Justiça para o Supremo Tribunal Federal), distribuída por operadoras de cabo, já alcançava cerca de 1,5 milhão de lares no Brasil, com 18 horas de programação diária. A segunda emissora de TV, a TV Nacional, de sinal aberto, atingia o Distrito Federal, também com 18 horas de programação. A agência de notícias da Radiobrás era a Agência Brasil.” (BUCCI, 2008, p. 32-33)

A Empresa Brasil de Comunicação (EBC) é mais conhecida hoje pela televisão que levou ao ar, a TV Brasil. Nasceu da fusão da antiga Radiobrás (que contava com duas emissoras de televisão, quatro emissoras rádio e a Agência Brasil)1 com a TVE do Rio de Janeiro, controlada pela Fundação Roquette Pinto – que, além da TV, controlava a Rádio MEC –, e de uma estação de TV educativa no estado do Maranhão, a TVE-Maranhão. Comparada às instituições que lhe deram origem, a EBC trouxe mais racionalidade à gestão das emissoras federais, pelo simples fato de unificá-las num organismo. Com a administração centralizada, a economia de recursos e os ganhos de escala são mais viáveis. Ao mesmo tempo, a TV Brasil representou o que normalmente se chama de “salto de qualidade” na programação dos canais da extinta Radiobrás. O advento da EBC contribuiu ainda para o avanço da cultura de comunicação pública não governamental no País. Uma das demonstrações desse progresso foi o lançamento, na própria EBC, dos Indicadores de qualidade nas emissoras públicas – uma avaliação contemporânea, produzido pelo autor deste artigo em parceria com Marco Chiaretti e Ana Maria Fiorini e publicado pela Unesco – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, na Série Debates CI, Nº 10. Por ocasião do lançamento dos Indicadores, o diretor-presidente da empresa, Nelson Breve, enfatizou a importância de uma gestão autônoma e independente em uma instituição como a EBC. Na solenidade, que teve lugar no auditório da EBC, na manhã de 28 de junho de 2012, Nelson Breve leu, do planejamento estratégico da empresa, o item “Valores”, que afirma o seguinte: Temos compromisso com a comunicação pública. Acreditamos na independência dos conteúdos, na transparência e na gestão participativa. Defendemos os direitos humanos, a liberdade de expressão e o exercício da cidadania. Valorizamos as pessoas e a diversidade cultural brasileira. Cultivamos a criatividade, a inovação e a sustentabilidade.2

Quando levamos em conta que a EBC, bem como a antiga Radiobrás, é a responsável pela produção do programa radiofônico A Voz do Brasil, que é uma peça de divulgação oficial, a valorização da independência de gestão no discurso do dirigente máximo da instituição é um fator positivo. Há razões para otimismo fundamentado quando pensamos sobre o futuro da EBC. Mas também há razões para preocupação.

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Alguns conceitos de comunicação pública Antes de prosseguirmos com as razões que inspiram cuidados ou mesmo preocupação, convém esclarecer aspectos metodológicos que orientam a linha de argumentação do presente artigo, bem como explicitar, ainda que brevemente, os conceitos de comunicação pública que embasam o nosso pensamento. Este é um artigo sobre comunicação pública, embora seu foco se volte, aqui, não para a comunicação pública em geral, mas para uma de suas faces, qual seja, a das emissoras públicas, a partir de um caso concreto: a EBC. Sem prejuízo da análise da EBC e da razão de ser das emissoras públicas, no entanto, cumpre trazer à tona o conceito de comunicação pública a partir do qual este artigo se desenvolve, ainda que não haja como, neste espaço, aprofundar o referencial teórico. Um número significativo de pesquisadores, alguns deles em universidades brasileiras, vem se ocupando desse referencial. Um dos trabalhos mais expressivos nessa área, com absoluta segurança, é a dissertação de mestrado de Marina Koçouski: A comunicação pública face ao dever estatal de informar. Para não dizer que não falei de flores: estudo de caso do Incra-SP (2012). Aprovado no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação (PPGCOM) da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), o trabalho de Marina Koçouski reexamina diversos entendimentos sobre o tema e nos aponta uma direção contemporânea e cristalina. Valendo-se da leitura de influentes teóricos da comunicação pública, como o colombiano Juan Camilo Jaramillo López (2003, 2005, 2010a, 2010b; López et al, 2004), o italiano Paolo Mancini (2008) e o francês Pierre Zémor, cuja obra La comunication publique (1995) ainda é uma referência, a dissertação nos proporciona, vale enfatizar, um painel esclarecedor. Para começar, mostra como é amplo o universo da comunicação pública. Entre outras coisas, Koçouski nos mostra que, apesar de exercida principalmente por empresas ou entidades públicas, a comunicação pública, no limite, pode ser conduzida por atores localizados fora do Estado: Terceiro Setor (ONGs), partidos políticos, órgãos de imprensa, sociedade civil organizada e até mesmo por empresas privadas. Portanto, não se pode pretender que a comunicação pública seja apenas aquela cujo emissor é o agente público. Mas é possível – e necessário – ir além. Na referida dissertação, aprendemos que o conceito de comunicação pública, segundo outros autores, pode abranger discursos ou campos distintos, do jornalismo à publicidade, passando pelas chamadas relações públicas. O crucial, aí, é entender que a comunicação pública, voltada para esclarecer a cidadania sobre seus próprios direitos, é presidida pelo direito à informação de que todo cidadão é titular. Esta, especialmente, não se deixa capturar por interesses partidários, religiosos ou comerciais. Esta, especialmente, é a que mais nos importa. A partir de apontamentos feitos por López (2003), Koçouski e Bucci (2012) apresentam um quadro (reproduzido abaixo) com a finalidade de identificar as diferenças de propósi-

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tos entre comunicação pública e comunicação de interesse privado.

No quadro acima, a comunicação pública é definida como impessoal, focada no interesse público, alicerçada no direito à informação – e não tem a finalidade de promover a autoridade ou a imagem do governo. Não é, portanto, uma comunicação com fins promocionais ou propagandísticos. Quanto à comunicação comercial, esta é presidida por interesses de setores privados, que, embora legítimos e legalmente estabelecidos, são interesses, nesse caso, econômicos, políticos, religiosos ou partidários. Chegamos aqui a uma clivagem essencial. A comunicação pública, na perspectiva adotada aqui, não pode ser confundida com a comunicação de inspiração comercial ou promocional – embora possa, excepcionalmente, resultar dos esforços de instituições sem quaisquer vínculos com a administração pública. A partir disso, apoiando-se no contraste entre comunicação pública e comunicação comercial, Koçouski oferece um esboço de conceito que separa bem as coisas: “Comunicação pública é uma estratégia ou ação comunicativa que acontece quando o olhar é direcionado ao interesse público, a partir da responsabilidade que o agente tem (ou assume) de reconhecer e atender o direito dos cidadãos à informação e participação em assuntos relevantes à condição humana ou vida em sociedade. Ela tem como objetivos promover a cidadania e mobilizar o debate de questões afetadas à coletividade, buscando alcançar, em estágios mais avançados, negociações e consensos.” (Koçouski, 2012, p. 92) Sem nos afastar dessa dissertação, podemos seguir adiante. Segundo o italiano Paolo Mancini (2008), a “comunicação pública” se diferencia da “comunicação de interesse privado” a partir de três dimensões inter-relacionadas: os promotores ou emissores, a

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finalidade e o objeto. Os promotores ou emissores são, como já dito, as instituições, na maioria das vezes públicas, que se norteiam pelo cumprimento do dever de informar o cidadão. O objeto são os “negócios de interesse geral” (Arena apud Mancini, 2008, p. X), ou seja, tópicos de interesse comum. A finalidade, por sua vez, é a dimensão que mais define a função da comunicação pública. A finalidade deve ser o exercício de uma comunicação que busque promover valores sociais ou serviços de interesse social. Vale a pena recordar que a comunicação pública não tem como finalidade ser uma “comunicação sobre interesses particulares, privados, de mercado, pessoais, corporativos, institucionais, comerciais, promocionais ou de ‘um público’” (Duarte, 2007, p. 61). A partir de apontamentos feitos por Pierre Zémor (1995), Koçouski elenca objetivos bem próprios da comunicação pública: “a) colocar à disposição os dados públicos (dever de informar, garantir acesso à informação e administrar eventual comercialização de dados públicos); b) promover o relacionamento entre o serviço público e os seus usuários (recepção/atendimento, escuta, diálogo); c) divulgar os serviços e as políticas públicas; d) realizar campanhas de interesse geral (comunicação cívica e campanhas de causas sociais); e) valorizar a instituição (imagem, identidade e legitimidade dos serviços públicos, comunicação interna). E, adicionalmente, estabelecer o debate público (diálogo, negociação, coleta de opiniões e formalização de consensos)” (Koçouski, 2012, p. 63). A comunicação pública, portanto, embora nem sempre tenha como emissor um agente público formalmente constituído, é, em regra, realizada ou financiada por agentes públicos, ou, de forma um pouco mais ampla, por agentes não comerciais, tematizando matérias ou tópicos de interesses comuns e relativos aos direitos dos cidadãos. Outro aspecto essencial: a comunicação pública não tem objetivo de lucro e não se confunde com a indústria do entretenimento. Constitui uma ação cultural e política (mas não partidária; política no sentido mais alto do termo). A partir disso, ficam mais claros os fundamentos metodológicos e a perspectiva teórica aqui adotados. A comunicação pública deve estar sempre subordinada ao direito à informação (que, no Brasil, é, a propósito, um direito constitucional) e não deve nunca ser utilizada para a promoção de autoridades, assim como não deve se confundir com propaganda comercial (por mais que seja cada vez mais comum o hábito de todos os governos de dirigir verbas públicas para o financiamento de campanhas de publicidade governamental em veículos comerciais de comunicação).

Obstáculos presentes (um toque de realismo) Passemos agora aos aspectos que inspiram preocupação. Em linhas gerais (regimentais, estatutárias, legais), a EBC é uma estatal como as outras – muito parecida, a propósito, com a velha Radiobrás. Ela almeja fazer comunicação pública, não governamental, mas ainda não chegou lá. A sua conformação legal não corresponde

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Sobre a independência das emissoras públicas no Brasil – Eugênio Bucci 2 - As declarações do diretorpresidente da EBC, Nelson Breve, assim como todo o debate de lançamento dos Indicadores de qualidade nas emissoras públicas - uma avaliação contemporânea estão disponíveis em: http://memoria.ebc. com.br/portal/content/ assista-ao-v%C3%ADdeodi%C3%A1logosebc-debate-sobreimport%C3%A2ncia-dosindicadores-de-qualidadenas-emis. Acesso em: 6/2/2013.

3 - Disponível em: http:// www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_ato20072010/2008/lei/l11652.htm. Acesso em: 6/2/2013.

àquela que deveria ter uma emissora pública verdadeiramente pública. O que lhe falta, essencialmente, é exatamente isto: a independência. Em poucas palavras, se a EBC não pode ser caracterizada como uma empresa de comunicação pública (que, aqui, significa uma comunicação não governamental), isso se deve às particularidades da legislação que a criou. Algumas dessas dificuldades foram expostas no ensaio “É possível fazer televisão pública no Brasil?” (Novos Estudos, nº 88, nov. 2010) e em artigos publicados no jornal O Estado de S.Paulo, a saber, “Uma Radiobrás sem ‘eira’?” (14/2/2008), “Sem independência não há TV pública” (28/2/2008) e “TV Brasil: pública, estatal ou governamental?”. O que se segue, nos próximos parágrafos, são passagens que retomam os argumentos já trabalhados nesses artigos. De acordo com o artigo 19 da Lei n.º 11.6523, de 7 de abril de 2008 (que efetivou a medida provisória de 2007, editada para instituir a fusão), cabe à Presidência da República nomear o diretor-presidente e o diretor-geral da empresa. Nas emissoras públicas – que, por serem públicas (não governamentais), não devem ser controladas pelo governo, mas por instâncias que representem a sociedade civil –, o executivo-chefe é escolhido por um conselho de representantes da sociedade. Já nas emissoras estatais, quem escolhe o dirigente é o representante do poder ao qual a emissora está vinculada (Executivo, Legislativo ou Judiciário). Por esse critério, portanto, a EBC é uma empresa estatal controlada pelo governo (poder Executivo), embora suas emissoras de TV e de rádio, como a TV Brasil, veiculem programas típicos de emissoras públicas. Seus canais, ou alguns deles, demonstram clara vocação de ser públicos – mas a empresa estatal que os controla não o é. A distinção entre o público e o estatal não é simples nem pode ser descrita em termos superficiais. O Estado democrático deve se pautar pela transparência, o que significa dizer que seus processos devem ser públicos. Nesse sentido, o Estado é público. Mais adiante, explicaremos em pormenores de que modo a emissora estatal também tem o dever de se conduzir segundo mecanismos públicos de gestão. No nível em que estamos trabalhando até aqui, no entanto, a emissora pública se diferencia (se afasta radicalmente) da empresa estatal na medida em que, na tradição brasileira, a emissora estatal tem seus dirigentes constituídos pelo Estado, segundo ato discricionário da autoridade estatal responsável – e, nas emissoras públicas, a indicação e a nomeação do dirigente executivo passa pela decisão de uma instância em que a sociedade civil tem representantes em maior número do que os representantes do Estado. Nesse sentido, pois, a EBC não pode ser considerada pública. Como veremos a seguir. A lei nº 11.652 criou o Conselho de Administração e o Conselho Curador da empresa. Há ainda o Conselho Fiscal, mas esse não tem função ativa na condução da entidade, pois cuida, como é de praxe, apenas da verificação e da aprovação das contas e da legalidade dos atos administrativos. O Conselho Administrativo é integrado por cinco membros: o ministro da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom) indica dois deles; o terceiro é o diretor-presidente da empresa (nomeado pela Presidência da República); os outros dois vêm, respectivamente, do Ministério do Planejamento e do Ministério das Comunicações. O Conselho Administrativo não é órgão figurativo; detém o comando da gestão da empresa, com a atribuição de eleger e destituir os diretores da

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EBC, à exceção dos dois que são nomeados diretamente pelo presidente da República (o diretor-presidente e o diretor-geral). Esse conselho é que manda, portanto. Quanto ao Conselho Curador, é composto por 22 membros: 15 representantes da sociedade civil, quatro do governo federal (ministros da Educação, Cultura, Ciência e Tecnologia e Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República), um da Câmara dos Deputados, um do Senado Federal e um funcionário da empresa, que representa seus pares. Sua composição é vistosa, mas seu poder é mínimo. O Conselho Curador tem atribuições mais consultivas do que efetivas. Para começar, todos os seus integrantes precisam ser nomeados pelo Presidente da República. As funções que lhe cabem mal arranham as competências do outro conselho, o de Administração. Aprova anualmente o plano de trabalho e a linha editorial da EBC, além de acompanhar e fiscalizar a veiculação da programação. É verdade que ele tem a incumbência de, por deliberação da maioria absoluta de seus membros, emitir voto de desconfiança à diretoria ou a um de seus diretores (a segunda advertência resultará necessariamente no afastamento de diretor em questão ou, se for o caso, de toda a diretoria), mas essa é uma hipótese remota (na prática, a EBC é de fato e de direito monitorada de perto pelo Conselho de Administração). Ainda assim, o Conselho Curador contém uma semente de independência. O caminho para garantir mais autonomia à EBC passa por aumentar a presença e o papel desse órgão dentro da empresa. Embora nomeado pelo presidente da República, tem o compromisso declarado de reunir representantes da sociedade e de agir com altivez. A partir daí, ele precisa conquistar politicamente a condição de tomar parte, mesmo que de modo indireto, da eleição dos dirigentes da empresa. Por que apenas o presidente da República e o Conselho de Administração, composto unicamente de representantes do governo, podem decidir sobre quem serão os diretores? Há outros problemas. Apesar de ter uma estrutura mais pública do que suas antecessoras (com a presença do Conselho Curador, por exemplo), a EBC ainda está vulnerável às vontades do Planalto. Isso não quer dizer que ela seja cotidianamente instrumentalizada pelo poder; quer dizer apenas que sua estrutura legal confere à Presidência da República os meios para constrangê-la, pressioná-la e enquadrá-la. Além de ter a natureza jurídica de uma estatal, a EBC é encarregada de operar, produzir e veicular comunicação governamental. O artigo 8.º da lei de 2008 a incumbe de “prestar serviços no campo de radiodifusão, comunicação e serviços conexos, inclusive para transmissão de atos e matérias do governo federal”, e de “exercer outras atividades afins, que lhe forem atribuídas pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República”. Vale lembrar que a EBC se reporta diretamente à Secretaria de Comunicação Social (Secom), que é um órgão da Presidência da República. Ela está legalmente subordinada a uma autoridade que lhe é externa, e essa autoridade, a Secom, tem por missão cuidar da imagem do governo federal. Logo, a EBC é parte orgânica da estratégia do Palácio do Planalto para construir e preservar a boa imagem do governo. Ora, isso não atende aos requisitos conceituais de uma emissora pública.

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Vinculada à Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, cujo ministro conserva a prerrogativa de indicar o presidente do Conselho de Administração, órgão superior de direção da estatal, a EBC pode ser vista como uma extensão da Presidência da República no campo da comunicação social. Isso faz dela uma instituição governamental, não uma emissora pública. Nos Estados democráticos, emissoras públicas têm muito mais afinidade com a área da cultura do que com áreas encarregadas da agenda da Presidência da República. São tratadas como entidades culturais, não como postos avançados da comunicação de governo. Com a EBC, deu-se o oposto. A Secom não é um organismo com finalidades culturais. Basta ver do que ela se ocupa. Em primeiro lugar, gerencia a publicidade do governo, organizando a compra do espaço publicitário nos meios de comunicação privados. Cuida também da assessoria de imprensa da Presidência da República, cuja finalidade é promover uma imagem favorável do presidente. A Secom faz comunicação de governo, que nada tem a ver com cultura em sentido amplo ou com a atividade jornalística em sentido estrito. Pelos cânones da ética jornalística, um organismo dedicado à assessoria de imprensa não deveria supervisionar uma empresa pública encarregada de informar com objetividade, isto é, de fazer jornalismo, ainda que jornalismo não comercial. Conclusão: se se quer de fato uma EBC pública e jornalística, não se pode querer uma EBC vinculada à Presidência da República. Admitamos que, na condição de empresa pública, a EBC desfrute de autonomia administrativa. É fato. Todas as estatais desfrutam de autonomia relativa. Entretanto, ligada ao Planalto, a EBC pode até ter autonomia (pouca) em termos administrativos, mas tem pouquíssima autonomia editorial e jornalística. A autonomia jornalística não combina bem com palácios de governo, quaisquer que sejam os palácios ou os governos. Exatamente por isso, para baixar riscos dessa natureza, as emissoras públicas dos países democráticos – dedicadas, por definição, à diversidade cultural e à informação apartidária –, quando precisam de algum laço com o Estado ou o governo, tendem a fazê-lo por meio da área da cultura. Em síntese, é ao Ministério da Cultura que a EBC deveria se ligar, não à Presidência da República, diretamente. O vínculo da EBC com a Secom, portanto, não poderia ser mais impróprio.

Emissoras públicas, estatais e governamentais Neste ponto, vale aprofundar minimamente as distinções entre os vários tipos de emissoras não comerciais: as públicas, as estatais e, dentro do grupo das estatais, as governamentais. As definições que veremos a seguir foram retiradas do livreto já citado neste artigo, Indicadores de qualidade nas emissoras públicas – uma avaliação contemporânea, cujo lançamento aconteceu em 2012 na sede da própria EBC. O texto abaixo, com pequenas variações, reproduz passagens do livreto mencionado. Tendo em vista o uso indiscriminado para a expressão “emissoras públicas”, que tem servido para designar tanto redes de televisão e rádio estatais controladas por ditaduras – que, rigorosamente, não são públicas porque não estão sob controle da sociedade, mas

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de tiranias que oprimem a sociedade – até experiências de emissoras piratas – que não são públicas porque operam à margem da lei democrática –, convém demarcar as divisas principais do conceito. Partimos da noção de que uma emissora pública pertence ao público e é administrada segundo critérios públicos (não estatais), como ficará claro. A emissora estatal (de televisão ou rádio), como já foi assinalado há poucos parágrafos, é também pública, ou seja, ela é pública na exata medida em que o Estado democrático deve ser público. A emissora estatal há de ser gerida como coisa pública. Não obstante, nem toda emissora pública é estatal e, muito menos, nem toda emissora pública deve ser estatal. Quando se diz que toda emissora estatal é necessariamente pública, o que se pretende sublinhar é que não se concebe, no regime democrático, que uma emissora pertencente ao Estado não se ponha a serviço do interesse público; como todo órgão vinculado direta ou indiretamente à administração pública, ela deve pautar-se pelos princípios constitucionais da moralidade, da legalidade e da impessoalidade, não sendo legítimo que ela seja posta a serviço de interesses pessoais, partidários, familiares, comerciais ou religiosos. Emissora estatal, enfim, não é sinônimo – nem deve ser – de uma emissora de propaganda partidária empenhada na defesa dos interesses eleitorais ocasionalmente instalados no governo. No Estado de Direito, se uma emissora se pauta segundo tais parâmetros, age ao arrepio dos princípios democráticos em vigor nas sociedades livres. Em resumo: emissoras estatais devem ser públicas, devem cumprir uma finalidade pública, não são partidárias e são pautadas pela impessoalidade. Mas isso não quer dizer que emissoras públicas e emissoras estatais sejam perfeitamente iguais ou análogas. Há profundas distinções entre as duas categorias. A definição de emissora estatal se aplica às emissoras pertencentes ao Estado ou a ele vinculadas. A definição de emissora pública, para efeitos deste artigo, vai se aplicar às que não guardam vínculos administrativos diretos ou indiretos com o Estado. Passemos adiante. A definição de emissora estatal resulta do atendimento de três requisitos: (1) sua propriedade e sua natureza jurídica a vinculam direta ou indiretamente ao Estado, nos termos da legislação que rege a administração pública do país; (2) sua gestão cotidiana está subordinada a autoridades de um dos três poderes da República; e (3) sua programação sofre limites decorrentes dos dois requisitos anteriores, estando, portanto, mais a serviço das necessidades de divulgação decorrentes da lógica interna do Estado do que a serviço de refletir livremente o debate e a diversidade cultural que resulta das dinâmicas não estatais típicas da vida social. Agora vejamos um pouco mais de perto os significados de cada um desses três requisitos. 1. Quanto à propriedade e natureza jurídica, a emissora estatal é uma instituição de propriedade do Estado, seja por ter a natureza jurídica de empresa pública (estatal), pertencendo à administração pública indireta, como é o caso, no Brasil, da EBC, seja por integrar a administração pública direta (TV Justiça, órgão integrante do Supremo Tribunal Federal, TV Câmara, que integra a Câmara dos Deputados, TV Senado, pertencente ao Senado, e outras).

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2. Quanto à forma de gestão, as emissoras estatais têm seus dirigentes e seus quadros executivos nomeados por órgãos de um dos três poderes da República. A gestão não é, nas estatais, independente do aparelho de Estado, ou do poder estatal. 3. Quanto à programação, as emissoras estatais se subordinam a limites que, em última instância, dependem da aprovação ou da concordância da autoridade estatal. Mesmo que seu conteúdo contemple algum nível de diversidade, de pluralidade ou de crítica, os seus parâmetros são limitados por uma autoridade externa – externa a ela, emissora, posto que essa autoridade não pertence ao quadro funcional da emissora, mas a uma instância estatal que exerce o controle, de fora para dentro, sobre a emissora.

Emissora governamental é uma emissora estatal específica: seu vínculo administrativo se dá com o Poder Executivo e esse vínculo implica subordinação, expressa ou velada. Emissora legislativa é a emissora estatal que se vincula, diretamente, a uma casa do Poder Legislativo (federal, estadual ou municipal). Emissora judiciária é a emissora estatal vinculada ao Poder Judiciário. Passemos agora ao conceito de Emissora Pública propriamente dita, seja de televisão ou de rádio. Esse conceito resulta do atendimento dos seguintes requisitos. Em primeiro lugar, sua propriedade e sua natureza jurídica não a vinculam direta ou indiretamente ao Estado, nos termos da legislação que rege a administração pública, mas também não a caracterizam como empresa comercial, uma vez que ela não tem finalidade de lucro e não é financiada pelo mercado anunciante. Como regra, ela não veicula comerciais e, nesse mercado, não compete com as emissoras comerciais.

4- PAPATHANASSOPOULUS, S. apud BENSON, R.; POWERS M. Public Media and Political Independence: Lessons for the Future of Journalism from Around the World, p. 12.

Em segundo lugar, seu financiamento é de natureza pública, ou seja, ela vive de dotações regulares vindas do Estado ou da sociedade. Quando vindos da sociedade, os recursos que financiam a emissora pública podem resultar de uma taxa – compulsória (license fee) – ou de doações voluntárias. O fundamental, para esta conceituação, é que esses aportes financeiros estejam previstos em lei e sejam protegidos por lei, de tal forma que não possam ser desviados, pela autoridade pública, para outras finalidades, e também não possam ser contingenciados de acordo com a discricionariedade do agente público. Stylianos Papathanassopoulos sugere que o financiamento por meio da taxa faz com que o público se sinta mais representado pela televisão pública do que quando ela é financiada pelo governo, pois “o financiamento estatal direto pode, de uma maneira ou de outra, afetar seriamente a independência das emissoras públicas, ou, na melhor das hipóteses, a percepção pública de sua independência”.4 A lei, também, deve deixar expressa a não vinculação da emissora pública a qualquer autoridade externa ao seu próprio corpo funcional. Ressalte-se que os conselhos curadores, que abrigam representantes da sociedade e representantes de instituições, como universidades, são órgãos internos, que integram o corpo da emissora pública. O que contraria

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sua natureza de emissora pública não é a existência dos conselhos, nem a existência de representantes da sociedade nos conselhos, mas a subordinação, legal ou informal, tácita, a uma autoridade do Poder Executivo, do governo ou de outro poder estatal. A emissora pública não deve prestar qualquer forma de contrapartida política ao recebimento de recursos dos poderes públicos. Para que fique bem claro: na emissora pública, a gestão cotidiana não está subordinada a autoridades de um dos três poderes da República; e sua programação não sofre limites oriundos de uma autoridade externa. Detalhemos um pouco mais esses pontos. 1. Quanto à propriedade ou natureza jurídica, a emissora pública pode constituir uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), figura que aparece no direito brasileiro, ou uma fundação de direito privado, desde que preveja mecanismos de verificação e fiscalização de sua administração pelo poder público e pelos cidadãos. O poder público a fiscaliza, por dever, mas não pode administrá-la. 2. Quanto à forma de gestão, a emissora pública tem seu órgão máximo de poder num conselho independente de representantes da sociedade. A nomeação pode passar por – ou mesmo se originar de – órgãos de Estado (o que acontece, por formas e mecanismos distintos, com várias emissoras públicas no mundo). Os conselheiros, no entanto, não devem obediência ou lealdade ao governante. Desfrutam de mandato e de autonomia expressa, verificável e comprovada. O conselho deve ser plural – plural segundo diversos critérios, inclusive o critério partidário, mas não deve restringir-se ao mero rateio entre os partidos, o que concorre para torná-lo uma grosseira extensão da lógica parlamentar – e deve se distinguir pela presença de pessoas de notoriedade pelo seu saber, por sua autonomia intelectual e por sua conduta ética. O conselho é o responsável pela escolha e designação do executivo chefe, que se encarrega, a fim de se assegurar a autonomia administrativa, da contratação dos dirigentes a ele subordinados. 3.Quanto à sua programação, existem dois requisitos conceituais, de método. O primeiro é que ela, ainda que de má qualidade, seja determinada e posta no ar com clara autonomia, não dependendo de qualquer forma de aprovação ou anuência de autoridades externas. O segundo requisito é que, para ter de fato uma programação pública, segundo os parâmetros aqui delineados, ela seja pautada por valores, metas e princípios que dão prioridade à diversidade de vozes, à experimentação de linguagem, à informação crítica e independente, à preocupação com a formação de cidadãos autônomos, sem ter finalidade comercial, partidária, governamental ou religiosa. Esses parâmetros, ao lado de outros a serem expostos mais adiante, caracterizam a programação de uma emissora pública.

A emissora comunitária, nos marcos do presente trabalho, é considerada uma subespécie da emissora pública, que se diferencia desta em função de seu alcance geograficamente delimitado em áreas menores. A emissora comunitária há de ser pública – o que significa que ela não terá finalidades ou perfis comerciais e, tampouco, poderá ser controlada por órgãos estatais. Estabelecidas essas duas precondições, as emissoras comunitárias admitem inúmeras variações em sua composição e em sua vocação. Elas são múltiplas como são múltiplas as comunidades humanas.

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Bandeiras éticas e estéticas O que faz falta ao Brasil são emissoras públicas. Temos sofrido uma avalanche de aparelhos estatais ou governamentais de comunicação que, no fundo, constituem máquinas de propaganda ideológica financiadas pelo erário. Se a EBC pretende firmar-se como uma instituição de veículos verdadeiramente públicos, não subordinados ao governo, deve orientar seus esforços na direção da independência. Trata-se de um programa essencialmente ético – posto que alicerçado em valores éticos – a ser cumprido pelas emissoras que querem prestar serviços à sociedade segundo uma orientação crítica e independente. O melhor parâmetro para esse compromisso, no entanto, não se desenha em termos propriamente éticos, mas acima de tudo estéticos.

5- Novos Estudos, nº 88, nov. 2010.

As cinco bandeiras estéticas que devem nortear a ação das emissoras públicas foram previamente esboçadas no ensaio “É possível fazer televisão pública no Brasil?”5. Note bem o leitor que essas bandeiras retiram sua força não daquilo que as opõe à comunicação governamental, mas do que as diferenciam da comunicação comercial. Sendo livres da engrenagem do mercado, elas serão livres também dos tentáculos dos governantes. Não é por acaso que os maiores valores da comunicação governamental, no Brasil, são investidos (ou incinerados) em inserções de publicidade oficial paga nos veículos comerciais, quer dizer, a comunicação governamental, nesse ponto, é veiculada como comunicação de publicidade paga. É também por isso que, quando sabe se distanciar criticamente do mercado, a emissora pública adquire sua melhor consciência para se distanciar criticamente do governo. A seguir, as cinco bandeiras estéticas: Almejar o invisível: Não compactuar com a ilusão essencial do entretenimento, que é a de apoiar no visível o critério da verdade. A televisão pública não deve se contentar com figuras, cenas, imagens, mas fundamentalmente com ideias em movimento. É preciso sair da postura de ser bajulador de plateias, atitude definidora da indústria do entretenimento. O objeto essencial da emissora pública de televisão é menos a imagem que o pensamento. Desmontar a oferta do gozo: No campo estético, o alvo da radiodifusão pública deve ser o de desconstruir a aura da mercadoria. A radiodifusão pública deve se afastar da comunicação comercial, à qual deve dirigir um olhar crítico. As peças de publicidade oferecem o gozo próximo, o prazer do consumo subjetivo da imagem que se antecipa ao ato social, material, de consumir. As emissoras públicas devem denunciar essa lógica, esse sistema de adoração da mercadoria, e, em seu lugar, promover um espaço de cultura e de reflexão em que a mercadoria não impere – ou, pelo menos, em que a mercadoria não impere com tanta força. Desmontar a oferta de gozo é oferecer o diferente, deixando de insistir na reincidência de doses maiores das mesmas sensações. A emissora pública não imita a emissora comercial. A emissora pública vai aonde a emissora comercial não conse-

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gue chegar. O que nos leva à terceira bandeira. Buscar o conteúdo que não cabe na TV comercial: Quando a TV pública insiste em copiar os modelos dominantes da televisão comercial, ganha um ar de atração requentada, de espetáculo de segunda. Para fugir do que o senso comum chamaria de “chatice”, ela se deixa levar pela tentação de ficar parecida com os padrões estéticos das redes comerciais e, aí, sim, acaba ficando insuportavelmente chata. Se, em vez disso, a emissora pública embarcar na ruptura e surpreender seu público, poderá, até mesmo, revelar o invisível (a primeira bandeira). Emancipar em lugar de vender: O pesadelo que atormenta a televisão comercial é que, um dia, as pessoas não precisem mais dela. A realização da TV pública pressupõe o contrário – a emancipação. A emissora pública não teme a emancipação. Graças a isso, pode se diferenciar. Ela se realiza mais ou menos como o professor que se realiza quando o aluno alça voo próprio. Com essa proposta de pacto emancipador, ela atrairá mais gente, pois saberá corresponder a uma necessidade que encontra em aberto, que a televisão comercial não consegue atender. Ao não querer prender a sua audiência, adotando outra atitude diante dela, a televisão pública terá, seguramente, mais audiência. Desvencilhar-se do medo do “chefe”: Os administradores da TV pública vivem se declarando preocupados com a possibilidade de perder público. Nada poderia ser tão alucinado: eles não podem perder o que não têm. Mesmo assim, têm medo de perder (ainda mais) audiência e, aí, de levar bronca dos chefes, os governantes. Eles, os administradores das emissoras pública, em sua quase totalidade, não sabem que os governantes não são seus chefes de verdade – ao menos, não deveriam ser. Seus chefes de verdade são os cidadãos. Mas eles não sabem. Só perdendo o medo do “chefe” (suposto) é que deixarão de temer a falta de audiência. E aí, sem medo, é que atrairão verdadeiramente o público.

Conclusões A independência, portanto, impõe-se como o principal desafio das emissoras públicas no Brasil. Interessante isso: uma independência que se impõe. Soa como uma contradição, mas não se trada disso. Ser independente dos governos e do mercado é uma premissa de qualquer forma de comunicação social que se pretenda útil à cidadania e à emancipação. Tanto do ponto de vista ético (com postulados republicanos e democráticos a embasar sua linha de ação) como do ponto de vista estético (com bandeiras de ação cultural e artística que desvencilhem o ato criativo da finalidade educativa, catequética, propagandística, promocional ou comercial), a independência do poder e do comércio em geral se converte no marco essencial para a estruturação da comunicação pública no caso das emissoras públicas. Elas existem para servir ao fortalecimento da autonomia dos cidadãos e de cada pessoa. As emissoras públicas devem formar, elas mesmas, cidadãos independentes – independentes, inclusive, das emissoras públicas. Essa deontologia democrática e republicana se converte,

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no Brasil atual, numa bandeira radical. Inegociável. Para a TV Brasil (EBC) e para todas as demais, ou será assim, ou nada feito.

Referências Bibliográficas: BENSON, Rodney; POWERS, Matthew. Public media and political independence: lessons for the future of journalism from Around the World. [s.l.]: Freepress, 2011. BUCCI, Eugênio. É possível fazer televisão pública no Brasil? Novos Estudos. São Paulo, Cebrap, n. 88, dez. 2010. BUCCI, Eugênio. Em Brasília, 19 horas: a guerra entre a chapa branca e o direito à informação no primeiro governo Lula. Rio de Janeiro: Record, 2008. BUCCI, Eugênio. Sem independência, não há TV pública. O Estado de S.Paulo, São Paulo, p. A2, 28 fev. 2008. BUCCI, Eugênio. TV Brasil: pública, estatal ou governamental? O Estado de S.Paulo, São Paulo, p. A2, 22 set. 2011. BUCCI, Eugênio. Uma Radiobrás sem ‘eira’? O Estado de S.Paulo, São Paulo, p. A2, 14 fev. 2008. CALDERA, Alejandro Serrano. Marcos constitucionales y el servicio público de radiotelevisión en América Latina: um tema relevante. San José: UNESCO, 2006. (Coleção vox civis). CANAL ENCUENTRO. Manual de procedimientos, v. 2010. Buenos Aires: TV Encuentro, 2010. DUARTE, Jorge Antonio Menna. Comunicação pública. In: Boanerges Lopes (Org.). Gestão em comunicação empresarial: teoria e técnica. Juiz de Fora: Produtora Multimeios, 2007, v. 1, p. 63-71. FRAU-MEIGS, Divina; TORRENT, Jordi (Eds.). Mapping media education policies in the world. Nova York: UN Alliance of Civilizations; Huelva: Grupo Comunicar, 2009. KOÇOUSKI, Marina. A comunicação pública face ao dever estatal de informar. Para não dizer que não falei de flores: estudo de caso do Incra-SP. Dissertação de Mestrado. São Paulo: ECA-USP, 2012. LÓPEZ, Juan Camilo Jaramillo. Experiencia de la Comunicación Pública. The Communication Initiative Network. Canadá, ago. 2003. Seção América Latina. Disponível em: http:// www.comminit.com/es/node/150447. Acesso em: 16/4/2013.

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Sobre a independência das emissoras públicas no Brasil – Eugênio Bucci

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A Empresa Brasil de Comunicação e o sistema da política midiática* Empresa Brasil de Comunicación y la política mediática Brasil Communications Company and the media politics

Edna Miola Professora da Universidade Federal de Sergipe. Doutora em Comunicação Social (UFMG), Mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas (UFBA) e Graduada em Comunicação Social-Publicidade e Propaganda (UFRGS) Email: ednamiola@gmail.com

Revista Eptic Online Vol.15 n.2 p.137-152 mai-ago 2013 Recebido em 25/02/2013 Publicado em 15/05/2013


A Empresa Brasil de Comunicação e o sistema da política midiática – Edna Miola

RESUMO O trabalho discute o perfil dos atores e os interesses envolvidos na criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC – empresa de comunicação sob responsabilidade do Governo Federal). Tomando como ponto de partida a reflexão sobre o sistema da política midiática, o objetivo é compreender como se dão as relações desta empresa com as demais instituições do campo midiático, bem como suas interações com os domínios da política e da economia. Através de uma abordagem histórica, comparativa e sistêmica, apresentam-se os principais interesses acionados ao longo do processo que culminou com o atendimento a uma demanda tradicional no âmbito das políticas públicas de comunicação no Brasil

PALAVRAS-CHAVE : Sistema da Política Midiática. Radiodifusão Pública. Empresa Brasil de Comunicação

RESUMEN En este trabajo se analiza la creación de la Empresa Brasil de Comunicación (EBC - una empresa de comunicaciones propiedad del Gobierno Federal), con énfasis en el papel de los principales actores involucrados en ese proceso y sus intereses. Al reflexionar acerca de la política mediática, el objetivo es entender cómo los medios de comunicación comerciales y la EBC interactúan con los campos de la política y de la economía. A través de un enfoque histórico, comparativo y sistémico se presenta el debate sobre las consecuencias de la creación de una empresa de servicio público de radiodifusión en Brasil PALABRAS CLAVE Comunicación Política, Radiodifusión pública. Empresa Brasil de Comunicación

ABSTRACT This paper discusses the role of the main actors and their interests in the creation of Brazil Communications Company (EBC, a media corporation owned by the Brazilian Government). By reflecting on the system of political media, the goal is to understand how EBC and commercial mass media interact with the political and the economical fields. Through a historical, comparative and systemic approach one presents the debate about the consequences of the creation of a public service broadcasting company in Brazil. KEYWORDS Media Politics. Public Service Broadcasting. Brasil Communications Company

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1. Introdução * Este artigo é parte da pesquisa de Doutorado, realizada no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFMG e financiada com bolsa CAPES

Uma parcela relevante da pesquisa em comunicação vem se dedicando há décadas a discutir a radiodifusão pública no Brasil. A partir dessas abordagens tradicionais, entende-se que as emissoras públicas constituem um projeto nunca plenamente concretizado no país, uma vez que os interesses privados, de acordo com avaliações diversas, sempre se sobrepuseram ao bem comum nos momentos de tomada de decisão. As contribuições dos estudos das políticas de comunicação são importantes para entender a constituição histórica de um panorama regulatório e da configuração de um mercado da comunicação que não se assemelham de forma alguma a clássicas experiências européias, embora compartilhem certas referências com os vizinhos da América Latina. De acordo com os pesquisadores da área, sempre houve no país um anacronismo entre a introdução de novas tecnologias da comunicação e sua respectiva regulação. Adicionalmente, a tentativa de se conciliar um Estado autoritário com uma economia capitalista resultou em privilégios aos interesses privados de agentes dos campos econômico e político. No entanto, os esforços por explicar a Economia Política da comunicação de massa no

1- Algumas medidas foram levadas a cabo – a partir de diferentes estratégias de articulação política e com resultados também variados. Dentre essas iniciativas, destaca-se (1) o processo de criação da “Nova Lei da TV por Assinatura”, que propôs uma cota mínima semanal de três horas e meia, no horário nobre, de conteúdo nacional independente para todas as emissoras de TV paga; (2) a realização da Conferência Nacional de Comunicação; (3) a criação do Plano Nacional de Banda Larga (BRITTOS et al., 2010; DANTAS, 2010; PRESIDÊNCIA..., 2011; LEMOS e MARQUES, 2012). Alguns exemplos de iniciativas de regulação que foram minadas após forte resistência da oposição no Congresso e também na imprensa abrangem, por exemplo, (1) adoção do padrão de TV Digital desenvolvido nacionalmente; (2) criação da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual; (3) instituição do Conselho Federal de Jornalismo; (4) a inclusão de dispositivos sobre a Comunicação Social no Plano Nacional de Direitos Humanos (BOLAÑO e BRITTOS, 2008; BRITTOS e NAZÁRIO, 2005; DALMONTE, 2011).

Brasil – em sua maioria – não chegam a superar uma visão homogeneizante dos media, ou mesmo do campo político, como se a diversidade de atores, empresas e instituições que compõem cada esfera atuasse em prol de objetivos e interesses indistintos. Compreender o panorama da radiodifusão nacional, especialmente daquela de caráter não-comercial, tem se tornado cada vez mais complexo, uma vez que passaram a fazer parte do sistema novos agentes, oriundos das esferas social (na radiodifusão comunitária), estatal (a partir das esferas locais e nacional e dos três Poderes da República) e também privada (a exemplo das teles). Do ponto de vista político, a rearticulação das forças políticas no poder também contribuiu para que certas demandas relativas à regulação da comunicação de massa passassem a fazer parte da agenda governamental1. No escopo de propostas lançadas pelo Governo Lula, com o respaldo de importantes grupos sociais, está a criação de um sistema público de radiodifusão – que se tornaria a Empresa Brasil de Comunicação (EBC). A criação da EBC reúne características particulares, tais como reunir duas empresas de naturezas distintas (Radiobrás e ACERP), e, especialmente, por tensionar interesses de diversas frentes, oportuniza a elaboração de uma abordagem mais complexa concernente ao panorama da radiodifusão nacional. Este artigo propõe, então, uma reflexão histórica, comparativa e sistêmica sobre a EBC, que leva em conta uma dimensão teórica ainda pouco explorada na investigação desse tema. Trata-se de aplicar uma abordagem do sistema da política mediática (GOMES, 2004) para explicar o que estava em jogo no momento da criação de um novo sistema de comunicação. Para tanto, a primeira parte do artigo discute algumas das principais teorias a considerarem o campo da comunicação de massa e suas relações com os domínios da política e da economia. Na sequência, as contribuições dos principais estudiosos das políticas de comunicação são apresentadas de modo a contextualizar a criação da EBC. Por fim, as características da empresa, assim como os interesses e os atores envolvidos no debate dessa

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política pública, são analisados e situados no sistema da política mediática.

2 O campo da comunicação de massa como sistema social Há algumas décadas, a pesquisa em comunicação tem enriquecido as abordagens dos fenômenos midiáticos a partir da compreensão de que as atividades relacionadas à produção e à distribuição em larga escala de informações conformam instituições sociais, e, como tais, podem ser interpretada por meio de uma perspectiva histórica, comparativa e sistêmica – tal como afirmou Alexander (1988). Avaliando os estudos realizados até a década de 1970, esse sociólogo apontou as limitações da teoria crítica da comunicação de massa e também do marxismo ortodoxo, apontando, especificamente, a incapacidade de tais construções em pensar o público para além da apatia e da resignação e os media para além da sua função instrumental de dominação econômica (ALEXANDER, 1988, p. 120-2). Em abordagens bem mais recentes, endereça-se crítica semelhante às pesquisas a respeito da interface entre a comunicação de massa e a política. Na trajetória recomposta por Gomes (2004), estariam superados na história da teoria da comunicação – embora não extintos – os modelos que explicavam os media (especialmente a produção da informação) como meros instrumentos da política, assim como aqueles modelos que se dedicaram aos aspectos técnicos da difusão de mensagens. Outros autores corroboram o diagnóstico quanto à inconsistência de parte dos estudos em comunicação política. Para Miguel (2002, p. 156), “(...) é possível dizer que a ciência política já reconhece a existência do jornal, bem como do rádio, da televisão e até da internet. Mas em geral não vê neles maior importância”. Esta preocupação aparece, ainda, no trabalho de Lattman-Weltman (2007, p. 1): “Embora sempre reconhecida no discurso ordinário – e mesmo na produção acadêmica – como variável decisiva dos processos políticos democráticos contemporâneos, a mídia segue constituindo, em grande medida, um autêntico não-objeto da ciência política”. O autor oferece sua explicação para esse fato: A primeira dificuldade de se fazer o que poderíamos chamar de uma “história imediata” da mídia – e sem dúvida uma das mais fascinantes – estaria relacionada ao fato de que tais veículos constituiriam um fenômeno de massas relativamente recente, e cujo impacto sobre a experiência quotidiana se apresentaria, paradoxalmente, como evidente e, ao mesmo tempo, incomensurável. A presença cotidiana e onipresente da mídia teria se tornado, para nós, um fenômeno aparentemente tão profundo e corriqueiro, o que nos autorizaria a pressupor o seu poder e sua influência de modo genérico e auto-evidente. Ao mesmo tempo, parece ser difícil mensurar e qualificar com precisão essa influência, dada a própria naturalização da ambiência simbólica atribuída a tais meios (LATTMAN-WELTMAN, 2007, p. 8).

A proposta analítica defendida por Alexander parece razoavelmente atualizada quando confrontada com as críticas acima apresentadas. O sociólogo se dedica a pensar especialmente sobre os media noticiosos. Isso não significa que Alexander ignore a força do entretenimento como componente das expressões midiáticas. O autor justifica seu recorte no Jornalismo, afirmando serem drasticamente diferentes funções sociais desempenhadas

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A Empresa Brasil de Comunicação e o sistema da política midiática – Edna Miola

por conteúdos dessa natureza – entre as notícias e o entretenimento, há discrepâncias nos objetivos, nos recursos e nos critérios de sucesso (1988, p. 109). Pela mesma razão, este trabalho privilegia o aspecto informativo dos processos midiáticos. Quando se trata da sociologia das notícias, é indispensável marcar as contribuições de Michael Schudson, que, a partir de seus diversos trabalhos, traçou a história do desenvolvimento do Jornalismo como campo social. Ao explicar as fases de desenvolvimento da imprensa norte-americana, Schudson (1995; 2003) reflete sobre como as empresas jornalísticas modificaram sua conduta de acordo com os interesses políticos (ora tomando posição, ora adotando a neutralidade) e com os interesses econômicos (ao “inventar” a objetividade como valor e assim legitimar-se socialmente, por exemplo). Há evidências de que o Jornalismo nacional passou, também, por esse processo histórico que partiu do predomínio dos veículos (e audiências) partidarizados para uma busca pela audiência ampla, que cobrisse os custos da modernização e profissionalização da atividade (MARTINS, 2008).

2- No original: “The response of other social sectors to the activities of national government becomes increasingly significant for the maintenance of that power”.

Reconhecendo as contribuições de Schudson, Alexander explica que o Jornalismo possui uma faceta normativa que o coloca na posição de organizar continuamente a experiência da sociedade como um todo (do mesmo modo que as pessoas o fazem no nível individual) (ALEXANDER, 1988, p. 110). Fundamental para a perspectiva sistêmica, defendida por esses autores, é a consolidação das instituições noticiosas: Alexander afirma que, em paralelo à formação dos mercados, dos estados independentes e das atividades culturais e religiosas, a diferenciação social do Jornalismo iniciou – de forma incipiente, ele admite – com as primeiras instituições noticiosas, entre os séculos XIV e XV (p. 122-3). O Jornalismo ganhou um lugar especial na sociedade uma vez que o processo de diferenciação do próprio campo político passou a buscar a legitimação de seu poder de forma não tradicional: “a resposta de outros setores sociais às atividades do governo nacional se torna crescentemente significante para a manutenção de tal poder”2 (ALEXANDER, 1988, p. 124). O Jornalismo passou, então, a conferir (um tipo de) legitimidade aos atores e às instituições políticas. Mas essa atividade depende da concretização do processo de distinção das instituições da comunicação de massa que as tornou um subsistema – ou seja, a conquista de uma relativa autonomia ante os demais sistemas sociais. Uma das consequências desse processo é o progressivo desenvolvimento de uma indústria da informação – na qual a produção e a distribuição de notícias se transformaram em um negócio cujas transações se realizam não mais em corporações e partidos mantenedores, mas com duas categorias novas, os consumidores de informação e os anunciantes (GOMES, 2004, p. 50). Visto que os media se diferenciam socialmente do campo político, é necessária uma nova abordagem de suas relações com o público e com os demais sistemas. Para Miguel, a explicação desse fenômeno se origina na teoria dos campos sociais: “(...) a mídia e política formam dois campos diferentes, guardam certo grau de autonomia e a influência de um sobre o outro não é absoluta nem livre de resistências; na verdade, trata-se de um processo de mão dupla” (2002, p. 167). A imprensa e os media poderiam ser entendidos, de acordo com Lattman-Weltman (2007, p. 11-2), “como complexos campos de forças e

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investimentos políticos” que dependem da sua interpretação como “espaços de conflito, permuta, negociação e acomodação de interesses”. Gomes parte de conceitos semelhantes para explicar o modelo que denominou sistema da política mediática, o qual, ao associar a análise dos media e da política, confere uma importância análoga ao campo dos negócios privados. Para o pesquisador, “Há bem mais na política midiática do que aquilo que a idéia de confluência binária dos domínios da política e da comunicação consegue dar conta”. Com isso, Gomes quer introduzir o “terceiro convidado” nessa proposta teórico-analítica: trata-se do domínio dos interesses econômicos que se alia em uma relação de “acomodações, tensões e contrastes recíprocos” (2004, p. 138-9). Isso porque

O que não significa que as relações que se estabelecem entre os domínios pelos seus recursos são simétricas. 3-

um determinado conjunto de características desta fase do capitalismo influencia diretamente os modos e os meios de governo e determina as prioridades dos Estados que são excessivamente vulneráveis aos movimentos dos recursos dos investidores estrangeiros (GOMES, 2004, p. 133).

É claro que permanece, na abordagem de ambos os autores, a explicação sobre a natureza das relações estabelecidas entre os campos: trata-se de interações estabelecidas entre atores e instituições de diferentes esferas orientadas por valores e objetivos próprios (MIGUEL, 2002; GOMES, 2004). O que dá sentido às relações estabelecidas entre a esfera política, a esfera dos os negócios e o campo da comunicação de massa é que cada um desses domínios do sistema da política mediática “possui um recurso fundamental que é objeto de interesse dos outros dois” e, adicionalmente, “cada um deles busca ao máximo satisfazer as suas demandas, concedendo o mínimo possível dos recursos que lhes são próprios”3 (GOMES, 2004, p. 140). Quando se trata do domínio político, está em jogo o poder de influenciar decisões e vontades e “a capacidade de realizar, de fazer e de impedir que se faça” – o poder executivo – e o poder de distribuir poder àqueles que constituem o aparato do Estado – o poder político (GOMES, 2004, p. 142-3). O recurso controlado pelo domínio da comunicação de massa é a esfera de visibilidade pública, que “inclui tudo aquilo que existe e é relevante na atualidade”. Inerente a esse domínio estão as esferas da informação, com as instituições jornalísticas, seus proprietários, seus agentes (os jornalistas, prioritariamente); e do entretenimento (GOMES, 2004, p. 144-5). Miguel (2002) explica que, embora haja um contingente expressivo de políticos que acionam outras estratégias para alcançar o poder (tal como as práticas clientelistas), cada vez mais, o capital político – sobretudo aqueles de maior relevância na República – depende da notoriedade conferida pelos media. Se, por um lado, a visibilidade (especialmente aquela positiva) oferecida pelos media é fundamental para o campo político, o jornalista depende do acesso às fontes (usualmente agentes políticos) para realizar sua atividade com a celeridade e a qualidade necessárias (MIGUEL, 2002) – valores que são convertidos no cultivo da audiência. Esse desenho só é viável, porém, com a contrapartida do domínio dos negócios. Na alegoria de Miguel, “uma empresa de comunicação é um organismo bifronte”, pois obedece tanto aos imperativos profissionais (qualidade estética ou informação factual, a depender do

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A prova desse fato é a constatação que Gomes faz de que as maiores doações para campanhas eleitorais provêm de empreiteiras, de bancos e do empresariado em geral. Os doadores se tornaram, afirma ele, as “mais eficientes agências de influência política na sociedade brasileira” (2004, p. 152-3, itálico no original). 4-

subcampo em questão) quanto à busca da maximização dos lucros (2002, p. 167). Gomes esclarece que, para o campo da informação, o capital financeiro significa anunciantes; já para o campo da política, ele significa financiadores de campanha. As contrapartidas que o domínio dos negócios privados busca nos demais campos compreendem a audiência e a consecução de seus próprios interesses – seja na construção de uma imagem positiva para suas instituições e agentes (lançando mão de publicidade ou mesmo obtendo vantagens editoriais), seja no retorno do investimento na forma de decisões políticas favoráveis ou na própria destinação de recursos para execução de obras públicas e empréstimos por parte do Governo, por exemplo4. Na verdade, as próprias empresas de comunicação fazem parte do domínio dos negócios, mas, o pacto de credibilidade que estabelecem com sua audiência depende do afastamento (pelo menos, aparente) dos interesses próprios do mundo econômico: “a ausência de qualquer autonomia em relação ao campo econômico, aliás, se mostra disfuncional para a mídia” (MIGUEL, 2002, p. 168). A relação que o domínio da comunicação estabelece com o mundo político é um pouco mais profunda do que a distribuição de cotas de visibilidade em troca de acesso às fontes de informação do governo. O campo midiático não apenas procura as verbas publicitárias que o Estado tem a oferecer, como também tende a buscar o controle do poder político. Isso acontece no caso de agentes midiáticos lançarem mão de seus meios e instrumentos para adquirirem recursos do sistema político. Por exemplo, “(n)as competições eleitorais ou no exercício do governo, o apoio ou a oposição dos Senhores da comunicação, a sua influência a favor ou contra, podem ser o elemento decisivo” (GOMES, 2004, p. 163-4). Há, ainda, um último aspecto a se ressaltar: o poder político pode ser conquistado por agentes da comunicação por meio da tomada de posição e do estabelecimento de disposições quanto a questões do universo político. Fazendo uso de sua capacidade de dar forma ao debate público, tematizando questões, selecionando as fontes e enquadrando discursos, os media dotam a “opinião publicada” (GOMES, 2004) de reconhecimento público. Desse ponto de vista, a introdução de um novo ator ou instituição no sistema de radiodifusão (especialmente uma empresa que se coloque na confluência dos interesses públicos e privados) tem o potencial de provocar a reorganização das forças políticas e econômicas e, com isso, tornar-se parte da agenda das mais diversas esferas. Partindo de tal premissa, este trabalho passa, então, a analisar a Empresa Brasil de Comunicação tendo em vista o conceito de sistema da política mediática.

3. A Empresa Brasil de Comunicação e o Sistema da Política Mediática A literatura dedicada a investigar as políticas de comunicação no Brasil diagnostica o descompasso entre a implementação de diversos serviços e sua respectiva regulação – como exemplo, cita-se a difusão do rádio, o serviço de televisão a cabo e a convergência nos serviços de telefonia, internet e oferta de conteúdo (JAMBEIRO, 2002; LEAL FILHO, 1997; LOCATELLI, 2009; PIERANTI e ZOUAIN, 2006).

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As críticas dos pesquisadores se adensam quanto a certas peculiaridades do cenário regulatório nacional da comunicação. A já mencionada tentativa de se conciliar um Estado autoritário com uma economia capitalista resultou em decisões que privilegiaram os interesses privados de agentes dos campos econômico e político, tal como identificado por Brittos et al. (2009, p. 4-5): Se o Estado interfere freqüentemente nos mercados audiovisuais numa postura particularista, privilegiando os objetivos dos capitais em concorrência, isso é mais dramático no Brasil, onde as comunicações formam uma área quase privada, pois, ainda que seus interesses e conseqüências sejam extremamente públicos, as decisões tendem a envolver poucos atores organizados, reafirmando tendências concentradoras e a falta de legislação promotora da diversidade.

Quando se trata da incongruência que marca o arcabouço regulatório existente, percebese que leis fundadas em princípios vagos e pouco regulamentadas por dispositivos infraconstitucionais têm sido insuficientes para gerir o mercado de radiodifusão. Há agravantes no caso da radiodifusão pública: a avaliação mais condescendente atribui à incompetência ou ao descaso dos governos o fracasso das emissoras públicas. Em geral, porém, os esforços teórico-analíticos mais propositivos, fundados em abordagens comparativas, demonstram, invariavelmente, a dificuldade de implantar no Brasil os modelos de financiamento, as políticas administrativas e mesmo a relação que emissoras como a BBC (Reino Unido), a NHK (Japão) ou o sistema PBS (EUA) construíram com seu público (MOTA, 1992; LEAL FILHO, 1997; DALLARI, 1998; SCORSIM, 2000; FRADKIN, 2003; CARRATO, 2005, MIOLA e MARQUES, 2012). O sistema de comunicações por rádio e TV no Brasil é um retrato razoavelmente adequado das características do país. De um lado, ele revela pujança econômica e relativo desenvolvimento tecnológico; de outro, é possível constatar fragilidades político-institucionais e enormes desigualdades de várias naturezas (BORGES, 2010, p. 15). As promessas de alterações nesse panorama foram fortalecidas a partir da eleição de Luiz Inácio Lula da Silva em 2002, e sua reeleição, em 2006. Contrariando essas expectativas, na avaliação de alguns autores, a exemplo de Brittos et al. (2009), o primeiro mandato de Lula “não priorizou a construção de uma nova política nacional de comunicação”. O qua-

5- Decreto nº 398 de 10 de outubro de 2007. 6- São exemplos do

dro regulador permaneceu essencialmente o mesmo que vigorava até então: “desconectado de outros instrumentos normativos e da própria Constituição brasileira, (...) sem que tivessem sido atacados os principais entraves para o avanço das comunicações brasileiras”. Para esses pesquisadores, o grande desafio a ser enfrentado compreenderia (1) diminuir a concentração da propriedade das indústrias culturais; e (2) instituir mecanismos de controle público sobre os conteúdos produzidos pelos media. Essas transformações dependeriam de um esforço maior do que aquele que foi empreendido pelo Governo para superar a oposição que, nas palavras dos autores, a “grande mídia” exerce sistematicamente sobre medidas contrárias aos seus interesses (BRITTOS et al., 2009, p. 2).

Uma série de articulações entre governo, radiodifusores não-comerciais e movimentos

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A Empresa Brasil de Comunicação e o sistema da política midiática – Edna Miola empenho do Governo em garantir a aprovação da EBC o lançamento de uma MP em lugar de um Projeto de Lei; os acordos feitos com a oposição (como o veto presidencial à cessão de direitos de exibição de jogos, introduzido pelo relator da proposta); e também as manobras institucionais de que líderes do governo teriam lançado mão para aprovar a proposta dentro do prazo de vigência da medida.

sociais antecedeu o lançamento da Medida Provisória (MP)5 que criou a Empresa Brasil de Comunicação. O Fórum Nacional de TVs Públicas, realizado entre 2006 e 2007, reivindicava a criação de um sistema público de radiodifusão de acordo com valores democráticos, com parâmetros definidos para o conteúdo, adaptado às transformações tecnológicas trazidas pela digitalização das transmissões e, mais importante, com autonomia administrativa e financeira em relação ao Governo (I FÓRUM..., 2007b). Tal desenho institucional vinha ao encontro das propostas do campo acadêmico para a radiodifusão pública brasileira, mas, ao longo do processo de implementação da EBC, mostrou-se inexequível – mesmo com todo o esforço empreendido pelo Governo para que a proposta fosse aprovada no Congresso Nacional6.

7- Integravam a ACERP as seguintes emissoras: TVE Brasil (Rio de Janeiro), TVE (Maranhão), TV Escola (TV por satélite); Rádio MEC 800 (Rio de Janeiro), Rádio MEC 800 (Brasília), Rádio MEC 98,9 FM (Rio de Janeiro) e Rádio MEC (rádio por satélite).

Formada pela fusão da Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (ACERP)7 e da Radiobrás8, a EBC teve, de início, o desafio de conciliar empresas com filosofias bastante diversas. Isso porque, enquanto a ACERP administrava emissoras de cunho educativo – a Rádio MEC, por exemplo, fora cedida à União pelo próprio Edgar Roquette Pinto em 1936 (MILANEZ, 2007; 2007b) –, a Radiobrás foi criada com a finalidade de dar publicidade às ações do Estado9, tendo como atividade mais reconhecida a produção do programa “A voz do Brasil” (JAMBEIRO, 2002; BUCCI, 2008). Ao congregar emissoras de natureza pública e emissoras de cunho estatal, o projeto da EBC reforçava uma indefinição que seria uma das principais controvérsias a permearem os debates sobre sua criação.

8- Ao ser incorporada à EBC, a Radiobrás contava com as emissoras de televisão TV Nacional, NBR e TV Brasil Canal Integración; as emissoras de rádio Rádio Nacional AM e FM e Rádio MEC; além da Radioagência Nacional e da Agência Brasil, responsáveis pela produção de conteúdos. 9- À Radiobrás também foi atribuída a responsabilidade de instalar emissoras em regiões que não atraíssem radiodifusores comerciais. 10- A MP previa em seu texto inicial: a) a criação de uma nova empresa de comunicação vinculada à Secretaria de Comunicação da Presidência (SECOM); b) o modelo de gestão a ser aplicado (criando um conselho composto por representantes do governo e da sociedade); c) e a definição das origens das receitas que financiariam as emissoras (dotação orçamentária, prestação de serviços, publicidade institucional, patrocínios) (BRASIL, 2007).

Para Bolaño e Brittos (2008), a criação da EBC é parte dos movimentos conjunturais promovidos pelo Governo Lula no setor da comunicação (juntamente com o lançamento da TV Digital e a tentativa frustrada de aprovar uma Lei de Comunicação Social), que acabaram por reforçar o sectarismo do Estado com relação aos movimentos sociais envolvidos no debate desses temas. Do ponto de vista estrutural, dizem os autores, a criação da EBC não sanaria as incongruências que marcam a distribuição dos canais de radiodifusão nas redes aberta e fechada, nem seus modos de financiamento e nem seus modelos de produção. O projeto levantou controvérsias também entre parlamentares e nos próprios media (MIOLA, 2011). O texto apresentado pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional abrangia um conjunto de dispositivos que alterariam de modo significativo o funcionamento das empresas públicas de radiodifusão a partir do posicionamento da TV Brasil (emissora de caráter público da EBC), em comparação com as demais emissoras educativas em funcionamento até então10. Não é, portanto, mera coincidência que esses pontos tenham reunido as principais controvérsias sobre o projeto. As críticas ao projeto, inicialmente, concentraram-se em três pontos: a) no método de criação da empresa (via MP), levantada pela oposição no Congresso; b) na vinculação da empresa à SECOM e à composição o método de indicação do Conselho de Administração e também do Conselho Curador, originada internamente e também vocalizada por grupos organizados da sociedade; e c) na admissão de publicidade institucional, da parte das entidades associadas aos interesses das empresas privadas de comunicação (VALENTE, 2009; MIOLA, 2011b).

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Outros pontos, acrescidos pelo relator do projeto, o deputado Walter Pinheiro (PT-BA), trariam novas polêmicas, como a criação de uma Ouvidoria; a instituição da Contribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública (proveniente de 10% de um fundo já existente, o FISTEL, pago pelas empresas que exploram os serviços de telecomunicações); a delimitação da veiculação de publicidade institucional e apoio cultural; a inclusão de percentual de produção regional e independente na grade de programação; e o fim da exclusividade dos direitos de transmissão de eventos esportivos quando não houver pretensão da emissora detentora de veiculá-los em rede aberta. Essas questões, aliadas às características já apontadas sobre o panorama histórico da regulação da comunicação no Brasil, são subsídios para a análise que se segue. Retomando a abordagem sistêmica da comunicação de massa, é válido lembrar que há uma política que se realiza sob a visibilidade pública, ou seja, “é uma política em cena ou para a cena” (GOMES, 2004, p. 141). Quando se trata de projetos como a criação de um sistema de comunicação pública, como é o caso da EBC, estão em jogo diferentes interpretações a respeito do papel do Estado no setor da comunicação. Essas interpretações são fundadas em justificativas de natureza pública (porque publicamente defensáveis), tais como a proteção da sociedade do poder do Estado, o direito à comunicação e uma agenda de prioridades em termos de investimento público que se sobreporia a esse direito. É nesses termos que a disputa sobre a criação da EBC tende a se apresentar em espaços de visibilidade, tais como os discursos voltados para o Plenário e a informação tornada disponível pelos noticiários (MIOLA, 2011; 2011b). Há, nos domínios dos media, da política e dos negócios privados, os mais vastos interesses de caráter privado, uma vez que, como evidencia Gomes, “orquestram(-se) como um sistema, originam-se e mantêm-se fora de cena” (2004:141). Existe um conjunto de interesses não anunciados publicamente que atravessam as discussões relacionadas com a criação da EBC (e perpassam, ademais, quaisquer iniciativas no âmbito da regulação dos meios), dentre eles, a preocupação com qualquer iniciativa governamental que venha a aumentar o controle sobre os mass media; a manutenção da reserva do mercado publicitário das emissoras comerciais; e a prevenção do fortalecimento político de um grupo adversário. 11Na delimitação desses elementos, não se pretende ignorar a possível sobreposição de papeis que os atores venham a desempenhar. Sabe-se que um político pode deter concessões de radiodifusão, ou uma empresa de comunicação pode atuar também em outros setores econômicos, o que comprova a necessidade de se complexificar abordagens sobre o tema.

Nem sempre a defesa de interesses privados produz injustiça ou é ilegítima, ressalte-se. Quando se verifica, porém, que certas razões são deliberadamente protegidas da esfera de visibilidade, infere-se que o processo de decisão é afetado e as políticas resultantes podem ser distorcidas. Questiona-se, então, se os discursos públicos de atores envolvidos no debate sobre a criação da EBC explicitariam, além dos interesses em cena, os interesses dos campos político, econômico e midiático que tendem a permanecer fora de cena. Para tanto, é importante identificar como opera cada um desses campos quando se tem em vista o caso aqui investigado: quem são os agentes, que instituições estão envolvidas e quais são os interesses políticos e econômicos relacionados à introdução de uma nova empresa de comunicação no sistema mediático11.

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Quando se trata do Governo, são identificadas duas correntes conflitantes, mas que convergem positivamente para a criação da EBC. A primeira delas tem o interesse de satisfazer certos compromissos assumidos junto às bases de apoio do Partido dos Trabalhadores, mas que também se fazem presentes em outros partidos à esquerda do espectro político. A perspectiva progressista, como classificam Brittos et al. (2009, p. 5), diz respeito aos movimentos históricos em prol da democratização da comunicação e da cultura, além da regulação dos mass media e estaria relacionada com a organização do Fórum Nacional de TVs Públicas, envolvendo, dentro do Governo, na época, atores do Ministério da Cultura (com destacada participação do Ministro Gilberto Gil e o Secretário Orlando Senna). A segunda corrente entenderia a criação de emissoras públicas como a oportunidade de fortalecer os canais de comunicação direta entre o Estado e os cidadãos, o que superaria as condições desfavoráveis impostas pelas instituições mediáticas comerciais. Nesse caso, a vinculação da EBC à SECOM e ao Ministério das Comunicações seria a situação ideal – e especialmente defendida pelo então ministro Hélio Costa. Ainda no campo político, estariam presentes aqueles parlamentares que se posicionaram de modo contrário à criação da empresa. Há também aqui duas perspectivas diferentes: para aqueles que sustentam posicionamentos de tendência liberal, a interferência do Estado na organização do mercado da comunicação (assim como em qualquer outro âmbito da economia) é deletéria. Associa-se a esse aspecto a ideia de um Estado mínimo, que não deve onerar os cidadãos para fornecer (de forma ineficiente e de qualidade duvidosa, conforme foi alegado por tal perspectiva) serviços que a iniciativa privada melhor desempenha. Consiste no grupo denominado por Brittos et al. (2009) como conservador ou liberal12.

12-Na análise empreendida pelos autores a respeito da TV Digital, na realidade, os conservadores e os liberais se opõem, uma vez que os primeiros defenderiam os interesses dos radiodifusores e os últimos estariam ao lado das empresas de telecomunicação. No caso aqui analisado, estes grupos, por outro lado, estariam juntos – ambos contrários à criação da EBC. 13- Tal como explica Jambeiro (2000, p. 82), “[a] Abert defendia”, nas negociações durante a Assembleia Constituinte, “que a radiodifusão deveria

Há também, em segundo lugar, a sobreposição de interesses econômicos privados sustentados por agentes do campo político. Tanto no papel de representantes de grupos econômicos, como enquanto detentores (ainda que dissimuladamente) de concessões de radiodifusão, certos agentes do campo político assumem, no desempenho de suas funções, a defesa dos interesses dos campos econômico e midiático. Os interesses no campo midiático também são diversificados. É possível delimitar outros dois conjuntos de atores com posicionamentos opostos. Em primeiro lugar, há o chamado campo público da comunicação (I FÓRUM... 2006; 2007). Entenda-se o conjunto de atores ligados a instituições civis, tais como associações profissionais da comunicação e movimentos sociais; ou relacionados a empresas de radiodifusão sem fins lucrativos. Para esses atores, muitos dos quais tomaram parte do Fórum Nacional de TVs Públicas, a instituição do controle público (ou social) da comunicação, a democratização dos media e o fortalecimento das emissoras sem fins lucrativos, especialmente aquelas emissoras públicas, são questões há muito demandadas. Destaca-se em alguns desses grupos uma perspectiva crítica até mesmo sobre a proposta de criação da EBC, uma vez que o projeto lançado pelo Governo não teria atendido plenamente as suas pretensões. As empresas privadas de comunicação (segundo grupo situado no campo midiático) não são, naturalmente, homogêneas; mas há convergências significativas em seus interesses e

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ser controlada pelo Poder Executivo e explorada pela iniciativa privada”. Em outras palavras, para assegurar a defesa dos interesses das instituições mediáticas privadas, é necessário que as decisões políticas continuem sob sua influência. 14- Justificar-se-ia, assim, o reforço da ideia de que as TVs educativas “só dão traço” no Ibope – ou seja, têm um share de mercado insignificante. As emissoras privadas não apenas tentariam evitar uma fuga da sua própria audiência, como, também, manter sua imagem junto aos anunciantes.

modos de atuação. Pode-se exemplificar essa sintonia nos esforços das referidas instituições para inibir a criação de organismos de controle abertos à participação de cidadãos (como o Conselho de Comunicação Social), uma vez que a entrada de novos atores na produção de políticas para o setor dificultaria a principal estratégia de ação dos radiodifusores comerciais. Grupos que representam essas empresas, tais como a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e de Televisão (ABERT), além de lançarem mão dos canais de comunicação que possuem, praticam ostensivamente o tráfico de influência (lobby) nas esferas de decisão política13. É válido ressaltar que tampouco os políticos detentores de concessões simpatizavam com a diminuição de seu poder. O domínio dos negócios privados permeia as relações acima apresentadas. Mas há aqueles interesses econômicos, que envolvem atores dos campos político e midiático, que merecem ser explicitados. Para as empresas midiáticas com fins lucrativos, um possível fortalecimento da radiodifusão não-comercial significaria uma redistribuição da audiência14. Esse aspecto poderia ser agravado uma vez que reformular da radiodifusão pública abre espaço para discutir as restrições de veiculação da publicidade comercial nas emissoras educativas – tornando-as mais competitivas quanto ao bolo publicitário. Adicionalmente, está em jogo também o grande volume de recursos anualmente investidos em publicidade governamental nas redes privadas. As verbas de comunicação do Estado, como maior anunciante nacional, são disputadas arduamente por todas as emissoras de rádio, televisão, Jornalismo impresso e internet (desde grande portais a blogs que reivindicam a condição de independentes). De modo esquemático, esta pesquisa classifica os tipos de interesses associados à criação da EBC. A tabela 1 elenca uma série de dimensões que estariam por trás dos posicionamentos assumidos na esfera pública por atores sociais quanto à criação da EBC.

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Tabela 1: Distribuição dos interesses quanto à criação da Empresa Brasil de Comunicação

Interesses favoráveis à criação da EBC

Campo Midiático Pluralidade da informação veiculada

Campo Político Pluralidade da informação política veiculada

Aumento da qualidade da oferta de conteúdos (educação, cultura e entretenimento)

Comunicação “direta” com a audiência (sem a mediação da imprensa)

Democratização do acesso aos meios de produção audiovisual através da produção independente

Democratização da produção da informação

Campo Econômico Fontes estáveis e autônomas de financiamento para a radiodifusão pública Democratização do acesso aos meios de produção audiovisual através da produção independente

Instituição do controle público nas emissoras de radiodifusão

Regulação do campo público da comunicação Interesses contrários à criação da EBC

Exibição de publicidade nas emissoras educativas, com perda da qualidade geral da programação Aumento da concorrência por audiência e por investimentos publicitários Cessão de direitos de exibição de partidas esportivas adquiridas por emissoras comerciais

Uso partidário instrumental das emissoras por atores políticos institucionais Controle governamental das emissoras em detrimento do controle social Uso das emissoras para o proselitismo de atores estatais

Divulgação de informações que contrariam interesses de empresas privadas e corporações financeiras Desvio de recursos de áreas prioritárias para o financiamento das emissoras Quebra de contratos entre emissoras e entidades esportivas (por ocasião da cessão de direitos de exibição de partidas “de interesse nacional”)

Divisão dos recursos investidos pelo Estado em comunicação entre mais emissoras Aumento da concorrência por audiência e por investimentos publicitários entre emissoras públicas e privadas

4. Considerações finais As abordagens das questões relacionadas à comunicação política vêm se aprofundando a partir das contribuições das Ciências Sociais, de modo que novos desafios são colocados àquelas pesquisas que se dedicam a temas como a produção de políticas de comunicação. Este trabalho procurou rediscutir conceitos como campos ou sistemas sociais e as relações estabelecidas entre eles a partir de sua diferenciação de modo que novos instrumentos teórico-analíticos sejam utilizados na interpretação de antigos problemas da comunicação de massa nos sistemas democráticos. Tomando como ponto de partida a reflexão sobre instituições, atores e interesses que se põem em interação no sistema da política mediática, é possível relacionar o desenvolvimento histórico da radiodifusão pública brasileira com os principais alvos de tensão apon-

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tados por seus estudiosos: as relações com o Estado, a construção de sua autonomia por meio do financiamento e a participação da sociedade em sua gestão, e, por fim, seu lugar em um mercado de comunicação preponderantemente comercial. Essas são as questões que precisam ser explicadas de modo sistêmico, uma vez que o debate e a produção de políticas se realizam a partir dos interesses abertamente apresentados e também aqueles fora da cena de visibilidade que justificam, ou dão legitimidade, à ação política. Como já dito anteriormente, reconhece-se que uma parte dos interesses que permeiam os processos políticos e econômicos não está disponível para o escrutínio público – com evidentes prejuízos para o bem comum. Isso não significa, no entanto, que, no caso de certas políticas públicas, tais como a regulação da comunicação, não haja também disputas no plano das arenas de visibilidade pública. Se, no caso da criação da EBC, interesses de naturezas diversas foram acionados e negociados nos bastidores, como aqui apontado, há, além disso, evidências do estabelecimento de fortes embates argumentativos a terem lugar na esfera da política institucional e na esfera pública mediada pela imprensa (MIOLA, 2012). Em outras palavras, embora sustentem interesses particulares, certos grupos (a exemplo das empresas privadas do campo mediático) não se abstêm de participar do debate público sobre questões que julguem lhes afetar – como a entrada de uma nova empresa no sistema de radiodifusão nacional. E o fazem lançando mão de razões publicamente justificáveis. A título de ilustração, cita-se o financiamento das emissoras públicas com verba de publicidade. Relacionados ao tema, há interesses econômicos dos radiodifusores privados, que, com uma decisão política nesse sentido, passariam a disputar anunciantes também com as empresas públicas de rádio e televisão. Para se defender os negócios dessas empresas e ainda justificar, na esfera pública, o veto a tal medida, pode-se legitimamente demonstrar preocupação com os possíveis prejuízos que a exibição de comerciais e a disputa pela audiência traria para a qualidade da programação das não-comerciais (MIOLA, 2012). A disposição em defender perante a sociedade diferentes pontos de vista é demonstrada também por atores políticos. Muito embora o Governo dispusesse da maioria no Congresso (o que garantiria facilmente a aprovação da MP), não deixou de enviar seus representantes para tomarem parte de debates nas Comissões Parlamentares, no Plenário ou mesmo em audiências públicas – o que, novamente, demonstra a premência de cada ator justificar publicamente suas ações e posicionamentos. Além dos exemplos acima apresentados, há outros pontos de conflito expressos publicamente nos discursos de diversos atores políticos e sociais. A criação da EBC teve, entre deméritos e louvores, a capacidade de trazer, ainda que por um breve período, a regulação da comunicação para a agenda pública.

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A Empresa Brasil de Comunicação e o sistema da política midiática – Edna Miola

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A qualidade do conteúdo da Agência Brasil/EBC: avaliação dos requisitos “diversidade”, “pluralidade” e “cobertura de políticas públicas” * La calidad del contenido de Agência Brasil/EBC: evaluación de los requisitos “diversidad”, “pluralidad” y “cobertura de políticas públicas” Quality of Agência Brasil/EBC content: evaluation of the requirements “diversity”, “pluralism” and “coverage of public policies

Josenildo Luiz Guerra Doutor, professor do curso de Jornalismo e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Sergipe. Aracaju - Brasil. E-mail: jl_guerra@uol.com.br

Rogério Christofoletti Doutor, professor e pesquisador do Departamento de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil. E-mail: rogerio.christofoletti@uol.com.br

Maria José Baldessar

Doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo. Professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Florianópolis – Brasil. E-mail: mbaldessar@hotmail.com

Samuel Pantoja Lima Doutor em Mídia e Teoria do Conhecimento pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em 2005. Professor e pesquisador da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília. É professor visitante do curso de jornalismo da UFSC, em Florianópolis (SC). E-mail: samuca13@gmail.com

Revista Eptic Online Vol.15 n.2 p.153-173 mai-ago 2013 Recebido em 25/02/2013 Publicado em 15/05/2013


A qualidade do conteúdo da Agência Brasil/EBC – J. Guerra, R. Christofoletti, M. J. Baldessar, S. P. Lima

RESUMO O artigo apresenta uma avaliação da qualidade editorial da Agência Brasil (AB), agência de notícias da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), realizada com base em três requisitos: diversidade de conteúdo, pluralidade de vozes e existência de cobertura sobre políticas públicas. Além de gerar um diagnóstico inicial sobre o noticiário da agência, a pesquisa visa também testar a metodologia empregada para a avaliação a fim de detectar possíveis insuficiências ou limitações que possam ser aperfeiçoadas para eventual incorporação numa política de avaliação de qualidade de organizações jornalísticas. Como resultados, o artigo apresenta as deficiências encontradas na cobertura da AB, analisa a viabilidade da metodologia para uso regular na avaliação da qualidade editorial de organizações jornalísticas e sugere mecanismos de gestão editorial para alcançar resultados melhores.

PALAVRAS-CHAVE Jornalismo – Qualidade – Agência Brasil – Jornalismo On Line

RESUMEN El artículo presenta una evaluación de la calidad editorial de Agência Brasil, agencia de noticias de la Empresa Brasil de Comunicação (EBC), realizada en base a tres requisitos: diversidad de contenido, pluralidad de voces y la existencia de cobertura sobre políticas públicas. Además de generar un diagnóstico inicial sobre el noticiero de la agencia, la investigación también tiene como objetivo probar la metodología empleada para la evaluación a fin de detectar posibles insuficiencias o limitaciones que puedan ser mejoradas para una eventual incorporación en una política de evaluación de la calidad de las organizaciones periodísticas. Como resultados, el artículo muestra las deficiencias encontradas en la cobertura de la agencia, analiza la viabilidad de la metodología para su uso regular y evaluación de la calidad editorial como organización periodística. Asimismo, sugiere mecanismos de gestión editorial para alcanzar resultados mejores. PALABRAS CLAVE Periodismo – Calidad – Agência Brasil – Periodismo em línea

ABSTRACT This paper brings an evaluation of the editorial quality of Agência Brasil, a news agency of Brazil Communications Company (Empresa Brasileira de Comunicação, or EBC), held on three requirements: content diversity, plurality of voices and the coverage of public policies existence. Besides generating an initial diagnosis of the agency news, the research also aims to test the methodology used, in order to detect possible weaknesses or limitations that could be improved for its incorporation into policies of news organizations quality evaluation. The paper presents the deficiencies found in the coverage of the agency, analyzes the viability of the use of the methodology to evaluate the journalistic organizations editorial quality, and suggests mechanisms of editorial management to achieve better results. KEYWORDS Journalism – Quality – Agência Brasil – On Line Journalism

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A qualidade do conteúdo da Agência Brasil/EBC – J. Guerra, R. Christofoletti, M. J. Baldessar, S. P. Lima

1 - Introdução

*Este artigo apresenta resultados parciais da pesquisa “Avaliação de Qualidade na Agência Brasil: Condições de produção, Interfaces para o público e Monitoramento de reportagem”, desenvolvida entre outubro de 2011 e março de 2012, com financiamento da Empresa Brasil de Comunicação (EBC). Colaboraram com esta pesquisa os estudantes Pedro Rocha, Liliane Nascimento Santos, Eugênio Cony Cidade, Lara Silvério Naves, Joice Balboa, Stephanie Pereira, Gabriel Luis da Rosa, Diego Cardoso, Marilia Labes e Thiago Moreno."

Poucas são as garantias oferecidas por organizações jornalísticas - públicas ou privadas - aos seus consumidores acerca da precisão, diversidade, pluralidade e relevância, entre outros requisitos desejáveis para a notícia de qualidade. A “qualidade” do que é entregue à sociedade, não raro, sustenta-se sobre uma “credibilidade presumida”, tipo de confiança aferida por métodos “não científicos, ou ‘de uso cotidiano’” (Sordi, Meireles e Grijo, 2008, p. 172). Se os produtores privados de conteúdo jornalístico tem a “credibilidade presumida” a seu a favor, a Agência Brasil (AB), da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), tem um “pecado original” que institui uma “falta de” credibilidade presumida, marcada principalmente pela imagem de empresa “chapa branca” (Bucci, 2008). Se, normalmente, é concedida aos veículos não estatais uma confiabilidade até que se prove o contrário, em relação à AB impera uma lógica inversa: é preciso convencer que se está fazendo – ou tentando fazer – o trabalho certo. Mas, não apenas o histórico age contra a AB. Recentes episódios tanto de erros na apuração, como o caso da Favela Pinheirinho (Agência Brasil reconhece erro em notícia sobre mortes no Pinheirinho, 2012), quanto de denúncias de ingerência política em decisões editoriais, como o caso do Ministério da Educação em matéria sobre a greve dos professores das universidades federais (Jardim, 2012), comprometem a imagem da instituição tanto junto aos demais meios de comunicação quanto à própria opinião pública. É nesse cenário que uma política arrojada de qualidade editorial pode reverter o descrédito em credibilidade, não “presumida”, mas sustentada por indicadores elaborados e aplicados em avaliações regulares do seu produto noticioso. Este trabalho apresenta uma metodologia de avaliação de qualidade, aplicada experimentalmente ao conteúdo informativo da Agência Brasil. Um dos objetivos é fazer um diagnóstico inicial sobre os itens avaliados. Entretanto, o mais importante é apresentar a metodologia empregada e avaliar a sua pertinência técnico-científica para incorporação dentro de uma política de qualidade da EBC que possa ser implantada pela própria agência ou por grupos externos interessados em avaliar a sua qualidade editorial e até mesmo de veículos privados. A metodologia testada é simples, pois o objetivo é destacar sua sistemática de aplicação. Mas, o refinamento e a ampliação dos indicadores são necessários, o que já está sendo trabalhado pela equipe de pesquisa para experiências futuras.

2 - A avaliação de qualidade no jornalismo

Embora o tema qualidade sempre esteja em voga quando se analisa o jornalismo, a discussão teórica e a avaliação sistemática das organizações e de seus produtos são incipientes. Em alguns casos, existem modelos de avaliação de procedimentos profissionais, em outros,

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avaliações de produtos e de postura organizacional, ou ainda, o esforço de sistematização teórica que vai construindo um acervo ainda precário, mas que a cada nova contribuição dá um passo rumo à consolidação teórica da área (Andi, 2009; ICMPA, 2007; Sordi, Meirelles e Grijo, 2010; Pinto e Marinho, 2003; Jornet, 2006; Meyer, 2007; Guerra, 2010a e 2010b; Sordi, Meirelles e Grijo, 2010). Um processo de avaliação de qualidade requer elementos básicos: a definição de um conjunto de requisitos a se alcançar; a implementação de processos adequados à produção com os requisitos desejados; um sistema contínuo capaz de monitorar em que medida os processos estão efetivamente gerando os resultados esperados; e, finalmente, mecanismos de correção de falhas e de desenvolvimento de melhorias para processos e produtos. O esforço para a qualidade engloba três dimensões organizacionais: os compromissos e a estrutura organizacional, os processos de produção e os produtos (Guerra, 2010b). Num processo avaliativo é preciso considerar se: (1) estão os compromissos editoriais e as condições materiais (infraestrutura) e formais (sistema de normas interno) que credenciam a organização a apresentar-se como comprometida com a qualidade; (2) estão os processos de produção, devidamente estruturados e implementados, que demonstram na prática como a organização opera para atingir os compromissos firmados no âmbito da primeira dimensão; (3) está a análise dos produtos gerados de forma a aferir se estão em conformidade com os compromissos firmados e as especificações dos processos de produção. É nesta terceira dimensão que a metodologia e a avaliação aqui descritas estão situadas. Uma organização só será exitosa em seu desafio da qualidade, entretanto, se conseguir articular seus esforços nas três dimensões. Para se entender a dinâmica de avaliação de qualidade de qualquer produto, são importantes quatro conceitos: requisitos, indicadores, padrões e conformidade/não conformidade. De forma sintética, eles podem assim ser definidos: - requisitos: “necessidade ou expectativa que é expressa, geralmente, de forma implícita ou obrigatória” (cf.: ABNT NBR ISO 9000:2005, p. 8); - indicadores: é o mecanismo (procedimento e unidade) de medição do grau de conformidade do produto ao requisito (cf.: Paixão apud Miranda, Diamantino e Souza, 2009, p. 67); - padrões: é referência que indica o nível esperado de conformidade e de não conformidade entre o objeto da avaliação e os requisitos pretendidos (cf.: Martins apud Miranda, Diamantino e Souza, 2009, p. 68); - conformidade e não conformidade: atendimento e não atendimento, respectivamente, do requisito pelo produto (cf.: ABNT NBR ISSO 9000:2005, p. 15); A compreensão global da análise de qualidade para organizações jornalísticas deve partir do entendimento do que é qualidade: “o grau no qual um conjunto de características inerentes [do produto] satisfaz a requisitos” (ABNT NBR ISSO 9000:2005, p. 8). Se o produto oferecido pela organização está ou não em conformidade com as expectativas que se têm

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em relação a ele (para uma análise teórica do conceito de qualidade, histórico e abordagens, ver Slack, Chambers e Johnston, 2007; Paladini, 2007; Carvalho, 2005). As expectativas da audiência – ou requisitos do cliente, expressão própria da área de gestão da qualidade – são divididas em quatro categorias pela norma ABNT NBR ISO (9001: 2008), para a qual a “organização deve determinar”: a) os requisitos especificados pelo cliente, incluindo os requisitos para entrega e para atividades de pós-entrega; b) os requisitos não declarados pelo cliente, mas necessários para o uso específico ou pretendido, onde conhecido; c) requisitos estatutários e regulamentares aplicáveis ao produto, e d) quaisquer requisitos adicionais considerados necessários pela organização. (ABNT NBR ISO 9001:2008, p. 7)

Não se pode interpretar que a noção de qualidade acima expresse, no caso do jornalismo, uma simples concessão ao gosto da “audiência”, como pode estar sugerido no item (a). Em (b), por exemplo, fica claro que um produto ou serviço deve atender ao uso específico ou pretendido, mesmo que não declarado pelo cliente. Além disso, em (c), há normas estatutárias e regulamentares que precisam ser levadas em consideração. As expectativas contidas no item (b) podem ser expressas, de forma sintética, a partir das contribuições de Norris & Odugbemi (2008, p. 30-32) e Canela (2007), pelos papéis essenciais que o jornalismo cumpre – ou deveria cumprir – nas sociedades democráticas: - acompanhar e fiscalizar os poderes executivo, legislativo e judiciário constituídos, a fim de promover ampla visibilidade às questões que naquelas instituições importam; - atuar como instituição central no sistema de freios-e-contrapesos dos regimes democráticos, colaborando para que os governos (mas também o setor privado e a sociedade civil) sejam mais responsivos (accountable) na formulação, execução, monitoramento e avaliação das políticas públicas; - contribuir para o agendamento de temas prioritários de importância pública e política; - promover a pluralidade de pontos de vista envolvidos na discussão dos mais diversos assuntos; - informar, de maneira contextualizada, os cidadãos e cidadãs de tal forma que estes possam participar de modo ainda mais ativo da vida política, fiscalizando e cobrando a promoção de todos os direitos humanos. Os requisitos expressos no item (c) são necessariamente derivados dos papeis expressos nos requisitos do item (b). Nesse sentido, eles especificam aspectos legais que reforçam ou detalham as diretrizes ético-políticas que definem o jornalismo como instituição social nas sociedades democráticas. No caso da Agência Brasil, há uma legislação própria, além de estatuto e regimento internos. A partir deste recorte, foram selecionados três requisitos que representam, de forma

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abrangente, as pretensões jornalísticas da EBC/AB. Eles foram extraídos do Regimento Interno (Regimento Interno da EBC, deliberação COADM nº 002/2012, de 10/01/2012), especificamente, do Art. 31, incisos III, IV e V, que trata das competências da Diretoria de Jornalismo: III– tratar as políticas públicas de interesse da população na programação jornalística dos veículos públicos da EBC, debatendo-as e esclarecendo-as, contribuindo para ampliar o acesso à informação e a formação crítica do cidadão; IV– promover o debate de temas e assuntos de interesse nacional, observando o grau de pluralidade política, social e ideológica da sociedade brasileira; V - propor a adoção de novas técnicas e tecnologias com vistas ao aumento da qualidade e da diversidade dos conteúdos jornalísticos, observadas as diretrizes da Secretaria-Executiva sobre tecnologia da informação e da comunicação e da Diretoria-Geral sobre convergência tecnológica e novas mídias;

3 - Metodologia e avaliação de qualidade do produto

O noticiário da AB será avaliado então a partir de três requisitos, extraídos daquelas competências da diretoria de jornalismo prevista no Regimento Interno da EBC: a cobertura de políticas públicas de interesse da população, a partir da oferta de debates e de informação: requer que o noticiário dê conta de assuntos relativos a políticas públicas;

pluralidade política, social e ideológica da sociedade brasileira na cobertura dos temas de interesse público [por consequência, das políticas públicas]: requer que o noticiário dê conta de uma visão plural, com pontos de vista múltiplos sobre os assuntos em pauta;

diversidade dos conteúdos jornalísticos: requer que o conteúdo apresente variedade e equilíbrio relativo dos assuntos em pauta. Por “equilíbrio relativo” deve-se entender a justificada predominância de certos assuntos sobre outros, motivada por razões conjunturais, por exemplo.

A metodologia de avaliação de qualidade empregada tem como técnica básica para produção dos dados a Análise de Conteúdo, “um conjunto de técnicas de análise de comunicação ter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos permitam a inferência de conhecimentos relativos de produção/recepção destas mensagens”. (Bardin,

visando a obdescrição do ou não) que às condições 1979, p. 42)

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A qualidade do conteúdo da Agência Brasil/EBC – J. Guerra, R. Christofoletti, M. J. Baldessar, S. P. Lima 1- As notícias da rubrica “Internacional” foram excluídas por não serem conteúdo produzido diretamente pela equipe da Agência Brasil, mas de agências internacionais. O objetivo do trabalho teve foco no conteúdo produzido diretamente pela AB.

A coleta de dados foi realizada em duas semanas do mês de novembro de 2011 – excluindo-se aquelas que continham feriados. O período de análise foi: 06/11 a 12/11 e 20/11 a 26/11 de 2011. Do total de 868 matérias publicadas nesse interstício, foram excluídas 130 da rubrica “Internacional” 1, 22 por perda (por razões diversas, esses dados não foram processados) e duas de artigos do ouvidor publicados no espaço de notícias. Restaram então 714 matérias (ou notícias, aqui tratadas como sinônimo) que constituíram o universo amostral de pesquisa. Todas as matérias publicadas durante a coleta de dados foram avaliadas com base em duas unidades de análise: a rubrica e a retranca. Por rubrica, entende-se uma terminologia que delimita um assunto. Por retranca, entende-se a expressão que nomeia uma matéria. A pesquisa ampliou ligeiramente este conceito, para caracterizar, além de uma matéria relacionada a um fato, um conjunto possível de matérias com ligação ao fato original. A AB utiliza doze para categorizar seus conteúdos: Cidadania, Economia, Educação, Justiça, Meio ambiente, Política, Saúde, Nacional, Esporte, Cultura, Pesquisa & Inovação e Internacional (excluída deste estudo). Às vezes, a agência aplica mais de uma rubrica a suas matérias. A pesquisa, entretanto, usou apenas uma por unidade de informação. Quando diante de uma matéria com duas rubricas, a equipe avaliava qual temática era mais ligada ao assunto e secundariamente escolhia a rubrica que tinha menor número de inserções, a fim de que o resultado pudesse privilegiar a diversidade de abordagens disponíveis. A avaliação pretendeu estabelecer uma comparação simples entre requisitos de qualidade pretendidos pela EBC/AB com o resultado efetivamente obtido, isto é, as matérias publicadas. A seguir, passaremos à análise do requisito “diversidade de conteúdos” e na sequência dos requisitos “pluralidade” e “políticas públicas”, avaliados conjuntamente.

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3.1 – Análise do requisito “diversidade de Conteúdo”

Para o requisito diversidade de conteúdo, os indicadores e padrões foram os apresentados no Quadro 1.

Quadro 1 – Requisitos, indicadores e padrões aplicados na análise da ABr Requisito

Indicador Número de Matérias por Rubrica

Diversidade de Conteúdo

Número de Matérias por Retranca

Padrão

- Padrão de Posição Global (PPG) - Rubrica: nenhuma rubrica pode conter mais do que 20% do total de matérias produzidas no período de análise considerado; - Padrão de Posição Relativa (PPR) - Rubrica: a partir do ranking sobre a quantidade de matérias por rubrica, a diferença máxima entre uma rubrica e outra imediatamente vizinha no ranking não pode ser superior a cinco pontos percentuais. - Padrão de Posição Global (PPG) – Retranca por total de matérias: nenhuma retranca pode conter mais do que 2% do total de matérias produzidas no período de análise considerado; - Padrão de Posição Global (PPG) – Retranca por Rubrica: nenhuma retranca pode conter mais do que 5 % do total de matérias produzidas no período de análise considerado dentro da rubrica a qual pertence;

Para ambos os indicadores do requisito “diversidade de conteúdo” não foi definido um padrão rígido de referência, a partir do qual se pudesse estabelecer qual o nível de qualidade da cobertura. Aceitou-se uma margem de tolerância para a definição do padrão, que leve em conta o “equilíbrio relativo” entre os temas para respeitar eventuais diferenças de ênfase em determinados assuntos, decorrentes de um determinado contexto. Adotou-se um critério de simples aplicação, que tem uma função ilustrativa sobre o perfil de cobertura e, apenas secundariamente, sugerir possíveis desconformidades entre o noticiário produzido e o requisito “diversidade de conteúdo” pretendido. O objetivo é deixar clara a sistemática de aplicação do método para a avaliação de qualidade desta orientação editorial. A análise se inicia a partir da Tabela 1, que conta o número de matérias por rubrica.

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Tabela 1: Avaliação de Qualidade do requisito Diversidade de Conteúdo pelo indicador Número de Matérias por Rubrica tendo como parâmetro o Padrão de Posição Global (PPG) e o Padrão de Posição Relativa (PPR)

Matérias Rubrica

No.

%

1. Economia 2. Nacional 3. Política

192 158 98

26,89 22,13 13,73

4. Meio Ambiente

61

8,54

Avaliação de Qualidade Padrão de Padrão de Posição Posição Global* Relativa** Não conforme Não conforme Conforme Conforme

Conforme Não conforme. Diferença entre posições 2 e 3 e 3 e 4 é > 5 pontos percentuais

5. Justiça 60 8,40 Conforme Conforme 6. Saúde 51 7,14 Conforme Conforme 7. Cidadania 31 4,34 Conforme Conforme 8. Educação 27 3,78 Conforme Conforme 9. Cultura 15 2,10 Conforme Conforme 10. Esporte 12 1,68 Conforme Conforme 11. Pesq. e inovação 9 1,26 Conforme Conforme Conforme Conforme Total 714 100% * Nenhuma rubrica pode conter mais do que 20% do total de matérias produzidas no período de análise considerado;

** A diferença máxima entre uma rubrica e outra imediatamente vizinha no ranking não pode ser superior a cinco pontos percentuais.

Economia corresponde, sozinha, a mais de 1/4 de todo o material publicado no período. As três rubricas mais usadas, do total de 11, somam 62,75%. Há, portanto, uma concentração significativa nesse grupo de conteúdos em oposição ao pretendido pelo requisito, que é a oferta de conteúdo diversificado. Numa análise menos formal da questão, a qualidade pode ser problematizada a partir de algumas perguntas: a distribuição do conteúdo revelada pelo indicador “número de matérias por rubrica” representa adequação ao projeto editorial pretendido pela AB? A discrepância entre os números sugere algum descompasso? Será que a relação do número de matérias da rubrica Economia com os números das rubricas Educação e Saúde respeita a relação de relevância dessas áreas na atual conjuntura do país? Essas perguntas lançam provocações em relação ao padrão pretendido pela AB. As 714 matérias foram reunidas em 223 retrancas, expressão utilizada para nomear uma matéria ou conjunto de matérias relacionado ao mesmo fato. A Tabela 2 agrupa as dez mais frequentes, cujos percentuais partem da ordem dos 2%. Juntas, as dez retrancas totalizam 210 matérias, 29,4% do total. Pelo menos seis delas têm perfil altamente conjuntural, isto é, um momento as elevou a tais patamares de destaque. Nesse caso, enquadram-se nitidamente “Vazamento Bacia de Campos”, “Crise nos Ministérios”, “DRU (Desviculamento da Receita da União)”, “Operação Policial Favela Rio”, “Lei da Ficha Limpa” e “PM na USP”. Outras, entretanto, apontam para coberturas que podem ser de rotina, como “Indicadores Econômicos”, “Índices Econômicos” e “Crédito, Endividamento e Inadimplência do Consumidor”, todas fortemente baseadas em dados estatísticos divulgados mensal e semanalmente por instituições classistas e de pesquisa.

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Tabela 2: Avaliação de Qualidade do requisito Diversidade de Conteúdo pelo indicador Número de Matérias por Retranca tendo como parâmetro o Padrão de Posição Global (PPG) – Retranca por total de matérias*

Retrancas Número Vazamento Bacia de Campos 35 Crise Ministérios 32 DRU 26 Copa do Mundo 2014 23 Lei da Ficha Limpa 17 Índices Econômicos 17 Operação policial favela Rio 16 Indicadores Econômicos 16 PM na USP 14 Crédito, Endividamento e inadimplência 14 do consumidor Total desse recorte 210

% 4,9% 4,48% 3,64% 3,22% 2,38% 2,38% 2,24% 2,24% 1,96% 1,96%

Padrão de Posição Global (PPG)* Não Conforme

Conforme

29,4

*Nenhuma retranca pode conter mais do que 2% do total de matérias produzidas no período de análise considerado.

Oito retrancas estão em desconformidade, das quais, duas têm uma frequência maior que o dobro do limite. Duas das dez retrancas, embora abaixo do limite, estão muito próximas. Um aspecto, em particular, deve ser analisado como possível atenuante para avaliação de qualidade realizada, o caráter conjuntural, presente em seis retrancas. Nesse sentido, tal caráter poderia ser visto como um fator justificável de elevação do número de matérias que ultrapassasse o padrão, em função do que receberia uma margem de tolerância maior para fins de avaliação de sua conformidade. Entretanto, pode-se refutar esse fator atenuante, através da exigência às organizações jornalísticas de filtrar melhor o conteúdo publicado sobre o tema em evidência, no sentido de evitar redundâncias ou especulações que costumam ocorrer nesse tipo de cobertura. De qualquer forma, uma coisa é certa: o caráter atenuante ou não do fator conjuntural precisa ser melhor analisado no desenvolvimento da metodologia de avaliação de qualidade em questão, especialmente, na definição dos seus padrões de referência. É possível refinar a observação das retrancas por rubrica a partir do indicador “Padrão de Posição Global (PPR) – Retranca por Rubrica”. As tabelas 3, 4, 5, 6 a seguir fornecem dados sobre as rubricas Economia, Política, Educação e Saúde. Em Economia, percebe-se que as 12 matérias listadas correspondem a 56,74% do conteúdo distribuído em 68 retrancas identificadas (192 matérias no total). Todas elas são fortemente baseadas na divulgação de dados estatísticos, à exceção de “Crise Econômica Mundial Brasil” e “DRU”. Quatro retrancas ultrapassam o limite, o que sugere desconformidade em relação ao aspecto “diversidade de conteúdos”. Tabela 3: Avaliação de Qualidade do requisito Diversidade de Conteúdo pelo indicador Número de Matérias por Retranca em Economia, tendo como parâmetro o Padrão de Posição Global (PPG) – Retranca por Rubrica*

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Retrancas

Número

%

Índices Econômicos Indicadores Econômicos Crédito, Endividamento e inadimplência

17 16 14

8,85% 8,33% 7,29%

Crise econômica mundial Brasil

10

5,21%

Produção Indústria Crescimento da economia PIB Taxa de juros DRU Emprego/Desemprego Crédito e endividamento público

8 8 6 6 6 6

4,17% 4,17% 3,12% 3,12% 3,12% 3,12%

Indicador Posição Segmentos

6

3,12%

Crise econômica mundial

6

3,12%

109

56.74%

Total

Padrão de Posição Global (PPR) – Retranca por Rubrica Não Conforme

Conforme

Em Política, foram identificadas 27 retrancas, das quais oito correspondem a 77,54% do total de matérias publicadas (98). Duas delas, “Crise Ministérios” e “DRU” representam quase a metade do total de matérias publicadas na rubrica. Em comum, os temas têm forte repercussão no Congresso Nacional e na imprensa. Em relação ao PPR-Retranca por Rubrica, cinco ultrapassam o limite. A primeira no ranking tem mais do que cinco vezes o limite e a segunda tem quase quatro vezes mais o limite. Tabela 4: Avaliação de Qualidade do requisito Diversidade de Conteúdo pelo indicador Número de Matérias por Retranca em Política, tendo como parâmetro o Padrão de Posição Global (PPG) – Retranca por Rubrica*

Retrancas

Número

%

Crise Ministérios*

27

27,55

DRU Lei da Ficha Limpa Novo Código Florestal Copa do Mundo 2014

19 7 7 6

19,39 7,14 7,14 6,12

Orçamento 2012 Emendas Parlamentares

4

4,08

Saúde Lula PAC 2 Total

3 3 76

3,06 3,06 77,54

Padrão de Posição Global (PPR) – Retranca por Rubrica Não Conforme

Conforme

*Outras 5 matérias de Crise Ministérios estão na rubrica Nacional

Na rubrica Educação, foram oito retrancas de um total de 27 matérias analisadas. Há que se destacar que o número de matérias publicadas na rubrica Educação é menor que o nú-

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mero de matérias publicado em duas retrancas de Economia: “Indicadores Econômicos” e “Índices Econômicos” somam 33 matérias.

Tabela 5: Avaliação de Qualidade do requisito Diversidade de Conteúdo pelo indicador Número de Matérias por Retranca em Educação, tendo como parâmetro o Padrão de Posição Global (PPG) – Retranca por Rubrica*

Retrancas Ensino Superior PM na USP Ensino Fundamental Enade 2011 Ensino Técnico Enem 2011 Estudos Ambientais ICG 2010 Total

Número 7 5 5 3 3 2 1 1 27

% 25,93% 18,52% 18,52% 11,11% 11,11% 7,41% 3,7% 3,7% 39,24%

Padrão de Posição Global (PPR) – Retranca por Rubrica Não Conforme

Conforme

Em relação ao PPR-Retranca por Rubrica deste grupo, sua aplicação fica prejudicada pela baixa quantidade de matérias. Entretanto, do ponto de vista qualitativo, é interessante analisar que a retranca “Educação Superior”, que abarca uma área temática bastante ampla, tem sete notícias ao passo que uma situação pontual, definida pela retranca “PM na USP”, tem igualmente sete ocorrências. Em Saúde, de 26 rubricas identificadas, seis correspondem a 52,93% das matérias (51).

Tabela 6: Avaliação de Qualidade do requisito Diversidade de Conteúdo pelo indicador Número de Matérias por Retranca em Economia, tendo como parâmetro o Padrão de Posição Global (PPG) – Retranca por Rubrica*

Retrancas HIV Saúde Pública DF Programa Melhor em Casa Câncer Programa SOS Emergências Ações Anvisa Total

Número 7 6 4 4 3 3 27

% 13,73% 11,76% 7,84% 7,84% 5,88% 5,88% 52,93

Padrão de Posição Relativa (PPR) Não Conforme

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Nessa rubrica, destaca-se a “Saúde Pública DF”, com seis matérias, tema fortemente local, e o lançamento de dois programas do governo federal, o Programa Melhor em Casa e o Programa SOS Emergências. A ocorrência de seis matérias sobre “Saúde Pública-DF sugere também uma desconformidade com o requisito “diversidade de conteúdo”, haja vista tratar-se de um tema extremamente local, enquanto programas do governo federal, com amplitude nacional, como o Programa Melhor em Casa, tem quatro matérias.

3.2 – Avaliação dos Indicadores “Políticas Públicas” e “Pluralidade”

Para esta análise, foram selecionados alguns temas fortemente relacionados a políticas públicas, seja no sentido de ações preparatórias para sua formulação, seja no sentido de ações propriamente ditas de políticas públicas em vigor. Foram selecionados quatro temas: - Plano Nacional de Saneamento Básico - Conferência Nacional da Juventude - Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - Programa de Aceleração do Crescimento Exatamente da forma como foram grafados acima, procedeu-se a busca no site da AB a fim de identificar a ocorrência de matérias nas quais constassem aquelas expressões. Para ter um elemento de comparação, foi feita a mesma busca, no mesmo período, no Portal UOL. A mesma expressão foi inserida no mecanismo de busca e filtrou-se o resultado para o período de 01/01/2011 a 31/12/2011. O primeiro e o segundo temas analisados são a 2ª Conferência Nacional da Juventude e a 4ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Os dois eventos foram realizados em 2011, mobilizando inúmeros atores sociais ao longo do ano, discutindo e deliberando sobre temas considerados fundamentais em cada área. Para a análise do tema Plano Nacional de Saneamento Básico, é preciso destacar que o Brasil vem, ao longo dos últimos anos, discutindo a elaboração do Plano Nacional de Saneamento Básico – Plansab. O Plano Nacional de Saneamento Básico, quando aprovado em sua etapa final, constituirá o eixo central da política federal para o saneamento básico, promovendo a articulação nacional dos entes da federação para a implementação das diretrizes da Lei 11.445/07.(Ministério das Cidades, 2012)

O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) constitui a principal política pública destinada ao desenvolvimento do país. O PAC, iniciado em 2009, gerencia investimentos em

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seis eixos: Transportes, Energia, Cidade Melhor, Comunidade Cidadã, Minha Casa, Minha Vida, Água e Luz para Todos. Para a análise da cobertura desses temas, foram usados requisitos, indicadores e padrões informados no Quadro 2.

Quadro 2 – Requisitos, indicadores e padrões aplicados na análise dos requisitos “políticas públicas” e “pluralidade”

Requisito Cobertura de Políticas Públicas

Indicador Número de matérias sobre o tema

Pluralidade na cobertura

Número de Fontes Ouvidas por Segmento

Padrão Número Ideal – entre 12 e 36 matérias por ano; Número Relativo – maior número de matérias em comparação com outro veículo Igualdade de oportunidade para as fontes de diferentes segmentos: os segmentos Governo Federal, Governo Estadual, Sociedade Civil, Empresas, Órgãos de Controle Fiscalização não podem ter, na cobertura realizada, uma diferença maior do que 5 citações em relação a(s) outra (s)

Para o indicador Número de Matérias Sobre os Temas, o padrão Número Ideal – quantidade de matérias que varia de 12 a 36 por ano foi estabelecido aleatoriamente através da estimativa de um número ideal de matérias para cobrir, com um grau mínimo de adequação, o tema. Para o cálculo, foi considerado satisfatório duas matérias por mês, com uma margem de tolerância de 50 % para mais ou para menos. Nesse caso, o padrão aceita um número de matérias que varia de 12 a 36, em média, por ano. Já o padrão Número Relativo – número de matérias sobre o assunto em comparação com outro veículo considera o número de matérias produzido por um veículo na comparação direta com o outro ou outros. Quem produzisse o número de matérias mais próximo do padrão estipulado teria uma melhor cobertura. Para o indicador Número de Fontes Ouvidas por Segmento, o padrão Igualdade de oportunidade para as fontes de diferentes segmentos objetiva assegurar um equilíbrio mínimo entre os atores, por segmento, com voz ativa na cobertura. Por isso, para cada cobertura considerada, não poderia haver predominância de um segmento de fonte em relação a outro. Para acomodar possíveis diferenças no perfil das fontes (a depender da conjuntura, umas fontes podem ser mais ou menos acionadas que outras), aceitou-se uma variação de até cinco ocorrências para mais ou para menos, dentro do grupo de matérias da cobertura analisada.

Os resultados sobre a cobertura dos temas relativos às políticas públicas selecionadas estão

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no Quadro 3, com base no indicador Número Ideal.

Quadro 3 – Indicador Número Ideal – quantidade de matérias de 12 a 36/ano

Políticas Públicas Conferência Nacional da Juventude Conferência Nacional de Segurança Alimentar Plano Nacional de Saneamento Básico Programa de Aceleração do Crescimento*

Agência Brasil No. de matérias

Conforme

2

? NÃO

5

UOL No. de matérias

Conforme

0

? NÃO

NÃO

1

NÃO

8

NÃO

1

NÃO

28/mes*

NÃO*

7/mês*

NÃO*

*Pela grande quantidade de matérias sobre o PAC na Agencia Brasil, foi considerando apenas o mês de

novembro de 2011.

Todos os indicadores apresentaram resultado insuficiente em relação ao padrão estipulado. Para o Programa de Aceleração do Crescimento, foi necessário fazer um ajuste no padrão utilizado. Ao contrário dos temas anteriores, o PAC apresentou uma forte presença no noticiário, com 357 ocorrências em 2011 na Agência Brasil. Para a avaliação da cobertura do PAC, foram adotadas duas medidas: - tomou-se como referência apenas o mês de novembro/2011; - pela amplitude do programa, o padrão de duas matérias por mês foi ampliado para quatro, com a mesma variação de 50% aplicada aos temas anteriores, resultando numa média estimada de duas a seis matérias por mês ou 24 a 48 matérias por ano. Como o PAC foi avaliado apenas em relação a novembro, o padrão empregado no Quadro 3 é o da cota mensal, entre duas e seis matérias. Por isso, também nesse caso ambos os veículos apresentam resultados desconformes, pois a AB resultou em superexposição do tema, com 28 matérias no período, com média de quase uma matéria por dia. Tal discrepância compromete inclusive o requisito “diversidade”. O UOL, por sua vez, manteve-se um pouco acima, mas muito próximo da margem do considerado aceitável.

Quadro 4 – Indicador Número Relativo – mais matérias em relação ao concorren-

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te

Políticas Públicas

Agência Brasil Matérias 2

Ranking 1º.

UOL Matérias 0

Conferência Nacional da Juventude 1º. Conferência Nacional de 5 1 Segurança Alimentar 1º. Plano Nacional de Saneamento 8 1 Básico Programa de Aceleração do 28* 2º. 7* Crescimento *Quantidade de matérias produzida no mês de novembro/2011.

Ranking 2º. 2º. 2º. 1º.

Na comparação direta pelo Indicador Número Relativo, a Agência Brasil apresentou um desempenho melhor do que o UOL em relação a três temas. Apenas na avaliação do Programa de Aceleração do Crescimento o UOL apresentou melhor desempenho, pois, o número de matérias menor é o que mais se aproximou da meta de até seis matérias/mês. A análise do requisito pluralidade pode ser visualizada no Quadro 5.

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Quadro 5 – Avaliação do requisito Pluralidade a partir do indicador Número de fontes por segmento na Política Pública Política Pública Conferência Nacional da Juventude Governo Federal Governo Estadual Câmara/Senado Empresas Órgãos autônomos Sociedade Civil Outros Políticas Pública Conferência Nacional de Segurança Alimentar Governo Federal Governo Estadual Câmara/Senado Empresas Órgãos autônomos Sociedade Civil Outros Política Pública Plano Nacional de Saneamento Básico Governo Federal Governo Estadual Câmara/Senado Empresas Órgãos autônomos Sociedade Civil Outros Políticas Públicas Programa de Aceleração do Crescimento Governo Federal Governo Estadual Câmara/Senado Empresas Órgãos autônomos Sociedade Civil Outros

Agência Brasil No. de Plural fontes ? 1 ----1 SIM -Agência Brasil No. de Plural fontes ? 3 ---4 2 SIM 1 Agência Brasil No. de Plural fontes ? 9 ----3 NÃO Agência Brasil No. de Plural fontes ? 16 2 1 5 5 5 NÃO

UOL No. de Plural fontes ? ---Sem --matérias -para -avaliação UOL No. de Plural fontes ? 1 -----NÃO -No. de fontes 1 ------

No. de fontes 3 1 -3 3 4

UOL Plural ?

NÃO UOL Plural ?

SIM

Para a avaliação do requisito “pluralidade”, a partir do indicador Número de Fontes Ouvidas por Segmento, pode-se afirmar que a cobertura da AB alcançou o padrão de qualidade estipulado em duas temáticas: Conferência Nacional da Juventude e Conferência Nacional de Segurança Alimentar. Em outros dois assuntos, Plano Nacional de Saneamento Básico e Programa de Aceleração do Crescimento, a AB não alcançou a pluralidade, pois a distribuição das fontes por segmentos na cobertura esteve acima da margem de tolerância aceitável. Já a cobertura do UOL só se mostrou em conformidade com o padrão de pluralidade na cobertura do PAC.

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4 - Considerações finais Os resultados apresentados na avaliação dos indicadores “diversidade de conteúdo”, “pluralidade” e “cobertura de políticas públicas” na Agência Brasil procuram oferecer duas contribuições: 1) um diagnóstico inicial, simples, mas preciso em relação ao desempenho da AB a partir dos indicadores empregados; 2) a metodologia usada, que oferece parâmetros claros de avaliação, a fim de gerar uma avaliação de desempenho mais confiável sobre a qualidade do trabalho. Tanto o diagnóstico quanto a metodologia, entretanto, não são definitivos, pois o objetivo do trabalho é justamente compartilhar seus resultados a fim de buscar aprimoramentos necessários ao seu desenvolvimento, que segue sendo realizado. Em relação ao desempenho da AB, foram demonstradas com alguma clareza as deficiências existentes em relação à diversidade (concentração excessiva em alguns temas), à pluralidade (fontes do governo federal predominam) e à cobertura de políticas públicas (quase inexistente em alguns casos e superabundante em outro). Em relação à metodologia de avaliação de qualidade, é preciso ampliar os requisitos e indicadores, a fim de que possam cobrir com maior amplitude os aspectos merecedores de avaliação. Em relação aos padrões, o desafio fundamental é calibrar os valores de referência empregados. Os padrões são importantes para orientar a equipe de redação a equalizar sua atenção em relação aos diferentes assuntos. Por exemplo, se o controle de qualidade aponta poucas matérias em relação ao padrão estipulado sobre o Plano Nacional de Saneamento Básico, a equipe deveria se esforçar para incluir o tema em suas pautas, ampliando a cobertura. Se o controle de qualidade mostra o predomínio de certo grupo de fontes, a equipe poderia buscar alternativas para ampliar os pontos de vista oferecidos. Outro aspecto que merece atenção no desenvolvimento da ferramenta é o recorte temporal da avaliação. O objetivo da metodologia em teste é permitir a avaliação de períodos curtos (uma edição, por exemplo) e ou de séries históricas. Para isso, dois são os aspectos que devem constar em novos estudos: 1) a delimitação dos critérios para demarcação dos períodos de avaliação, considerando as especificidades da cobertura de rotina e da cobertura de assuntos especiais; 2) a consideração das especificidades dos assuntos, como os de ênfase conjuntural (fortemente factuais) ou os temáticos (nos quais o factual não é o fator de destaque) na delimitação dos períodos. Isso ficou muito claro tanto na avaliação do requisito diversidade quando da cobertura de assuntos conjunturais, que tendem a dominar a pauta, quanto na avaliação das políticas públicas, que requerem um período maior de avaliação para a formação de um juízo. A avaliação de qualidade deve ser vista como um recurso fundamental para a certificação de credibilidade das organizações jornalísticas. Empresas que têm um histórico de credibilidade que pesa contra si, como o caso da Agência Brasil, podem ter na implantação de uma política de avaliação de qualidade baseada em dados, como a aqui sugerida, um fator importante para a reversão desse quadro. Um passo nessa direção, contudo, requer um processo de inovação na gestão editorial da agência, a fim de criar mecanismos inovadores que incorporem ferramentas de avaliação de qualidade associadas à revisão dos processos de produção jornalística.

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Panorama histórico: TV Cultura e a contribuição na implantação da multiprogramação no Brasil Panorama histórico: TV Cultura y suya contribución en la implantación de la multiprogramación en el Brasil A historical panorama: TV Cultura Channel and its contribution in the implementation of multiprogramming in Brazil

Vivianne Lindsay Cardoso Mestre em Comunicação pela Unesp - Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho". Linha de pesquisa – Gestão e Política da Informação e da Comunicação Midiática. Especialista em Docência no Ensino Superior (Unifeob). Bacharel em Comunicação Social - Jornalismo (Puc-Campinas). Membro do Grupo de Pesquisa Lecotec (Laboratório de Estudos em Comunicação, Tecnologia e Educação Cidadã) da Unesp (FAAC) E-mail: viviannelc@hotmail.com

Revista Eptic Online Vol.15 n.2 p.174-188 mai-ago 2013 Recebido em 20/02/2013 Publicado em 15/05/2013


Panorama histórico: TV Cultura e a contribuição na implantação da multiprogramação - Vivianne L. Cardoso

RESUMO Desde sua fundação, na década de 1960, a TV Cultura tem como característica uma trajetória de inovações, buscando oferecer um conteúdo voltado, especialmente, à educação e à cultura. Nos últimos anos, entre as contribuições mais significativas para a televisão brasileira e a própria televisão pública, está a implantação da multiprogramação, por meio dos canais Univesp TV e MultiCultura. Em um panorama histórico de seu processo de implantação, torna-se possível identificar o potencial da iniciativa como referencial para estudos ligados à implantação da televisão digital e à comunicação pública no Brasil.

PALAVRAS-CHAVE Multiprogramação. Televisão Pública. Televisão Digital. Políticas Públicas de Comunicação.

RESUMEN Desde su fundación, en la década de 1960, la TV Cultura ha presentado una trayectoria de innovaciones y intenta ofrecer contenido direccionado, en especial, a la educación y a la cultura. En los últimos años, entre las contribuciones más significativas para la televisión brasilera y la televisión pública como un todo, está la implantación de la multiprogramación, por medio de los canales Univesp TV y MultiCultura. En un panorama histórico de su proceso de implantación, es posible identificar el potencial de esa iniciativa como referencial para estudios relacionados a la instalación de la televisión digital terrestre y a la comunicación pública en el Brasil PALABRAS CLAVE Multiprogramación. Televisión Pública. Televisión Digital Terrestre. Políticas Públicas de Comunicación

ABSTRACT Since its foundation in the 1960s, TV Cultura has presented a long array of innovations, always wishing to offer content which has education and culture as its focus. In the last few years, its use of multiprogramming, via the Univesp TV and MultiCultura channels, is one of the most significative improvements to brazilian television broadcasting and to public television as a whole. By analyzing the historical panorama of the launching of multiprogramming by TV Cultura, we aim to identify the potential of such initiative as a barometer for studies on related topics, such as the installation of Terrestrial Digital Television and public communication in Brazil KEYWORDS Multiprogramming. Public Television. Terrestrial Digital Television. Public Communication Policies

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Panorama histórico: TV Cultura e a contribuição na implantação da multiprogramação - Vivianne L. Cardoso

Introdução A TV Cultura é uma emissora pública e educativa de significativa relevância para o desenvolvimento da comunicação pública não apenas para o estado de São Paulo, onde se encontra a sede da emissora, mas também para o País. Desde sua fundação, na década de 1960, tem como característica uma trajetória de superações e inovações, buscando oferecer um conteúdo voltado, especialmente, à educação e à cultura. Mesmo com diversas limitações financeiras e divergências políticas, especialmente identificadas e debatidas nos últimos anos – que não serão tratadas neste texto –, a TV Cultura tem dado relevante contribuição às reflexões referentes aos estudos sobre a implantação da televisão digital no Brasil. Tal contribuição caracteriza-se, quando pensada especialmente para a aplicabilidade do uso da tecnologia para a comunicação pública, na implantação de dois canais de multiprogramação, o Univesp TV e o MultiCultura. Desde o ano 2000, com o processo de implantação da tecnologia da televisão digital, o Brasil tem vivenciado um dos momentos mais significativos no desenvolvimento da televisão. Desde sua criação, a mudança tem sido marcada pela constante discussão quanto às suas potencialidades, finalidades e acessibilidade, seja nos âmbitos político, econômico, tecnológico, comercial ou social. Políticos, profissionais, estudiosos e o próprio telespectador acompanham e se tornam personagens dessa história ainda em construção. Alta definição de imagem e som, interatividade, multiprogramação, mobilidade, portabilidade e convergência são as principais novidades apresentadas, as quais atraem e instigam estudos e pesquisas. Diante das principais vantagens que a televisão digital adotada no País possui, é possível identificar que, desde o início das transmissões em São Paulo, em dezembro de 2007, a alta definição é realidade acessível. A mobilidade e portabilidade vêm ganhando força com novos dispositivos tecnológicos que estão sendo adaptados, como celulares, pequenos aparelhos portáteis e computadores. A interatividade é um assunto intrigante e discutido pelos autores e pesquisadores, garantindo amplo espaço entre as reflexões com sua grande potencialidade e ainda pouca acessibilidade. A convergência digital entre os dispositivos tecnológicos também é assunto marcante e em franca expansão. Por sua vez, a multiprogramação é um ponto polêmico, controverso e, fundamentalmente, incerto. Seja ela restrita, ilegal, ameaçadora, democrática, inovadora ou repetidora, a multiprogramação vem construindo sua história no Brasil permeada por divergências, inquietações e possibilidades. Entre as contribuições e inovações mais significativas para a televisão brasileira e a própria televisão pública realizadas pela TV Cultura nos últimos anos está a implantação da multiprogramação por meio dos canais Univesp TV e MultiCultura, inaugurados em 26 de agosto de 2009. Os canais seguem, em teoria, os princípios dos artigos 222 e 224, na busca por universalizar o direito à informação e à comunicação, em um trabalho contínuo de inovação e experimentação (FPA, 2010), autorizados a funcionar em caráter científico e experimental. Implantados em um processo de enfrentamento junto ao Ministério das Comunicações, eles vêm se caracterizando como os únicos canais de multiprogramação do Brasil que estão no ar e não pertencem ao Governo Federal.

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A origem da TV Cultura Em 20 de setembro de 1960 foi inaugurada a TV Cultura, Canal 2, quinta emissora de televisão da cidade de São Paulo. A TV Cultura era parte do grupo “Diários e Emissoras Associados”, comandado por Edmundo Monteiro após a morte do proprietário, Assis Chateaubriand, sendo a segunda emissora do grupo, antecedida pela TV Tupi, inaugurada em 1950. Chateaubriand havia comprado a Rádio Cultura da família Fontoura em 1959 e a televisão nasceu como complemento da rádio e com um perfil comercial (LEAL FILHO, 1988 e LIMA, 2008). Mesmo com poucos canais em funcionamento, cujos perfis eram predominantemente comerciais, a televisão da década de 1960 foi marcada pela visão de que poderia ser um instrumento rápido de educação, mais barato do que a educação tradicional e de maior alcance. Uma das pessoas que acreditava nesse potencial era o governador do Estado de São Paulo, Abreu Sodré. Eleito em 1967, em pleno regime militar, ele foi influenciado pelo acesso à pedagogia de educação a distância que conheceu em Portugal e no Canadá e se tornou uma das personalidades mais importantes na história da TV Cultura e do surgimento da televisão pública no Brasil. Com seu apoio, a TV Cultura foi adquirida pelo Governo do Estado de São Paulo para que o Estado tivesse à sua disposição um canal próprio, educativo, para a veiculação de uma programação diversificada. Criada como uma emissora comercial por Assis Chateaubriand, a Cultura passou a ser uma emissora pública, de caráter educativo, a partir do Decreto-Lei nº 236, de 28 de fevereiro de 1967, que complementa e modifica a Lei nº 4.117, de 27 de agosto de 1962. Desse ousado projeto de Sodré também surgiu pouco depois, em setembro de 1967, a Fundação Padre Anchieta (FPA), instituída pela Lei nº 9.849/1967 e caracterizada como uma entidade de direito privado para gerir as futuras emissoras de rádio e televisão do Estado, sob a presidência de José Bonifácio Coutinho Nogueira (LIMA, 2008). Por meio da FPA, o governador pretendia garantir a não interferência do poder público, evitando o vínculo com o governo, exceto pelo total apoio financeiro para cobrir o custeio e investimentos no empreendimento, proposta alicerçada pelo estatuto regulamentado no Decreto Estadual nº 48.660/1967, que sofreu alterações em 1967 e 1968. Entre essas alterações estavam o modo como o Conselho Curador se estruturaria e a escolha de seu presidente, feita por eleição entre os membros do conselho. Houve ainda a garantia à perpetuação autônoma do Conselho Curador da Fundação por meio de um “mecanismo segundo o qual 24 dos 35 membros só podem ser eleitos pelo próprio Conselho e não indicados por outras entidades” (LEAL FILHO, 1988, p. 24).

Após a passagem de comercial para educativa e a criação da Fundação, a emissora permaneceu fora do ar por um curto período enquanto o governo desenvolvia o planejamento de sua atuação e realizava uma atualização técnica da estrutura, que se encontrava aquém das necessidades ideais de funcionamento. O objetivo do governo de Sodré era implantar

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1- Enquanto a TV Cultura se estruturava, houve, em novembro de 1968, a inauguração da primeira televisão pública, a TV Universitária, Canal 11 de Recife, pertencente à Universidade Federal de Pernambuco.

uma televisão educativa de alto nível. As atividades voltaram ao ar em 15 de junho de 1 1969 , quando se deu o início da segunda fase de emissora, com festejos no Ginásio do Ibirapuera e início das transmissões regulares na noite seguinte (LIMA, 2008). Idealizada pelo governo de Sodré para ser uma televisão modelo e de valorização da produção local, a emissora foi estruturada com a participação de profissionais de alto gabarito em diversos campos, como profissionais da área, intelectuais, professores nacionalmente reconhecidos e alunos recém-formados dos cursos de Comunicação da USP (Universidade de São Paulo), buscando a experimentação e a inovação no modo de fazer televisão e trabalhando em duas frentes: a cultural e a educativa, procurando uma linguagem vanguardista para alcançar os objetivos educacionais e que levassem o espectador à reflexão (LIMA, 2008). Quanto ao aspecto jurídico-institucional, a proposta implantada por Sodré refletiu no modelo de diversas televisões públicas no Brasil, pois se tratava de um projeto liberal de comunicação formulado num período de transição do liberalismo para o autoritarismo e implantado sob um regime ditatorial (LEAL FILHO, 1988). Para Leal Filho (1988), porém, essa dualidade contribuiu pouco para a sustentação do projeto, pois esse nunca conseguiu ter uma orientação sólida, estando sempre oscilante entre o projeto liberal e o projeto autoritário, uma vez que, durante o período da ditadura militar, a televisão passou a ser peça-chave na estrutura de manutenção do poder. Curiosamente, anos depois, em 1974, a Fundação Padre Anchieta foi declarada de utilidade pública pelo Decreto Estadual nº 10.834/1974. O período de consolidação da TV Cultura corresponde ao mesmo período de valorização da educação pelo rádio e televisão em território nacional, fato relacionado a um plano mais geral para a educação. Esse plano implantou no Brasil uma passagem da década de 60 para a década de 70, contatando-se redução de recursos públicos aplicados na educação formal (LEAL FILHO, 1988).

2- Foi a 1ª emissora de televisão aberta a operar um canal exclusivo de exibição pela internet, o IPTV Cultura (www.iptvcultura.com.br), além de manter o portal da TV Cultura, o portal da Fundação Padre Anchieta e o site de compra dos produtos com a marca da fundação. A fundação ainda atuou por meio da unidade de pesquisa Cultura Data e da Unidade Cultura Educacional, destinada à geração de serviços que abrangiam a produção de programação para a formação de professores e monitores de animação cultural e/ou apoio a movimentos sociais e edição de material paradidático para alunos da rede pública.

Apesar desse início próspero, os anos seguintes da TV Cultura foram marcados por altos e baixos, influências políticas do Governo do Estado de São Paulo, gestões criticadas e fortes crises financeiras. Mesmo assim, ela registra em sua história momentos relevantes de contribuição para o desenvolvimento da televisão pública e educativa no País, com seu pioneirismo2 e a produção de programas consagrados. Outra característica marcante da TV Cultura é a vasta lista de prêmios nacionais e internacionais que conquistou como reconhecimento de sua programação inovadora. Mais recentemente, a partir do ano 2000, a emissora passou a digitalizar sua produção, além investir na aquisição de equipamentos como câmeras, novo sistema de programação para exibição de chamadas promocionais e publicidade, estações digitais de edição não linear e ampliação da rede de computadores (LIMA, 2008). Ao longo dos anos, toda estrutura foi sendo gradativamente digitalizada. O início da digitalização de seu acervo ocorreu em 2005 e, em dezembro de 2007, a TV Cultura deu início a suas transmissões digitais na cidade de São Paulo.

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Foi nesse período, mais precisamente em 14 de junho de 2007, que o jornalista Paulo Markun, funcionário da TV Cultura por dez anos, foi eleito pelo Conselho Curador. Ele foi responsável pela implantação da multiprogramação na emissora e estruturou sua gestão com base na premissa de que a missão seria “contribuir para a formação crítica do homem para o exercício da cidadania, produzindo conteúdo educativo, cultural e de interesse público para os paulistas e brasileiros” (RELATÓRIO DE GESTÃO, 2010, p. 5).

Televisão digital e a legislação A tecnologia da televisão digital no País está regulamentada no Decreto nº 5.820, de 29 de junho de 2006, que implanta o Sistema Brasileiro de Televisão Digital Terrestre (SBTVD-T) e o conjunto de padrões tecnológicos a serem adotados para transmissão e recepção de sinais digitais terrestres de radiodifusão de sons e imagens. Antes mesmo da regulamentação, a implantação já vinha sendo marcada pela constante preocupação com as questões da educação, acessibilidade e desenvolvimento social, levantadas a partir da instituição do Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD) pelo Decreto nº 4.901, de 26 de novembro de 2003. Entre os objetivos desse sistema estão a promoção da inclusão social, da diversidade cultural do País e da língua pátria por meio de acesso à tecnologia, visando à democratização da informação. Outras finalidades são propiciar a criação de uma rede universal de educação a distância e contribuir para a convergência tecnológica e empresarial dos serviços de comunicação. A partir dessa tecnologia, um novo dispositivo de comunicação foi implantado e disponibilizado para o País: a multiprogramação, que é definida como “a transmissão simultânea de vários programas dentro de um mesmo canal de 6 MHz”, conforme NORMA nº 01/2009. A multiprogramação, ou “ocupação compartilhada de um canal (6MHz) por diversas emissoras, sendo que cada emissora possui um espaço próprio, autônomo, dentro desse canal, como se fossem sub-canais”, conforme consta no Relatório do Grupo Temático de Trabalho “Migração Digital” do I Fórum Nacional de TVs Públicas (2007), pode ser um “modelo estratégico para as televisões públicas por permitir maior representação da diversidade e por ser o meio de atender às necessidades de produção e veiculação de conteúdos que atendam todas as demandas da sociedade” com os seguintes benefícios: ampliação do número de canais – mais conteúdo, possibilidade de alternar alta definição (banda) e multiprogramação (divisão de banda em até quatro programações standard) – e conteúdo diferenciado. Regulamentada pela Norma Geral para Execução dos Serviços de Televisão Pública Digital nº 01/2009, a multiprogramação é autorizada a ser utilizada exclusivamente pela União Federal, com o objetivo de transmitir assuntos ligados ao Poder Executivo, educação, cultura e programação voltada a interesses regionais, podendo ser utilizada somente nos canais a que se refere o Artigo 12 do Decreto nº 5.820/2006, consignados a órgãos e entidade integrantes dos poderes da União, por quatro canais digitais de radiofrequência com largura de banda de 6 MHz.

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A restrição da tecnologia, descrita no Artigo 13 do Decreto nº 5.820/2006, diz que a União poderá explorar os serviço de radiodifusão de sons e imagens em tecnologia digital, observadas as normas de operação compartilhada por meio dos seguintes canais: Canal do Poder Executivo, para transmissão de atos, trabalhos, projetos, sessões e eventos do Poder Executivo; Canal de Educação, para transmissão destinada ao desenvolvimento e aprimoramento, entre outros, do ensino a distância de alunos e capacitação de professores; Canal de Cultura, para transmissão destinada a produções culturais e programas regionais; e Canal de Cidadania, para transmissão de programações das comunidades locais, bem como para divulgação de atos, trabalhos, projetos, sessões e eventos dos poderes públicos federal, estadual e municipal, podendo oferecer aplicações de serviços públicos de governo eletrônico no âmbito federal, estadual e municipal. Nesse cenário, a TV Cultura foi a única emissora a ter a autorização especial para a implantação da multiprogramação. Mesmo sendo uma emissora educativa e pública, foi preciso ampla negociação entre o Ministério das Comunicações, por meio do então ministro Hélio Costa, e o ex-presidente da Fundação Padre Anchieta, Paulo Markun, responsável por romper a própria legislação vigente por acreditar na potencialidade e inovação da multiprogramação e colocar no ar os dois canais da TV Cultura, o MultiCultura e o Univesp TV. O resultado da disputa foi o Despacho do ministro Hélio Costa, em 7 de maio de 2009, publicado no Diário Oficial da União (DOU), autorizando a transmissão dos canais em caráter científico e experimental3. Única emissora pública do País a receber autorização do Ministério das Comunicações para implantar a tecnologia de multiprogramação em caráter científico e experimental, a conquista da TV Cultura gerou uma necessidade de ponderação para o uso da tecnologia nas normatizações posteriores, o que reforça sua contribuição para os debates sobre o tema. Em 2012, o Governo Federal publicou a Portaria nº 106/2012, que estabelece normas para a utilização de multiprogramação com base no disposto dos artigos 12 e 13 do Decreto nº 5.820/2006, no qual estipula, novamente, apenas aos órgãos dos Poderes da União consignatários de canais digitais de 6 MHz o direito de utilizar o recurso de multiprogramação para transmitir programações simultâneas em, no máximo, quatro faixas. Tais canais de multiprogramação poderão celebrar convênios ou instrumentos similares para o compartilhamento da programação de forma não onerosa, desde que recebam todo o conteúdo da geradora, com órgãos da União, autarquias e fundações públicas dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, para contemplar os seguintes requisitos e objetivos: finalidades educativa, artística e cultural; divulgação de produções culturais e programas locais ou regionais; estímulo à produção independente; divulgação de atos, sessões, projetos e eventos institucionais dos poderes públicos federal, estadual e municipal; ou aplicações de serviços públicos de governo eletrônico no âmbito federal, estadual e municipal. Mesmo restritiva, a Portaria nº 106/2012 determina em seu artigo 7º uma alteração no item 2 da Norma nº 01/2007, aprovada pela Portaria MC nº 465/2007, que estabelece os procedimentos operacionais necessários para a execução de serviços especiais para fins científicos ou experimentais, tendo como objetivo realizar experimentos de transmissão de sinais de radiodifusão ou demonstrações de sistemas desenvolvidos para essa finalidade. A

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alteração da Portaria nº 106/2012 determina que o item 2 passa a vigorar com a seguinte redação: ‘”Para os efeitos desta Norma, são competentes para executar Serviço Especial para Fins Científicos ou Experimentais, além da União, de forma direta, as seguintes entidades: ...........”(NR)”. Tal alteração cria uma brecha para a implantação da multiprogramação nos termos descritos, no entanto, limita a possibilidade ao poder de autorização do Governo Federal. 3- Mais detalhes desse processo de negociação para a implantação da multiprogramação pela TV Cultura podem ser encontrados no artigo da própria autora em parceria com o Dr. Juliano Maurício de Carvalho: Face Paulista da TV Digital: Reflexões sobre a multiprogramação na TV Cultura. Disponível em: http://www.seer.ufs.br/index. php/eptic/article/view/ 111. Acesso em: 24/02/2013.

Uma coisa, porém, não mudou. A televisão pública e educativa, desde sua implantação, por meio do Decreto-Lei nº 236, de 28 de fevereiro de 1967, tem como dever a divulgação de programas educacionais, mediante a transmissão de aulas, conferências, palestras e debates. As emissoras de rádio e televisão, por sua vez, devem ter como princípio, conforme determina o Artigo 222 da Constituição Federal, finalidades educativas, culturais e informativas. Até o momento, a TV Cultura segue – em teoria – com o perfil definido pela FPA: ser uma televisão pública com missão de trabalhar com finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas, conforme determinam os Artigos 222 e 224 da Constituição Federal, buscando universalizar o direito à informação e à comunicação (FPA, 2010).

A multiprogramação

Entre as potencialidades da tecnologia da televisão digital no Brasil, a multiprogramação é um dos principais atrativos, e caracteriza-se pela possibilidade de transmissão simultânea de múltiplos conteúdos em um mesmo canal de televisão, graças à capacidade de compactação de dados de áudio, vídeo e software, encapsulados e inseridos em um protocolo de transporte, podendo ser compreendidos pelo receptor que possua o mesmo protocolo, assim como acontece com a internet (FERRAZ, 2009). A tecnologia permite o uso mais eficiente do espectro de transmissão e o aumento do número de programas, oferecendo mais conteúdo, maior concorrência, diferentes usos (serviço, governo, bancos etc.), e alta qualidade de imagem e som, criando expectativa por parte da cadeia produtiva e do telespectador, uma vez que gera maiores receitas, maior interação com o público, maior divertimento e mais fontes de informação. A emissora pode ter a liberdade de decidir transmitir diversos programas ao mesmo tempo ou transmitir o conteúdo de diversas câmeras, inclusive com ângulos diversos, permitindo que o usuário assista ao programa multicâmera do modo que preferir (FERRAZ, 2009). Mesmo com essas “diversas combinações interessantes” que podem ser feitas com a multiprogramação, Ferraz (2009) avalia que nos vários países em que a televisão digital vem sendo implantada faltam modelos de negócios consistentes para a multiprogramação, e, por isso, ela tem recebido menos atenção. Mesmo assim, avalia que canais de interatividade, com suas aplicações, motivam o maior desenvolvimento da engenharia e são cruciais para a consolidação do sucesso dessa funcionalidade, coincidente com a forte expectativa de mudanças na forma de comunicação entre a televisão e o telespectador, que passa a ser chamado de usuário (FERRAZ, 2009).

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Como aponta o Relatório do Grupo de Trabalho “Migração Digital” do I Fórum Nacional de TVs Públicas, realizado em 2006, a multiprogramação é um “modelo estratégico para as televisões públicas por permitir maior representação da diversidade e por ser o meio de atender às necessidades de produção e veiculação de conteúdos que atendam todas as demandas da sociedade” – qualidades relacionadas à própria televisão pública, à qual cabe, ainda segundo o GT, “contribuir para integrar a maioria da população aos benefícios da tecnologia, bem como eliminar diferenças de acesso à capacidade de produção de conteúdos”. Além desse ponto de vista do conteúdo, outro documento, o relatório de contribuição do Intervozes ao II Fórum Nacional de TVs Públicas, divulgado em maio de 2009, também levanta o viés econômico da tecnologia. Nesse sentido, a multiprogramação preconizada pela televisão digital é vista como um gerador de impactos significativos para a estrutura de mercado da televisão. A multiplicação de programações (multiprogramação) possibilita a entrada de novos agentes em áreas onde o espectro já se encontrava saturado. Se por um lado isto surge como ameaça aos operadores comerciais, uma vez que a diversificação atinge a divisão do bolo publicitário, por outro abre importante oferta de agentes públicos do setor (INTERVOZES, 2009).

Apesar desses aspectos, os autores Pieranti e Winner (2009) lembram que a legislação vigente no Brasil é defasada, implicando em dificuldades para lidar com novas funcionalidades da comunicação de massa, como a multiprogramação e a interatividade, e viabilizálas, não havendo um marco legal unificado ou um quadro normativo composto por regras e princípios harmônicos entre si para a regulação de diferentes serviços. A dificuldade, para os autores, é a ausência de uma legislação que, ao menos, considere serviços mais recentes e a convergência tecnológica, o que acaba resultando em dificuldades para uma regulação apropriada da comunicação social no presente, como vem acontecendo com a multiprogramação. Considerando ainda outro lado, a desmassificação provocada pela televisão digital e suas potencialidades geram uma nova realidade reflexiva apresentada pelos autores Bolaño e Brittos (2007) como o reconhecimento da existência de uma pluralidade de interesses, relativos a consumidores, emissoras e outros setores da indústria brasileira que, para serem atendidos, devem alterar a lógica social até então adotada. No Brasil, a televisão é um meio de comunicação muito mais popularizado por suas características de entretenimento do que de desenvolvimento social. Pode-se dizer que as características da indústria cultural são explícitas, no entanto, a televisão pública pode e deve se destacar pelo estímulo à produção de conteúdos digitais alternativos, interativos e inovadores, para os quais, segundo Pieranti e Winner (2009), a multiprogramação torna-se um modelo adequado. A TV Cultura pode representar um elemento importante nessa quebra de entraves e resistências que a emissoras privadas vêm colocando por interesses econômicos e comerciais, podendo servir de modelo para outras televisões públicas. As questões referentes à implantação da multiprogramação no País vão além dos interesses da TV Cultura, envolvem

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questões comerciais e de domínio de mercado que o Estado deve superar. No processo de implantação da multiprogramação da TV Cultura, as emissoras Rede Globo, SBT - Sistema Brasileiro de Televisão - e Rede Record, por meio da Abert (Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão), foram contra o mecanismo. Já a Rede Band, a Rede TV! e o Grupo Abril foram favoráveis (EBC, 2010). Posteriormente, a Rede Record passou a assumir uma postura favorável. As regulações determinadas pelas políticas públicas são fatores determinantes no processo de desenvolvimento da multiprogramação e sua devida utilização. A proposta de implantação da multiprogramação pela TV Cultura remete a um resgate histórico dos objetivos educacionais da emissora e cria um cenário propício à reflexão quanto à relevância social da TV Cultura como televisão pública e à contribuição que os dois canais podem dar aos estudos sobre televisão digital no Brasil. É pertinente considerar que a concretização e o aperfeiçoamento do projeto inicial, idealizado em 2010, estão diretamente ligados à necessidade de investimentos públicos e empenho dos profissionais e políticos envolvidos.

O MultiCultura 5- Além da graduação em Pedagogia, foram criados os cursos de especialização em Ética, Valores e Cidadania na Escola; Ética, Valores e Saúde na Escola; tecnologia em Processos Gerenciais, além de cursos extracurriculares de inglês e espanhol básicos.

O MultiCultura, sintonizado no sinal digital 2.3, foi idealizado paralelamente ao canal Univesp TV como complemento para a nova proposta de programação oferecida pela Fundação Padre Anchieta. O novo canal, criado graças à tecnologia digital, foi idealizado buscando oferecer mais cultura, conhecimento e educação. Em fase de implantação desde 2010, exibe programas, séries e especiais contidos no acervo dos mais de 40 anos da TV Cultura que já tenham sido digitalizados. A proposta é transmitir programas voltados à ciência, dramaturgia, musicais, documentários, entrevistas raras, juvenis e outros. Inicialmente, buscando uma implantação da multiprogramação de modo mais sólido, considerando a dimensão e valor histórico do acervo existente que já vinha sendo digitalizado e a limitação legal para a comercialização do conteúdo produzido ao longo da história da TV Cultura, a transmissão do MultiCultura ocorreu com a apresentação de uma programação temática diária, retransmitindo o acervo da emissora. Posteriormente, a programação temática foi substituída por uma programação diversificada, mas mantendo a transmissão de material do acervo, e, mais recentemente, o canal começou a exibir também produção própria, com pequenos programas (programetes) alusivos a datas especiais.

O Univesp TV e o Projeto Univesp Com programação diária, o canal Univesp TV, sinal digital 2.2, foi criado com o objetivo de apoiar o Programa Univesp (Universidade Virtual do Estado de São Paulo)4, iniciativa da Secretaria de Ensino Superior do Estado de São Paulo, por meio do Decreto nº 53.536/2008. A proposta era utilizar as tecnologias de comunicação e informação para desenvolver

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6- Informação via e-mail de Mônica Teixeira em 11/06/2012.

o ensino superior público e de qualidade. Com sinal digital para a Grande São Paulo e parabólica digital em todo o País, o canal surgiu para ser um instrumento de apoio aos estudantes e oferecer ao espectador um conteúdo efetivamente educativo, utilizando para isso entrevistas, reportagens, debates, filmes e documentários. O Univesp TV buscou em sua proposta inicial desenvolver uma grade com espaço para programas diretamente ligados aos cursos, oferecidos em modalidade semipresencial com encontros semanais obrigatórios e atividades complementares desenvolvidas por meio de ferramentais digitais e virtuais viabilizadas pela internet, programas do próprio canal e videoaulas. O primeiro curso oferecido foi o de Pedagogia, realizado pela Unesp e com 1.350 vagas, para as quais candidataram-se oito mil pessoas. A programação inicial era diária, composta por quatro módulos de quatro horas inéditas, sendo repetidos ao longo da programação, com veiculação de programas ao vivo nos horários das atividades presenciais. Entre os programas produzidos pelo canal se destacaram: Cientistas do Brasil, Notícias Univesp, Desafios da Educação, Na Íntegra, Literatura, Encontros, Meu Livro Predileto, Guitarríssimo e Inglês com Música. Em 2009, foi contabilizada a produção ou compra de 339 programas diferentes, equivalentes a 196 horas de produção, com a média de transmissão de 15 horas diárias de programação (RELATÓRIO DE GESTÃO, 2010; UNIVESP TV, 2012). Utilizando as tecnologias da informação e comunicação, os cursos5 são ministrados com apoio de ferramentas computacionais por meio da plataforma do projeto Aprendizado Eletrônico (Ae). A plataforma eletrônica Tidia-Ae, viabilizada pelo projeto Aprendizado Eletrônico (Ae), foi desenvolvida pelo Programa Tecnologia da Informação no Desenvolvimento da Internet Avançada (Tidia) da Fapesp. O Ae e a plataforma foram idealizados para oferecer um ambiente virtual de aprendizagem estruturado, com ferramentas para utilização em atividades pedagógicas por meio da internet, destinado ao aprendizado e à colaboração científica aplicada em instituições de ensino e pesquisa, atendendo desde o ensino básico até o superior. A tecnologia pode ser utilizada gratuitamente por profissionais ligados à educação, estudantes e interessados em utilizar um gerenciador de curso on-line, ensino presencial e pesquisa colaborativa com interatividade (ROMERO, 2008; ROMERO, SHIMIZU, 2009). Por meio da plataforma eletrônica Tidia-Ae os alunos têm acesso aos conteúdos preparados especificamente para cada curso, utilizando ferramentas de interatividade para a realização das atividades que são preparadas para cada fase do curso e que devem ser cumpridas respeitando um calendário que se desenvolve paralelamente aos programas transmitidos no Univesp TV. Todas as atividades concluídas são encaminhadas para um tutor que segue o desenvolvimento do aluno, avaliando-o e dando orientações. Visando aos acessos posteriores do próprio aluno, do tutor ou orientador, os trabalhos realizados são armazenados em um banco de dados. São consideradas presenças as atividades realizadas digitalmente e as aulas presenciais.

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Mônica Teixeira (2012)6, coordenadora geral do Univesp TV, afirma que os números de alunos inscritos no Programa Univesp têm sido os seguintes: em 2010, 1.350 alunos foram aprovados no vestibular e iniciaram o curso de Pedagogia Unesp-Univesp com duração de sete semestres. Outros 450 iniciaram o curso de extensão Ética Valores e Saúde na Escola, oferecido pela Univesp-EACH/USP, a partir do segundo semestre do mesmo ano. Em 2011, 360 alunos iniciaram o curso de Licenciatura em Ciências USP-Univesp. Outros mil alunos iniciaram, no segundo semestre do mesmo ano, o curso Ética Valores e Cidadania na Escola. Em 2012, o curso de Licenciatura em Ciências admitiu sua segunda turma. De 2009 a junho de 2012, o projeto produziu 267 programas para o curso de Pedagogia, 22 programas e dez videoaulas para o curso de Licenciatura em Ciências e 17 programas para os cursos de pós-graduação em Ética, Valores e Saúde na Escola e Ética, Valores e Cidadania na Escola, além de gravação e veiculação de atividades acadêmicas, como seminários, cursos de extensão, cursos de graduação e pós-graduação, realizadas nas universidades estaduais parceiras do programa. Os programas abertos de acesso gratuito são produzidos prioritariamente para atender às demandas dos cursos, mas também são voltados ao interesse geral, atendendo ao princípio e slogan do canal: para quem quer saber mais e aprender sempre (TEIXEIRA; NAOUM, 2012). Desde 4 de outubro de 2010, o Univesp TV passou a transmitir simultaneamente a programação do canal de multiprogramação 2.2 também na internet, por meio do site www. univesp.tv.br, o que viabilizou o acesso a seu conteúdo em todo território nacional e internacional. O programa Univesp desenvolve ainda a revista digital temática Pré-Univesp, voltada ao apoio aos estudantes pré-universitários. Com periodicidade mensal, a publicação aborda temas da atualidade presentes na matriz curricular para ensino médio e ingresso à universidade (PROGRAMA UNIVESP, 2011).

Considerações Finais A implantação da multiprogramação no Brasil vem sendo tratada pela mídia brasileira desde os anos de 1990 como uma das características mais atrativas da televisão digital. A escolha pelo modelo japonês, adaptado para o sistema nipo-brasileiro, aconteceu também considerando a possibilidade de multiplicação da programação como um elemento positivo a ser utilizado. A partir do ano 2000, o assunto ganhou destaque durante o processo de escolha da tecnologia e a regulamentação da implantação do Sistema Brasileiro de TV Digital Terrestre (SBTVD-T). Especialmente em 2009, quando a TV Cultura colocou os dois canais de multiprogramação no ar, enfrentando a Norma nº 01/2009, que havia acabado de ser implantada restringindo o uso da tecnologia, o assunto ganhou ampla repercussão. A TV Cultura, historicamente, passou a ser uma das referências em comunicação pública televisiva e a iniciativa pioneira de utilizar a tecnologia passou a ser um exemplo significativo para o aprimoramento do uso da televisão digital no Brasil. Tanto a norma quanto a ousadia

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da Fundação Padre Anchieta, paralelamente à realização do II Fórum Nacional de TVs Públicas, contribuíram substancialmente para a retomada da discussão não apenas sobre a multiprogramação e suas potencialidades, mas também sobre a relevância da televisão pública e seu papel na sociedade. Mesmo assim, a plena e efetiva utilização da multiprogramação tem sido um assunto pouco contemplado junto às decisões do Estado. Quando pensada para os canais comerciais, a multiprogramação passa a ficar dividida entre as emissoras, já que o aumento de investimentos em novas programações, a segmentação da audiência e o conteúdo a ser exibido nos canais são assuntos que não chegaram a consenso. Já para as emissoras públicas, a utilização da multiprogramação também apresenta desafios a serem superados em relação ao aumento de investimentos para a produção de programações diversificadas, mas, por outro lado, também é extremamente atrativa quando pensada juntamente com os objetivos de disseminação e acesso à informação, educação, cultura e entretenimento diversificado, alternativo e regionalizado. Ao refletir sobre as propostas de uma televisão pública de qualidade e a atuação da TV Cultura, por meio da implantação da multiprogramação, é possível perceber que a contribuição da proposta inicial é de extrema relevância, colaborando como referencial para os debates em busca de desenvolvimento, aperfeiçoamento e consolidação de modelo de televisão digital no Brasil. No entanto, mesmo com debates e reivindicações sobre o tema, ainda há muito a ser feito. São necessárias, em primeiro lugar, a criação e a consolidação de uma regulamentação clara e efetiva para a contemplação dos princípios e objetivos da radiodifusão e da própria comunicação pública no Brasil, inclusive atendendo a demandas de investimento, qualificação, capacitação e abrangência. Posteriormente, é preciso viabilizar a normatização do pleno uso das potencialidades da tecnologia digital, buscando atender aos princípios da criação e implantação da tecnologia no Brasil, como a promoção da inclusão social, da diversidade cultural do País e da língua pátria, visando à democratização da informação.

Referências Bibliográficas BOLAÑO, C. R. S., BRITTOS, V. C. A televisão brasileira na era digital: exclusão, esfera pública e movimento estruturante. São Paulo: Paulus, 2007. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 05/10/1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br. Acesso em 13/06/2010. ______. Decreto n. 4.901 de 28 de novembro de 2003. Institui o Sistema Brasileiro de Televisão Digital SBTVD, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/decreto/2003/d4901.html. Acesso em 13/06/2010.

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Panorama histórico: TV Cultura e a contribuição na implantação da multiprogramação - Vivianne L. Cardoso

______. Decreto n. 5.820 de 29 de junho de 2006. Dispõe sobre a implantação do SBTVD-T, estabelece diretrizes para a transição do sistema de transição digital do serviço de radiodifusão de sons e imagens e do serviço de retransmissão de televisão e dá outras providências. Disponível em: http://www.mc.gov.br/index.php/content/view/30843.html. Acesso em 13/06/ 2010. ______. Decreto Lei nº 236 de 28 de fevereiro de 1967. Complementa e modifica a Lei número 4.117 de 27 de agosto de 1962. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil/ Decreto-Lei/Del0236.htm. Acesso em 07/06/2011. ______. NORMA Nº 01/2007, anexo a Portaria nº 465, de 22 de agosto de 2007. Estabelece os procedimentos operacionais necessários ao requerimento para a execução do Serviço Especial para Fins Científicos ou Experimentais, com o objetivo de realizar experimentos de transmissão de sinais de radiodifusão ou demonstrações de sistemas desenvolvidos para essa finalidade. Disponível em: http://www.anatel.gov.br/hotsites/Direito_Telecomunicacoes/ Texto Integral/ANE/prt/minicom_20070822_465.pdf. Acesso em 05/03/2012. ______. NORMA Nº 01/2009. Norma Geral para Execução dos Serviços de Televisão Pública. Anexa a Portaria Nº 24, de 11 de fevereiro de 2009. Disponível em: http://www. astralbrasil. org/leis/portaria24fevereiro.pdf. Acesso em 18/06/2011. ______. Portaria nº 106 de 2 de março de 2012. Estabelece normas para utilização de multiprogramação e para a operação compartilhada com entes públicos nos canais consignados a órgãos dos Poderes da União. Disponível em: http://www.legisweb.com.br/ legislacao/ ?legislacao=238185. Acesso em 29/05/2012. ______. Portaria nº 465 de 22 de agosto de 2007. Aprovar a NORMA No 01/2007, que estabelece os procedimentos operacionais necessários ao requerimento para a execução do Serviço Especial para Fins Científicos ou Experimentais. Disponível em: ftp://ftp. saude. sp.gov.br/ftpsessp/bibliote/informe_eletronico/2007/iels.ago.07/iels165/U_PT-MC-GM465_220807.pdf. Acesso em 05/03/2012. DOU Diário Oficial da União Seção 1. Ministério das Comunicações. Despacho do Ministro n. 86, 8 de maio de 2009. ISSN 1677-7042, p. 65. Disponível em: http://www. in.gov.br/ imprensa/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=65&data=08/05/2009. Acesso em 28/07/2010. EBC Empresa Brasil de Comunicação. Conheça a empresa. Disponível em: http://www.ebc. com.br/empresa/. Acesso em 20/01/2011. FERRAZ, C. Análise e perspectivas da interatividade digital, In: Televisão digital: desafios para a comunicação. Livro da Compós. Porto Alegre: Sulina, 2009. FPA Fundação Padre Anchieta. Missão. Disponível em: http://www2.tvcultura.com.br/

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Panorama histórico: TV Cultura e a contribuição na implantação da multiprogramação - Vivianne L. Cardoso

LEAL FILHO, L. L.. Atrás das Câmeras: relação entre cultura, Estado e televisão. São Paulo: Summus, 1988. LIMA, J. da C. Uma história da TV Cultura. São Paulo: Imprensa Oficial (IMESP), 2008. PIERANTE, O. P., WIMMER, M. Revisando a televisão: definições, desafios e novos caminhos em tempo de digitalização, In: Televisão digital: desafios para a comunicação. Livro da Compós. Porto Alegre: Sulina, 2009. RELATÓRIO DE GESTÃO 2009- 2010. - FPA, 2010. Revista Pré-Univesp, disponível em: http://www.univesp.ensinosuperior.sp.gov.br/preunivesp/. Acesso em: 15/06/2012. ROMERO, Thiago. Aprendizado eletrônico. Agência Fapesp, 12/08/2008. Disponível em: http://agencia.fapesp.br/9262. Acesso em: 08/02/2012. ROMERO, Thiago; SHIMIZU, Heitor. Univesp lança cursos. Agência Fapesp, 27/08/2009 Disponível em: http://agencia.fapesp.br/10978. Acesso em: 08/02/2012. TEIXERA, Mônica; NAOUM, Lisely. Univesp TV- Um canal para aprender sempre. Revista Pré-Univesp, junho de 2012. Disponível em: http://univesp.ensinosuperior.sp.gov.br/ preunivesp/3490/univesp-tv.html. Acesso em: 15/06/2012. UNIVESP. Formação Superior ao alcance de todos. Disponível em: http://www.univesp.

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Debate dos Fatos: Jornalismo opinativo na TV comunitária

Debate dos Fatos: Periodismo opinativo en la TV comunitária Debate dos Fatos: Opinative journalism on community TV

Míriam Cristina Carlos Silva Pós doutorado em Comunicação Social pela PUCRS. Doutorado em Comunicação e Semiótica. Professora titular do mestrado em Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba - UNISO. Email: micriscarlos@uol.com.br

Revista Eptic Online Vol.15 n.2 p.189-199 mai-ago 2013 Recebido em 11/02/2013 Publicado em 15/05/2013


Debate dos Fatos: Jornalismo opinativo na TV comunitária - Míriam Cristina Carlos Silva

RESUMO A TVV é uma TV Comunitária de Votorantim, SP. Atua na cidade desde 2009 e possui uma grade de programação heterogênea, com a maior parte dos programas realizados ao vivo, em estúdio. A presença de conteúdos de entretenimento e religiosos é majoritária, entretanto, os programas de prestação de serviços e jornalísticos possuem grande audiência, constatada por meio de telefonemas, e-mails e mensagens instantâneas, enviadas pelo público. Destaca-se, como objeto de análise, o programa Debate dos Fatos, no qual são selecionadas notícias sobre a cidade, publicadas por diversas mídias e discutidas pelos apresentadores, um convidado e os telespectadores. Conclui-se que a audiência do Debate dos Fatos está alicerçada no cumprimento do papel público do jornalismo, o de auxiliar na interpretação e na transformação da realidade local

PALAVRAS-CHAVE TV comunitária; TVV; Votorantim; Debate dos Fatos.

RESUMEN La TVV es una TV Comunitária de Votorantim, SP. Actúa en la ciudad desde 2009 y posee una grade de programación bastante heterogénea, con la mayor parte de los programas realizados al vivo, en estudio. Aún que la presencia de contenidos de entretenimiento y religiosos sea mayoritaria, los programas con contenidos de política, justicia, ciudadanía y periodísticos representan una grande audiencia, atestada pelos e-mails, mensajes y telefonemas enviados por el público. Entre estos, destacase el Debate dos Fatos, producido de modo bastante complejo: son seleccionadas noticias publicadas por las diversas medias e llevadas al debate de lo cual participan los presentadores, un invitado y los telespectadores. En este sentido, el Debate dos Fatos busca cumplir su papel público de periodismo: auxiliar en la interpretación y en la transformación de la realidad de Votorantim / SP. PALABRAS CLAVE TV comunitária; TVV; Votorantim; Debate dos Fatos

ABSTRACT The TVV is a Community TV of Votorantim, SP. Operates in the city since 2009 and has a grid programming heterogeneous, with most programs conducted live, in the studio. The presence of entertainment and religious contents is majority, however, services and journalistic programs represent a great audience, evidenced by phone calls, e-mails and instant messages sent by the public. Stands out as an object of analysis, the program Debate dos Fatos, in which are selected news about the city, published by various media and discussed by presenters, guest and viewers. We conclude that the audience of the Debate dos Fatos is based on fulfillment of the public role of journalism, to assist in the interpretation and processing of the local reality. KEYWORDS Community TV, TVV; Votorantim; Debate dos Fatos

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Debate dos Fatos: Jornalismo opinativo na TV comunitária - Míriam Cristina Carlos Silva

A TV Comunitária de Votorantim / SP

1- Mais detalhes sobre os dados oficiais do município podem ser encontrados em <http://www2.votorantim. sp.gov.br/site/>. Acesso em 08/12/2012.

Votorantim é uma cidade localizada no interior do estado de São Paulo. Faz divisa com os municípios de Sorocaba, Piedade, Ibiúna, Salto de Pirapora e Alumínio. Ao ser mencionada, quase sempre, é associada ao Grupo Votorantim e à fábrica de cimentos Votoran. Já foi considerada a Capital do Cimento, atividade esta que arrefeceu gradativamente, a partir da década de 90. A necessidade de se explorar o minério em profundidades cada vez maiores aumentou os custos de produção, e o cimento passou a ser extraído em Salto de Pirapora, município vizinho. Hoje, restam apenas atividades administrativas da empresa na cidade, que já foi pólo de mineração e também importante produtora da indústria têxtil. Até a década de 60, Votorantim era um distrito de Sorocaba. Neste período é que surgem as primeiras manifestações a favor da separação, que eclodiu em um plebiscito, realizado em primeiro de dezembro de 1963, quando ocorre o desmembramento e, em seguida, a instalação do Município, em 27 de março de 1965.

2- CAPÍTULO V - DA OPERAÇÃO DO SERVIÇO - Art. 23. A operadora de TV a Cabo, na sua área de prestação do serviço, deverá tornar disponíveis canais para as seguintes destinações: I - CANAIS BÁSICOS DE UTILIZAÇÃO GRATUITA: a) canais destinados à distribuição obrigatória, integral e simultânea, sem inserção de qualquer informação, da programação das emissoras geradoras locais de radiodifusão de sons e imagens, em VHF ou UHF, abertos e não codificados, cujo sinal alcance a área do serviço de TV a Cabo e apresente nível técnico adequado, conforme padrões estabelecidos pelo Poder Executivo; b) um canal legislativo municipal/ estadual, reservado para o uso compartilhado entre as Câmaras de Vereadores localizadas nos municípios da área de prestação do serviço e a Assembleia Legislativa do respectivo Estado, sendo o canal voltado para a documentação dos trabalhos parlamentares, especialmente a transmissão

Com uma área de 183,998 km², Votorantim está localizada a 108 km da capital, em um dos principais eixos industriais do sudoeste de São Paulo, com vias de acesso importantes como as Rodovias Castelo Branco, Raposo Tavares e João Leme dos Santos. A densidade populacional está estimada em 1,7 pessoas / km², com aproximadamente 109.000 habitantes (cerca de 3.200 na zona rural)1. É neste contexto de expansão urbana, com consequente explosão imobiliária, especialmente de condomínios e shoppings, acompanhado de mudanças das atividades de mineração e indústria para a prestação de serviços e comércio, que A TVV – TV Votorantim, valendo-se da Lei Federal nº 8.977/952, inicia suas atividades, desde outubro de 2009. Ela ocupa um canal disponível na TV a cabo da cidade, operada pela empresa Supermídia, o canal 10, o que originou o slogan “TVV, o canal que é 10”. Durante aproximadamente quatro meses, a programação da TVV era exibida graças a um aparelho de DVD e uma coleção de curtas metragens e documentários, que se revezavam ao longo de uma grade diurna. Por ser o único canal local, de cunho comunitário, apesar de fechado, e por sua programação diversificada e em constante reconstrução, motivou a discussão deste artigo, cuja pesquisa foi realizada entre dezembro de 2012 e fevereiro de 2013, a partir de entrevistas com a direção da TVV, apresentadores, produtores, equipe de técnicos e jornalistas. Também foram consultados o site da TVV, os e-mails enviados pelo público, arquivos gerais de programas, programas postados no Youtube e, especificamente, os arquivos do programa Debate dos Fatos, referentes ao primeiro semestre de 2012. A TVV é mantida pela Associação dos Usuários da TV Comunitária de Votorantim e administrada pela Associação Cultura Votorantim e Associação Audiovisual Francisco Be-

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ao vivo das sessões; c) um canal reservado para a Câmara dos Deputados, para a documentação dos seus trabalhos, especialmente a transmissão ao vivo das sessões; d) um canal reservado para o Senado Federal, para a documentação dos seus trabalhos, especialmente a transmissão ao vivo das sessões; e) um canal universitário, reservado para o uso compartilhado entre as universidades localizadas no município ou municípios da área de prestação do serviço; f) um canal educativo-cultural, reservado para utilização pelos órgãos que tratam de educação e cultura no governo federal e nos governos estadual e municipal com jurisdição sobre a área de prestação do serviço; g) um canal comunitário aberto para utilização livre por entidades não governamentais e sem fins lucrativos; h) um canal reservado ao Supremo Tribunal Federal, para a divulgação dos atos do Poder Judiciário e dos serviços essenciais à Justiça; (Alínea incluída pela Lei nº 10.461, de 17.5.2002) – grifo da autora.

ranger. O auxílio do poder público municipal é limitado a parcerias, como, por exemplo, a transmissão das sessões da Câmara Legislativa e de alguns dos eventos desenvolvidos pelas secretarias municipais. Faz parte da ACESP (Associação dos Canais Comunitários do Estado de São Paulo), na qual ocupa o cargo de coordenadoria cultural, junto à diretoria da entidade, e, ainda, da ABCCOM (Associação Brasileira dos Canais Comunitários), em que exerce a função de coordenadoria técnica. Sua programação completa 24 horas diárias, com uma grade que contempla distintos segmentos da sociedade. Aproximadamente 70% destas 24 horas são realizadas e transmitidas ao vivo, em estúdio, a partir de parcerias com a própria comunidade: igrejas, entidades assistenciais, ONGs, artistas populares, profissionais liberais, entre outros, são produtores e responsáveis por seus próprios programas. Os outros 30%, não produzidos ao vivo, estão concentrados no horário da madrugada e constituem-se de reprises da programação exibida durante o dia. O canal 10 conta com um site3, com transmissão on-line. Além dos 23.000 assinantes da Supermídia, a TVV tem a possibilidade de atingir internautas em qualquer ponto do mundo, o que acontece recorrentemente, tendo em vista os e-mails que chegam de várias partes do Brasil e de outros países, geralmente vindos de espectadores / internautas votorantinenses, alguns que se mudaram ou outros que possuem família em Votorantim e acompanham a programação em busca de notícias dos seus familiares e de sua cidade. Flashes jornalísticos são inseridos aleatoriamente, ao longo de toda a programação e depois são retomados no programa Votorantim Verdade, que muitas vezes é o responsável por pautar a equipe de jornalismo. Com o objetivo de se observar e avaliar quais os conteúdos privilegiados pela programação da TVV, realizou-se nesta pesquisa uma análise da grade da primeira semana de fevereiro de 2013, disponível no site4. Avaliou-se, sob o critério da similaridade entre conteúdos,

3-http://www.tvvotorantim. com.br

uma edição de cada programa. Chegou-se ao seguinte agrupamento:

Música e entretenimento – 20 programas: 4 -< h t t p : / / w w w . tvvotorantim.com.br/ pag/53/tvv.html>. Acesso em: 06/02/2013.

Rede Amigos da Cultura; Clipe 10; Luís Fernando e Gabriel; Top Street Dance; Quintaneja; Votosamba; Te Vejo na TV; Nova Mulher; Titio Doni na TV; Ipan TV; Hamilton Moto Aventura; Thomaz Martins; Cotidiano; Na Mídia; 123 Vai! ; Receita da Hora; Programa ZMaro; Excede; Desenhos; Invasão. Conteúdo religioso – 11 programas: C. E. S.; Verdade e Luz; Fonte de Água Viva; Cultura Gospel Regional; Rosário Meditado; Luz da Esperança; Igreja Templário; Rompendo em Fé; Talentos de Deus; Verdade e Luz; Missa da Família.

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Prestação de serviços – 8 programas: TV Cidadania; Seu Direito; Votorantim Verdade; Sessão da Câmara; Justiça Cidadã; Comunidade em Destaque; Debate dos Fatos; CNJ em Ação.

Cultura, conhecimento e educação – 6 programas: Negros Nós; Provocare TV; Hard Soft; Vídeo Memória; Nossa História Nossa Gente; Diálogos Comunitários UFSCAR.

Negócios – 4 programas: TV Business; Revista do Imóvel; Jornal do Engenheiro; Dettuto.

Meio-ambiente, animais – 2 programas: Programa Animal; PegadaAnimal.

Sociedade, moda e estilo – 2 programas: Em Alta; Com Stylo.

Infantil e Juvenil – 2 programas: Sonho Encantado; Tudo de Bom.

Saúde – 2 programas: Movimento Fitness; Viver a Melhor Idade.

Esporte – 1 programa: TVV Esporte.

A partir deste agrupamento, podemos observar que em primeiro lugar na grade de programação figuram os programas de Música e Entretenimento (20), seguidos pelos Religiosos (11). Depois vêm os de Prestação de Serviços, com ênfase em Política, Justiça e Cidadania, em terceiro lugar (8). Vale observar, entretanto, que três dos programas inseridos em Prestação de Serviços poderiam figurar na categoria de Jornalísticos, por se dividirem

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entre a Prestação de Serviços e o jornalismo propriamente dito: Votorantim Verdade; Justiça Cidadã e Debate dos Fatos, este último o mais jornalístico entre os três. Em seguida, em quarto, aparecem Cultura, Conhecimento e Educação (6), próximos de Negócios, em quinto (4). Meio ambiente / Animais; Sociedade, Moda e Estilo; Infantil / Juvenil e Saúde (2) ficam empatados em sexto, e por último aparece o Esporte (1), em sétimo lugar. Entretanto, a quantidade de programas na grade não equivale à audiência destes junto ao público, na percepção da diretoria da TVV. A audiência é constantemente aferida por meio de telefonemas, e-mails e mensagens instantâneas dos espectadores. Desta forma, chama a atenção o fato de que os programas com as maiores audiências sejam: as transmissões das Sessões da Câmara; o Justiça Cidadã, apresentado por José Augusto de Barros Pupin, delegado de polícia. Também detêm grande audiência e popularidade os programas de radialistas conhecidos na cidade e na região. Embora exibidos pela TV, possuem o mesmo formato de seus programas de rádio, ou seja, são programas radiofônicos transpostos para a TV: Thomaz Martins, apresentado pelo radialista de mesmo nome, da Rádio Cacique de Sorocaba; o Nova Mulher, apresentado por Valquíria Teixeira, da Rádio Tropical, comunitária de Votorantim; o Comunidade em Destaque, com Nilson Alberto, da Tropical; o Votorantim Verdade, apresentado por Luiz Cortez, da Rádio Legal, comunitária de Sorocaba.

O Debate dos Fatos

Dentre os programas da grade da TVV, destaca-se o Debate dos Fatos como o de maior audiência. Semanal, vai ao ar às sextas-feiras, com reprise aos domingos, no mesmo horário, às 19h30. Aborda um resumo dos acontecimentos jornalísticos da semana, sempre referentes à cidade de Votorantim. É realizado um apanhado geral das diversas mídias que publicaram algo sobre a cidade. Tudo o que se refere a Votorantim e tenha se transformado em notícia, seja nas mídias locais, regionais ou nacionais, TV, impresso, rádio ou internet, pode compor a pauta de discussões do programa, que é apresentado pelos jornalistas Werinton Kermes (um dos diretores da TVV) e Luciana Lopez, sempre com a presença de um convidado, que participa das discussões. As questões debatidas, desde que mencionem a comunidade votorantinense, são retomadas a partir de sua exposição anterior na mídia: justiça; polícia; cotidiano; sociedade; eventos culturais; economia; políticas públicas e meio ambiente podem estar entre os assuntos. São convidadas pessoas atuantes na comunidade, em diversas áreas: servidores públicos, políticos, agentes culturais, profissionais liberais. Os telespectadores participam por telefone, e as ligações são recebidas por uma telefonista, a qual anota as perguntas e comentários, que são encaminhados aos apresentadores para se debater o assunto. Esta participação também acontece por e-mail, MSN, redes sociais e, às vezes, o telespectador faz a intervenção por telefone, ao vivo. São realizadas, em média, 200 intervenções por programa, que chega a durar mais de três horas no ar – começa às 19h30min e segue até as 22h30min, não raro chegando às 23h. Todos os programas são postados no Youtube, que dá margem à nova aferição de acessos. No decorrer da semana, o público entra em contato com a emissora e sugere

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temas e convidados. O cenário é composto por três bancadas paralelas, onde estão os apresentadores e o convidado e, ao fundo, um painel de 5 metros de comprimento por 2 m de altura, contendo logos das mídias da região. Desta forma, o atrativo que prende os telespectadores por três horas ou mais, não é o cenário, não são imagens dinâmicas, vinhetas ou efeitos especiais, mas o debate em si, bem como a possibilidade de intervir ou de se saber da intervenção de alguém conhecido. Sodré pontua que:

Ontem como hoje, os objetivos imediatos da retórica podem ser resumidos como discutir idéias (sic) ou ensinar (docere, em latim), provocar emoções (comovere) e deleitar (delectare). A imprensa sempre se pautou por estes objetivos, mas alternando os pesos de cada um deles, segundo os propósitos (comerciais ou políticos) do jornal. A imprensa de debates atribui um peso elevado à discussão de idéias (sic) (de modo diferente da escola, onde o ensino formal tem a prevalência), enquanto que a imprensa popularesca acentua os objetivos de comover e deleitar (SODRÉ, 2009, p. 52).

Ainda que grande parte do conteúdo da TVV seja de cunho popular (como no caso dos programas de rádio transpostos para a TV), com objetivos explícitos de entreter e comover, há um pacto de uma grande parcela do público com o conteúdo político da discussão de ideias, presente no Debate dos Fatos. O interesse por um programa cujo objetivo fundamental é o debate demonstra a valorização da comunidade por um jornalismo local e opinativo. Sodré destaca o fato de que: Seja no jornalismo escrito ou eletrônico, o dever do jornalista para com o público-leitor é noticiar uma verdade, reconhecida como tal pelo senso comum, desde que o enunciado corresponda a um fato, selecionado por regras hierárquicas de importância. Se o jornalista não se especifica editorialmente como comentarista (coment é algo diverso de news), o seu enunciado “noticioso” obriga-se a explicitar a distinção entre informação pura e opinião, isto é, entre o relato supostamente imparcial e objetivo de um acontecimento e a tomada de posição sobre a natureza do fato (SODRÉ, 2009, p. 12). No Debate dos Fatos, parte-se da informação para se enfatizar a opinião. O processo de produção do programa se dá de forma complexa, pois envolve a seleção das notícias, na qual os produtores (e apresentadores) escolhem os conteúdos publicados por diversas mídias, inclusive as nacionais, o que resulta na crítica da produção dos pares e na tomada de posição sobre o fato noticiado. A hierarquização destas informações acontece em duas etapas: primeiro, a escolha das mídias, e, segundo, a escolha das notícias já publicadas por estas mídias. Das matérias jornalísticas selecionadas, parte-se em seguida para uma terceira etapa, a do desdobramento e da repercussão do acontecimento noticioso, produzindo-se, a partir da discussão das notícias, um jornalismo opinativo, também desenvolvido com vários atores: os apresenta-

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dores, o convidado e o público – pois todos opinam sobre o acontecimento noticioso ao longo do programa. Luciana Lopez, produtora e apresentadora do programa, acredita que “a comunicação comunitária se fortalece na medida em que fonte, interlocutor e receptor estão no mesmo nível de importância para o canal de comunicação e possuem o mesmo espaço”5. Funciona como um grande atrativo para o público o caráter local da discussão, já que são tratados problemas cotidianos, próximos dos telespectadores, algo recorrente na TVV, pois programas desta natureza ocupam o terceiro lugar quantitativo na grade de programação, aqueles relacionados à prestação de serviços. O programa em questão propõe, desde seu nome, uma aproximação com a realidade de seu público: um Debate dos Fatos, já que, para o telespectador votorantinense, o fato, verossímil, crível, próximo e que afeta diretamente o seu dia a dia, será colocado em pauta, na tela, e exposto para ser criticado, interpretado, explicitado. Embora, comparando-se um noticiário nacional com o debate local realizado pela TVV, a proximidade entre a realidade vivida e a notícia narrada seja muito maior, não se pode negar que o Debate dos Fatos, diferente do que promete o título, discute o acontecimento noticioso, e não exatamente os fatos, já que se baseia no comentário daquilo que já foi mediado, selecionado e transformado em notícia, ou seja, a pauta são, sim, os fatos sobre a cidade de Votorantim, mas os fatos já narrados por outras mídias, sejam jornais, TV, internet ou rádio – estas sim produtoras de notícias e auxiliares na construção da realidade; portanto, os fatos debatidos pela TVV, no Debate dos Fatos, já não são mais fatos, mas fazem supor uma forma de metajornalismo, que se vale da notícia – ou acontecimento para poder construir opiniões.

5 - Em entrevista à autora do artigo, em janeiro de 2013.

Charadeau (2006) conceitua o acontecimento como aquele selecionado e construído em função de seu potencial de atualidade, de socialidade e de imprevisibilidade. O Debate dos Fatos se pauta especialmente por dois destes critérios, a atualidade e a socialidade, pois aquilo que afeta diretamente o cotidiano de Votorantim não encontra espaço na grande mídia, por não possuir a terceira característica de valor-notícia, a imprevisibilidade. São questões comuns no dia a dia de qualquer cidade, importantes para o votorantinense, mas previsíveis e de pouca relevância no contexto nacional. Também é interessante se observar que o Debate dos Fatos elege aquilo que se transformou em narrativa, pelas diversas mídias, quase da mesma forma como a grande mídia se vale do que é produzido pelas agências de notícia, com a diferença fundamental de que o público, ator do fato, pode comparar o fato e o acontecimento noticioso, além de refletir e participar de uma relação que envolve interioridades e exterioridades, de modo mais ativo, que leva à percepção do fato, transformado em acontecimento e, finalmente, compreendido e debatido por outros, todos os que participam direta ou indiretamente do programa. Para Park (1972), o fato está relacionado aos elementos que têm o mesmo significado para todos os membros do grupo. Portanto, trazer o acontecimento para o debate é um modo de dar visibilidade ao fato, que está próximo, mas invisível como notícia nas grandes mídias, ainda que parcialmente visível nas mídias regionais. Sodré ressalta que “a midiatização é hoje o processo central de visibilização e produção dos fatos sociais na esfera pública. Por isto, o enquadramento midiático é a operação principal pela qual se seleciona,

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enfatiza e apresenta (logo, se constrói) o acontecimento” (SODRÉ, 2009, p. 38). É assim que o Debate dos Fatos parece ter se tornado fundamental na construção da opinião pública da cidade de Votorantim, concentrando aquilo que já foi apurado pelas outras mídias e reconstruindo o fato ao problematizá-lo. Da cadeia de fatos que todos os dias são apurados pela grande mídia e que acabam por se transformar em notícia, em um contínuo agendamento, pouco parece afetar diretamente o cidadão votorantinense. O que regula a escolha do fato e sua veiculação como notícia depende de um acordo entre a mídia e o público, que percebe, no acontecimento narrado, o significado contido para ele, cidadão, e a medida de importância a ser atribuída ao que se noticiou. Meditsch expõe que “o jornalismo, como instituição, e seus agentes participam de produção da realidade, especialmente em seu âmbito simbólico, mas nunca isoladamente, porém em diálogo permanente com os demais atores sociais” (2010, p. 40). Estar no ar por quase quatro horas, em uma rede fechada, em uma cidade com aproximadamente 110.000 habitantes, concorrendo com o Jornal Nacional e a novela do horário nobre, em uma sexta-feira, demonstra este acordo firmado entre um certo público e a mídia local, no sentido de se produzir e se consumir visibilidade e inteligibilidade. Ocorre um recorte que as mídias nacionais não são capazes de realizar, e que mesmo as mídias regionais não dão conta de fazer a contento para o cidadão, ciente de seu espaço e de seus limites. Participam deste acordo, também, a credibilidade do programa, transferida a partir da credibilidade encontrada nos apresentadores, jornalistas e cidadãos conhecidos na região, especialmente em Votorantim, por seus trabalhos em outras mídias, por sua atuação política, como produtores culturais e promotores sociais, em projetos variados, muitos deles voluntários. Acrescente-se que a notícia interpretada e reconstruída engaja como atores fundamentais, em um processo de contínua reelaboração, ao longo das três horas de programa, a credibilidade do convidado e também daqueles que ligam – e há os que sempre ligam e se tornaram presença constante nos programas, além de temidos por alguns dos convidados. O acontecimento noticioso e sua interpretação se efetuam, desta forma, não apenas no campo jornalístico: Os acontecimentos são certamente fruto de um trabalho de constituição coletiva, mas eles imbricam também a participação de atores e de um público que não é apenas uma massa de consumidores de informações. Ou seja, os jornalistas são apenas uma das várias categorias de atores mobilizados para a determinação dos fatos e sua posterior transformação em acontecimento midiático. Além deles e de suas audiências, há principalmente um público, que pode ser entendido como uma “ideosfera”, em que indivíduos particularmente atentos ao que se torna visível na cena de um espaço público, tomam posição ou se comprometem com uma causa coletiva qualquer. Diferentemente de uma audiência, portanto, o público constitui-se, ainda que provisoriamente, como um sujeito coletivo e pode difratar-se ou diversificar-se em torno de experiências variadas. São vários, portanto, os públicos (SODRÉ, 2009, p. 40).

Considera-se que, nas suas quase quatro horas de duração, o Debate dos Fatos tem acertado, ainda, neste pacto com o público, na escolha do convidado e nas escolhas de seus temas, as notícias selecionadas previamente, criando uma ideosfera de fundamental im-

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portância para a vida pública da cidade, com tudo o que a envolve: promessas, direitos e deveres, compromissos políticos, abandonos, denúncias. Um jogo de poder no qual o público sabe que tem um espaço, ainda que pequeno, para sua participação.

Considerações Finais

Certeau (1975) afirma que o acontecimento recorta a fim de produzir inteligibilidade. Em meio a uma gama heterogênea de ofertas na única TV comunitária da cidade de Votorantim, sem contarmos a enorme oferta da grande mídia – os canais abertos e os fechados, já que a TVV conta com assinantes do sistema a cabo - embora se destaquem, em quantidade, os conteúdos de entretenimento e os religiosos, o público tem privilegiado os conteúdos de jornalismo opinativo, sobretudo aqueles apresentados no Debate dos Fatos. Neste sentido, mais do que audiências, a TVV parece ter encontrado, proporcionalmente ao tamanho da cidade e, ao número de assinantes da Supermídia, e mais que isto, proporcionalmente à sua própria programação, um público, não uma audiência apenas, sobretudo no programa Debate dos Fatos, no qual a participação pública é efetivamente maior, bem como o aprofundamento do fato local, transformado em notícia e depois em discussão, o que, segundo Sodré (2009, p. 57) “seria em princípio um requisito central para o desenvolvimento de uma imprensa de qualidade”, mas que, pode-se afirmar, nem sempre é praticado, mesmo pela grande mídia. A aceitação de conteúdos de cunho opinativo, depende de um acordo informal entre a TVV e o seu público. Isto é percebido no cotidiano dos produtores, diretores e colaboradores da TVV, e revela que o público votorantinense quer debater e se inquietar, pois aquilo que é discutido na TV local afeta diretamente, no mínimo, cerca de 200 moradores, que não receiam em ligar, enviar e-mails e mensagens instantâneas para a TVV para expor sua opinião. Por este número é possível estimarmos aqueles que se sentem afetados, acompanham o programa Debate dos Fatos, mas não se manifestam de forma direta, embora se sintam sedentos de que as mídias recortem mais de sua própria realidade, com tudo aquilo que afeta diretamente suas vidas. E se pode imaginar, ainda, os que são diretamente afetados, mas cujas vozes ainda não encontram espaço, nem mesmo na TVV, para expressar seus anseios e reivindicar seus direitos, talvez desconhecidos por eles mesmos. O Debate dos Fatos representa um contato direto de seu público com o poder municipal, em suas variadas instâncias, pois, por meio dele, torna-se mais fácil para o cidadão comum, por exemplo, ligar e reivindicar algo diretamente ao prefeito, muitas vezes o convidado do programa, questionado ao vivo, do que tentar entrar em contato com ele na Prefeitura. Também não é incomum que convidados, como no caso de vereadores ou secretários, saiam do programa com uma lista de reivindicações prometidas no ar e ao vivo a serem posteriormente efetivadas. Problemas pautados e discutidos pelo Debate dos Fatos, algumas vezes, já foram solucionados após o debate, como a melhoria da acessibilidade

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na Câmara Municipal, a realização de feira livre noturna, a criação de uma biblioteca no bairro Vila Nova Votorantim, a criação do Espaço do Idoso, entre outras questões transformadas em ação concreta. Ao dar voz aos mais ou menos 200 cidadãos, que todas as sextas-feiras expõem sua opinião no Debate dos Fatos, a TVV cumpre seu papel público e jornalístico, mas essencialmente comunitário, de tentar produzir inteligibilidade e transformação sobre a realidade local, a realidade da cidade de Votorantim. Mais do que isto, conhecendo que publicar significa exercer poder, como TV comunitária, divide este poder com o seu público, ao permitir a ele a participação na reconstrução do fato, concretizada na discussão das notícias sobre a cidade. Pensar se valeria a pena ampliar, em quantidade, na grade de sua programação, este exercício de compartilhar e produzir questionamento, privilegiando conteúdos de jornalismo opinativo, cultura, educação, justiça e cidadania, ao invés daqueles relacionados apenas ao entretenimento ou à religiosidade, cabe não apenas à TVV avaliar, mas a todos aqueles envolvidos com a comunicação comunitária: legisladores, profissionais, pesquisadores e público.

Referências Bibliográficas CHARAUDEAU, P. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2006. CERTEAU, M. de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. MEDITSCH, E. Jornalismo e construção social do acontecimento. Jornalismo e acontecimento: Mapeamentos críticos. BENETTI, M. e FONSECA, V. P. da S.. Florianópolis: Insular, 2010. PARK, R. E. A notícia como forma de conhecimento: Um capítulo dentro da sociologia do conhecimento. In: BERGER, C. e MAROCCO, B. (org.). A era glacial do jornalismo: Teorias da imprensa, Vol. II. Porto Alegre, Sulina, 2008. RODRIGUES, A.. O acontecimento. In: TRAQUINA, N. Jornalismo: Questões, teorias e estórias. Lisboa: Veja, 1993. SODRÉ, M. A narração do fato: Notas para uma teoria do acontecimento. Petrópolis: Vozes, 2009.

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Informação e patrimônio cultural imaterial: uma proposta de cidadania digital * Información y patrimonio cultural inmaterial: una propuesta de ciudadanía digital Information and intangible cultural heritage: a proposal for digital citizenship

Clotildes Avellar Teixeira Possui graduação em História pela UFMG (1993) com especialização em Gestão do Patrimônio Cultural pala PUCMINAS (2002). Atualmente é doutoranda do Programa de Pós-graduação da Escola de Ciência da Informação da UFMG, linha de pesquisa: informação, cultura e sociedade. E-mail: cloavellar@gmail.com

Alcenir Soares dos Reis Possui graduação em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (1975), Mestrado em Biblioteconomia pela Universidade Federal de Minas Gerais (1990) e Doutorado em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (2002). É professora Associada da Escola de Ciência da Informação, Departamento de Teoria e Gestão da Informação. E-mail: alcenirsoares@gmail.com

Revista Eptic Online Vol.15 n.2 p.200-215 mai-ago 2013 Recebido em 20/03/2013 Publicado em 15/05/2013


Informação e patrimônio cultural imaterial - Clotildes Avellar Teixeira, Alcenir Soares dos Reis

RESUMO Parte do trabalho de pesquisa desenvolvido no curso de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da UFMG, este artigo tem como objetivo refletir, com base nas políticas de cultura e educação implantadas no Brasil após o processo de redemocratização do país no final do século XX, a relação entre informação, patrimônio cultural imaterial e as novas tecnologias para a construção de uma cidadania digital ancorada nos direitos à informação e à cultura, tendo em conta a relevância do tema e as questões de equidade para a preservação da identidade dos grupos sociais. Partindo da premissa que patrimônio cultural e informação encontram-se permanentemente associados, a ideia é demonstrar que as duas coisas em conjunto associadas ao potencial que as novas tecnologias trazem permitem a construção de uma cidadania cultural ancorada nos direitos à informação e à cultura.

PALAVRAS-CHAVE Cidadania digital, Educação, Informação, Memória e Patrimônio Cultural Imaterial

RESUMEN Este debate es parte de uma investigación que há llevado a cabo y se estabelece como parte dela formación doctoral de la UFMG y su objetivo es reflexionar, basada en análisis de las políticas públicas de educación y la cultura estabelecidas em Brasil, trás um proceso de democratización del pais em el siglo XX, sobre la interrelación entre la información y el patrimonio cultural intangible com el fin de demonstrar la viabilidad de uma cidadania digital, teniendo em cuenta la relevância del tema e las cuestiones relativas a la equidad para la preservación de la identidad de los grupos sociales. Basada en el entendimiento del patrimonio cultural y la información como inseparables, la idea es demonstrar que las dos cosas en conjunto, junto con el potencial que las nuevas tecnologías traen, permiten la construcción de uma ciudadania cultural anclado em garantizar los derechos a la información y cultura. PALABRAS CLAVE Ciudadania digital, Educación, Información, Memória, Patrimonio Cultural Inmaterial ABSTRACT Part of the research work development in the Postgraduate Program in Information Science from UFMG - Doctoral degree. This article aims at reflecting on the basis of culture and education policies implemented in Brazil after the democratization process of the country in the late twentieth century, in addition to the relationship between information, intangible cultural heritage and new technologies in order to build digital citizenship anchored in rights to information and culture, taking into account the importance of the topic as well as equality issues for the preservation of the identity of the social groups. Assuming that cultural heritage and information are permanently associated, the idea is to demonstrate that the two things together associated with the potential that new technologies bring, will allow the construction of a cultural citizenship anchored in rights to information and culture. KEYWORDS Citizenship, Education, Information, Memory and Intangible Cultural

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Introdução

* Artigo apresentado no The Second ISA Forum of Sociology Social justice and democratization Buenos Aires, A r g e n t i n a August 1-4, 2012

O objetivo deste artigo é discutir, com base nas políticas de cultura e educação implantadas no Brasil após o processo de redemocratização do país no final do século XX, a questão do patrimônio cultural e a sua relação com a informação, tendo como ênfase o potencial de utilização das novas tecnologias para o trabalho educativo e sua contribuição para a construção de uma cidadania digital ancorada nos direitos à informação e à cultura. No mundo contemporâneo, com o advento da chamada Sociedade da Informação e a possibilidade de conexão ininterrupta cada vez mais ampliada, dado o avanço tecnológico, muito se tem discutido sobre a universalização do acesso à internet e uma redução da exclusão digital, em nome da equidade, pois, ao contrário do que se enfatiza nem tudo está disponível ou pode ser acessado. Embora um dos fatores de influência para o desenvolvimento dessa nova sociedade seja o grau de acesso dos indivíduos às tecnologias de informação e comunicação, usadas para a comunicação pessoal, trabalho e lazer e, ainda que, diante do cenário tecnológico de convergência multimídia, mundialização cultural e globalização econômica tudo pareça estar permanentemente à disposição, deparamo-nos diariamente com restrições determinadas pela reprodução, no mundo virtual, de algumas contradições encontradas no mundo físico. O acesso às novas tecnologias é uma delas dado que a disponibilidade de conexão e acesso a internet não se dá igualmente em todos os lugares, que nem todos os grupos sociais possuem computadores e que aqueles que possuem dificilmente conseguem alcançar todo o potencial de uso deste equipamento como ferramenta de comunicação e difusão do conhecimento. É fato que a tecnologia tem, desde sempre, transformado sistematicamente o relacionamento humano seja com o próximo ou com o ambiente, por vezes encurtando os caminhos a serem percorridos durante o processo de comunicação ou simplesmente substituindo-os. Diariamente somos inundados informações de todos os tipos que são disponibilizadas na rede mundial de computadores por meio de portais, sites pessoais ou institucionais, alguns deles trazendo propostas de promoção do acesso à informação digitalizada com vistas ao registro e a difusão de memórias individuais ou coletivas até mesmo por meio de aplicativos ou redes sociais. Há, no momento atual, a discussão dos processos de mudança na sociedade, colocandose em destaque, por diferentes perspectivas teóricas, a questão da emergência de uma revolução de costumes tendo como impulso as novas possibilidades tecnológicas capazes de influenciar diretamente todas as áreas do conhecimento e interferir sobremaneira nas relações sociais. Todavia, o que dizer acerca da competência destes novos instrumentos de comunicação e difusão do conhecimento para a valorização e consequente proteção do patrimônio cultural imaterial no contexto sociocultural brasileiro? Partindo do pressuposto que informação e o patrimônio cultural são indissociáveis, dado que a guarda de determinada referencia cultural e a sua transformação em bem cultural

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se dá a partir da transmissão da informação, assim como a valorização e a salvaguarda deste bem se alicerça na difusão do conhecimento adquirido a partir de então, torna-se possível colocar em discussão a possibilidade da cidadania digital e as ações educativas potencializadas pelas novas tecnologias trafegarem juntas pelos caminhos das políticas públicas nacionais?

Informação, patrimônio cultural e educação patrimonial

Para dar início a esta reflexão, vale transcrever aqui, o fragmento de um documento oral produzido no interior de uma comunidade tradicional brasileira, parte de um projeto de registro da memória das tradições orais da Ilha do Marajó, um grande conjunto de ilhas situado na foz do Rio Amazonas, estado do Pará, região norte do Brasil. O depoimento, gravado durante o trabalho de pesquisa de campo sobre as tradições culturais das populações ribeirinhas do arquipélago amazônico, refere-se à uma das práticas culturais populares mais antigas da região. Nele, o depoente, revisitando lembranças da sua infância, explica a tradição por meio do relato da trajetória da informação sobre duas práticas ainda vivas naquele lugar, uma religiosa e outra profana, salvaguardadas pela memória coletiva e ainda hoje transmitidas pela oralidade de geração em geração. “De tanto ver meu pai brincar de Boi resolvi fazer um boizinho para mim também. Eu era menino e ficava ali sempre observando o ajuntamento do povo, os ensaios... Aí fui prestando atenção até que aprendi e então pude criar uma brincadeira também. Isso que é a tradição. É não deixar a brincadeira morrer. A mesma coisa aconteceu por aqui com o Círio de Nazaré. Uma família de Belém se mudou para a cidade e resolveu fazer um Círio aqui. O pessoal da cidade gostou e deu continuidade. O nosso círio não é tão gigantesco quanto o de Belém, mas é lindo de se ver! “ROCHA, 2012).

O “boizinho” ao qual ele se refere é uma adaptação para o universo infantil de uma dança denominada boi-estrela, tradição local e referencia importante para a identidade do grupo que habita as margens do rio Paracauari, bem no meio da floresta. Também conhecida como bumba-meu-boi ou a dança do boi-bumbá esta manifestação cultural brasileira pode ser encontrada em várias regiões do país com diferentes nomenclaturas e especificidades conforme a sua localização. Carregada de influências indígenas, africanas e europeias essa brincadeira mostra o rapto, a morte e a ressurreição de um boi, elemento central de uma representação que mistura figuras humanas e animais. A mesma prática em cada um dos lugares acontece de maneira especial, pois cada grupo inventa a sua própria forma de brincar, assume ritmos, movimentos e personagens conforme a sua referencia cultural mais forte. No município de Melgaço, uma pequena localidade no meio do arquipélago, a brincadeira do Boi Estrela, por meio de suas alegorias e estruturas artísticas, revela nas cenas representadas, o cotidiano da vida do caboclo que habita aquela região.

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A outra manifestação cultural característica do lugar, a qual o depoente se refere no seu relato é o Círio de Nazaré, uma festa religiosa tradicional que só acontece no norte do país e se constitui na mais forte expressão da fé católica do povo paraense, devoto de Nossa Senhora de Nazaré. Trata-se de uma gigantesca procissão, realizada uma vez por ano, no segundo domingo de outubro na qual milhões de fiéis profundamente entregues ao ritual, tomam as principais ruas do centro da cidade de Belém, a capital do estado para, amontoados em torno de uma corda formar um enorme cortejo e puxar a berlinda, uma pequena carruagem enfeitada de flores especialmente construída para abrigar a santa durante o trajeto da chamada trasladação, o percurso feito pela imagem a caminho da catedral. Tradicionalmente, uma vez por ano, no mês de outubro, a imagem de Nossa Senhora de Nazaré é retirada da Catedral de Belém e levada à Basílica Santuário, um templo construído especialmente para ela, no local de onde foi encontrada. Ali ela permanece durante quinze dias e depois retorna à Catedral. Esta prática remonta ao tempo do Brasil colonial. Teve início em 1792, embasada pelo mito do retorno sistemático da imagem da santa ao lugar de onde o pescador a retirou e levou para casa. Manifestação cultural popular reconhecida e registrada no Livro de Registro das Celebrações e Rituais, a festa do Círio de Nazaré integra atualmente a relação de bens culturais imateriais protegidos pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), órgão regulador de proteção ao patrimônio cultural brasileiro. No Brasil, a legislação de proteção ao patrimônio cultural nacional institucionalizou como instrumento de proteção aos bens culturais imateriais, o registro das informações sobre a memória destes bens em quatro livros criados para receber e guardar informações sobre o patrimônio imaterial brasileiro. Agrupados por categoria, os bens culturais reconhecidos pelo órgão regulador são classificados e registrados em um dos livros de registro instituídos: o Livro de Registro dos Saberes, para os conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades; o Livro de Registro de Celebrações, para os rituais e festas que marcam vivência coletiva, religiosidade, entretenimento e outras práticas da vida social; o Livro de Registros das Formas de Expressão, para as manifestações artísticas em geral; e o Livro de Registro dos Lugares, para mercados, feiras, santuários, praças onde são concentradas ou reproduzidas práticas culturais coletivas. Em termos legais destaca-se: Em 4 de agosto de 2000, o Decreto nº 3.551, que institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial, define um programa voltado especialmente para estes bens. O decreto rege o processo de reconhecimento de bens culturais como patrimônio imaterial, institui o registro e, com ele, o compromisso do Estado em inventariar, documentar, produzir conhecimento e apoiar a dinâmica dessas práticas socioculturais. Vem favorecer um amplo processo de conhecimento, comunicação, expressão de aspirações e reivindicações entre diversos grupos sociais. O registro é, antes de tudo, uma forma de reconhecimento e busca a valorização desses bens, sendo visto mesmo como um instrumento legal (IPHAN, 2012a). Principal medida de proteção ao patrimônio intangível, o registro equivale ao tombamento, instrumento legal de proteção aplicado ao patrimônio cultural tangível. A inscrição do bem cultural imaterial em um dos livros corresponde à identificação e produção de conhecimento sobre este bem e garante pelo menos que as informações sobre a prática

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cultural registrada não desapareçam. Sua institucionalização advém do posicionamento das instituições regulamentadoras das políticas culturais brasileiras face às recomendações internacionais de valorização da diversidade e proteção ao patrimônio cultural, em destaque nas discussões mundiais nas últimas décadas. Com base nas diretrizes estabelecidas nos documentos construídos coletivamente e referendados pelos países membros das organizações internacionais no final do século XX, as intuições nacionais passaram a se preocupar com o desenvolvimento de uma metodologia específica que pudesse ser aplicada ao trabalho de proteção dos bens culturais imateriais brasileiros. Foi criada então a metodologia do Inventário Nacional de Referências Culturais – INRC, metodologia de pesquisa desenvolvida pelo IPHAN que tem como objetivo: [...] produzir conhecimento sobre os domínios da vida social aos quais são atribuídos sentidos e valores e que, portanto, constituem marcos e referências de identidade para determinado grupo social. Contempla, além das categorias estabelecidas no Registro, edificações associadas a certos usos, a significações históricas e a imagens urbanas, independentemente de sua qualidade arquitetônica ou artística (IPHAN, 2012b).

Fundamentada na noção de referencia cultural entendida como o conjunto de práticas por meio das quais, determinado grupo representa e codifica sua identidade subjetiva e territorial (GODOY; TURATTI, 2012), constitui-se, na prática, em uma metodologia para o mapeamento dos bens culturais brasileiros. Seu objetivo fundamental é sistematizar informações sobre o patrimônio cultural nacional e contribuir, no caso do patrimônio imaterial para o reconhecimento, o registro e a elaboração de um plano de salvaguarda a fim de garantir a continuidade das formas de expressão, rituais, lugares e celebrações, manifestações culturais repletas de referências simbólicas, de significado para as comunidades de origem. Destina-se especialmente à proteção de bens culturais pertencentes às comunidades de forte tradição cujas informações transmitidas oralmente pelos mestres da tradição às gerações futuras se encontram sob o risco de ver cair no esquecimento o conhecimento sobre os modos de ser e de viver daquele grupo. Resultado de anos de estudos, diagnósticos, teorizações e planejamento no sentido de criar instrumentos que pudessem garantir às gerações futuras o acesso à memória e às referencias culturais constituintes da sua identidade, estas medidas de proteção seguiram a evolução conceitual pela qual passou o termo de patrimônio cultural dada à inclusão da imaterialidade e a consequente afirmação da noção de bem imaterial, nas últimas décadas do século XX. Institucionalizadas, desde o início do novo milênio, tem sido aplicadas por todo o país determinando, para além da proteção dos monumentos edificados, sítios arqueológicos e bens naturais, o conhecimento e a guarda das informações nunca antes registradas sobre práticas marcadas pela tradição cultural popular. Para compreender melhor a criação e a aplicabilidade das ações protecionistas relacionadas ao patrimônio cultural imaterial e até mesmo a própria concepção de patrimônio cultural utilizada nos dias atuais, faz-se necessário contextualizar a trajetória de construção dos seus marcos conceituais, normativos e institucionais no âmbito nacional e internacio-

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nal presentes no olhar contemporâneo voltado para conhecimentos tradicionais e modos de vida dos grupos sociais. Trata-se de um amplo processo de reformulação de ideias que propiciou a geração de um novo posicionamento do Estado com relação à cultura, iniciado por volta dos anos 1970 por meio do debate instaurado em torno do tema diversidade cultural. Um debate que se fez impulsionado pelos efeitos do processo de mundialização, dada a possibilidade de homogeneização pela possível uniformização de práticas culturais mediante a padronização de estilos e gostos versus o recrudescimento de localismos e a recriação de regionalismos. Na realidade, um conjunto de fatores determinados pelas novas tecnologias e a globalização das informações num nível ainda não experimentado trouxeram importantes transformações conceituais, entre elas a ampliação do conceito de patrimônio cultural em nível mundial. Alicerçado pelo tema da diversidade cultural, associado à democratização do acesso aos bens culturais e a assimilação da concepção antropológica de cultura deu-se a transcendência da definição no sentido de alcançar o universo das práticas locais e simbólicas das comunidades. Essa nova feição do termo patrimônio cultural levou as nações a criar medidas protecionistas voltadas para a produção, circulação, difusão e consumo dos bens culturais locais, conforme apontam Godoy e Turatti (2012): Atualmente, os países perseguem o controle de sua posição no fluxo internacional de intercâmbios e de alterações socioculturais, tecnológicas e econômicas. Atentas a essas transformações, também as agências multilaterais de cooperação internacional têm formulado seguidamente recomendações e elaborado convenções, o que denota a importância do tema na agenda internacional. Por seu turno, as redes intra e internacionais de organizações da sociedade civil têm se articulado em políticas de vinculação simbólica e identitária, promovendo lutas pelo reconhecimento e pela manutenção de modos de vida específicos (DODOY; TURATTI, 2012, p.47).

É importante lembrar que neste processo de mudança conceitual e criação de novos parâmetros para a elaboração de medidas protecionistas, o Brasil ocupou uma posição de vanguarda com relação ao conjunto de países membros das convenções internacionais. Antes mesmo do conceito ampliado de patrimônio cultural e as novas orientações propostas para a salvaguarda de bens culturais imateriais em nível internacional atingirem a maturidade, isso no começo da década de 1990, a noção de imaterialidade do patrimônio cultural já havia sido inserida na nova Constituição Democrática do país, promulgada em 1988, a chamada Constituição Cidadã que restaurou os direitos civis da população brasileira. Nesta primeira Carta Magna, elaborada após o início do processo de redemocratização brasileira, o artigo 216 de forma antecipada apontava para a necessidade de proteção dos modos de ser e de viver dos brasileiros, respeitando a diversidade dos grupos que compõem a população, como uma das formas de promoção da cidadania. Este posicionamento dos brasileiros frente ao patrimônio cultural e à proteção de bens culturais imateriais durante o período de redemocratização, entretanto, vai além do momen-

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to revisionista pelo qual passava a sociedade brasileira nessa fase de elaboração de uma nova Constituição, a primeira após longos anos de autoritarismo militar. Tal pioneirismo pode ser explicado pelas acaloradas discussões levantadas pelos intelectuais modernistas brasileiros no início do século XX, que já naquela época voltaram os olhos para o popular e as matrizes formadoras de uma cultura dita nacional. Durante a Semana de Arte Moderna realizada em 1922 na cidade de São Paulo, a chamada capital cultural do país naquela época, Mario de Andrade e seus companheiros trouxeram para a cena pública a importância da valorização da cultura popular brasileira por meio da exposição das suas ideias. Falavam sobre a sobre a necessidade do registro de textos, sons e imagens da cultura, presentes no seio das camadas populares como forma de conhecer e preservar a diversidade cultural da nação brasileira, múltipla de referencias e símbolos formadores da sua identidade. Foi grande a contribuição de Mário de Andrade. Até hoje é possível colher frutos da sua atuação no aprofundamento do debate sobre a questão da cultura nacional. Inspiradora das gerações futuras, a proposta concebida por ele para a preservação do patrimônio nacional, certamente orientou a criação da metodologia criada e aplicada pelos órgãos reguladores da proteção ao patrimônio cultural brasileiro na atualidade.

1- Decreto que instituiu o Registro dos Bens Culturais de Natureza imaterial datado de 04 de agosto de 2000. Este mesmo decreto criou o Programa Nacional de Patrimônio Imaterial que prevê o inventário das manifestações de caráter tradicional e popular por todo o território brasileiro (Inventário Nacional de Referencias Culturais – INRC).

Ainda que a sua primeira proposta não tenha sido contemplada pelo Decreto-Lei de 30 de novembro de 1937 que determinava a criação do Serviço de Patrimônio Cultural Nacional, uma vez que a preocupação da época residia em proteger monumentos edificados, durante o período em que esteve à frente da Secretaria da Cultura da Cidade de São Paulo, Mário de Andrade concebeu e executou a maior ação de proteção ao patrimônio cultural imaterial já realizada antes da criação da metodologia atual: a Missão de Pesquisas Folclóricas, uma expedição que percorreu o norte e nordeste brasileiro registrando em gravações de áudio e fotografias, manifestações da cultura popular, fonte de inspiração clara para a criação do inventário e do registro de bens culturais imateriais e alicerce das propostas vanguardistas criadas no final do século XX e efetivamente aplicadas após a edição do Decreto nº 3.551, de agosto do ano 2000. 1 Naquela ocasião, entendia-se que a questão fundamental era ajustar a ação do estado à nova modalidade de patrimônio, de modo a direcionar sua atuação para a inclusão dos contingentes populacionais tradicionalmente excluídos da ação estatal, a título de reparação histórica da marginalização que sofreram nas ações de patrimônio cultural voltadas exclusivamente aos bens de natureza material. Coube ao IPHAN a responsabilidade sobre a implantação de uma política específica para o patrimônio imaterial, utilizando a nova metodologia embasada pela Constituição Federal e orientada pelas diretrizes expressas na Convenção da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) de 2003, criando o desenho atual da política federal de salvaguarda do patrimônio imaterial (GODOY; TURATTI, 2012). Nessa nova perspectiva, surge a educação patrimonial utilizada como estratégia facilitadora na identificação dos laços de reconhecimento, pertencimento, apropriação e reciprocidade entre pessoas e patrimônios dada a sua capacidade de aglutinar a recuperação e

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a preservação do patrimônio cultural ao desenvolvimento econômico e social. O material didático elaborado conjuntamente pelo Ministério da Cultura e Ministério da Educação, lançado em março de 2012, apresenta a educação patrimonial como o conjunto de:

[...] processos educativos formais e não-formais que têm como foco o patrimônio cultural apropriado socialmente como recurso para a compreensão sócio histórica das referências culturais em todas as suas manifestações, com o objetivo de colaborar para o seu reconhecimento, valorização e preservação (IPHAN, 2012c, p. 5).

Dentro desta ótica a educação patrimonial constitui um trabalho destinado ao desenvolvimento de ações educativas voltadas para impulsionar a formação da cidadania, com base nos direitos culturais, considerando a importância da cultura para a percepção do cidadão como pertencente ao seu locus sociocultural, haja vista o exemplo apresentado no início deste artigo, que diz respeito ao universo da criança que busca na repetição do comportamento dos adultos a afirmação da sua própria identidade.

Cidadania e cidadania digital

Entendida aqui como um processo em constante construção, originado historicamente com o surgimento dos direitos civis, no decorrer do século XVIII e a ruptura com o Antigo Regime, a cidadania, na sua concepção moderna, de acordo com Dallari, [...] expressa um conjunto de direitos que dá à pessoa a possibilidade de participar ativamente da vida e do governo de seu povo. Quem não tem cidadania está marginalizado ou excluído da vida social e da tomada de decisões, ficando numa posição de inferioridade dentro do grupo social (DALLARI, 1998, p. 14). Atrelada à história da luta pelos direitos humanos, tornou-se um referencial de conquista da humanidade, pois ser cidadão significa ter consciência da sua condição de sujeito de direitos civis, políticos e sociais e também de deveres e responsabilidades como parte integrante da coletividade cujo bom funcionamento depende da contribuição de todos na busca pelo bem comum. Também no Brasil a história da cidadania esteve associada à história das lutas pelos direitos fundamentais da pessoa. Marcada por fortes embates desde o período colonial, foi somente no século XX, especialmente nas últimas décadas que, com os avanços sociais e o processo de transição democrática, na promulgação da Constituição de 1988 os direitos humanos foram colocados em posição de supremacia no ordenamento jurídico brasileiro. Pela primeira vez na história constitucional do país eles foram regulados no início do documento, logo após a declaração dos princípios fundamentais.

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Assim, na chamada Constituição Cidadã, ficaram garantidos os direitos à memória e à cultura num importante processo de reconhecimento da cidadania cultural, acompanhando a perspectiva mundial contemporânea de que não existe mais a possibilidade de tolerar a destruição sistemática da identidade de povos inteiros assim como a pilhagem dos seus patrimônios, impedindo as novas gerações de assimilar referencias e valores culturais essenciais ao exercício das suas liberdades, valores de pleno direito do homem, os chamados direitos culturais2.

2- Os direitos culturais foram reconhecidos internacionalmente a partir de 1948, quando a Organização das Nações Unidas (ONU), promulgou a Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Desta forma, no processo de cidadania cultural a cultura passou a ser entendida como um direito dos cidadãos tanto no sentido de usufruir como de criar, pois dentro da perspectiva liberal, a sociedade tem o compromisso de produzir cultura e o Estado o dever de garantir aos indivíduos o direito e acesso a esta cultura como um exercício de cidadania (FONSECA, 1997), conforme aponta Chauí (2006),

Se o Estado não é produtor de cultura nem instrumento para seu consumo, que relação ele pode ter com ela? Pode concebê-la como um direito do cidadão e, portanto, assegurar o direito de acesso às obras culturais produzidas, particularmente o direito de fruílas, o direito de criar as obras, isto é, produzi-las, e o direito de participar da decisão sobre políticas culturais (CHAUÍ, 2006, p. 136).

A cultura se realiza então como direito de todos os cidadãos entendidos como sujeitos sociais e políticos que se diferenciam, se comunicam, intercambiam informações, recusam formas de cultura criam, recriam e imprimem o movimento dinâmico de todo o processo cultural que inclui a transmissão do conhecimento, sendo, portanto, indissociável do direito à informação. Transformada em ação potencializadora das modernas propostas dos programas educativos, como uma das formas de assegurar os direitos culturais e a transmissão da informação sobre os bens culturais, a educação patrimonial, deve primar pela construção coletiva e democrática do conhecimento por meio da transmissão da informação e do diálogo permanente entre agentes culturais e sociais além da participação efetiva das comunidades detentoras das referencias culturais representando uma ação importante dentro dos programas e projetos criados pelo Ministério da Educação e implantados no país na última década. Tais programas, de caráter inclusivos e muito participativos estão voltados não somente para o atendimento do aluno mas também da comunidade, buscando o envolvimento de todos em prol do bem estar coletivo, dentro de uma política ancorada na ideia do direito não apenas na sua forma jurídica, mas especialmente na construção e obtenção de novos direitos pelos novos sujeitos que emergem dos conflitos no estado democrático. Neste sentido, com ênfase na transmissão da informação, para além de uma cidadania cultural, pressupõe-se também uma cidadania digital, entendendo o termo cidadania digital como a utilização dos recursos digitais para a promoção do acesso à informação e como elemen-

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to facilitador para o exercício dos direitos e deveres de cada indivíduo perante o Estado. Partimos do pressuposto de que a importância de se propagar o exercício de uma cidadania digital se amplia na medida em que as informações circulam em tempo real e que os sujeitos ao acessá-la e atribuir-lhe significado podem articular processos de mudança e transformação. Vale acrescentar que com a evolução das tecnologias cada vez mais os usuários ganham voz por meio da interatividade na internet e passam a atuar como agentes multiplicadores de informação; esta capacidade de modificar a maneira pela qual as pessoas interagem e se comunicam tem resultado na criação de novas possibilidades para o exercício da cidadania destacando-se a criação de sistemas de informação para divulgar a memória das práticas culturais tradicionais visando contribuir para o seu reconhecimento e valorização.

Potencialidades apresentadas pelas novas tecnologias

Na sociedade pós-industrial, definida por Touraine (2007) como aquela na qual a informação e o conhecimento passaram a constituir elementos chaves na produção, em substituição à centralidade da indústria como fator econômico produtivo, os conflitos sociais não se concentram mais no elemento econômico e as reivindicações sociais tornam-se destacadamente culturais, o que coloca em foco então a questão dos direitos culturais e da proteção à diversidade. Conforme justifica o autor, anteriormente citado, há duzentos anos, na Europa e nos Estados Unidos, a sociedade lutava pela obtenção dos direitos civis. Há aproximadamente cem anos, estas mesmas sociedades junto com algumas outras trataram de ampliar essa luta passando a reivindicar direitos sociais, especialmente no trabalho. No momento atual, as reivindicações estenderam-se por todo o mundo e a obtenção dos direitos culturais para além dos direitos civis e sociais tornou-se a ordem do dia. Com os movimentos sociais, em sua face atual, centrados na defesa dos direitos culturais, ������������������������������ as relações passam a ser estabelecidas por meio da utilização das novas tecnologias de acesso à informação e a busca pelos direitos culturais experimenta o caminho novo aberto pela cidadania digital. Tal qual a cidadania cultural que, embasada pelos direitos culturais coloca em cena, na sociedade contemporânea, a cultura popular e tradicional, a cidadania digital direciona o foco para instrumentalização do sujeito e dos grupos sociais no sentido da ampliação das possibilidades de ação no que se refere à democratização do acesso à informações. Para a proteção ao patrimônio cultural o acesso a tecnologia é uma dimensão importante da ação educativa visando a difusão do conhecimento e a valorização das práticas culturais instrumentalizando o trabalho de educação patrimonial a ser aplicado tanto no universo formal da escola como na informalidade de alguns processos e práticas educativas. Amplamente apresentadas e exaustivamente discutidas, as perspectivas abertas pelo desenvolvimento das novas tecnologias da informação se apresentam de forma extraordinária afetando as mais variadas dimensões da sociedade, não sendo diferente na área da

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educação. A introdução de computadores nas escolas públicas e a consequente disponibilização de conteúdos virtuais, a difusão de computadores móveis e telefones com acesso à internet propiciam a rápida troca de mensagens generalizando o uso do correio eletrônico e a formação de redes de interesse comum são possibilidades que alteram inegavelmente tanto o processo educativo como também a produção e difusão do conhecimento. No caso do trabalho específico de ações educativas visando à valorização e a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial de um estado ou nação, a soma de informação, educação patrimonial e tecnologia potencializam o processo de construção da cidadania na medida em que ampliam a capacidade de transmissão dos valores e das referencias culturais, conforme argumenta Barbero (2008),

3- O Programa Banda Larga nas Escolas foi lançado no dia 04 de abril de 2008 pelo Governo Federal, por meio do Decreto nº 6.424 que altera o Plano Geral de Metas para a Universalização do Serviço Telefônico Fixo Comutado Prestado no Regime Público – PGMU (Decreto nº 4.769). Com a assinatura do Termo Aditivo ao Termo de Autorização de exploração da Telefonia Fixa, as operadoras autorizadas trocam a obrigação de instalarem postos de serviços telefônicos (PST) nos municípios pela instalação de infraestrutura de rede para suporte a conexão à internet em alta velocidade em todos os municípios brasileiros e conexão de todas as escolas públicas urbanas com manutenção dos serviços sem ônus até o ano de 2025. A gestão do Programa é feita em conjunto pelo Ministério da Educação (MEC) e pela Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), em parceria com o Ministério das Comunicações (MCOM), o Ministério do Planejamento (MPOG) e com as Secretarias de Educação Estaduais e Municipais.

Nas obras A era da informação e A galáxia da internet, Castells assinala as mudanças que a internet está introduzindo em nossos modos de organizar e de acessar o conhecimento e, sobretudo, em nossas maneiras de reproduzir conhecimento, uma vez que – frente à separação entre mente e corpo, entre hemisfério esquerdo e o direito do cérebro, entre o hemisfério da razão argumentativa e o hemisfério da emoção, a paixão e o afeto, entre o hemisfério da escrita e o hemisfério da imagem e a música – a internet escreve ao mesmo tempo com letras, com sons e com imagens. Isso marca o inicio de outra época, de uma mudança de época. Foi um historiador da escrita e da leitura, Roger Chartier (2000 e 2001), quem afirmou que devemos comparar a internet, não com a imprensa, que nasceu para divulgar o que já estava escrito – Gutemberg designoulhe a função de fazer com que a Bíblia chegasse a todos os países, a todas as pessoas -, mas com a invenção do alfabeto, que possibilitou a escrita, uma vez que a internet não é só divulgadora de velhos saberes e livros já escritos, mas um novo modo de escrever e produzir saber. A internet não é causa, mas resultado da transformação do sujeito humano, a projeção de um novo sujeito de conhecimento que, por sua vez, implica o surgimento de um novo cidadão (BARBERO, 2008, p. 246).

No Brasil, no que diz respeito às políticas específicas de informatização das escolas e a promoção do acesso à internet, de acordo com os dados disponibilizados pelo Ministério da Educação no documento Sinopse das ações do Ministério da Educação (BRASIL, 2011), houve um grande avanço, pelo menos no que diz respeito à instrumentalização de instituições públicas e corpo técnico para a utilização das novas tecnologias disponíveis para o trabalho pedagógico. Conforme mostra o documento, grande parte das instituições de ensino básico já estão habilitadas a navegar na rede mundial de computadores graças ao desenvolvimento de programas específicos do setor como o Banda Larga nas Escolas3, cujo objetivo é de “universalizar e democratizar o acesso à informação e inclusão digital de professores e alunos” (BRASIL, 2011, p. 47). Pelo menos do ponto de vista oficial, os dados publicados pelo Ministério da Educação em relação ao número de escolas alcançadas pelo programa, revelam um cenário promissor: do universo de 64.879 escolas públicas do Brasil, desde o início do programa em 2008,

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57.827 já foram equipadas com computadores e internet banda larga. A Figura 1 apresenta, em termos quantitativos, a taxa de crescimento do programa no período 2008-2011.

Figura 1 Taxa de crescimento do número de escolas conectadas à internet 2008-2011

Fonte: BRASIL, 2011, p. 47.

Integrando-se às perspectivas antecedentes de atuação do governo federal brasileiro na área do uso pedagógico das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) na rede pública de educação, destaca-se também o Programa Nacional de Informática na Educação (PROINFO) cujo objetivo é a instalação de laboratórios de computadores nas escolas públicas urbanas e rurais de ensino básico de todo o Brasil. Inicialmente, a proposta central do programa consistia em levar às escolas computadores, recursos digitais e conteúdos educacionais digitais. No entanto, conforme destaca o documento Sinopses das Ações do Ministério da Educação (BRASIL, 2011, p. 46), o programa passou por uma reformulação em 2007, intregrando, dessa forma, a “oferta cursos de formação continuada aos professores e gestores das escolas, voltados para o uso didáticopedagógico das TIC.” Conforme apresentado na Figura 2, o programa já capacitou 550 mil professores e gestores:

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Informação e patrimônio cultural imaterial - Clotildes Avellar Teixeira, Alcenir Soares dos Reis Figura 2 Professores e gestores capacidade pelo PROINFO 2009-2010

Fonte: BRASIL, 2010, p. 55.

Entretanto há de se considerar que o fato da escola estar habilitada para o uso das novas tecnologias não significa que as esteja utilizando plenamente. É que além de equipar e fornecer as bases técnicas para a utilização dos equipamentos há de se implantar políticas e programa com tal foco. Para tanto se torna necessário construir uma metodologia que tenha como objetivo mpulsionar a utilização das novas tecnologias nas escolas de ensino formal, tanto para os conteúdos tradicionais como para os temas transversais indicados nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), que incluem a Educação Patrimonial e a valorização da diversidade cultural do país, em consonância com as políticas de cultura já implementadas. Ainda que conceitualmente, as políticas de educação cresceram muito no Brasil nas últimas décadas, seguindo os pactos firmados nas conferencias mundiais, que reafirmam a educação também como um direito, tal fator se destaca especialmente após o período de redemocratização, com a criação do Ministério da Cultura desvinculado do Ministério da Educação. A educação patrimonial mesmo sem ter se transformado em uma ação essencial dentro das políticas públicas de cultura e educação, atualmente, configura como uma recomendação presente nos PCNs, como tema transversal para o desenvolvimento de projetos específicos na escola. Há de se pensar na criação de uma metodologia ou mesmo um instrumento, que seja capaz de auxiliar o desenvolvimento do trabalho de educação patrimonial, utilizando as novas tecnologias nas escolas, ou seja, uma ação concreta nessa direção, em termos da criação de uma política pública para sua implantação nas instituições públicas de educação formal, em todo o território brasileiro.

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O surgimento do programa Mais educação, uma estratégia criada pelo Ministério da Educação para induzir a construção de uma agenda de educação integral nas escolas publicas, ampliando a jornada escolar por meio de atividades optativas que incluem cultura, artes, meio ambiente, cultura digital, uso das mídias, promoção da saúde, esporte e lazer, entre outros, oferece uma boa oportunidade para a implementação desta política e a divulgação do primeiro fascículo de Educação Patrimonial do programa demonstra claramente esta possibilidade. De acordo com a parceria entre o Ministério da Educação e o IPHAN, serão elaborados três fascículos que têm como objetivo incentivar os alunos a produzirem inventários dos patrimônios locais, nos territórios nos quais as escolas estão inseridas, numa ação que amplia sobremaneira a possibilidade do desenvolvimento de projetos, com vistas à proteção do patrimônio cultural em todo o contexto nacional. Em síntese, é relevante enfatizar a institucionalização da preservação do patrimônio nacional e da ênfase na cultura, bem como o uso das potencialidades tecnológicas, conforme vem sendo defendido pelo governo brasileiro, a fim de que a identidade e a memória sejam preservados; entretanto, a sociedade brasileira precisa ainda avançar no sentido de que as proposições que se apresentam no plano teórico, consigam ir além dos discursos, de forma a que os direitos de cidadania se efetivem.

Conclusão

Conforme pudemos observar no decorrer deste artigo, as políticas públicas de educação e cultura implantadas no Brasil após o processo de redemocratização do país no final do século XX apontam para uma maior afirmação de ações voltadas para o cuidado e a proteção dos bens culturais, mais especificamente os bens culturais imateriais. A educação patrimonial, ao se constituir como dimensão importante e significativa para a constituição da cidadania caminha de forma dinâmica no sentido de se transformar em um programa nacional e parte de uma política pública preocupada com a valorização da identidade e a questão da cidadania. Uma forma de possibilitar a ampliação das possibilidades de desenvolvimento dos trabalhos de educação patrimonial será ampliar cada vez mais o uso das novas tecnologias, considerando o fato delas possibilitarem a criação de um fórum mais amplo de discussão além de potencializar a difusão da informação sobre os bens culturais imateriais favorecendo a transmissão de conhecimentos tradicionais e garantindo o direito à memória dos grupos sociais por meio de uma cidadania digital.

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Referências Bibliográficas

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INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Programa Mais Educação. Disponível em: < http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_ docman&task...>. Acesso em: 07/02/2012 (c). ROCHA, José Nilton Ferreira. Memória dos Sentidos: tradição e oralidade marajoara. Pará: Marajó, 2012. Não Publicado. (Parte do material bruto de pesquisa para a criação de livro e filme do projeto cultural “Memória dos Sentidos: tradição e oralidade marajoara”). TOURAINE, Alain. Um novo paradigma: para compreender o mundo de hoje. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

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O PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO NAS ESCOLAS: UM COMPUTADOR POR ALUNO EL PROYECTO POLÍTICO PEDAGÓGICO EN LAS ESCUELAS: UN ORDENADOR POR ALUMNO THE PEDAGOGICAL POLITICAL PROJECT IN SCHOOLS: ONE COMPUTER PER STUDENT

Silvana Donadio Vilela Lemos Graduada em Letras e Mestre em Educação, Arte e História da Cultura, pela Universidade Mackenzie, Doutorado e Pós-doutorado pela Pontifícia Universidade Católica, PUC-SP, Programa de Pós-Graduação Educação: Currículo. Integra a equipe de pesquisadores do Projeto de Pesquisa edital CNPq/CAPES/SEED-MEC n° 76/2010, “O Currículo do século XXI: a integração das TIC ao currículo – inovação, conhecimento científico e aprendizagem”. Email: sil.lemos@uol.com.br

Revista Eptic Online Vol.15 n.2 p.216-233 mai-ago 2013 Recebido em 15/02/2013 Publicado em 15/05/2013


O Projeto Político Pedagógico nas Escolas: um computador por aluno - Silvana Vilela LemosLemos

RESUMO Inicialmente, pretende-se apresentar alguns argumentos sobre a importância do “Projeto Um Computador Por Aluno”, como política pública que se propõe democratizar o acesso e possibilitar a inclusão digital de gestores, professores e alunos da escola pública no Brasil. Em seguida, conceituar “Projeto Político Pedagógico” e anunciar a proposta de integração das TIC nos documentos que retratam o Projeto Político Pedagógico em três escolas, duas no Estado de São Paulo e uma no Estado de Tocantins. O presente artigo refere-se à primeira etapa do Projeto de pesquisa intitulado “A sala de Aula no Século XXI: Inovação e Criticidade”, aprovado pelo Programa Nacional de Pós-Doutorado – PNPD 2010, edital n°001/2010 – MEC/CAPES e MCT/ CNPq/FINEP, mostrando resultados de uma pesquisa documental sobre a integração das TIC ao currículo da Educação Básica, no Projeto Político Pedagógico das escolas. A metodologia empregada neste projeto constituiu-se na análise de documentos que retratam o Projeto Político Pedagógico das seguintes escolas: a Escola Estadual Antonio Carlos Ferreira Nobre e a Escola Municipal Governador André Franco Montoro, localizadas no Estado de São Paulo e a Escola Estadual José Costa Soares, no Estado de Tocantins. Com base na análise dos documentos das escolas, depreende-se que consideram imprescindível registrar no Projeto Político Pedagógico a relevância das TIC ao currículo escolar, como ferramenta cognitiva a serviço da construção da cidadania de forma plena, dos alunos em pleno século XXI. Porém, evidencia-se a necessidade de informações sobre as ações desenvolvidas, as dificuldades e soluções apresentadas, como também, os avanços alcançados e os desafios presentes.

PALAVRAS-CHAVE Projeto Político Pedagógico; TIC; Projeto Um Computador Por Aluno

RESUMEN Inicialmente, el objetivo es presentar algunos argumentos sobre la importancia del “Proyecto de un ordenador por alumno,” como política pública que pretende democratizar el acceso e inclusión digital de directivos, docentes y estudiantes de la escuela pública en Brasil. Entonces conceptualizar “Proyecto político pedagógico” y anunciar la integración de las TIC en los documentos de la propuesta que retratan el proyecto político pedagógico en tres escuelas, dos en el estado de São Paulo y una en el estado de Tocantins. Este artículo se refiere al primer paso del proyecto de investigación titulado “el aula del siglo XXI: innovación y criticidad”, aprobado por el programa nacional de 2010 postdoctoral, PNPD Decreto n ° 0012010MECCAPES y MCTCNPqFINEP, mostrando los resultados de una investigación documental sobre la integración de las TIC en el currículo de educación básica, el proyecto político pedagógico de las escuelas. La metodología empleada en este proyecto consistió en el análisis de los documentos que retratan el proyecto político pedagógico de las escuelas siguientes: Escuela Estatal Antonio Carlos Ferreira Nobre y la Escuela Municipal Gobernador André Franco Montoro, situado en el estado de São Paulo y la Escuela Estatal José Costa Soares, en el estado de Tocantins. Con base en el análisis de los documentos de las escuelas, se comprende, que consideren esencial el registro en el proyecto político pedagógico la relevancia de las TIC en el círculo escolar, como instrumento cognitivo al servicio de la construcción de la ciudadanía y estudiantes en el siglo XXI. Sin embargo, se destaca la necesidad de la información sobre las medidas adoptadas, dificultades y soluciones, así como los avances y los retos que se presentan PALABRAS CLAVE Proyecto político pedagógico; TIC; Proyecto de un ordenador por alumno.

ABSTRACT Initially, the intention is to present some arguments about the importance of “Program One Computer Per Student”, as public policy that seeks to democratize access and enable digital inclusion of managers, teachers and students from the public school in Brazil. Then conceptualize “Pedagogical Political Project” and announce the proposal for integration of ICT in the documents that depict the Pedagogical Political Project in three schools, two in the State of São Paulo and one in the State of Tocantins. The methodology employed in this project was an analysis of documents that depict the Pedagogical Political Project of the following schools: State School Antonio Carlos Ferreira Nobre and School Governador André Franco Montoro, in State of São Paulo, State School José Costa Soares, in the State of Tocantins. Based on the analysis of the documents, it appears that schools consider essential register in Pedagogical Political Project the relevance of ICT into the school curriculum, such as cognitive tool at the service of building full citizenship of the students in the XXI Century. However, it highlights the need for information on actions carried out difficulties and solutions presented, as also, the advances made and challenges present. KEYWORDS Pedagogical Political Project; ITC, One Computer Per Student

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O Projeto Político Pedagógico nas Escolas: um computador por aluno - Silvana Vilela LemosLemos

INTRODUÇÃO

O presente artigo refere-se à primeira etapa do Projeto de pesquisa intitulado “A sala de Aula no Século XXI: Inovação e Criticidade”, aprovado pelo Programa Nacional de Pós-Doutorado – PNPD 2010, edital n°001/2010 – MEC/CAPES e MCT/ CNPq/FINEP, mostrando resultados de uma pesquisa documental sobre a integração das TIC ao currículo da Educação Básica, no Projeto Político Pedagógico das escolas.

Pretende-se apresentar alguns argumentos a respeito da relevância do “Projeto Um Computador Por Aluno”, como política pública que se propõe democratizar a inclusão digital de gestores, professores e alunos da escola pública no Brasil. Logo em seguida, conceituar Projeto Político Pedagógico e anunciar a proposta de integração das TIC nos documentos que retratam o Projeto Político Pedagógico, em três escolas dos Estados de São Paulo e Tocantins. O governo federal, desde o ano de 2007, tem como uma de suas estratégias para inclusão digital na educação, o Projeto “Um Computador Por Aluno”, que se propõe disponibilizar, por aluno, um pequeno computador portátil, fornecido por diferentes fabricantes. Para assegurar o uso da tecnologia tem-se como proposta oferecer às escolas a infraestrutura de acesso à internet e a formação dos professores pelas instituições de ensino superior (IES), pelas secretarias de educação estaduais ou municipais, pelos centros de formação dos Núcleos de Tecnologia Educacional, estaduais (NTE) e municipais (NTM), com o objetivo de criar uma rede de diálogo e cooperação com as escolas, na implementação do Projeto. Esta intenção encontra-se, em alguns casos, no âmbito do discurso. Dentre os objetivos que norteiam o Projeto “Um Computador Por Aluno”, há a intenção em estruturar uma rede de formação aos professores, que incentiva a mentalidade, a postura colaborativa de socialização de conhecimentos e o compartilhar de experiências exitosas, integradas ao uso do computador portátil. No Brasil, a universalização do acesso, a infraestrutura necessária e o uso das TIC (Tecnologias de Informação e Comunicação) pelos alunos, professores e estabelecimentos escolares, ainda demanda um esforço articulado e, portanto, um desafio, entre as esferas públicas dos municípios, estados e governo federal. Nos casos em que já se iniciaram a implantação e implementação das ações do “Projeto Um Computador Por Aluno”, as dificuldades estão relacionadas à precária infraestrutura, aos problemas com a conexão de internet, ao número insuficiente de máquinas, aos materiais didáticos digitais que apresentam problemas em sua operacionalização e à escassez de tempo por parte do professor em apoderar-se das tecnologias e integrá-las às práticas educativas, pelo visto neste universo pesquisado. Almeida e Valente (2011) apresentam argumentos sobre a relevância da integração do computador portátil ao currículo, a partir das análises dos experimentos em andamento.

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As cinco escolas participantes do projeto piloto apresentam consideráveis mudanças em relação à postura responsável, participativa, interessada e autônoma dos alunos em buscar informações, interagir e colaborar com os colegas e com diferentes sujeitos na construção do conhecimento. Assim, foi possível ampliar a aprendizagem pelas múltiplas possibilidades em pesquisar, dialogar e pensar em diferentes espaços, mobilidade que o computador portátil proporciona. Os autores acrescentam que os resultados nos estudos tratados pela literatura, os alunos que tiveram acesso, individualizado, ao computador portátil, além de maior capacidade em utilizar o equipamento, demonstraram maior habilidade ao pesquisar, em localizar, compreender e reter a informação, como também, a desenvoltura em escrever mais e melhor. Além desses argumentos, os autores (2011) afirmam que embora tenhamos a convergência das facilidades tecnológicas, uma boa concepção de currículo e ações exitosas de integração do tecnológico ao pedagógico, ainda as tecnologias e o currículo são tratados de maneira desintegrada. Diante de tal constatação, emerge o desafio de ressignificar o currículo pela pedagogia crítico-dialógica, uma pedagogia da pergunta, pois ensinar e aprender no século XXI, exige do professor práticas educativas que rompem com a transferência de conhecimentos e criam as possibilidades do aluno, pela utilização do computador portátil, em aventurar-se na busca pelo conhecimento e no diálogo em diferentes situações educacionais, que vão além das paredes da sala de aula. Sem dúvida, trabalhar numa escola tecnológica é um grande desafio. Em muitas escolas, a chegada do computador portátil causou desconforto e receio por parte dos professores, enquanto os alunos, com euforia e audácia, desejavam conhecer e aventurar-se nos computadores portáteis. A esse respeito, Oliveira afirma:

O Programa Um Computador Por Aluno – UCA, provocou uma imensa mudança de postura do professor, que teve de arregaçar as mangas e buscar alternativas para aliar a tecnologia a reais possibilidades de ensino. Os professores não foram preparados pelas universidades para lidar com essa nova situação, portanto, é natural que surja medo. No entanto, se não há formula mágica ou receita de uso das tecnologias, o ideal é criar suas estratégias, avaliá-las e aperfeiçoá-las sempre. O primeiro passo é começar a fazer e não se acomodar.

(OLIVEIRA, 2011, p. 86-87).

Evidencia-se a relevância da formação continuada e em serviço do professor, como espaço e tempo fundamental, para que ele, pela reflexão crítica da prática cotidiana, tenha a oportunidade ao dialogar com os seus pares, pensar e aprofundar os pontos que requerem fundamentação teórica. À medida que se apropria de novos conhecimentos, poderá utilizar o potencial das TIC a serviço de uma nova cultura de ensino e aprendizado. Este artigo apresenta a metodologia da pesquisa, o conceito de Projeto Político Pedagógico, e, na sequência, anuncia os resultados sobre a integração das TIC e, em especial, o

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computador portátil ao currículo, expressas nos documentos que retratam o Projeto Político Pedagógico das escolas pesquisadas. O último tópico contém as conclusões e sugestões sobre os desafios presentes, a partir dos anúncios apresentados.

2. METODOLOGIA

Neste item são descritas os critérios para a seleção das escolas e o método de pesquisa empregado.

2.1. A escolha das escolas Neste artigo, optou-se por analisar três documentos que retratam o Projeto Político Pedagógico de escolas “Um Computador Por Aluno”, acompanhadas, direta e indiretamente, pela Pontifícia Universidade Católica, instituição à qual se vincula o projeto de pesquisa de Pós-doutorado PNPD 2010, MEC/CAPES e MCT/CNPq/FINEP. Elegeu-se analisar os documentos das escolas: Escola Estadual Professor Antônio Carlos Ferreira Nobre e E.M.E.F. e Governador Franco Montoro, porque a PUC/SP é o Instituto de Ensino Superior responsável pela formação dos professores e gestores da escola, dentro da dimensão local. Dentro da dimensão global, a PUC/SP é a Instituição de Ensino Superior Global que acompanha o desenvolvimento da equipe de formadores do Núcleo de Tecnologia Educacional – NTE, do Estado de Tocantins. Desse modo, foi disponibilizado pelo Núcleo de Tecnologia Educacional – NTE, do Estado de Tocantins, o documento que retrata o Projeto Político Pedagógico da Escola José Costa Soares. Para análise, optou-se pela abordagem qualitativa que se apresentou como a mais adequada para a investigação do objeto a que essa pesquisa se propunha. A respeito da abordagem qualitativa Bogdan elucida:

Os dados incluem transcrições de entrevistas, notas de campo, fotografia, vídeos, documentos pessoais e oficiais e memorandos. Tentam analisar os dados em toda a sua riqueza, respeitando, tanto quanto possível, a forma em que estes formam registrados ou transcritos. A palavra escrita assume particular importância na abordagem qualitativa, tanto para o registro dos dados como para a disseminação dos resultados.

(BOGDAN, 1994, p.48-49).

Os pressupostos da pesquisa qualitativa permitem compreender a rica relação de interdependência entre o mundo real e os seres humanos, incidindo sobre os diversos aspectos da vida educativa.

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2.2. A leitura dos documentos

Teve-se como objetivo resgatar nos documentos que retratam o Projeto Político Pedagógico, os anúncios em relação à integração das TIC, em especial o computador portátil, ao currículo das escolas.

3. O PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO: CONCEITO 3.1. O conceito Tem-se como objetivo inicial, conceituar Projeto Político Pedagógico. A nossa compreensão se aproxima ao exposto por Vasconcelos sobre Projeto Político Pedagógico:

O Projeto Político Pedagógico é o plano global da instituição. Pode ser entendido como a sistematização, nunca definitiva, de um processo de planejamento participativo, que se aperfeiçoa e se objetiva na caminhada, que define claramente o tipo de ação educativa que se quer realizar, a partir de um posicionamento quanto à sua intencionalidade e de uma leitura da realidade.

(VASCONCELOS, 2009, p. 17-18)

Para Vasconcelos o Projeto Político Pedagógico é o documento que anuncia e norteia as propostas e as ações que a escola deseja implantar. O autor expressa que o projeto político pedagógico é a proposta mais abrangente da escola, uma espécie de “guarda-chuva” ao acolher e garantir a organicidade entre o particular e o geral. Portanto, sua duração prevê ações para o ano todo ou para vários anos. Em relação à participação e a sua concretização, defende-se que ele seja um processo de construção coletiva, democrática, em que se possa vivenciar a permanente “ação- reflexão – ação.”. Segundo Vasconcelos (2009, p. 37) o Projeto Político Pedagógico é “O plano global da instituição e o regimento deve estar a serviço dele (dando suporte formal, legal e jurídico para aquilo que nos propomos) e não o contrário.” Sendo assim, o Projeto Político Pedagógico é a sistematização do constante processo de pensar e planejar a caminhada que se quer para a escola. É o instrumento teórico-metodológico que norteia as mudanças que se deseja implantar. Vasconcelos (2009, p. 19) considera que não há consenso em relação ao nome, pois encontramos: Projeto Político Pedagógico, Projeto Pedagógico, Proposta Pedagógica, Projeto Educativo, Projeto de Escola, Projeto Pedagógico-Curricular, Projeto Pedagógico-Administrativo, Plano Escolar, Plano Diretor, etc. Mas pondera ele sobre a relevância da presença do termo “Político”, ao considerar que toda prática educativa não é neutra e, portanto, é também política. Para Vasconcelos (2009, p. 19) “Concordamos, mas consideramos importante manter o político para jamais descuidarmos desta dimensão de poder presente nas práticas educativas e nas suas interfaces com a sociedade como um todo.”.

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Destaque-se, ainda, o pensamento de Thurler sobre a importância do Projeto da escola como um instrumento de integração, que aproxima os sujeitos da escola. A autora assim expressa:

O projeto é uma ferramenta de trabalho evolutiva que deixa espaço aos recém-chegados, que podem ser percebidos como recursos, pois contribuem para a explicitação e renovação do projeto e trazem novas competências. (THURLER, 2001, p.138). Em outras palavras, o Projeto da escola é a explicitação de uma História coletiva e que não está fechado sobre si mesmo, mas ao contrário, sempre aberto para o futuro e para fora.

4. RESULTADOS: O PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO NAS ESCOLAS UM COMPUTADOR POR ALUNO

Neste tópico, tem-se a pretensão apresentar os anúncios das três escolas “Um Computador Por Aluno”, em relação à integração das TIC e, em especial, o computador portátil ao currículo escolar, no documento que retrata o Projeto Político Pedagógico.

4.1. O Projeto Político Pedagógico: anúncios e desafios na integração das TIC às práticas educativas Relevante informar que os anúncios a respeito da integração das TIC aos Projetos Escolares da primeira escola, “Escola Estadual Professor Antonio Carlos Ferreira Nobre”, retratam o início do processo de apropriação tecnológica ao pedagógico. A Formação Brasil iniciou no final do ano de 2010 e adentrou 2011. Desse modo, os profissionais da escola no momento desta pesquisa, realizavam os cinco módulos, sendo eles: Apropriação Tecnológica, a WEB 2.0, Formação de Professores na Escola e Gestão de Tecnologias, Elaboração de Projetos e Sistematização da Formação na Escola. De início, faremos uma breve caracterização da escola com informações a respeito das modalidades de ensino, período e horário de funcionamento e a infraestrutura disponível na escola. A escola oferece o ciclo II do Ensino Fundamental, 5ª à 8ª série, presencial e os períodos de funcionamento são: manhã das 07h00 às 12h20 e à tarde das 13h00 às 18h20. Há aproximadamente 480 alunos. A escola conta com a seguinte infraestrutura e recursos para desenvolver a integração das TIC ao currículo escolar: um projeto de slides, um retroprojetor, dois televisores, três DVDs, um videocassete, um microsistem, uma coleção de

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DVD TV Escola, uma filmadora, uma máquina fotográfica digital, uma caixa de som/rádio e toca CD. Nas redondezas da escola, há um comércio atuante que oferece à população, lojas diversificadas além de supermercados, farmácias, mercearias, padarias, agência de correio e agências bancárias. Não há cinema, teatro e biblioteca. Entretanto, o Parque São Domingos conta com uma área verde municipal para atividades esportivas, recreativas e de lazer. Os alunos matriculados são oriundos de favelas e cortiços das circunvizinhanças do próprio bairro e de outros. Muitos alunos residem com os avôs, tios ou apenas com um dos pais. Muitos alunos apresentam, além de carências afetivas e emocionais, baixo aproveitamento nos estudos. Objetiva-se, nesse segundo momento, apresentar as finalidades da “Escola Estadual Professor Antonio Carlos Ferreira Nobre”. Resgata-se no documento a informação de que a proposta pedagógica vincula-se ao Sistema de Ensino do Estado de São Paulo e os objetivos que norteiam o ensino estão em consonância à Lei Federal n° 9.394/96 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e às demais legislações do Governo do Estado de São Paulo. A escola estadual Professor Antonio Nobre tem a finalidade a partir de Projetos Escolares, no Ensino Fundamental (GESTÃO PEDAGÓGICA, 2010, p.29) capacitar os alunos, com as habilidades de leitura, da escrita e do cálculo. Para alcançar esse objetivo, localiza-se no documento (2010, p. 12) que as práticas pedagógicas serão contextualizadas aos temas sociais e ao mundo do trabalho. Dessa maneira, o anúncio é para um processo educacional em que o aluno seja o centro da aprendizagem e as suas experiências e saberes serão o ponto de partida para o conhecimento que será construído na escola. Importante destacar, que o documento que representa o Projeto Político Pedagógico, no item V – Gestão Participativa (2007-2010, p. 22-24), anuncia que a escola cria espaços e tempos para que os sujeitos coletivamente pensem, dialoguem, decidam e planejem, nas várias instâncias: Associação de Pais e Mestres, os Conselhos de Classe, Grêmio Estudantil e Reuniões de Pais e Mestres. Sendo assim, o empenho é o de envolver todos os participantes no aprimoramento de projetos significativos à comunidade escolar. Destaca-se, no documento, a consciência e responsabilidade da escola em promover a democratização e a inclusão dos alunos do Ensino Fundamental, às novas tecnologias, como formação indispensável para exercer a cidadania na sociedade do século XXI. E para isso, a escola anuncia sua intenção na Proposta Pedagógica: “Utilizar as linguagens tecnológicas disponíveis na sociedade de comunicação e informação, pelo acesso e inclusão democrática na escola.” (2010, p.16). E, para reiterar o compromisso, afirma no plano da Gestão Pedagógica a importância de, na formação básica o aluno, desenvolver: “A compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade.” (2010, p. 29). Na tentativa de atingir essa meta, a escola no horário da HTPC (horário de trabalho pedagógico coletivo) busca garantir aos professores o intercâmbio, a reflexão crítica e a

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reconstrução das práticas construídas por eles. A expectativa está em garantir a qualidade no ensino e da aprendizagem dos alunos. Tem-se, portanto, a finalidade de integrar o computador portátil não apenas como um instrumento para o acesso à informação, mas como uma tecnologia que além de convidar a busca curiosa e investigativa do aluno em conhecer, impulsionar novas formas de dialogar, pensar, compreender e resolver as problemáticas que emergirem do contexto dos alunos. A seguir, nomeamos alguns Projetos Escolares desenvolvidos no ano de 2011 com o objetivo de integrar às TIC às práticas pedagógicas: o Projeto Vivendo a Leitura; Projeto Afro Brasileiro; Projeto Gincana Nobre e Projeto Páscoa. Constatou-se, após a análise dos projetos citados, que a escola faz menção à integração das TIC às práticas pedagógicas, na seguinte citação extraída do Projeto Afro Brasileiro (2010, p. 45): “As 5ªs séries desenvolverão atividades com fábulas africanas utilizando os vídeos de literatura da TV Escola, resumo e confecção de livro em Língua Portuguesa.”. No Projeto Escolar “Vivendo a Leitura”, destaca-se, na introdução e justificativa, a intencionalidade de propiciar aos alunos de 5ᵃ a 8ᵃ série do Ensino Fundamental, a vivência da leitura em múltiplas possibilidades de linguagens e meios: o acesso à música, ao acervo literário, à dança, à pintura, ao teatro e ao cinema. Justifica-se no projeto que:

Há necessidade plas linguagens res da realidade no exercício da

de a Escola promover pela leitura das múltie meios, à formação de leitores críticos, sabedoem que vivem e protagonistas sociais, para o plecidadania.(PLANO DE GESTÃO, 2007-2020, p. 39)

Após essa breve explanação, evidenciamos os fatores que dificultaram a integração do computador portátil, ao currículo escolar e, portanto, não favoreceram a concretização das finalidades e ações propostas pela Unidade Escolar. Os seguintes fatore Após vários pedidos da comunidade escolar foi construída uma sala de informática com 49m², mas que ainda, passados mais de dois anos de sua construção, não temos computadores em números suficientes para os alunos desenvolverem suas potencialidades. (PLANO DE GESTÃO, 2007-2010, p. 8). Para reiterar um dos aspectos limitadores à integração do computador às práticas educativas, resgatamos a seguinte fala do documento (2007-2010 p. 10) “Em 2005 foi construída a Sala Ambiente de Informática, que até hoje conta com somente cinco computadores e uma impressora, o que dificulta a aprendizagem, já que cada classe tem aproximadamente 40 alunos.” Assim, a questão de infraestrutura tecnológica é um fator limitador à integração do computador ao currículo escolar, na “Escola Estadual Professor Antônio Nobre”. Importante completar que o “Programa Um Computador Por Aluno” é um projeto novo na escola e, o processo de apropriação tecnológica ao pedagógico está sendo construído segundo a cultura, o tempo, as expectativas e necessidades da Unidade Escolar.

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Consideramos relevante afirmar o papel da formação permanente dos professores da escola, para subsidiá-los com conhecimentos, para saber como, quando, para quê e a serviço do quê integrar às TIC ao currículo escolar. Nesse momento, passamos a analisar o 2° documento que retrata o Projeto Político Pedagógico “Um Computador Por Aluno”, da Escola Municipal de Ensino Fundamental “Governador André Franco Montoro” uma das 300 escolas públicas contempladas para receber os computadores portáteis, no ano de 2010, localizada na cidade de Campo Limpo Paulista. Relevante informar que a escola no momento desta pesquisa, havia concluído os cinco módulos de Formação inicial e, por isso, já contava com uma certa experiência e apropriação tecnológica ao pedagógico. Além disso, no início do ano de 2011, gestores e professores estavam no processo de finalização do PROGITEC (Projeto de Gestão Integrada de Tecnologias). Com este Projeto a escola compromete-se gerenciar o uso do computador portátil no contexto escolar. Para iniciar, introduzimos algumas informações para contextualizar a escola. A Unidade Escolar oferece os cursos de Educação Infantil: Infantil II e III e Ensino Fundamental I: do 1º ao 4º ano e Ensino Fundamental II: 5º ao 8º ano, no período da manhã e da tarde, das 7h00 às 17h30. O número de classes em funcionamento são 22. O bairro onde os alunos residem não conta com saneamento básico, atividades culturais e nem espaço para o lazer da comunidade. As famílias são carentes e necessitam o apoio e a assistência do poder público. A Unidade Escolar ao ser caracterizada relaciona os seguintes recursos tecnológicos disponíveis para o uso pedagógico: há 540 computadores portáteis para o uso dos alunos em sala de aula e 32 computadores tipo desktop no laboratório da escola. No documento da escola (PROPOSTA PEDAGÓGICA, 2011, p.9-12), observa-se que as finalidades e metas definidas são o resultado de um planejamento participativo, que envolveu equipe escolar, alunos, pais e comunidade. Afirma-se que essa ação tem o objetivo de abrir a escola, para uma convivência entre os sujeitos que, ao exercitar o diálogo, a decisão, o trabalho e a avaliação coletiva, comprometem-se em pensar as questões existentes na escola, investindo na qualidade do ensinar e aprender. Dentre os objetivos informados pela escola destaca-se que a intenção é a de promover, pela proposta de projetos escolares, à aprendizagem significativa e proporcionar ao aluno um melhor aproveitamento e, por consequência, elevar o IDEB da escola. Têm-se como finalidades (PROJETO PEDAGÓGICO, 2011, p.11-13), trabalhar com projetos interdisciplinares que desenvolvam as competências da leitura, da escrita, da interpretação e a análise crítica sobre as questões de nossa época. Objetivam, também, promover o desenvolvimento do raciocínio lógico, da observação e concentração, da vivência dos valores da solidariedade, das regras de convivência e da conscientização sobre a preservação do meio ambiente.

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A escola “Governador André Franco Montoro” delineia na Proposta Pedagógica (2011, p. 16) que o propósito é o de preparar os alunos para a nova realidade social. Objetivase, num trabalho coletivo, convidar o aluno a utilizar as diferentes linguagens: verbal, matemática, gráfica, plástica e corporal, para assim, criar e comunicar suas ideias e sua imaginação. Considera-se, de suma importância, que o aluno utilize diferentes fontes de informação e recursos tecnológicos, como instrumentos que o auxiliará a adquirir, registrar, criar e construir conhecimentos. Na Proposta Pedagógica (2011, p. 17) anuncia que dentre os objetivos do ensino fundamental, segundo a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – 9.394/96) a escola compromete-se a possibilitar ao aluno: “a compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade.”. A finalidade é de inseri-lo na era digital como protagonista e responsável na construção de seu conhecimento, ao transformar-se em um pesquisador reflexivo-crítico com seus colegas e professor. Relevante acrescentar que os professores durante a formação das 180 horas de trabalho efetivo, em caráter semipresencial, contaram com o suporte denominado E-Proinfo (Ambiente Virtual de Aprendizagem) onde tiveram acesso aos conteúdos da formação. No Módulo 5 Sistematização da Formação, uma das demandas é o esforço coletivo de todos os profissionais da escola na construção da proposta do PROGITEC (Projeto de Gestão Integrada de Tecnologias). Documento integrante do Projeto Político Pedagógico da escola. Destaque-se, dentre as finalidades expressas no documento do PROGITEC (2011, p.37-52) a meta de não apenas alfabetizar em Informática, mas o de preparar, com autonomia, os alunos às práticas sociais na era digital. Justifica-se, no documento, que o computador portátil, tem o potencial de expandir a capacidade intelectual de todos os envolvidos, pela pesquisa, diálogo, reflexão crítica e construção colaborativa de conhecimentos, a serviço da compreensão e resolução das problemáticas estudadas Assim, o aluno, ao utilizar o computador portátil, a serviço do desenvolvimento da capacidade do pensamento reflexivo e a representação do conhecimento, poderá aprender novas representações, e isso exige dele o esforço de mobilizar tudo o que aprendeu. Objetiva-se também, criar a cultura de redes de aprendizagens colaborativas, intra e inter instituições, para que, tanto os professores como os alunos, vivenciem o potencial que as redes têm ao democratizar o diálogo, a cooperação e colaboração solidária na reflexão crítica e construção de conhecimentos. O documento PROGITEC (2011, p. 42) assim registra as mudanças que o computador portátil pode contribuir no ensinar e aprender “enquanto tecnologia da inteligência pode transformar os modos de conhecer que se dão nos ambientes de produção de conhecimentos, na produção de novos espaços e nas práticas de construção coletiva.”. Para completar, o documento (PROGITEC, 2011, p. 41) anuncia o contexto de formação e uso do computador portátil. Informa que o sistema municipal garante o acesso aos re-

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cursos computacionais aos alunos da educação infantil e do ensino fundamental. Para os alunos do Ensino Fundamental II é oferecido um computador portátil por aluno para uso em sala de aula e lousa digital. Para os alunos do fundamental I e Infantil é oferecido o laboratório de informática. O documento informa que o “Programa Um Computador” trouxe as seguintes contribuições aos alunos:

O projeto UCA trouxe a mobilidade e o acesso irrestrito a todos os alunos da educação infantil ao 9° ano. Em especial, aos alunos que utilizavam o laboratório, possibilitou-se o uso sem atender a horários agendados. Esse é um ganho para toda a comunidade escolar, promover o acesso e a democratização às tecnologias. É relevante citar que a formação oferecida pelo MEC aos professores e gestores foi fundamental para subsidiar a utilização dos classmates, com fundamentação teórica e prática. (PROGITEC, 2011, p. 41). Almeida e Mendes evidenciam que a integração dos recursos do computador portátil às práticas do professor, pode potencializar:

A expressão da criatividade do aluno, dando prazer ao fazer, ao pensar, ao criar. Desperta a solidariedade que incita, talvez, em mostrar que “eu sei” ou “eu não sei e preciso de ajuda” e, com a colaboração de colegas e a orientação do professor, o aluno vai se moldando e se transformando em um processo de troca de experiências, em um fazer coletivo e harmonioso.

(ALMEIDA E MENDES, 2011, p. 58).

Em seguida, o documento da escola ainda expressa que o “Projeto Um Computador Por Aluno” proporciona:

Pela democratização do acesso e o uso das tecnologias, busca-se a integração entre educação, tecnologia e cidadania, visando à transformação social. O programa viabiliza subsídios para inclusão digital, promovendo junto à parceria do governo municipal, as transformações necessárias para um novo modelo de educação. Considerando as carências da comunidade escolar e do entorno da escola, a inclusão digital significa, primordialmente, melhorar as condições de vida desta comunidade escolar, sua inserção na sociedade e mercado de trabalho.

(PROGITEC, 2011, p. 41).

Na avaliação (PROPOSTA PEDAGÓGICA, 2011, p. 23-24) anual realizada, o relatório expressa que dentre os aspectos facilitadores ao processo de construção do conhecimento, a inclusão digital dos recursos do computador portátil e a lousa digital, contribuíram para desenvolver um excelente trabalho, melhorando a aprendizagem do ensino e a autoestima dos alunos. Dentre os aspectos negativos, que dificultaram o desenvolvimento das habili-

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dades de pesquisar em diferentes fontes de busca, elegeram a ausência de conexão. Relevante registrar o reconhecimento, por parte dos professores e gestores, sobre a importância do processo de formação permanente na escola. Elegem o horário e o espaço da HTPC (horário de trabalho pedagógico coletivo) como imprescindíveis para expor dúvidas, socializar experiências exitosas, pesquisar, dialogar, estudar com seus colegas e recriar sua caminhada. Importante acrescentar, que a Secretaria Municipal da Educação de Campo Limpo Paulista apresenta um calendário de cursos de aperfeiçoamento permanente, ao longo do ano letivo. Ainda, no documento do PROGITEC, extraímos os projetos integrados às TIC e desenvolvidos na unidade escolar, em 2010, e que permanecem como proposta para os próximos anos. No Projeto: “Virada Cultural”, tem-se como objetivo, durante dois dias, apresentar à comunidade todos os trabalhos construídos durante o ano letivo. A escola expressa no PROGITEC que “os alunos utilizam os recursos tecnológicos disponíveis em diversas etapas deste evento interdisciplinar e coletivo” (2011, p. 43). Extraímos ainda, no PROGITEC (2011, p.44-52), os seguintes projetos que integram o computador portátil à prática pedagógica: Meios de Comunicação; Escrita Coletiva; Cultura Corporal; Estudo das versões sobre a Independência; Lista de Frutas; Figuras Geométricas; Cartão de Natal; A Tecnologia a favor do Saber e O Projeto Jornal. Antes de finalizar, apresenta-se no documento, o anúncio da proposta do “Projeto Jornal”. Os alunos e professores da Unidade Escolar, durante o ano letivo de 2011, propõemse construir o Jornal Escolar, com a periodicidade bimestral em mídia impressa e na versão eletrônica. Dentre os objetivos tem-se a intenção promover a consciência social, cultural e política pela democratização e acesso das TIC. O documento assim expressa em sua apresentação:

Cativar o aluno para aprendizagem formal utilizando os recursos tecnológicos disponíveis. É o que motiva o planejamento deste projeto, na perspectiva interdisciplinar. O jornal escolar tem como estratégias didáticas estabelecer a mediação dialética entre os diferentes saberes específicos que o embasam.

(PROGITEC, 2011, p. 50).

Antes de passarmos para a análise do último documento, faz-se necessário sintetizar o momento de integração do computador portátil aos Projetos Escolares, na escola “Governador André Franco Montoro”. Após o processo de formação inicial e continuada da Formação Brasil, observou-se que o uso do computador portátil não se restringe apenas em facilitar um trabalho que poderia ser realizado sem ele. Há indícios de usos significativos na prática pedagógica e mudanças nas formas de ensinar e aprender, a partir da integração das TIC, pela concepção construcionista de Seymour Papert. Isto significa que a escola faz uso dos recursos disponíveis no computador portátil, a serviço da autonomia dos alunos

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em pesquisar, incluir-se no diálogo crítico entre sujeitos que em colaboração, pensam, aprendem e, em coautoria, constroem conhecimentos e continuam aprendendo. Por fim, analisaremos o 3° documento que retrata o “Projeto Político Pedagógico” da “Escola Estadual José Costa Soares”, do Estado de Tocantins. Importante informar, antes de caracterizá-la, que ela encontra-se no processo de formação inicial dos cinco módulos do curso Formação Brasil. A Escola José Costa Soares oferece os níveis e as modalidades de ensino do 1° ao 5° ano do Ensino Fundamental I e o Ensino Especial: Integração com sala de Recurso. O documento (2010, p. 4) relata que a proposta pedagógica da escola de Tempo Integral tem como princípio fundante o aluno ser o centro desse projeto. Assim, os conteúdos e os valores estarão a serviço da formação de sujeitos críticos, que na busca por intervir no mundo se posicionam sobre as questões sociais. A Unidade Escolar, desde o ano de 2002, promove de forma permanente a avaliação do Projeto Político Pedagógico. No documento (2010, p. 5) as questões que a subjazem são: “Que escola queremos construir? Que conhecimentos nossos alunos precisarão ter para, de fato, exercer sua cidadania, nesta sociedade tão cheia de conflitos?”. Para responder a essas questões, necessitamos caracterizar, brevemente, o contexto escolar, os sujeitos, as relações e o espaço que os recebe. Os alunos são de baixo poder aquisitivo, com pouco acesso aos bens materiais indispensáveis à vida humana. Outros fatores agravantes, para o baixo aproveitamento escolar são a pouca participação das famílias na educação dos filhos e, infelizmente, a violência doméstica. O bairro no qual a maioria dos alunos reside é rodeado por bares, o que facilita o convívio dos menores com bebidas alcoólicas e outras drogas proibidas. Há também a prostituição infantil, fator que tem contribuído para o elevado número de crianças grávidas. O período de funcionamento é integral, de manhã e à tarde, contando com 184 alunos. Dentre os recursos disponíveis na Unidade Escolar para desenvolver a integração das TIC ao currículo escolar há: 01 “kit” de computador para a biblioteca escolar, 03 vídeos cassetes, 04 televisores, 03 aparelhos de som e um inadequado para o uso, 02 retroprojetores dos quais apenas um se encontra em estado de funcionamento, 02 DVDs, 02 vídeos, 01 retro projetor, 01 laboratório de informática, com 15 computadores onde somente 09 estão em pleno funcionamento e 02 impressoras multifuncionais. O documento que retrata o Projeto Político Pedagógico (2010, p.3) da escola foi concebido como algo que está em constante reflexão e mudança. Coletivamente os servidores da Unidade Escolar desnudaram as problemáticas da escola, com o objetivo de propor ações à melhoria no ensinar e no aprender. No documento do “Projeto Político Pedagógico” a escola assume o compromisso de construir uma proposta pedagógica e administrativa, de forma que os alunos tenham competências para exercer a cidadania de forma plena no século XXI. “Para isso, a escola está estruturada em quatro pilares: o Aprender a Aprender, o Aprender a Fazer, o Aprender a Ser e o Aprender a Conviver.” (2010, p. 31).

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Dentro das finalidades pedagógicas, há o anúncio do compromisso de se aprender a partir de temas significativos à vida do aluno e, a partir deles, os conteúdos das disciplinas estarão a serviço da elucidação e construção das habilidades: de leitura, reflexão, interpretação, produção escrita e, do estimulo à intervenção crítica e consciente, na realidade presente. Assim, a perspectiva é de que o computador portátil possa estar a serviço de:

Acho que o uso de computadores no processo de ensino-aprendizagem, em lugar de reduzir, pode expandir a capacidade crítica e criativa de nossos meninos e meninas. Depende de quem usa a favor de quê e de quem e para quê. Afinal, precisamos superar o atraso cultural do Brasil em relação ao Primeiro Mundo.

(FREIRE, 2001. p. 98). O documento que retrata o “Projeto Político Pedagógico” (2010, p. 34-35) informa as diretrizes que norteiam a construção curricular. Como um dos eixos fundamentais sobre os quais a prática educativa deve se apoiar são os conhecimentos prévios dos alunos, na busca pela sua superação. Assim, a escola anuncia uma nova forma de pensar e fazer a educação, rompendo com o usual paradigma da transmissão de conhecimentos. A Unidade Escolar (2010, p.25-29) reitera que a participação é um valor de extrema relevância na escola. Consideram como um desafio a presença e atuação de pais e responsáveis no acompanhamento escolar de seus filhos e nas decisões da escola. Em relação à inclusão digital e social dos alunos, o documento que retrata o “Projeto Político Pedagógico” anuncia no item - Coordenação de Informática, à concepção de uso do “instrumento didático”, pois é assim que o computador portátil é chamado. Assim, a escola pronuncia:

O Colégio Estadual José Costa Soares utiliza os computadores do Laboratório de Informática na prática diária. É um instrumento para ser utilizado em determinados conteúdos programáticos, aumentando assim, as oportunidades de aprendizagem, mas não substitui de maneira alguma os demais instrumentos de ensino, completando assim, de forma substancial o nível de entendimento do conteúdo trabalhado, pois o objetivo é utilizar esse instrumento para estimular o aluno a criar situações de aprendizagem.

(PROJETO PEDAGÓGICO, 2010, p. 42)

Importante acrescentar que os professores das diferentes disciplinas, acompanham os alunos durante o uso do Laboratório de Informática, somando-se esforços para que os objetivos propostos sejam alcançados. No documento (2010, p. 43) destaca-se a contribuição dos profissionais da coordenação de informática, que além de prestarem serviços no Laboratório, têm a iniciativa de fomentar e auxiliar a apropriação do computador portátil às atividades e projetos desenvolvidos pelos outros professores.

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A Unidade Escolar, consciente dos desafios, oferece aos professores o suporte pedagógico com o objetivo de orientá-los sobre a elaboração de documentos, informações para as reuniões de pais, sobre o pensar e a elaboração do Projeto Político Pedagógico e do Projeto de Ensino e Aprendizagem, como o de garantir e apoiar os professores em suas necessidades pedagógicas e gerenciais. Relatamos, a seguir, os projetos (PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO, 2010, p. 19-21) que se comprometem partir das necessidades do contexto e dos saberes dos alunos para promover um ensino inovador: Projeto de Melhoria Em Busca do Saber; Cultura dos Bairros; Saúde Bucal; Ética e Cidadania. Há, também, dentro dos Programas Estaduais desenvolvidos pela escola (2010, p. 21) o Projeto “Um Computador Por Aluno” em que há o anúncio de oferecer aos alunos a oportunidade de “Conhecer as principais características e funções da informática e, assim, elevar a autoestima e, principalmente, o conhecimento.” Para completar a lista dos projetos estaduais têm-se: Viver de Cara Limpa uma Escolha; Se Liga; Tecendo a Paz e Evasão Zero. Diante dos anúncios extraídos no documento que retrata o “Projeto Político Pedagógico” (2010, p. 43), conclui-se que o uso do computador portátil, na escola “Estadual José Costa Soares”, está vinculado às práticas desenvolvidas no laboratório de informática da escola, com a finalidade de ampliar as possibilidades de aprendizagem de alguns conteúdos. Reitera-se o empenho dos profissionais da coordenação do laboratório de Informática, em auxiliar na apropriação dos recursos do computador portátil, de seus colegas e alunos. Cabe destacar, que em muitas escolas do Brasil, o professor coordenador de laboratório, por ser o professor na Unidade Escolar que conhece mais os recursos do computador portátil e ser um colega, torna-se o mediador, a ponte e também, o formador de seus colegas.

5. CONCLUSÕES

Diante de tal contexto, torna-se de extrema relevância sintetizar, as constatações sobre a integração das TIC às práticas educativas, nas escolas “Um Computador Por Aluno”. Verificou-se que as escolas do Projeto anunciam no documento que retrata o Projeto Político Pedagógico a relevância de se pensar, decidir, colocar em ação e avaliar as mudanças que se deseja implantar na escola, pelo permanente diálogo e participação entre os sujeitos que pertencem à escola. As escolas anunciam, no documento que retrata o Projeto Político Pedagógico, a intenção de integrar as novas tecnologias em Projetos Escolares vinculados aos temas e saberes, pertencentes às suas experiências de mundo. Assim, o objetivo é o de experimentar todas

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as potencialidades que as tecnologias podem oferecer, para proporcionar ao aluno um aprendizado contextualizado e significativo à sua vida. Almeida e Valente (2011, p. 29) ressaltam que o importante é ter uma visão crítica sobre a integração das TIC ao currículo, pois não são recursos neutros e interferem nos modos de se produzir cultura, relacionar e estar no mundo. No cerne do processo de mudanças, as escolas empenham-se em anunciar no documento que retrata o Projeto Político Pedagógico que há a finalidade de propiciar a inclusão digital pela democratização do acesso de seus profissionais e alunos, às TIC e, em especial, o computador portátil, como forma de prepará-los para os desafios da nova realidade social do século XXI. Relevante considerar o esforço que as escolas vêm desenvolvendo no sentido de melhorar a qualidade do ensino e da aprendizagem. O desafio reside em criar práticas educativas integradas às TIC e, em especial do computador portátil, que vão além da reprodução das práticas tradicionais existentes e impulsionar novas formas de ensinar e aprender. Dentre os desafios, das Escolas: “Professor Antonio C. F. Nobre” e “José Costa Soares”, para a expansão das possibilidades de uso e integração do computador portátil ao currículo escolar, estão relacionados à infraestrutura, ao número restrito de equipamentos para o uso dos alunos e a presença de suporte técnico atento às necessidades das escolas. Em relação à Escola “Governador André Franco Montoro”, destacamos a ausência de conexão à internet como um fator que inibiu à pesquisa e a vivencia em diferentes ambientes de aprendizagem. Sugerimos às escolas que convidem todos os sujeitos participantes e líderes da comunidade para reivindicarem, ao poder público, além de maiores investimentos aos aspectos elencados, à continuidade do processo de formação de professores, coordenadores e gestores. Cada escola, a partir das condições de acesso às novas tecnologias e da cultura digital de seus profissionais, está construindo sua caminhada de apropriação e uso das TIC. Constatou-se pela leitura e análise dos documentos, que o desafio de integrar as TIC ao currículo escolar foi iniciado e, cada escola encontra-se em seu momento e processo. Imprescindível às três escolas, a continuidade do processo de formação permanente dos professores e gestores, para que possam numa espiral ascendente, experimentar e aprofundar conhecimentos em relação à integração das TIC, ao currículo escolar. Importante acrescentar a necessidade das escolas Professor Antônio C. F. Nobre e Escola Estadual José Costa Soares, anunciarem, nos documentos que retratam o Projeto Político Pedagógico, um maior detalhamento das ações e das dificuldades, a partir da integração das TIC aos Projetos Escolares. Para finalizar, a autora Monica Thurler (2001) afirma que cada escola está num permanente ciclo de ação-reflexão-ação. Num movimento de eterna reconstrução que a projeta ao

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futuro. Dessa maneira, é um estabelecimento escolar em projeto.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, M.E.B; VALENTE, J.A. Tecnologias e currículo: trajetórias convergentes ou divergentes? São Paulo: Paulus, 2011. ALMEIDA. M.E.B; PRADO, M.E.B.B; (org.) O Computador portátil na escola: mudanças e desafios nos processos de ensino e aprendizagem. São Paulo: Avercamp, 2011, BOGDAN, R. C. Investigação Qualitativa em Educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Portugal: Porto, 1994. FREIRE, P. A Educação na Cidade. São Paulo: Cortez, 2001. PLANO DE GESTÃO. Projeto Pedagógico. EMEF Governador André Franco Montoro, 2011. PLANO DE GESTÃO. Proposta Pedagógica. Escola Estadual Professor Antonio Carlos Ferreira Nobre, 2007-2010. PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO. Escola Estadual José Costa Soares, 2010. THURLER, M. G. Inovar no Interior da Escola. Trad. Jeni Wolff. – Porto Alegre: Artmed Editora, 2001. VASCONCELOS, C. S. Coordenação do Trabalho Pedagógico: do Projeto Político Pedagógico ao cotidiano da sala de aula. São Paulo: Libertad Editora, 2009. UCA. Um Computador Por Aluno. Disponível em <http:// www.uca.gov.br Acesso em 10.10.2011.

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Coproducciones cinematográficas en España: análisis y catalogación* Coproduções cinematográficas na Espanha: análise e catalogação Film Co-Productions in Spain: analysis and Cataloging

Carmen Ciller Profesora Titular del área de Comunicación Audiovisual de la Universidad Carlos III de Madrid, Getafe, España. Email:mciller@hum.uc3m.es

Sagrario Beceiro Profesora del área de Comunicación Audiovisual de la Universidad Carlos III de Madrid, Getafe, España. Email:mbeceiro@hum.uc3m.es

Revista Eptic Online Vol.15 n.2 p.234-246 mai-ago 2013 Artigo recebido em 27 /02/2013 Publicado em 15/05/2013


Coproducciones cinematográficas en España : análisis y catalogación– Carme Ciller, Sangrario Beceiro

RESUMEN La complejidad y aumento progresivo del fenómeno de la coproducción internacional hace importante su estudio desde diferentes puntos de vista y plantea también la necesidad de contar con datos fiables y contrastables que, en ocasiones, son de difícil acceso para los investigadores. Es por ello que este trabajo contempla dos objetivos principales: analizar la situación actual de los sistemas de catalogación de la coproducción cinematográfica e indagar la conveniencia de la creación de una base de datos específica, un sistema de archivo y catalogación singular, para las coproducciones cinematográficas españolas con diferentes países de Latinoamérica y Europa. Este estudio también permitirá realizar un acercamiento, evidentemente sólo introductorio, para entender las circunstancias de producción y circulación internacional de las coproducciones cinematográficas.

PALABRAS CLAVE Coproducción cinematográfica; bases de datos; catalogación audiovisual; legislación audiovisual; producción audiovisual.

RESUMO O aumento da complexidade do fenômeno da co-produção de filmes envolve estudar a produção internacional de diferentes pontos de vista e também à necessidade de dados fiáveis e comparáveis, que às vezes não são facilmente acessíveis para os pesquisadores. Portanto, este artigo considera dois principais objetivos: analisar o estado actual dos sistemas de catalogação ea oportunidade de criação de um arquivo de banco de dados específico para catalogação do filme co-produzido com diferentes países da América Latina e Europa. Este estudo fará uma abordagem introdutória, obviamente, só para entender as circunstâncias da produção e circulação de coproduções internacionais de cinema. PALAVRAS-CHAVE Co-produção; bases de dados; catalogação audiovisual; legislação audiovisual, produção audiovisual

ABSTRACT: The complexity and gradual increase of the international co-production phenomenon makes its research from different points of views important, and also increases the need to have trustworthy and verifiable data that are sometimes hardly accessible to researchers. The aim of this work contemplates two main aspects: an analysis of the current situation of the cataloging system of film coproduction and an inquiry into the appropriateness of the creation of a specific database, a unique archiving and cataloging system, for the Spanish film co-productions with different Latin American and European countries. In addition, the study will allow for an approximation, albeit an introductory one, in order to understand the circumstances of production and international circulation of Spanish film co-productions. KEYWORDS film co-production; databases; audiovisual cataloging system; audiovisual legislation; audiovisual production.

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1. Definición de coproducción * Este trabajo ha sido realizado con la ayuda de los siguientes proyectos de investigación: “El cine y la televisión en la España de la post-Transición (19791992)”. Ministerio de Economía y Competitividad de España. Proyecto I+D+i (Ref. CSO2011-15708-E); y “Las coproducciones cinematográficas españolas: aspectos sociales y de documentación”. Comunidad de MadridUC3M. Ayuda a la consolidación de grupos de investigación” (Ref. 2011/00098/001).

1 Ver: http://www.mcu.es/cine/CE/ Industria/Coproducciones Internacionales.html [Consulta: 10/05/2012]

Hoy en día, la colaboración de productoras de distintos países en la producción de una película dota de mayor complejidad a la determinación de su nacionalidad y plantea a los investigadores diferentes cuestiones sobre qué se considera cine nacional o foráneo. En cualquier caso, la coproducción es una fórmula de colaboración en auge con importantes repercusiones en lo económico y en lo cultural, independientemente de que sea entendida como un proceso de transnacionalización o, por el contrario (y a veces de forma simultánea) como un proceso de “glocalización” –que no globalización- de apego a lo local, a lo identitario y a la multiculturalidad (POHL & TURSCHMANN, 2007, pp. 15-19). Es bastante habitual que la definición de coproducción cinematográfica tenga mucho que ver con los intereses de cada investigador (p.e. BORAU, 1998; MORENO, 2008; FUENTES, 2011) o los elementos concretos que se van a analizar: finalidad económica y de mercado, instrumento de cooperación y relaciones internacionales, estrategia competitiva frente al cine estadounidense, indagación creativa, componente de diversidad y multiculturalidad, etc. Pero desde el punto de vista de este trabajo nos interesa una definición que ponga de relieve las obligaciones que constituyen el marco normativo en el que se mueven las coproducciones. Por ello, utilizaremos la definición del Instituto de la Cinematografía y de las Artes Audiovisuales (ICAA) de España que entiende la coproducción internacional1 como una obra cinematográfica realizada en colaboración con empresas extranjeras, de acuerdo con las condiciones exigidas por la legislación específica en cada país y por los convenios internacionales existentes (acuerdos multilaterales y bilaterales). Esta fórmula de cooperación legal a la que se refiere el ICAA permite que la película coproducida obtenga el certificado de nacionalidad en todos los países coproductores, acceda a todo tipo de ayudas a la producción, distribución y exhibición cinematográfica en las mismas condiciones que el resto de películas nativas y compute como cuota de pantalla en aquellos países en los que exista este mecanismo de protección. Por otro lado, los Convenios de coproducción cinematográfica son ratificados por dos o más Estados con el fin de alcanzar varios objetivos entre los que figuran, evidentemente, estimular el desarrollo de la industria cinematográfica de los estados implicados, armonizar diferentes marcos legislativos y políticas cinematográficas y contribuir al crecimiento de intercambios económicos y culturales. Tabla 01. ESPAÑA: CONVENIOS MULTILATERALES SOBRE COPRODUCCIÓN CINEMATOGRÁFICA Convenio de Integración Cinematográfica Iberoamericana Caracas, 11 de noviembre de 1989.

Acuerdo Latinoamericano de Coproducción Cinematográfica Caracas, 11 de noviembre de 1989.

Convenio Europeo sobre Coproducción Cinematográfica Estrasburgo, 2 de octubre de 1992.

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España ha sancionado dos Convenios multilaterales fundamentales: el Convenio Europeo sobre Coproducción Cinematográfica, ratificado por España en 1996; y el Convenio de Integración Cinematográfica Iberoamericana (que enlaza con el Acuerdo Latinoamericano de Coproducción Cinematográfica), ratificado en 1992. Ambos Convenios se aplican en las coproducciones multilaterales pero también en proyectos bilaterales en el caso de que no exista un acuerdo específico entre los Estados que participan en la coproducción. Además, dichos convenios multilaterales se aplicarán de forma subsidiaria a aquellos aspectos no recogidos en los convenios firmados entre dos países, de forma que el contenido de estos últimos no puede contradecir, en ningún caso, sus principales cláusulas. Tabla 02. ESPAÑA: CONVENIOS BILATERALES COPRODUCCIÓN CINEMATOGRÁFICA (Año 2011) Alemania (11/02/2000) Argentina (28/08/1969) Brasil (02 /10/1963) Canadá (11/07/1991) Chile (03/09/2003) Cuba (30/03/1988)

Marruecos (27/04/1998) México (30/01/2004) Nueva Zelanda (16/01/2008) Portugal (08/11/1989) Puerto Rico (27/05/2003) Rusia (26/10/1990)

Francia (25/03/1988) Irlanda (26/12/2008) Italia (10/09/1997)

Túnez (02/11/1971) Venezuela (20/06/1996)

Fuente: Elaboración propia de datos procedentes del ICAA

En cuanto a los Convenios bilaterales, la Tabla 02 pone de manifiesto que la mayor parte de los acuerdos para la coproducción cinematográfica con España se circunscriben al entorno europeo y latinoamericano. Los acuerdos más antiguos son los firmados en el entorno latinoamericano con Brasil (canje de notas con valor de convenio de coproducción en 1963) y Argentina (convenio de relaciones cinematográficas firmado en 1969). Pero la antigüedad de los acuerdos no implica los mismos resultados y el impacto de estos convenios es radicalmente diferente: la coproducción cinematográfica hispano-argentina, tal y como podemos ver en la Tabla 03, es de 144 películas estrenadas en España entre los años 1978-2009 y en el caso de las coproducciones hispano-brasileñas en el mismo periodo es tan sólo de nueve filmes. Parece evidente que la existencia física de un convenio entre países no aporta más colaboración en la producción cinematográfica conjunta si el resto de condiciones sociales y culturales o las relaciones económicas y productivas que relacionan a ambos entornos no acompañan este proceso. Por otro lado y hasta el año 2012, España apenas ha firmado convenios con países de África (sólo Túnez o Marruecos) u Oceanía (sólo Nueva Zelanda) y no ha suscrito ningún acuerdo en el continente asiático, aunque es posible que próximamente se añada algún convenio nuevo con este continente. Las razones más plausibles de estas evidentes carencias podrían ser, al menos en una primera aproximación, la clara ausencia de nexos culturales, la diferencia de modelos económicos e industriales y la acusada discrepancia de las rutinas productivas cinematográficas existente. Los datos evidencian que la coproducción cinematográfica es una actividad compleja que, en muchas ocasiones, se concreta en una asociación / contribución por razones de afinidad geográfica e histórica o de acceso singular a recursos económicos y/o tecnológicos, y en un

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2 Ver: http://cineuropa.org /2011/dd.aspx?t=dossier&l= es&tid=1364&did=144475 15/05/2012]

proceso creativo no falto de conflictos y readaptaciones que lo condicionan continuamente[Consulta: (MORENO, 2008, p. 96). Pero también es evidente que no sólo es cuestión de tradición y cultura sino también de peso industrial y mercantil. Así, países europeos con un mercado cinematográfico de mayor tamaño y peso económico que el español, como por ejemplo el francés, han firmado ya acuerdos bilaterales más allá de las relaciones históricas que les unen con determinados países de Asia, África y Oceanía. En otros países europeos, como por ejemplo Reino Unido, la situación es parecida a la española e incluso su capacidad para firmar acuerdos con países (fuera de su entorno afín) es todavía más limitado2.

2. Datos sobre coproducciones La recopilación de datos, la búsqueda de fuentes, es decir, el acceso a información actualizada y fiable se hace vital para los investigadores que hoy en día analizan el peso de las coproducciones en el sector audiovisual y, concretamente, en el cinematográfico. En la actualidad las referencias y bases de datos son numerosas, pero parciales e incompletas, y de naturaleza muy diversa. Como veremos a continuación, esta diversidad dificulta claramente el análisis y el contraste entre fuentes. Si analizamos la información con la que contamos y qué carencias hemos observado en las bases de datos de referencia consultadas, hemos de plantearnos una dimensión nacional y regional. En la dimensión nacional registramos la principal base de datos española, realizada por el Instituto de la Cinematografía y de las Artes Audiovisuales, que se ha confirmado como una de las fuentes más fiables para recopilar información en un primer acercamiento. Los resultados y tablas obtenidas han sido contrastadas directamente con otras bases de datos y fuentes transnacionales. Esta comparación ha puesto de manifiesto las diferencias entre fuentes según el origen y la finalidad para la que fueron creados los datos que recopilan. Una vez realizado este trabajo inicial, en el que se constata la dificultad de unificar los datos en una base de datos específica sobre coproducciones, decidimos contrastar esta realidad con referencias y bases de datos de otros países europeos y latinoamericanos, allí donde disponíamos de las mismas. Esta última fase se encuentra todavía en proceso puesto que se han ido detectando limitaciones acusadas, entre ellas, el difícil acceso a los contenidos o fuentes en algunos casos, y problemas diversos sobre su conceptualización conjunta o unificada en otros.

Base de datos del ICAA de España La base de datos de películas calificadas para su estreno en salas cinematográficas españolas del Instituto de la Cinematografía y de las Artes audiovisuales (ICAA) de España es la que nos ofrece la información más completa. Recoge datos sobre las coproducciones españolas pero no está pensada como una base de datos específica por lo que tiene algunas carencias que comentaremos a continuación.

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Tabla 03. COPRODUCCIONES ESPAÑA- LATINOAMÉRICA 1978-2009 (Muestra de países participantes en el programa Ibermedia) Argentina 145 Bolivia 2 Brasil 9 Colombia 18 Costa Rica 0 Cuba 52 Chile 21 Ecuador 2 Guatemala 0 México 110 Panamá 2 Perú 12 Puerto Rico 7 República Dominicana 1 Uruguay 11 Venezuela 27 Fuente: Base de datos ICAA, películas estrenadas en salas cinematográficas españolas

Tabla 04. COPRODUCCIONES ESPAÑA- EUROPA 1978-2009 (Muestra de países: EU15) Alemania Austria Bélgica Dinamarca Finlandia Francia Grecia Irlanda Italia Luxemburgo Países Bajos / Holanda Portugal Reino Unido Suecia

75 6 30 3 1 282 6 8 205 7 2/ 15 64 103 2

Fuente: Base de datos ICAA, películas estrenadas en salas cinematográficas españolas

Algunas cuestiones a tener en cuenta sobre los datos recogidos de la base de datos oficial del ICAA y que justifican la necesidad de la creación de una base de datos específica sobre coproducciones son los siguientes: Aún siendo la base de datos más fiable y completa disponible no constituye una fuente especializada en coproducciones por lo que éstas no aparecen diferenciadas del resto de películas. Las coproducciones deben ser aisladas en una búsqueda combinada de países,

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tal y como nos especifica la herramienta. Ej. España-Brasil. La base de datos del ICAA se refiere a películas estrenadas y no a las coproducciones que se hayan podido realizar y no hayan llegado a las salas cinematográficas españolas. Un largometraje coproducido por España pero que por la razón que sea no haya sido estrenado en España, no aparece reflejado en esta base de datos. Algunas de las coproducciones son multipartitas por lo que los datos ofrecidos nos llevan, en algunos casos, a cierta confusión que sólo puede solucionarse observando cada caso de forma individual. Ej. Una coproducción España-Argentina-Brasil aparece habitualmente computada dos veces: como coproducción con Argentina y como coproducción con Brasil.

3 Ley de Protección del Cine español, del 28 de diciembre de 1983 (BOE del 12 de enero de 1984)

En cualquier caso y aún con las limitaciones que comentamos en los anteriores párrafos, si resumimos los datos que aparecen en la base de datos del ICAA respecto a los cuatro principales coproductores cinematográficos con España en las últimas tres décadas: Argentina y México en Latinoamérica y Francia e Italia en Europa (Ver Gráfico 01 y Tabla 05) podemos intuir la evolución de las coproducciones cinematográficas españolas en las últimas décadas y observar singularidades, pero también ciertas tendencias comunes. Por ejemplo, podemos vislumbrar que el número de coproducciones desciende claramente en la década de los ochenta del pasado siglo XX, sobre todo a partir del año 1984 tras la promulgación en España de la llamada “Ley Miró”3; esta descenso es muy acusado en el caso de las coproducciones hispano-italianas ya que un gran número de esas coproducciones o colaboraciones eran películas clasificadas en la categoría “S” o eróticas suaves, que no podían beneficiarse de las ayudas a la cinematografía que establecía dicha Ley Miró y, por lo tanto, provocaron durante años un claro desinterés por coproducir entre ambos países. Otras tendencias que se puede observar de forma bastante visual en el Gráfico 01 es que países como México mantenían estructuras de coproducción más afines en los años ochenta del pasado siglo y el interés ha ido descendiendo; en cambio, otros países tendrán que esperar a la década de los 90 del pasado siglo, incluso a finales de esa década para comenzar a tener una estructura de coproducción con España más fluida. Este último caso es el de, por ejemplo, Argentina cuya colaboración en proyectos de coproducción con España se verá impulsada por la aparición y desarrollo del Programa Ibermedia, programa creado en el año 1997, dependiente de la Conferencia de Autoridades Cinematográficas de Iberoamérica (CACI) y orientado a estimular la coproducción entre países de Iberoamérica.

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Fuente: Base de datos ICAA, películas estrenadas en salas cinematográficas españolas

Bases de datos internacionales / transnacionales

Pero si realmente se quiere tener una visión completa sobre las coproducciones realizadas (estrenadas o no en salas cinematográficas españolas) es necesario cruzar los datos de la base de datos del ICAA con otras fuentes y bases de datos. En el caso de Latinoamérica existe la posibilidad de cruzar los datos con la base de datos de IBERMEDIA y con los datos de la Fundación del Nuevo Cine Latinoamericano que mantiene una base de datos sobre la distribución de películas en el entorno latinoamericano. En el caso de Europa con la base de datos de LUMIÈRE de la Unión Europea y con los datos sobre la financiación de coproducciones del Fondo Eurimages del Consejo de Europa. La Base de datos de IBERMEDIA (www.programaibermedia.com) recoge los datos de las coproducciones financiadas por este organismo desde 1998. En la actualidad su página web se encuentra en proceso de remodelación por lo que sólo se puede tener acceso a los datos hasta el año 2007. En cuanto a la base de datos de la Fundación del Nuevo Cine latinoamericano (www.cinelatinoamericano.org) no permite búsquedas de coproducciones y sólo recoge datos de películas de una docena de países siempre y cuando introduzcas la distribuidora y los países en los que la película haya sido estrenada, dificultad por la que se ha decidido desestimar esta fuente.

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Tabla 05. COPRODUCCIONES ESPAÑA/ LATINOAMERICA-EUROPA 1978-2009 (Muestra de países: Argentina-México || Francia-Italia)

Argentina México 1978 0 7 1979 2 7 1980 0 9 1981 0 13 1982 0 1 1983 3 7 1984 1 1 1985 0 0 1986 0 1 1987 0 2 1988 0 1 1989 0 0 1990 1 1 1991 1 2 1992 2 0 1993 1 1 1994 0 1 1995 4 0 1996 2 3 1997 4 1 1998 3 2 1999 8 5 2000 6 3 2001 10 6 2002 13 8 2003 7 3 2004 9 1 2005 12 2 2006 9 5 2007 19 7 2008 16 6 2009 12 4

Francia 9 7 7 10 2 5 3 2 2 1 3 4 2 13 9 11 2 10 13 15 13 21 15 11 12 14 15 11 10 8 9 13

Italia 12 20 18 9 7 7 0 4 3 3 3 2 3 6 1 6 0 4 6 6 0 4 5 6 10 9 10 10 5 8 5 10

Fuente: Base de datos ICAA, películas estrenadas en salas cinematográficas españolas

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La base de datos LUMIÈRE del Observatorio Europeo del Audiovisual (http://lumiere.obs. coe.int) en colaboración con el programa MEDIA ofrece los datos disponibles sobre las películas europeas estrenadas en salas cinematográficas de Europa desde 1996. Su funcionamiento es similar a la base de datos del ICAA pero los items incluidos son muy diversos en relación a los distintos países, debido a la necesidad de cruzar diferentes tradiciones nacionales/estatales de contabilización de los datos. Además, esta base de datos está todavía en fase de desarrollo y, aún siendo una fuente considerable y detallada, todavía falta la inclusión de bastante información. Eurimages (www.coe.int/t/dg4/eurimages) es el fondo del Consejo de Europa destinado para la coproducción, distribución y exhibición de los trabajos cinematográficos europeos. Su página contiene datos muy sintéticos de las coproducciones europeas que han sido cofinanciadas por Eurimages desde 1989. El principal problema de la combinación de datos que podemos realizar a través de las bases de datos del ICAA, IBERMEDIA, LUMIERE y Eurimages consiste en que su naturaleza y justificación resultan muy diferentes y, en consecuencia, dispersos y poco coherentes con la investigación en el campo de las coproducciones. Entre En el periodo temporal: la base de datos del ICAA abarca cualquier periodo que deseemos investigar (desde el año 1897 hasta la actualidad) pero Ibermedia sólo contiene datos desde 1998 (año de su primera convocatoria), Lumiere tiene diferentes límites temporales según el país y Eurimages nos ofrece , al menos por el momento, los datos de coproducciones co-financiadas desde 1989. En la tipología de datos registrados: algunas fuentes listan las coproducciones según el año de producción y otras según el año de exhibición, o por ejemplo, en los últimos años los listados de Ibermedia no recogen más datos que nacionalidad de la productora principal y el título del largometraje. Otro problema secundario son los fallos de los datos obtenidos en estas fuentes y bases de datos lo que implica que, en algún caso aislado, llegue a haber discrepancia sobre la nacionalidad/es de un largometraje en cuestión, según tengamos en cuenta una u otra fuente. También podemos observar en la Tabla 04 que la búsqueda en la base de datos del ICAA arroja dos resultados diferentes según nuestro término de búsqueda sea Holanda o Países Bajos.

C) Bases de datos nacionales Para concluir con la búsqueda de datos sobre coproducciones, hemos abordado también los datos y las bases de datos de ámbito nacional o estatal y hemos llegado a las siguientes conclusiones: La existencia y/o disponibilidad de datos sobre coproducciones cinematográficas resulta muy variable según la tradición estadística e investigadora de cada país, tamaño de su

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mercado e industria cinematográfica e incluso, situación político-geográfica. Hay una clara distinción entre el entorno europeo y el latinoamericano. En el primero abundan las bases de datos accesibles sobre cine a través de la web (aunque no específicas sobre coproducciones) y, en el segundo, los datos accesibles son mucho más limitados y se circunscriben a unos cuantos países (en principio, los de mayor dimensión geográfica). En una primera etapa de trabajo y para evitar la sobrecarga y solapamiento de la información, sólo han sido cruzados aquellos datos con países que son los principales coproductores con España. En Europa: Francia, Alemania, Italia, Reino Unido y Portugal. En Latinoamérica: Argentina y México. En Francia los datos del CNC (www.cnc-aff.fr) y de Unifrance (http://es.unifrance.org); en Alemania del German Films Service (www.german-films.de); en Italia de ANICA (www.anica.it); en Reino Unido del BritFilms (www.britfilms.com); en Portugal del ICA (www.ica-ip.pt); en Argentina del INCAA (www.incaa.gov.ar); y en México del IMC (www.imcine.gob.mx) El principal problema resultante durante el cruce de los datos de diferentes países está asociado a la discordancia de las fuentes en la información sobre algunos largometrajes, que aparecen como coproducción en una fuente y en otra no, con distintos porcentajes de participación en la producción, etc. Algunas de estas discrepancias tienen sencilla solución pero otras ponen de relieve el trabajo que aún queda por hacer en cuanto a verificación de los datos y la necesidad de incorporar un análisis de la legislación sobre coproducciones aplicable en cada uno de los países considerados, ya que esta puede ser la clave de ciertas divergencias (requisitos para que un país reconozca un film como coproducción, la consideración de las coproducciones con participación minoritaria, etc.).

4. Aportaciones La coproducción internacional es un entorno complejo y los datos tienen, indudablemente, una dimensión difícil de abarcar ya que la profusión de fuentes y sus diferencias, así como la necesidad de conocer en detalle la historia política y legislativa de cada país a la hora de analizar los datos obtenidos, orienta el trabajo de futuras investigaciones hacia dos prioridades que se han detectado como básicas para obtener avances cualitativos: el diseño final de una base de datos específica sobre coproducciones y la creación de un archivo sobre legislación y bibliografía en el entorno europeo y latinoamericano. Una base de datos específica sobre coproducciones diseñada con ese fin tendría como propósito permitir el acceso a un conjunto de datos básicos para la investigación sobre el peso de las coproducciones en la actualidad, su evolución histórica, resultados, etc. Entre las principales aportaciones destacaríamos las siguientes: Crear una base de datos especializada en coproducciones (es ya algo singular). Facilitar a investigadores la búsqueda de los datos de cualquier coproducción realizada en las últimas décadas.

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Relacionar dos entornos geopolíticos: Latinoamérica y Europa. Conocer la circulación de los largometrajes coproducidos en el entorno europeo y latinoamericano (capacidad para estrenar en los países co-productores y/o terceros países). Discernir aportaciones recibidas/resultados efectivos de diferentes programas orientados al fomento a la coproducción (Ibermedia, Eurimages y otros programas y/o subvenciones estatales). Por su parte, la creación de un archivo recopilatorio, específico sobre legislación, fuentes on line y bibliografía académica relacionada con las coproducciones en el entorno europeo y latinoamericano tendría como propósito facilitar la búsqueda de legislación, datos y fuentes sobre coproducciones a los investigadores. Gracias a la creación de estas herramientas: un archivo recopilatorio sobre legislación y bibliografía y una base de datos específica sobre coproducciones podríamos ayudar a la exploración de este modelo emergente de colaboración entre distintos países y tradiciones industriales, sociales y culturales y, además, singularizar multitud de datos sobre los resultados y evolución de las coproducciones españolas. Tal y como se ha comentado, los investigadores podrían entresacar información detallada, por ejemplo, sobre cuántos de estos largometrajes se estrenan en terceros países no coproductores; si los programas de ayuda como Ibermedia o Euroimages tienen el impacto esperado inicialmente y posibilitan realmente una mayor penetración de las coproducciones cinematográficas en el mercado internacional; o si la evolución creciente del número de coproducciones españolas es uniforme o, por el contrario, se produce de forma distinta según el país y el continente. Todo ello información necesaria para intuir o indagar sobre la evolución futura de la coproducción cinematográfica en España.

Referencias

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cation/expert/coproduccion_aspectos-juridicos.pdf.en [consulta: 20/06/2012] FUERTES, M. “Marco teórico para el análisis de una política pública cinematográfica en los nuevos espacio del siglo XXI”. Revista Chasqui. Revista Latinoamericana de comunicación, vol. 113. Ed. Ciespal. Quito, 2011. FUERTES, M. y MASTRINI, G. (eds). Industria cinematográfica latinoamericana. políticas públicas y su impacto en un mercado digital. La Crujía Ediciones y AECID. Buenos Aires, 2011. MORENO, J. M. “Diversidad audiovisual e integración cultural: analizando el programa IBERMEDIA”. Revista Comunicación y Sociedad, nº 9. Ed. Universidad de Guadalajara. México D.F., 2008. PALACIO, M. “Elogio posmoderno de las coproducciones” en Los límites de la frontera: la coproducción en el cine español. Cuadernos de la Academia nº 5, Madrid, 1999. POHL, B. & TURSCHMANN, J. (eds.). Miradas glocales: cine español en el cambio de milenio. Ed. Iberoamericana. Madrid, 2007.

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Resenhas

A cidadania como estratégia de mercado nas produções televisivas da Rede Globo Thays Helena Silva Teixeira Jornalista. Mestranda no Programa de pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal do Piauí. Membro do Grupo de Pesquisa em Comunicação, Economia Política e Diversidade (COMUM). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Email: thays.teixeira1@hotmail.com

Os conteúdos veiculados pelos meios de comunicação estão imbricados no cotidiano social. A mídia elabora e reelabora pontos de vista fundamentados em função de seus interesses e estratégias. Tal comportamento evidencia o poder que os sistemas midiáticos possuem, além de reforçar uma hegemonia existente. Nesse sentido, a mídia sugere modelos comportamentais, reforçando o aspecto consumidor dos atores sociais, mas não somente este. O indivíduo também é ensinado a ser cidadão. Que cidadania é essa? Partindo de um questionamento similar o livro, Rede Globo: Mercado ou Cidadania? aponta como o maior conglomerado de comunicação brasileiro atua no mercado e em que medida atende a efervescente demanda pela ação cidadã, colocando a cidadania em pauta. Partindo dessa premissa a autora questiona como essa cidadania está distribuída pela programação da emissora, utilizada em um contexto estratégico. A obra analisa como a temática cidadania está dissolvida e apresentada na grade de programação televisa da Rede Globo de Televisão, observando como acontece a seleção dos temas e se existe uma adequação aos gêneros dos programas, e, ainda, a relação com as várias agendas. Para tal, recorre-se a variedades de fontes: conteúdo veiculado, proposições teóricas, entrevistas e visitas in loco.

Revista Eptic Online Vol.15 n.2 p.247-250 Recebido em 25/02/2013 Publicado em 15/05/2013


A cidadania como estratégia de mercado nas produções televisivas - Thays Helena S. Teixeira

Processos metodológicos Metodologicamente o livro aborda a corrente do materialismo histórico dialético marxiano. Por compreender que as relações sociais evidenciadas entre o mercado, os indivíduos e as ações de cidadania estão versadas sobre o patamar da contradição. Havendo uma materialidade nessas relações, construídas ao longo do processo de institucionalização histórico. Trata-se de uma pesquisa analítico-descritiva “uma vez que os fenômenos subjacentes ao objeto de estudo e aos objetivos enunciados são observados, registrados, analisados e correlacionados” (p.33). O estudo trás como suporte teórico fundamental a Economia Política da Comunicação (EPC), que estuda as relações de poder nas indústrias de comunicação, observando os processos de produção, distribuição e consumo de bens comunicacionais. Assim, a EPC serve de apoio para compreender como os elementos sociais são absorvidos como estratégia de mercado pelas empresas de comunicação, mais especificamente na obra, a Rede Globo. Tais estratégias se apresentam de várias formas, principalmente usando como catalisadores o marketing e o merchandising sociais, na relação intrínseca entre cidadania X televisão. Jacqueline Dourado justifica que essa escolha se baseia no fato de que a Globo recorre às diferenciadas estratégias sob essa égide, para garantir liderança no país, e não perder público em face de concorrência crescente. Ou seja, a economia do sistema capitalista contemporâneo reproduzindo suas facetas obscuras, no produtos culturais, usando de estratégias pouco evidentes para isso.

Grade transversal Baseado em dados da página eletrônica da Rede Globo e na classificação de gêneros proposta J.C. Aronchi de Souza, a autora coletou sua amostra analítica. Na formação da amostra, foram considerados os conteúdos veiculados entre os dias 2 e 8 de dezembro de 2007, coletados em horários diversificados entre as 7 da manhã e a madrugada, nomeada de grade transversal. “Esta se fundamenta em novo olhar, que contradiz o princípio da horizontalidade e verticalidade da TV aberta, pautando a audiência e sedimentando hábitos” (p.34). O conceito de grade transversal é uma contribuição metodológica inédita e se configura como ferramenta analítica inovadora quando se considera conteúdos televisivos, e estudos da comunicação. Além da contribuição conceitual e metodológica, o livro aborda as temáticas de cidadania distribuídas por toda a grade transversal, onde são denominadas de “manchas de cidadania”. Mais precisamente são os conteúdos cidadãos, a citar: vinhetas, frases, imagens, diálogos, editoriais, cenas, participações populares, e quaisquer programas, que de alguma maneira, explicita ou não, utilizem do discurso cidadão.

Estrutura do livro Rede Globo: Mercado ou cidadania? está dividido em seis capítulos. De forma que a discussão sobre a problemática da cidadania e seus usos como estratégias de mercado possam ser evidenciados ao longo de um processo histórico, desembocando em análise minuciosa da temática na grade transversal da emissora.

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A cidadania como estratégia de mercado nas produções televisivas - Thays Helena S. Teixeira

O primeiro capítulo é denominado Eis o tema: eis os ritos, que retrata os processamentos teóricos e metodológicos utilizados na construção da pesquisa. Lembra que o livro é resultado da tese de doutoramento da autora que tem por nome Estudo das estratégias da Rede Globo de Televisão na esfera da cidadania. Descreve e discute o conceito de EPC e seu relacionamento com a indústria cultural, principalmente na televisão. Mostrando como a Rede Globo se consolida como um império midiático e usando desses artifícios produz conteúdos hegemônicos e os reproduz na consolidação de práticas de mercados neoliberais, principalmente quando do uso das ações cidadãs. O capitulo dois é intitulado Cidadania: direito a ter direitos, aponta o conceito de cidadania e sua construção histórica. Delineia a transformação da cidadania até o fim do século XIX e início do século XX. Partindo da premissa dos direitos civis e políticos, enfatizando os direitos sociais nestes séculos. O capítulo aprofunda ainda as temáticas dos espaços públicos e privados e da relação destes com a questão da cidadania. Há ainda inserção do conceito de Habermas de espaço público midiático, para justificar junto com os demais conceitos debatidos anteriormente, as categorias analíticas identificadas na grade de programação da Rede Globo. O capítulo tem uma evidente inspiração na estrutura de escrita de Mudança estrutural da esfera pública de Habermas. O capítulo três Cidadania: direito a ter diretos é continuidade do anterior. Constitui-se em uma análise do espaço público midiático, sobre as bases do marketing e merchandising. Observa-se nesse contexto o papel das indústrias culturais e a inter-relação cidadania e comunicação. O capítulo enfatiza a trajetória da emissora em território nacional e as estratégias comunicacionais e de mercado utilizadas para a garantia do status quo. Observa ainda as atuações empresariais da Rede Globo para a manutenção da sua supremacia econômica frente à concorrência. Para tanto discute, o marketing e o merchandising reelaborado na programação da Rede Globo e sua distribuição disfarçada na programação. Reforça a compreensão de que as lógicas de mercado e mídia regem a publicidade na contemporaneidade, tornando esse cenário o espaço para o debate público, ou palco. Esse debate é apenas uma maneira disfarçada de controle das audiências. Essa característica é resultado da consolidação da fase monopolista do capitalismo, que criou indústrias culturais fortíssimas e enraizadas socialmente ao ponto que interferem na cidadania e atuam na educação dos atores sociais. O capítulo trás ainda a história socioeconômica da Rede Globo, onde elenca as suas estratégias de comunicação no mercado. Tais aspectos colocam a emissora na Fase da Multiplicidade da Oferta, onde uma variedade de produtos são oferecidos na tentativa de expandir mercados e atender a uma variada segmentação de público. O capítulo quatro é denominado O social como estratégia de mercado, aponta as estratégias de marketing e merchandising sociais no aparato da TV, sob a ótica da Economia Política da Comunicação. O espaço discute com afinco os novos comportamentos das empresas de comunicação, mais especificamente a Rede Globo, diante das mudanças estruturais vivenciadas pelas sociedades contemporâneas. Dentre estas mudanças estão: as transformações tecnológicas com o advento da digitalização e da internet e novos equipamentos de recepção.

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A cidadania como estratégia de mercado nas produções televisivas - Thays Helena S. Teixeira

O capítulo discute de que maneira essas modificações ampliam os espaços de atuação da referida rede de televisão, e como isso remodela o mercado da comunicação televisiva, principalmente, no espaço social. Desse modo, a perspectiva cidadã é entendida como uma necessidade de mercado e por isso está imbricada na programação, em manchas, no sentido de se tornar uma banalidade e não uma estratégia de mercado. O capítulo cinco é intitulado Rede Globo de Televisão: grade transversal da programação e cidadania. Constituído pela análise propriamente dita que está versada primeiramente com explicações sobre o método dialético e o surgimento da proposta metodológica da grade transversal, que questiona a horizontalidade da programação de TV aberta. Uma visão minuciosamente descrita e crítica sobre como a questão cidadania é inferida na programação da maior emissora de televisão brasileira e como ela é uma estratégia transversalizada nos mais variados programas e formatos. O capítulo seis Finalizando: resposta nem simples nem unívoca indica que o livro não apresenta uma conclusão específica, devido à complexidade do tema estudado e nas suas múltiplas facetas. No entanto a autora aponta perspectivas que norteiam possíveis respostas, afirmando que a “Rede Globo visa fortalecer a imagem pública de uma TV socialmente responsável, cuja programação serve como espaço de formação e de educação para a audiência” (p.332), deixando claro que esse é um esforço para fidelizar seu público e garantir uma expansão da audiência. Afirma ainda que as ações de marketing e merchandising social desenvolvido pela Rede Globo corroboram com o modelo do sistema capitalista neoliberal. Mesmo com essas ressalvas, a compreensão de que a Globo se constitui como espaço público é definido claramente. Mesmo com interesses particulares, ela promove o exercício da cidadania, ressaltando que isso é feito em situação precária e adversa.

Rede Globo: mercado ou cidadania? É uma obra densa que prioriza por uma análise minuciosa para não incorrer na arrogância de que é possível afirmar certezas no campo da comunicação, principalmente quando diz respeito a ações e estratégias de mercado. Contribuição metodológica do livro, como dito anteriormente é a grande contribuição da pesquisa descrita, no entanto não se restringe a isso. A proposição analítica de cidadania sendo elemento incrustado nas indústrias de comunicação como estratégia de mercado, e mesmo assim resultado em espaço público de debate é outra proposição positiva para futuros estudos sobre televisão no Brasil. Leitura mais que obrigatória para pesquisadores e amantes da televisão.

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