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Expediente

Revista eletrônica quadrimestral vinculada ao Observatório de Economia e Comunicação (OBSCOM) e ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Sergipe Volume 16, número 2, mai.-ago. 2014 ISSN 1518-2487 OBSCOM - UFS Coordenação Prof. Dr. César Ricardo Siqueira Bolaño Profa. Dra. Verlane Aragão Santos PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO - UFS Coordenação Prof. Dr. Carlos Eduardo Franciscato Prof. Dr. César Ricardo Siqueira Bolaño REVISTA EPTIC ONLINE Diretor Prof. Dr. César Ricardo Siqueira Bolaño (UFS - Brasil) Editor Geral Prof. Dr. Ruy Sardinha Lopes (USP-Brasil) Editores Adjuntos Profª Drª Anita Simis (UNESP-Brasil) Prof. Dr. Francisco Sierra (Un. Sevilla – España) Projeto Gráfico Rachel Ferrari e Ruy Sardinha Apoio Técnico Joanne Mota (UFS – Brasil) Elizabeth Azevedo Souza (UFS – Brasil) Conselho Editorial Prof. Dr. Abraham Benzaquen Sicso, FUNDAJ, Brasil Prof. Dr. Alain Rallet, Université Paris-Dauphine, França Prof. Dr. Alain Herscovici, UFES, Brasil Prof. Dr. Césare Galvan, FUNDAJ, Brasil Profª. Drª Delia Crovi Druetta, UNAM, México Prof. Dr. Dênis Moraes, UFF, Brasil Prof. Dr. Diego Portales, Universidade del Chile, Chile Prof. Dr. Domenique Leroy, Université Picardie, França Prof. Dr. Edgard Rebouças, UFP, Brasil Prof. Dr. Enrique Bustamante, UCM, Espanha Prof. Dr. Enrique Sánchez, Universidad de Guanajuato, México Prof. Dr. Francisco Rui Cádima, UNL, Portugal Prof. Dr. Giovandro Marcus Ferreira,UFES, Brasil Prof. Dr. Gaëtan Tremblay, Université du Québec, Canadá Prof. Dr. Graham Murdock, Loughborough University, Reino Unido Prof. Dr. Guillermo Mastrini, UBA, Argentina Prof. Dr. Helenice Carvalho, UNISINOS, Brasil

Prof. Dr. Isabel Urioste, Universite de Technologie de Compiegne, França Prof. Dr. Joseph Straubhaar, University of Texas, Estados Prof. Dr. Juan Carlos de Miguel, EUH, Espanha Prof. Dr. Luiz Guilherme Duarte, UPX, Estados Unidos Prof. Dr. Marcelo Kischinhevsky, UERJ, Brasil Profª Drª Márcia Regina Tosta Dias, UNIFESP, Brasil Prof. Dr. Marcial Murciano Martinez, UAB, Espanha Prof. Dr. Marcio Wohlers de Almeida, UNICAMP, Brasil Prof. Dr. Marcos Dantas, UFRJ, Brasil Prof. Dr. Nicholas Garham, University of Westminster, Reino Unido Prof. Dr. Othon Jambeiro, UFBA, Brasil Prof. Dr. Pedro Jorge Braumann, Instituto Politécnico de Lisboa,Portugal Prof. Dr. Peter Golding, Northumbria University, Reino Unido Prof. Dr. Philip Schlesinger, University of Glasgow, Reino Unido Prof. Dr. Pierre Fayard, Université de Poitiers – Accueil, França Prof. Dr. Ramón Zallo, Universidad Pais Vasco, Espanha Prof. Dr. Sergio Augusto Soares Mattos, UFBa- Brasil Prof. Dr. Sergio Capparelli, UFRGS, Brasil Prof. Dr. William Dias Braga, UFRJ-Brasil Pareceristas desta Edição Prof.Dr. Alain Herscovici (UFES-Brasil) Prof.Dr. Alvaro Benevenuto (FUCS-Brasil) Profª Drª Anita Simis (UNESP-Brasil) Prof.Dr. Carlos Franciscato (UFS-Brasil) Prof.Dr. Cassio dos Santos Tomaim (UFSM-Brasil) Prof.Dr. Cesar S.R. Bolaño (UFS-Brasil) Profª Drª Eula Dantas (IBICT-Brasil) Prof.Dr. Fernando Paulino (UnB-Brasil) Prof.Dr. Jorge Bravo (UNAM-México) Prof.Dr. Luiz Ferraretto (UFRGS-Brasil) Prof.Dr. Marco Schneider(IBICT-Brasil) Prof.Dr. Marildo Nercolini(UFF-Brasil) Prof.Dr. Paulo Faustino (UNL-Portugal) Prof.Dr. Rodrigo Murtinho(Fiocruz-Brasil) Prof.Dr. Ruy Sardinha Lopes(USP-Brasil) Profª Drª Sayonara Leal (UnB-Brasil) Profª Drª Sonia Aguiar (UFS-Brasil) Dossiê Temático “Plataformas colaborativas: entre a participação e o controle” Coordenadora Profª Drª Sônia Aguiar (UFS-Brasil)

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Apresentação

Caros leitores,

Dando prosseguimento à missão de fomentar a reflexão crítica sobre temas emergentes em nossa sociedade, o presente número da Revista Eptic online traz o Dossiê Temático Plataformas Colaborativas: entre a participação e o controle que contou com a colaboração de Fábio Malini, nosso entrevistado, reconhecido pesquisador da Internet e professor da Univeridade Federal do Espírito Santo; Cesar Bolaño, Eloy Vieira e Marcos Dantas, autores convidados e Beatriz Martins, Daniel Reis e Leandro Borges Lima, Ivan Paganotti, Arthur Bezerra e Igor Waltz. Como salientado por Sonia Aguiar, coordenadora desse Dossiê, em sua apresentação, o impacto e a velocidade com que os aparatos tecnológicos têm sido incorporados no tecido social muitas vezes se contrapõem ao tempo necessário de sua apreensão teórica, deixando-nos, em grande medida, sem as âncoras teóricas fundamentais ao deslindamento das diversas camadas que os tramam nas práticas sociais. Tidos, cada vez mais, como dispositivos de controle – econômico e político – e infraestrutura necessária à acumulação ampliada do capital, também por propiciarem a emergência de novas relações sociais, tais aparatos explicitam a emergência de novas formas de gestão, de negócios e de poder que, em grande medida, estão reconfigurando não só as relações de trabalho e consumo, as relações de poder e a luta de classes, bem como o campo comunicacional e a luta pela democratização da comunicação e da cultura. Ao propormos dar voz à reflexão sobre tais aspectos, sob o viés da EPC, pretendemos não só afastar os funcionalismos e fetichismo tecnológicos presentes em boa parte das análises correntes, bem como apontar para as lacunas e possibilidades interpretativas, por vezes divergentes, que se colocam à uma prática acadêmica comprometida com a transformação social

Revista Eptic Online Vol.16 n.2 p.2-3 mai-ago 2014


Privacidade, neutralidade e inimputabilidade da internet no Brasil - Arthur C. Bezerra; Igor Waltz

A Seção Artigos e Ensaios inicia com uma análise, de José Melo Jr,, do impacto, e resistências, das tecnologias digitais, em especial do e-book, no mercado editorial brasileiro. Segundo o autor, uma nova cultura livresca se impõe diante do hibridismo e da multiplicidade midiática de conteúdos proporcionados pelas novas plataformas abrindo novas possibilidades, inclusive para os negócios, ainda que a diminuição da assimetria entre os leitores e aqueles que detém o controle o controle da produção e distribuição desses bens não esteja, necessariamente garantida. O segundo artigo, de Gustavo Fontanals,tomando por base o anúncio do governo argentino da reestatização da Empresa Nacional de Telecomunicações, chama a atenção para a importância do enfoque político-institucional ao possibilitar a análise dos processos decisórios a partir da interação de diversos agentes, em especial, nesse caso, dos atores institucionais e agentes políticos, econômicos e sociais e seus jogos de influências. Já Robson Dias, enfoca, por meio da cultura meritocrática dos prêmios em jornalismo, a necessidade de desenvolvermos, no âmbito da Economia Política da Comunicação, análises mais detidas sobre o mundo do trabalho e sobre as novas formas de subsunção e extração da mais-valia. A Seção Investigação demonstra, por meio das contribuições ali reunidas – os artigos de Marcela Canavarro, Antonio Francisco Magnoni, Giovani Vieira Miranda e Adriana Cristina Omena dos Santos, Ricardo Ferreira de Carvalho- o quanto as práticas proporcionadas pelas novas plataformas e processos digitais ao se difundirem pelo tecido social – dos movimentos sociais às políticas públicas – têm merecido a atenção, cada vez mais necessária, da academia, gerando, desta forma, um conjunto de reflexões fundamentais para a melhor compreensão de uma realidade que se mostra, em grande medida, ainda indeterminada. Nesse sentido, cartografar tais prática e arriscar-se na proposição de novos aportes conceituais e metodológicos se mostram socialmente necessários também para se afastar os véus ideológicos e os pessimismos e otimismos acríticos com os quais, frequentemente, se revestem tais práticas. Lição importante não somente aos movimentos sociais e práticas educacionais, mas também às políticas públicas. Daniela Hinojosa encerra esta edição com a resenha do livro de Mariano Zarowsky, fruto de seu doutoramento, que analisa o percurso intelectual de um dos mais importantes pensadores da Comunicação da atualidade – Armand Matellart evidenciando a importância do materialismo cultural e da economia política para a constituição do pensamento crítico comunicacional.

Boa Leitura!

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IMPACTOS DA EMERGÊNCIA DO E-BOOK NO MERCADO EDITORIAL BRASILEIRO IMPACTOS DEL SURGIMIENTO DE LA EDICIÓN DE LIBROS ELECTRÓNICOS EN EL MERCADO EDITORIAL BRASILEÑO IMPACTS EMERGENCE OF E-BOOK PUBLISHING MARKET IN BRAZIL

José de MELO JUNIOR Doutorando em Comunicação Social na Universidade Paulitsa UNIP, possui mestrado em Comunicação Social pela Universidade Paulista (2006) e MBA em Marketing pela FUNDACE-USP (2012). Foi editor dos periódicos Livro Aberto, Revista do Editor e Anuário Editorial Brasileiro. Editou os primeiros livros brasileiros impressos em equipamentos digitais. Atualmente é gestor da CCM Tecnologia, empresa que atua na área de Computação em Nuvem e promove a edição de e-books em diversos segmentos. Email: jomelloj@gmail.com

Revista Eptic Online Vol.16 n.2 p.4-25 mai-ago 2014 Recebido em 07/03/2014 Aprovado em 10/04/2014


Impactos da emergência do e-book no mercado editorial brasileiro - José de Mello Junior

Resumo O segmento de edição de livros, parte das indústrias culturais, passa por importantes transformações ocasionadas pela emergência das tecnologias digitais. As mudanças principiaram no âmbito da editoração e da produção com a introdução de tecnologias como o desktop publishing e o computer to print. Um segundo processo a afetar o mercado foi a introdução da Internet como canal de vendas. Finalmente, o surgimento do formato e-book e sua proliferação criou uma vertente hibrida do mercado, que passou a ter nos provedores de tecnologias como a Amazon e o Google, “parceiros” de distribuição. No Brasil houve grande resistência de editores e livreiros em aderir aos novos formatos com receio de perder o controle da distribuição. Por quase uma década as tentativas de introduzir o novo formato no mercado brasileiro fracassaram. Há três anos, entretanto o cenário vem mudando. Esse artigo traça um panorama da introdução do e-book no Brasil, suas implicações econômicas e culturais, avaliando os conflitos no decorrer dos últimos 12 anos.

Palavras-chave e-book, mercado editorial brasileiro, indústria cultural

Resumen El segmento de la edición de libros como parte de las industrias culturales , ha sufrido transformaciones importantes debido la aparición de las tecnologías digitales . Los cambios que se iniciaron en la edición y producción con la introducción de tecnologías como el desktop publishing e el computer to print. Un segundo proceso que afecta al mercado fue la introducción de la Internet como un canal de ventas . Por último , el introducción de formato de libro electrónico y su proliferación ha creado un híbrido presente en el mercado, que ahora cuenta con los proveedores de tecnología , tales como Amazon y Google , “ socios “ de distribución. En Brasil hubo una gran resistencia por parte de los editores y libreros de adherirse a los nuevos formatos , por temor a perder el control de la distribución. Por casi una década los intentos de introducir el nuevo formato en el mercado brasileño falló. Hace tres años , sin embargo, el escenario está cambiando . Este artículo proporciona una visión general de la introducción del libro electrónico en Brasil, sus implicaciones económicas, culturales y la evaluación de los conflictos en los últimos 12 años. Palabras claves eBook, el mercado editorial brasileño, la industria cultural

Abstract The book publishing business, as a part of the cultural industry, has gone thru major changes, triggered by the emergency for digital technologies. These changes started in the editing and production firms with the introduction of new technologies like the desktop publishing and the computer to print. A second change to the market also happened with the introduction of the Internet as a sales tool. Finally the coming of the e-book format and its proliferation created a hybrid branch of the market, that started to have in technology companies like Amazon and Google , distribution “partners”. In Brazil there was a great resistance from the editors and book sales man to adopt the new formats because of the fear they had of losing the distribution control. For over a decade the attempts to introduce the new format into the Brazilian market failed, until three years ago, when things started to change. This article portrays a panorama of the introduction of the e-book in Brazil, its cultural and economic implications, evaluating the conflicts that have taken place in the last twelve years. Keywords e-Book Brazilian publishing market, cutural industry.

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Preâmbulo: O mercado editorial como parte das indústrias culturais O conceito de indústria cultural introduzido na crítica social por Adorno e Horkheimer nasceu cinco séculos depois da emergência do moderno mercado editorial no século XV. Até meados do século XX o modelo editorial, consolidado nos primórdios da modernidade, permaneceu próspero e com poucas mudanças. As características desse mercado eram: uma cadeia produtiva iniciada na criação do texto pelo autor, passando pela obtenção dos direitos de edição do texto pelo editor que mobilizava um conjunto de profissionais, como revisores, tradutores, designers, produzindo uma versão editorial, que em seguida era industrializada valendo-se de uma gráfica própria ou terceirizada e finalmente distribuída para venda por diversos canais cujo principal era a livraria. O conceito de indústria cultural pensado por Adorno e Horkheimer englobava o mercado editorial, mas não fora motivado por este. Sua motivação estava na ascensão de novas mídias massivas o cinema e o rádio. Sua crítica observava que a rotina da fábrica se estendia aos lares a partir do consumo de produtos culturais destinados a massa, que referendavam o modelo de exploração capitalista e os principais suportes ideológicos da sociedade burguesa. O conceito nasceu negativo, uma das facetas da modernidade industrial na qual a racionalidade da mercadoria penetrava de forma absoluta a esfera da produção cultural. Para efeito de uma definição mais contemporânea de indústria cultural, será necessário juntar ao elemento, conteúdo cultural, os diversos suportes através dos quais estes conteúdos são objetivados e reproduzidos e, segundo Jean Pierre Warnier, este duplo critério tornou-se a base para que: [...]analistas como Patrice Flichy, Bernard Miège, Gaetan Tremblay considerassem que as indústrias culturais apresentam o seguinte perfil: a) elas necessitam de grandes meios financeiros) utilizam técnicas de reprodução em série c) trabalham para o mercado, ou em outras palavras, elas mercantilizam a cultura; e d) são baseadas em uma organização do trabalho do tipo capitalista, isto é, elas transformam o criador em trabalhador e a cultura em produtos culturais.” (WARNIER, 27-28, 2000)

O conceito elaborado por Adorno e Horkheimer e posteriormente desenvolvido por diversos autores é passível de diversas críticas, a principal delas se refere ao modelo histórico filosófico sobre o qual construíram sua tese, esse é funcionalista e atribui à cultura um papel de mera reprodutora das relações econômicas e de trabalho da sociedade, estando ainda subordinada à vertente hegemônica do marxismo da época, que colocava a superestrutura cultural como dependente da estrutura econômica. O resultado desta visão seria a de conferir às classes dominadas nenhum poder de reação ou resistência à dominação dos meios de comunicação de massas. Não obstante essa crítica, consideramos válida a ideia de que a conquista do tempo ocioso dos trabalhadores era uma das características da cultura de massas emergente. Outro aspecto importante e apontado por Bolaño, diz respeito a diversidade de resistências engendradas pela indústria cultural em sua expansão:

Sobre este último ponto seria preciso considerar que o capitalismo, no seu desenvolvimento histórico, ao mesmo tempo que cria uma forma cultural que lhe é adequada, carrega consigo, desde

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o nanscimento, culturas de resistência que se caracterizam, ao contrário da primeira, que é tendencialmente universal, por uma fragmentação em diferentes níveis e que apresentam diferentes graus de relacionamento com a cultura dominante.(BOLAÑO, 2000, 104)

1- Chris Anderson em seu livro “Free, o futuro dos preços”, aborda este complexo modelo de se oferecer algo grátis para se cobrar por modelos premium de acesso ou uso. Identifica esta política já no século XIX e vê nos negócios surgidos na Internet diversas manifestações deste tipo de modelo de negócios do qual o Google é o principal expoente.

Há mais de duas décadas, Bernard Miège caracterizava que as indústrias culturais atuavam sobre três modelos de negócios fundamentais, os modelos editorial, de flot ou fluxo e um modelo híbrido com características dos dois anteriores. O primeiro foi criado em um longo período com a edição de livros e, posteriormente passou a ser utilizado por parte dos novos meios emergentes, seu principal aspecto é a cobrança dos usuários pela posse dos conteúdos. O segundo desenvolveu-se com o rádio e depois se estendeu à televisão, sendo mantido economicamente pelo pagamento das propagandas veiculadas de forma explícita ou através do merchandising. O terceiro é utilizado por jornais, revistas e mais recentemente por portais de informação, redes sociais, mecanismos de busca dentre outros, e como mencionado se sustém de receitas de propaganda e da própria venda de exemplares e assinaturas.1 Segundo o autor, na década de 80 do século XX, o modelo de “flot” aumentou de tal forma sua força que passou a colonizar os outros modelos, penetrando inclusive os conteúdos mobilizados por estes meios. Sob o signo da lógica econômica exacerbada, as indústrias culturais vivem uma importante transformação devido à emergência das TIC (Tecnologias da Informação e Comunicação): O crescimento das antigas modalidades tornado possível pela extensão das TIC, e a mobilização dos conteúdos informacionais e culturais pelo conjunto do setor da comunicação, em vista do sucesso de seus programas industriais, coexistem com a aparição de novas indústrias da informação e da cultura. (MIÈGE, 2000, 74)

2Estas características já foram trabalhadas em minha dissertação de mestrado: Do Códex ao e-book – Metamorfoses do livro na era da informação, bem como fazem parte do artigo sobre edição de e-books e redes sociais que se encontra em análise para publicação por revista acadêmica brasileira.

tura2:

Míége nos apresenta algumas das tendências deste renovado capitalismo da cul-

• A individualização das práticas e a extensão do pagamento pelos consumidores: A extensão e diversificação da oferta de produtos ampliam as possibilidades de cobrança criando uma diferenciação de conteúdos, que torna justificável o pagamento. • Crescimento dos mercados consumidores. O caráter imaterial dos conteúdos culturais geram novas oportunidades de negócios e a respectiva expansão do mercado consumidor. • Desmaterialização dos suportes. • A característica estratégica da difusão de produtos: O processo de distribuição dos produtos culturais encontra-se mais do que nunca ligado às telecomunicações. • Convergência tecnológica: a convergência entre informática, telecomunicações e a indústria cultural não é um resultado “natural e irreversível”. Ela é fruto de necessidades de

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grupos econômicos que buscam economia de escala e escopo. • Multimídia: como resultado da convergência a multimídia propicia uma série de oportunidades para a criação e a renovação dos conteúdos Ao concluir seu livro sobre indústrias do conteúdo, Bernard Miège se vale das ideias de Jean- Guy Lacroix e de Gaëtan Tremblay para firmar um diagnóstico do papel que estas indústrias possuem na atual fase do capitalismo informacional: O seu avanço pode ser interpretado como um movimento dialético complexo incluindo simultaneamente 1. a integração das atividades culturais e comunicacionais no espaço mercadológico e industrial; 2. a redefinição de normas de produção resultantes desta integração; 3. a extensão das características do setor cultural no conjunto da produção econômica; 4. uma diluição concomitante de sua especificidade e sua densidade nos campos da cultura e da comunicação. (Lacroix e Trembbaly, 1997, apud Miège, 2000,111)

O livro eletrônico surge como um das resultantes destas características inserido nos itens 1, 2 e 3. É importante ressaltar que quando tratamos de conteúdos digitais, o modelo de “flot” parece possuir mais aderência dos usuários isto provavelmente está relacionado aos modelos de negócios dos players da Internet como as empresas Google e Facebook, que oferecem conteúdo gratuito em troca da exposição dos usuários à propaganda de seus anunciantes. Nossa hipótese é de que o segmento de edições de livros representou o protótipo das diversas indústrias culturais. E hoje encontra-se completamente relacionado com os outros segmentos desta indústria quer participando dos mesmo conglomerados econômicos ou fornecendo conteúdos para outros meios.

As TICs e as mudanças no processo editorial O desenvolvimento de meios de comunicação de massas como o rádio, o cinema e a TV promoveram mudanças no mercado editorial. O livro começou um longo processo de declínio como repositório privilegiado do conhecimento e do entretenimento. Outras formas, mais ágeis e que exigiam menor esforço passaram a rivalizar com o livro e sobretudo a capturar tempo ocioso das pessoas de forma a diminuir o tempo disponível para outras atividades, entre elas a leitura. Entretanto, no que pese todo este processo, o livro se adaptou, afinal, muitos dos filmes eram baseados em livros, que passaram a vender muito mais após o lançamento das películas. Os meios de comunicação passaram a ser fortes divulgadores de autores de variados gêneros, aumentando assim as vendas. A integração econômica das empresas de comunicação também colocou dentro do mesmo conglomerado editoras, emissoras de TV e rádio, editoras de jornais e revistas e até mesmo estúdios cinematográficos. No Brasil as organizações Globo atuam em todos esses elos das indústrias do conteúdo.

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3- Nem sempre respeitando os direitos autorais e na maioria das vezes os ignorando.

4- A mudança dos processos de composição analógicos para os digitais ocorreram no final da década 80 do século passado. A década de 90 foi marcada apela introdução do desktop publishing e no mundo da impressão ocorreu a introdução dos dispositivos de imposição direct-toplate e direct-to-print que tornaram os processos mais ágeis e econômicos. Finalmente todas estas transformações permitiram edições com menores tiragens favorecendo a proliferação de títulos editados. Todo este processo ocorre simultaneamente ao desenvolvimento da Internet. 5Refiro-me à Cultura como pensada por Raymond Williams, como um modo de vida construído socialmente e no qual encontram-se inseridos seus participantes quer concordem ou não com seus pressupostos.

Mas isto foi apenas o começo. O surgimento da computação eletrônica e o posterior desenvolvimento das telecomunicações integrados a esta, desferiram um novo golpe ao mundo do livro. O surgimento da Internet com todo seu potencial de convergência das mídias e sua capacidade onipresente de distribuir conteúdo, somada a sua vocação por não respeitar direitos autorais, criou um panorama propício à disseminação de conhecimentos textuais3. Não podemos nos esquecer que os fenômenos de mudança no processo editorial ocorrem em um curto espaço de tempo e são simultâneos4 ao estabelecimento de uma “cultura da Internet”5. Para Manuel Casttells esta cultura se formou a partir de quatro grupos distintos, iniciou-se com a tecnomeritocracia acadêmica, ganhou a adesão de inúmeros desenvolvedores independentes espalhados pelo mundo e auto batizados de hackers. Também agregou-se a ela as várias comunidades virtuais criadas em torno de interesses diversos e finalmente os empresários da Internet, muitos deles emergidos dos grupos anteriores e que encontraram nesta galáxia um oceano azul para a introdução de novos modelos de negócios: A cultura da Internet é uma cultura feita de uma crença tecnocrática no progresso dos seres humanos através da tecnologia, levado a cabo por comunidades de hackers que prosperam na criatividade tecnológica livre e aberta, incrustrada em redes virtuais virtuais que pretendem reinventar a sociedade, e materializada por empresários movidos a dinheiro nas engrenagens da nova economia. (CASTELLS, 2000, 53)

Não é de se estranhar que os editores tradicionais tenham se assustado com o crescente assédio dessa cultura da Internet ao seu ambiente relativamente tranquilo e consolidado há séculos. No caso brasileiro a observação do que se desenvolvia nos EUA deve ter acentuado os temores: O que talvez não percebamos é que o que é gratuito está de fato nos custando uma fortuna. É pouco provável que os novos campeões – Google, YouTube, Craigslist e as centenas de novos empreendimentos, todos ávidos por uma fatia da torta da Web 2.0 – consigam substituir as indústrias que estão ajudando a solapar, em termos de produtos produzidos, empregos criados, renda gerada ou benefícios concedidos. Roubando nossa atenção, os blogs e wikis estão dizimando as indústrias editorial, fonográfica e de apuração de notícias que criaram o conteúdo original que estes sites “agregam”. Nossa cultura está essencialmente canibalizando seus filhotes, destruindo as próprias fontes de conteúdo pelas quais eles anseiam. (KEEN, 2007, 30)

Keen é um crítico habilidoso das novas tendências. Outrora foi um dos membros desta elite tecnológica, mas em dado momento optou pelo dissenso e desde então tem sido um dos críticos mais incisivos das estratégias das empresas e das tecnologias emergentes relacionadas a cultura digital. Muitos de seus questionamentos vem de encontro a algumas evidências que encontramos no mercado editorial quando da pesquisa para nossa dissertação de mestrado. Neste período realizamos uma pesquisa com editores de livros visando compreender a forma como estes recepcionavam os novos meios eletrônicos, a

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Internet como ferramenta de comunicação e canal de vendas e o formato e-book como alternativa para a publicação de seus conteúdos. A pesquisa realizada no ano de 2005 e publicada em 2006 na dissertação “ Do Códex ao e-book: Metamorfoses do livro na era da informação”, revelava a cautela, bem como a rejeição por parte dos editores deste novo suporte. A cultura da Internet era vista como estranha e seus arautos como outsiders que buscavam penetrar no campo editorial. 6 - Nos referimos ao paradigma de época conceituado por Gilles Lipovetsky que acredita vivermos um período no qual as forças geradoras da modernidade se amplificam geram inúmeras contradições, promovendo alterações de fundo nas esferas política, social e cultural.

Na dissertação utilizamos o conceito de campo de Pierre Bourdieu para definir o campo editorial. Para este cientista social campo constitui um espaço social de dominação e conflitos, os campos possuem certa autonomia em relação a esfera social como um todo e os campos possuem sua própria hierarquia interna. Acreditamos que o campo editorial como tal, plasmado nos primeiros séculos da modernidade, manteve-se estável por longo período. A emergência de uma nova tecnologia, somada a uma série de transformações socioculturais engendradas na hipermodernidade6, desestabilizaram esse espaço, sua relativa autônima perdeu importância e as transformações globais passaram a afetá-lo diretamente. O processo de globalização da economia e da cultura promoveu o ingresso de empresas multinacionais no ambiente editorial regional. Isto por si só já representou um elemento de instabilidade e mudança. O ingresso dos tecnólogos neste campo funcionou como um elemento de ruptura, promovendo em muitos espaços a reação de defesa por parte dos estabelecidos, este foi o caso do mercado editorial brasileiro:

7Neste estudo antropológico publicado como livro intitulado “Os Estabelecidos e os Outsiders”, os autores pesquisaram uma situação de conflito social vivida em uma pequena cidade industrial inglesa, na qual a chegada de um grupo de migrantes da mesma etnia e adepto dos mesmos costumes é rechaçada pelos moradores mais antigos. As relações que surgem são de exclusão e preconceito geradas não por qualquer diferença de classe e sim pela simples anterioridade que os moradores mais antigos possuíam em relação aos migrantes batizados de outsiders. Utilizei essas categorias no estudo da introdução do e-book no mercado brasileiro, considerando estabelecidos os membros da cadeia produtiva do livro impresso e outsiders os entrantes com a tecnologia do e-book e a cultura da Internet.

Os recém chegados tecnólogos que, com suas ofertas de novas tecnologias e modelos de negócios procuram penetrar no meio editorial, podem ser pensados à luz dos conceitos elaborados por Elias e Scotson no estudo da aldeia de Winston Parva7. Neste caso, os atuais habitantes do campo editorial –editores, gráficos, livreiros e autores – seriam considerados os estabelecidos, enquanto os outsiders seriam os recém-chegados tecnólogos, muitos dos ligados a cultura hacker.(MELLO, 2006, 382)

Este conflito marcou a introdução do formato e-book no mercado editorial brasileiro. E diferentemente do mercado estadunidense no qual os e-books se desenvolveram rapidamente, no Brasil o poder de retaliação da cadeia produtiva estabelecida, que por anos negou-se a ceder seus conteúdos, freou a introdução dos e-books por mais de uma década.

A emergência dos e-books e sua lenta introdução no mercado brasileiro

Mas afinal, como definir o e-book? Segundo Furtado, a Association of American Publishers caracteriza o e-book, como: “uma obra literária sob a forma de objeto digital, consistindo em um ou mais standards de identificação, metadata, e um corpo de conteúdo monográfico, destinado a ser publicado ou acessado eletronicamente” (Associatin of American Publishers, 2000,56 apud Furtado, 2006, 52).

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Nesta definição fica evidente, como destaca Furtado, que a preocupação é com a designação de um conteúdo “único” que possa ser protegido pelo copyright. A referência é feita ao conteúdo, mas também ao tipo de empacotamento de dados, cuja configuração pressupõe-se monográfica. Parece haver uma necessidade de, ao referir-se ao texto digital compará-lo a um livro, valendo-se deste como metáfora para essa nova configuração. Porém, em muitos aspectos, o que se convencionou chamar e-book é diferente do livro impresso. Senão observemos: • Um e-book é, um ajuntamento de dados expressos numericamente em código binário; • Para que estes dados se expressem de forma a serem acessados pelo leitor, é necessária uma camada se software dedicado a leitura. • Também necessitamos de um hardware, que funcione ao mesmo tempo como receptáculo dos dados e do software e que possua um tela para exposição da interface e dos dados reconvertidos em textos. • Também é necessário energia para alimentar o hardware, sem o que ele não funciona. 8 - O projeto Sophya era uma ousada criação de alguns executivos da Xerox, liderada por Sergio Maia e Júlio C. Damasceno, a ideia era reunir em uma plataforma WEB softwares de gestão de conhecimento, gestão de competências, gestão de conteúdos digitais (DRM) e e-learning, criando diversas comunidades de interesses e práticas, ofertando conteúdos para grupos fechados e para o público em geral. Um shopping virtual de conteúdos no qual a Xerox entrava com a tecnologia que seria locada pelos produtores de conteúdos e realizaria a interface entre criadores e consumidores de conteúdos. O conceito era vanguardista para todo o mundo da Internet, não havia algo semelhante nem mesmo nos países líderes em conexão. Seu fracasso, talvez deva ser creditado ao timing de seu lançamento. Neste período a Internet ainda possuía baixa adesão no Brasil. Também a resistência dos conteudistas brasileiros em aderir ao modelo foi imensa. E, por último, a própria vocação da empresa em abandonar projetos inovadores, afinal o mouse, o fax e a interface gráfica de computadores são algumas das muitas inovações que a Xerox produziu e abandonou em sua trajetória corporativa.

Nenhuma das características acima é comum ao livro impresso, já que nele a interface é a própria manifestação impressa do texto. No livro impresso, texto e artefato são uma mesma coisa. No caso do livro eletrônico, o texto encontra-se codificado em uma combinação de dados. Após mais de duas décadas de desenvolvimento, o e-book apresenta-se hoje como um composto de 3 partes: conteúdo, software em várias camadas e hardware (os dispositivos de leitura como o Kobo ou o Kindle e ainda tablets, PCs, Smartphones). O processo de introdução do formato e-book no Brasil teve seus primeiros ensaios no final da década de 90 do século XX. Na Bienal do livro de São Paulo de 2000, principal evento do mercado editorial brasileiro, cerca de cinco dos mais de 300 expositores expunham suas soluções para o ingresso nesta nova fronteira. O destaque ficava para a Xerox (multinacional estadunidense) que em seu estande apresentava versões de leitores digitais e propunha uma integração entre a tecnologia digital e suas soluções de impressão por demanda. Muitas das empresas originadas neste período naufragaram. O projeto da Xerox, batizado de portal Sophya, que propunha reunir em uma imensa plataforma web, um condomínio de editoras e universidades ofertando e-learning, e-books e gestão do conhecimento, foi abortado dois anos depois pela direção executiva da companhia.8 A questão dos dispositivos dedicados a leitura (devices) é crucial para entender a velocidade da introdução do novo formato. Nos EUA a Amazon tornou disponível o Kindle a preços relativamente acessíveis com um crescimento de vendas arrebatador a partir de 2007. Os editores não resistiram à tentação e embarcaram, o mesmo fez o grupo de livrarias Barnes and Nobles e em pouco tempo os editores não aderentes se viram obrigados a participar do jogo sob pena de ficarem fora do campeonato. No Brasil a venda destes dispositivos começou há pouco tempo (2012). A compra ainda se restringe a um número pequeno de leitores intensivos. Enquanto restrita a este público a venda de e-books permanecerá marginal. Há mais de duas décadas se realiza a pesquisa de Produção e Vendas do Setor Editorial Brasileiro, a pesquisa é encomendada pela Câmara Brasileira do Livro

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e pelo Sindicato Nacional de Editores e representa o panorama deste mercado. Vejamos alguns números afim de entender melhor em que quadro se inserem o e-books: Exemplares Vendidos Per Capita Ano

Exemplares Vendidos

Habitantes

Livros Per capita

1990

212.206.449

147.053.940

1,44

1995

374.626.262

161.400.000

2,32

2003

255.830.000

178.939.611

1,43

2011

469.468.841

192.376.496

2,44

Tabela 01- Fonte: Pesquisa Produção e Vendas do Setor Editorial CBL/SNEL Este quadro mostra um avanço de mais de 120% na venda de exemplares em duas décadas. A introdução da relação com o número de habitante é importante para perceber o avanço relativo desta produção em relação ao número de potenciais receptores. A presença do ano de 1995 ajuda a compreender que o mercado brasileiro apresenta variações episódicas que estão ligadas à planos econômicos. Durante o planos Cruzado 1 e também durante o início do plano Real observou-se um salto na produção e consumo de livros. Por isso, quando comparamos os números per capita de 2011 com 1995 percebemos apenas um ligeiro avanço. Apenas nos últimos anos o crescimento tem se estabilizado em novos patamares, sendo possível afirmar que o mercado está caminhado para um patamar estável de cerca de 2,5 livros por habitante. Exemplares Vendidos Per capita sem Governo Ano

Exemplares Vendidos

Habitantes

Livros Per capita

1990

192.297.185

147.053.940

1,31

1995

218.057.811

161.400.000

1,35

2003

144.870.000

178.939.611

0,81

2011 283.984.382 192.376.496 1,48 Tabela 02- Fontes: Pesquisa Produção e Vendas do Setor Editorial CBL/SNEL e IBGE

A tabela 2 representa o número de livros adquirido por compradores que não o governo, reflete de forma mais clara o que é o “mercado”, já que o governo no Brasil tem representado cerca de 40% das compras há muitos anos. E aqui percebemos o quanto o avanço do mercado foi pequeno nas últimas duas décadas. Estes números nos permitem afirmar que temos um mercado estagnado, que anda de lado. Exemplares Vendidos em Livrarias e Governo Ano

Livrarias

%

Governo

%

1992

97.237.601

61

19.909.264

13

2001

75.130.000

24

121.460.000

40

2011

127.503.157

27,1

185.484.459

39,5

Tabela 03- Fonte: Pesquisa Produção e Vendas do Setor Editorial CBL/SNEL

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Impactos da emergência do e-book no mercado editorial brasileiro - José de Mello Junior

A tabela 3 nos mostra a divisão entre os dois principais canais de vendas de livros no Brasil evidenciando o poderoso papel que o governo desempenha com seu programa de compra de livros. Pouco mais de 30% dos livros vendidos em 2011 que não constam da tabela, foram comercializados por outros canais como distribuidores, vendedores porta a porta, igrejas, etc. A pesquisa de 2011 foi a primeira a medir o número de e-books comercializados, porém não mediu pelo número de exemplares e sim pelo valor obtido e pelos títulos colocados à venda. Foram cerca de 5235 títulos, a maioria de obras gerais, sendo que o valor aferido com a venda dos mesmos foi de R$ 868.472,73. Vendas e formatos eletrônicos 2011 Formatos

Títulos Vendidos

Faturamento

PDF

3.959

R$ 186.411,31

E-PUB

1.036

R$ 257.372,89

APPS

49

R$ 195.788,49

Outros

192

R$ 228.900,04

TOTAL

5.235

R$ 868.472,72

Tabela 04- Fonte: Pesquisa Produção e Vendas do Setor Editorial CBL/SNEL

Em 2012 pela segunda vez os e-books figuraram na pesquisa que ainda refletia a participação dos devices (dispositivos dedicados a leitura) pois os mesmos chegaram nos meses de outubro e dezembro de 2012. Houve um significativo crescimento em relação ao ano anterior. Esta tendência de crescimento explosivo deverá se manter nos próximos anos. Outra fonte importante de informações sobre o consumo de livros no Brasil e também de livros eletrônicos, é a pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil”, que se encontra na terceira edição (2005, 2007 e 2011). Encomendada por CBL, SNEL e Instituto Pró-Livro e executada pelo IBOPE, a pesquisa entrevista mais de 5000 pessoas em todo o país, distribuída de forma estatística entre as regiões, classes sociais, sexo, faixas etárias e escolaridade. Crianças com menos de 5 anos são excluídas da pesquisa. Sobre a pesquisa de 2011, a primeira em que constam e-books destacamos alguns números:

Ano

Leitores

Não Leitores

População Estudada

2007

55%

45%

172.733.817

2011

50%

50%

178.082.033

Tabela 09- Fonte: Retratos da Leitura no Brasil -CBL/SNEL- IBOPE A tabela 9 mostra um declínio entre o número de leitores entre 2007 e 2011. São considerados leitores pessoas com mais de 5 anos que leram um livro inteiro ou partes de um livro, nos últimos 3 meses.

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Entre a população 42, 6 milhões compraram ao menos 1 livro nos últimos 12 meses. Mais de 56% ou 99 milhões de pessoas não compraram nenhum livro nos últimos 5 anos. Quanto ao acesso à Internet, 54% não possuíam acesso, daqueles que tinham algum tipo de acesso, apenas 18% eram usuários diários da rede. Sobre a leitura de livros digitais, cerca de 30% da população ou 53 milhões já ouviu falar, destes, 18% afirmaram já ter lido um livro digital, e 82% disseram que nunca leram. Mais de 80% destes leitores possuíam Ensino médio ou superior. 53% pertenciam as classes A e B e 42% a classe C. Os leitores da pesquisa afirmaram ter lido os livros no computador, e uma pequena parte no celular, 13% dos leitores de livros digitais pagou pelo download e 87% não pagou. Dos que leram livros digitais 62% admitem ter baixado conteúdo pirateado. Nenhum leitor afirmou ter usado dispositivos dedicados de leitura como Kindle e Kobo. 42% dos que leram livros digitais (cerca de 9,3 milhão) leram 1 livro, cerca de 45% leu de 2 a 5 livros. Dos entrevistados que nunca leram um livro digital, 48% admite fazer uso deste formato no futuro. Um dado interessante da pesquisa, mostra que 2% dos leitores de livros digitais leram mais de 15 livros neste formato. Trata-se de um universo de mais de 180.000 pessoas e demonstra o potencial do formato entre leitores intensivos. Os números mais recentes demonstram o crescimento da presença dos e-books no mercado, em um cenário de estagnação do mesmo. Neste sentido é importante ressaltar que esta introdução se dá na disputa do tempo ocioso dos leitores, que cada vez mais é disputado por diversas mídias, Tremblay em artigo sobre as indústrias culturais salientou este aspecto do consumo cultural: Si el tiempo consagrado al ocio, em general, y a los medios de comunicación, em particular, há aumentado significativamente desde 1945, también es cierto que desde hace um burn rato este há alcanzado su máximo nivel.[...]Y que el aumento de la oferta cultural y mediática no acarrea habitualmente um aumento del tiempo total de consumo, sino que más bien incrementa la competencia entre productos de diferentes sectores culturales. ( TREMBLAY, 2011,117) Durante a primeira década do século XXI o mercado de e-books no Brasil não se moveu, diversas iniciativas foram abortadas devido ao conflito entre estabelecidos e outsiders. Nos últimos três anos uma série de iniciativas tem permitido que o formato se introduza no mercado: 1 – Os principais editores já negociaram com seus autores contratos para este novo formato. 2 – O modelo diferentemente do estadunidense não ocorre com a hegemonia dos provedores de tecnologia e sim a partir de alianças estabelecidas entre editores e provedores. 3 – A existência do padrão ePUB, para a criação dos livros tem predominado. 4 – As principais cadeias de livrarias elegeram leitores eletrônicos (devices) para representar. Sua venda ainda é pequena e se concentra nos leitores intensivos. 5 – Já existem distribuidoras de conteúdos digitais que oferecem a tecnologia para as

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editoras mediante o pagamento de 50% do percentual das vendas. Essas distribuidoras tornam disponíveis os conteúdos em diversas livrarias virtuais, inclusive os players Amazon, Google, e Apple Store. 6 – No momento existem 4 marcas e diversos modelos de leitores dedicados disponíveis para compra no Brasil, são eles : Kobo, River, Kindle e Alfa. 7 – Editoras tem se associado para distribuir seus conteúdos de forma consorciada e com tecnologia semi-proprietária, ou seja adquirem tecnologia de grandes desenvolvedores como a Adobe, mas desenvolvem camada própria a fim de ter maior controle sobre a distribuição dos exemplares. 8 – O crescimento da base instalada de tabletes deve incrementar a venda de e-books, já que estes dispositivos são mais apropriados para leitura que os PCs. Crescimento de venda de Tablets Brasil 2011

1,1 milhão

2012

3,1 milhões

2013

5,8 milhões

Tabela 10- Fonte: IDC

A introdução do e-book no mercado brasileiro começou: Um novo modelo de negócios Como demonstrado por Miège, a produção cultural como negócio capitalista, é uma empreitada de extremo risco. A grande maioria das obras está fadada ao fracasso de público. A maioria das editoras e dos editores compreendem este fenômeno e acreditam em uma lenta consolidação de um fundo de catálogo, em livros cuja perenidade permitirá que os pesados investimentos da primeira edição se amortizem nas sucessivas edições. Um exemplo desta situação pode ser facilmente entendido pelo comportamento da venda de exemplares no mercado editorial estadunidense, o mais importante do planeta: Em 2004, 950 mil livros, entre os 1,2 milhões monitorados pela Nielsen BookScan, venderam menos de 99 exemplares. Outros 200 mil venderam menos de mil exemplares. Apenas 25 mil venderam mais de 5000 exemplares. Nos Estados Unidos, os livros vendem em média 500 exemplares. Em outras palavras, cerca de 98% dos livros são não comerciais, não importa qual seja a intenção dos editores. (ANDERSON, Chris,2006, 73)

Embora o mercado brasileiro não possua métricas semelhantes é certo que a mesma dinâmica se expresse. Trata-se de um negócio de imenso risco, ainda maior em um mercado periférico de idioma periférico, no qual a maioria dos lançamentos depende de um investimento em tradução, o que aumenta significativamente o custo da primeira edição.

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Logo, a dinâmica editorial é de valorizar o médio e o longo prazo. Diferentemente do caráter efêmero que permeia a maioria dos segmentos da indústria cultural, o setor editorial possui a peculiaridade de valorizar o perene. Isto não significa que os hits, os best-sellers não tenham importância, muitas vezes eles salvam as casas editoriais. Mas os fundos de catálogos também desempenham caráter essencial, e na sobrevivência neste negócio eles são vitais. Chris Anderson identificou nesta característica presente desde sempre no modelo editorial, uma qualidade que se expande e ganha relevância em todos os setores da indústria cultural com o advento da desmaterialização de conteúdos e da distribuição eletrônica dos mesmos. O estilhaçamento da tendência dominante em zilhões de fragmentos culturais multifacetados é algo que revoluciona em toda a sua extensão os meios de comunicação e a indústria do entretenimento. Depois de décadas de refinamento da capacidade de criar, selecionar e promover grandes sucessos, os hits já não são suficientes. O público está mudando para algo diferente, a proliferação caótica e emaranhada de ...Bem, ainda não temos um termo adequado para estes não hits. Decerto, não são “fracassos”, pois para começar, a maioria não buscava a dominação mundial. (ANDERSON, 2006, 05) Chris Anderson realizou uma pesquisa com compradores de música online, buscando avaliar o comportamento dos consumidores, um importante varejista estadunidense a Rhapsody forneceu-lhe dados de um mês de compras, os dados revelaram um gráfico diferente: Ela começava como qualquer outra curva de demanda, classificada por popularidade. Alguns grandes sucessos, baixados com enorme frequência, formavam o cocuruto da curva, que logo despencava num precipício com as faixas menos populares. Porém o mais interessante é que ele nunca chegava a zero. [...] Em estatística, curvas como essa são denominadas são denominadas “distribuições de cauda longa” pois seu prolongamento inferior é muito comprido em relação à cabeça. (ANDERSON, 2006, 10)

Quando publicou o artigo “A Cauda Longa” na revista Wired em 2004, sua repercussão rendeu ao autor muitos outros exemplos de produtos distribuídos digitalmente ou não que demonstravam comportamento semelhante. Os livros impressos, por exemplo, como demonstrara a pesquisa da Nielsen eram um exemplo típico. Com os livros eletrônicos a cauda seria ainda mais longa, já que eles representavam um típico produto do que Anderson chama de economia da abundância, representada pelo declinante custo de armazenamento e distribuição típicos dos negócios com intangíveis digitais. Os gargalos entre oferta e demanda diminuem significativamente o que possibilita acesso de mais pessoas a mais produtos. O crescimento do mercado de e-books no Brasil poderá representar o retorno aos catálogos das editoras de centenas de milhares de títulos que não eram reeditados devido a sua baixa atratividade comercial. Também inúmeros empreendedores poderão tentar a sorte no meio editorial a partir de pequenos e criativos catálogos que atuem em nichos atendendo a demandas reprimidas pelo modelo impresso. Estas transformações

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poderão modificar o negócio do livro com ofertas variadas como uma assinatura mensal para se ter acesso a grandes acervos, que podem ser organizados de forma temática ou por área de interesse, algo semelhante ao que se tem praticado com streaming de filmes. Também as bibliotecas e os programas governamentais poderão adquirir conteúdos para seus acervos digitais que poderão ser adquiridos na forma de exemplares, mas também de assinaturas. Esta nova cadeia de valores pode ser danosa para setores estabelecidos como livreiros e gráficos, mas por outro lado poderá ampliar significativamente o acesso aos livros eliminando custos de produção e logísticos.

A importância do Estado no mercado brasileiro

Não podemos esquecer que o mercado editorial brasileiro é fortemente marcado pela presença do Estado que absorve em seus programas de distribuição de livros, cerca de 40% dos livros comercializados. Recentemente o governo lançou um edital afirmando introduzindo nas compras governamentais a partir de 2015 livros no formato eletrônico ou seja e-books. O edital bastante genérico suscita uma série de questões, como as que enumero a seguir: Em que dispositivos os adolescentes acessarão os livros? O programa um computador por aluno estará em que fase em 2015? Aliás como está hoje? O livro virá instalado em um hardware (tablets, e-book reader, notebook, etc), será baixado de um sítio, ou as duas coisas? A escola terá acesso à Internet? A escola terá capacidade de link para suportar um volume considerável de acessos simultâneos? Que critérios definirão a opção entre impresso e digital? De que forma os professores estão sendo preparados para suportar as transformações e orientarem os alunos? Quais os benefícios esperados em economia pelo governo? Como as editoras estão se preparando para a oferta? Qual o padrão tecnológico do conteúdo: epub, xhtml, pdf, etc? Restrições de uso? Haverá um profissional de TI (tecnologia da informação) nas escolas para dar suporte aos eventuais problemas com hardware, software e conexão? Que tipo de acompanhamento sobre os impactos da utilização estão sendo preparados pelo MEC? Que infraestrutura as escolas precisam para recepcionar este tipo de conteúdo? É possível que o governo esteja buscando conteúdo para seu programa um computador por aluno (UCA), que está distribuindo de forma ainda piloto laptops especialmente projetados para serem utilizados por jovens estudantes da rede pública. O programa suportado por lei aprovada em 2010, vem distribuindo computadores para estudantes de escolas periféricas em todos os estado brasileiros. Também se desenvolvem projetos em estados e municípios que independem do programa federal. Outro programa inciadia em 2008 foi o “Banda Larga nas Escolas”, cujo objetivo atual é o de conectar 69000 escolas à Internet, com velocidade de conexão superior a 2 Mbps. Estudo realizado em 2012 pelo Cetic-br, denominado “TIC Educação 2012 – pesquisa sobre o uso das tec-

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nologias da informação nas escolas brasileiras”, revelou um quadro destas inciativas: Quesito

Percentual/ Número

Escolas públicas com Computador

99%

Escolas públicas com acesso a Internet

89%

Escolas públicas com acesso a internet na sala de aula

7%

Número de escolas públicas com Internet Banda Larga

60.174

Tabela 11 – Fonte – Cetic-br 2012

Um estudo mais aprofundado da presença de computadores deverá ser realizado

e a “Economia Política da Comunicação” possui ferramentas interdisciplinares para

esta

empreitada. Conclusão

Como parte das indústrias culturais o mercado editorial reflete as dinâmicas que as influenciam diretamente como a tendência à desmaterialização, o acesso a partir de diversos dispositivos, a convergência de mídias. Essas dinâmicas têm na concentração das empresas da cultura em imensos conglomerados globalizados uma de suas características principais. Cada vez mais o consumo de conteúdos se dá através de dispositivos móveis presentes em todos os momentos do cotidiano. A necessidade do sistema capitalista de levar para casa a partir dos produtos de entretenimento de massas a lógica diária das fábricas, ganhou novas dimensões quando os dispositivos passaram a executar em todos os lugares seus programas. Flusser identificou claramente essa tendência mesmo antes da explosão da oferta de dispositivos: “Os aparelhos que nos programam são sincronizados. Por exemplo: o aparelho de transporte é sincronizado com o aparelho industrial, e o aparelho administrativo com o do divertimento. Tal sincronização é o ritmo que marca nossa vida.” (FLUSSER, 2011, 81) De forma paradoxal a desmaterialização dos conteúdos cria um modelo econômico de cauda longa, permitindo assim que o ritmo editorial e seus produtos perenes de fundo de catálogo sejam mantidos indefinidamente disponíveis, ao mesmo tempo em que a indústria das TIC inundam o mercado com novas gerações de dispositivos eletrônicos promovendo a morte dos antecessores. Por um lado a perenidade dos conteúdos, de outro a obsolescência dos dispositivos de acesso. As redes sociais emergem como espaço privilegiado para a divulgação dos novos conteúdos. Também são uma câmara de ecos para os blogueiros, amadores que passam a exercitar seu “profissionalismo” literário resenhando livros, ocupando o lugar da crítica e por vezes do próprio editor.

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Neste cenário o papel do editor também se transforma. Por um lado os conglomerados exigem cada vez mais hits, produtos que vendam grandes tiragens, por outro imensas possibilidades se abrem para pequenas editoras que podem ousar sem arriscar tanto do ponto de vista econômico. Nos próximos anos veremos se a introdução dos livros eletrônicos juntamente com o crescente uso de tablets e dispositivos de leitura, terão efeito positivo sobre o aumento do número de leitores e da intensidade da leitura. A grande ameaça à uma cultura de leitores e ao próprio livro como conhecemos encontrase na multiplicidade midiática de conteúdos e no hibridismo que a convergência permite. O tempo, essencial para a leitura é hoje disputado por uma infinidade de conteúdos de diversos formatos e mídias. A atenção do leitor é bombardeada com inúmeros e sedutores estímulos, muitos deles mobilizando outros sentidos e outras partes do cérebro. Jogos, vídeos, músicas, conteúdos em três dimensões, realidade aumentada. Adaptações cada vez mais variadas de textos clássicos em mídias variadas, muitas vezes em produtos multimídia. Os números do mercado brasileiro apontam para uma estagnação na produção e aquisição de livros. As estratégias de estímulo a leitura carregam consigo os próprios competidores do livro. Pois, ao promover a inclusão digital abre-se uma porta não apenas para os livros eletrônicos, mas também para a avalanche de conteúdos disponíveis na rede. A cultura do amador somada à pirataria ameaçam conceitos estruturados há séculos como a legitimidade dos conteúdos, e o investimento necessário de energia pessoal e recursos materiais e econômicos necessários para produzir produtos culturais complexos. Quando o livro impresso emergia como nova mídia e ameaçava a cultura do manuscrito diversos partidários da antiga e consagrada forma de transmissão do conhecimento protestaram, um deles, o abade Johannes Trithemius realizou em 1492, quase 50 anos após a invenção da impressão uma defesa apaixonada da tradição dos escribas, Clay Shirky nos apresenta esse texto: [... ]De Laude Scriptorum(literalmente em louvor aos escribas) . Nessa obra, ele expôs os valores e as virtudes da tradição dos escribas: “O monge devoto obtém quatro benefícios particulares da escrita: o tempo, um bem precioso, é proveitosamente gasto, seu pensamento é iluminado à medida que ele escreve; seu coração é despertado para a devoção; e na outra vida ele é recompensado com um prêmio singular.”(CHIRKY:2008, 62)

Conhecemos o destino dos escribas, que desapareceram como categoria profissional à medida em que a impressão se disseminava. Ironicamente a própria obra de Johannes ganhou uma versão impressa. A impressão apresentava inúmeras vantagens sobre os manuscritos, permitia uma reprodução em massas a custos menores e a uma velocidade muito superior. Sabemos que o e-book possui inúmeros benefícios em relação ao formato impresso: maior portabilidade, facilidade de indexação, custo marginal de armazenamento e reprodução, maior acessibilidade, instantaneidade. Estas características amplificam as potencialidades da revolução que a introdução do livro impresso realizou. Se a impressão foi um dos motores da modernidade, o formato eletrônico pode ser o indutor de uma outra transformação. Ainda vivenciamos o princípio desse processo. Novos modelos de negócios serão criados, novas estruturas jurídicas deverão ser construídas e provavelmente novos formatos mais

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radicais e híbridos haverão de surgir com a convergência das mídias, o e-book parece ser apenas mais um passo rumo a disseminação livre do conhecimento. Este fenômeno é uma oportunidade de estudos para os teóricos ligados a “Economia Política da Comunicação” pois propicia um estudo vivo de embates que se dão nas dimensões políticas, culturais e econômicas de uma cadeia produtiva com mais 500 anos de existência. Assim como criticamos o funcionalismo presente no conceito de indústria cultural, que não concede ao receptor um papel ativo de rejeição e ressignificação de conteúdos que pretendem controlá-lo, também criticamos a transposição desta visão para as indústrias do conteúdo. Mas conceder um papel ativo aos receptores/leitores não nos permite negligenciar a profunda assimetria entre esses e os dirigentes do aparato tecnocultural das indústrias culturais. O mercado brasileiro, devido a fatores como a barreira linguística (o português é uma língua periférica), a relativa autonomia de seus editores (muitas empresas locais) e o papel relevante do governo, acabou por determinar uma dinâmica diferente na introdução do novo formato. O futuro desse processo ainda encontra-se aberto, por um lado pode representar uma oferta mais abundante e acessível (barata) de conteúdo, propiciando a ampliação do público leitor e da variedade daquilo que é oferecido; por outro pode ser mais uma etapa da integração do mercado às “matrizes” das corporações europeias e americanas, com a diminuição da presença de conteúdo local e a homogeneização da oferta, principalmente com best-sellers. A cultura hacker criou um lema que para além de todas as ameaças que possamos vislumbrar, adequa-se perfeitamente ao momento, afinal a oportunidade e os benefícios parecem ser imensos, a seguinte frase: “A informação quer ser livre.”

Referências

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Impactos da emergência do e-book no mercado editorial brasileiro - José de Mello Junior

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MERCADO E POLÍTICA NO SETOR DAS TELECOMUNICAÇÕES MÓVEIS NA ARGENTINA. OLIGOPÓLIO E INTERVENÇÃO ESTATAL MERCADO Y POLÍTICA EN LAS TELECOMUNICACIONES MÓVILES EN ARGENTINA. OLIGOPOLIO E INTERVENCIÓN ESTATAL BUSINESS AND POLITICS IN MOBILE TELECOMMUNICATIONS IN ARGENTINA. OLIGOPOLY AND STATE INTERVENTION

Gustavo FONTANALS Licenciado en Ciencia Política por la Universidad de Buenos Aires (UBA), Maestría en Ciencia Política por la Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales (FLACSO) Argentina, Doctorando en Ciencias Sociales por la Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales (FLACSO) Argentina Email: gustavofontanals@gmail.com

Revista Eptic Online Vol.16 n.2 p.26-53 mai-ago 2014 Recebido em 09/12/2013 Aprovado em 02/05/2014


Mercado e política no setor das telecomunicações móveis na Argentina – Gustavo Fontanals

RESUMO Este artigo considera o anúncio da chegada da empresa estatal ArSat no sector das telecomunicações móveis na Argentina, com a intenção de analisar o processo de tomada de decisões. A partir daí, explora o impacto sobre a estrutura de mercado e a qualidade dos serviços. Finalmente, focaliza as alternativas da empresa pública e as perspectivas da indústria.

PALAVRAS-CHAVE Argentina, Telefonia Móvel, Política Pública, ArSat, Operadores Históricos.

RESUMEN Este artículo parte del anuncio gubernamental del ingreso de la empresa estatal ArSat en el negocio de telecomunicaciones móviles en la Argentina, con la intención de evaluar la lógica político-institucional de la toma de decisiones sectoriales. Desde ahí, se indaga el impacto que ésta ha tenido sobre la evolución del mercado y la calidad de los servicios. Finalmente, se analizan las alternativas para el ingreso del operador público, así como las perspectivas del sector.

PALABRAS CLAVE Argentina, Telefonía Móvil, Política Pública, ArSat, Operadoras Incumbentes.

ABSTRACT This article considers the announcement of the entry of the state enterprise ArSat in the mobile telecommunications market in Argentina, with the intention of evaluate the sectoral decision-making process. From there, it analyzes the impact of this process both on market structure and services quality. Finally, it focalizes on the alternatives of the public enterprise, as well as the prospects for the industry. KEYWORDS Argentina, Mobile Telephony, Public Policy, ArSat, Incumbent operators.

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Mercado e política no setor das telecomunicações móveis na Argentina – Gustavo Fontanals

Introducción

El 5 de septiembre de 2012 el Gobierno dio a conocer una decisión que tomó por sorpresa no sólo a los involucrados directos (empresas y cooperativas, asociaciones de consumidores, analistas y periodistas) sino también al resto de los actores políticos y a la sociedad en general: la cancelación de una licitación de espectro radioeléctrico atribuido a telecomunicaciones móviles y la asignación de esas frecuencias a la empresa estatal Argentina Soluciones Satelitales (ArSat). El anuncio, realizado en una conferencia de prensa del Ministro de Planificación Federal junto al Secretario de Comunicaciones, implicaba el retorno del Estado a la prestación de servicios de telefonía, a casi 22 años de la privatización de la Empresa Nacional de Telecomunicaciones (ENTel). Y se enmarcaba en una estrategia dirigida a la conformación de una compañía integral de telecomunicaciones en manos estatales, que prestara servicios en cada uno de los principales rubros del sector: transmisión satelital, banda ancha vía fibra óptica, telefonía móvil y televisión digital terrestre. El Ministro Julio De Vido dio a conocer la Resolución 71/12 de la Secretaría de Comunicaciones, que explicitaba los motivos de cancelación del concurso en marcha, y la decisión de la Presidenta Cristina Fernández de Kirchner de que se asignara dicho espectro a ArSat. Pero dio muy pocas precisiones sobre los modos en que la empresa haría uso del espectro y en que prestaría servicios, ni refirió cronograma alguno de ejecución. Ha pasado más de un año y medio del anuncio y ninguna de esas cuestiones fue definida, siguiendo a la espera de las decisiones del mando político del sector. El cual significativamente ha variado de nombres en el transcurso. Mirada retrospectivamente, la decisión de la intervención directa del Estado en telecomunicaciones móviles traía una cola más larga que la que se dejaba entrever. Nos proponemos dar cuenta de ese proceso, dotando de un marco analítico a la escasa información disponible. Se adopta un enfoque político-institucional, que procura explicar los resultados de política a partir del comportamiento de los actores relevantes para la toma de decisiones. Esto implica concentrarse en la evolución de los procesos decisorios, focalizando en la interacción de los actores institucionales con capacidades administrativas para la toma de decisiones (Gobierno, Congreso, Justicia) con otros actores políticos, económicos y/o sociales que logran poner en juego su capacidad de influencia. Es a partir de allí que se busca rastrear un proceso de doble vía: cómo el marco institucional y la interacción de los actores resultan en la toma de decisiones de las políticas públicas relevantes para el sector, pero a la vez cómo esas políticas impactan en la configuración de la estructura de mercado y en el desarrollo de los servicios. Por medio del relevamiento documental y de testimonios de representantes de los actores intervinientes, se busca dotar de inteligibilidad a esos procesos, aportando una explicación político-institucional a la configuración del sector.

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La capacidad discrecional del Gobierno sobre las políticas de telecomunicaciones

Quien esté al tanto de la política argentina reconocerá un modo habitual en los procesos de toma de decisiones a lo largo de los gobiernos kirchneristas: la reserva en cuanto sea posible en la elaboración de la medida, y la sorpresa en un anuncio rimbombante pero poco específico, como modo de eliminar o reducir la interferencia de potenciales actores de veto y presentarse como quien lleva la iniciativa. Y en todo caso, si la política en cuestión lo exige, sentarse a partir de ahí a negociar la implementación con los actores involucrados o de cuyo recurso se exige. Pero esa lógica se refuerza en el caso particular de las telecomunicaciones, dado que el marco normativo vigente exalta las capacidades discrecionales del Ejecutivo para la toma de decisiones, sin exigirle tomar en cuenta de modo institucional la participación y los intereses de otros actores interesados. Este marco normativo está fundado en la Ley Nacional de Telecomunicaciones 19.798, sancionada en 1972 bajo el gobierno de facto del Gral. Alejandro Lanusse, que atribuye al Ejecutivo Nacional plena competencia para establecer, explotar, autorizar a terceros y controlar todo servicio federal de telecomunicaciones. Desde entonces, hubo escasos proyectos de actualizar la ley, ninguno de los cuales llegó a tratarse en plenario. Los sucesivos gobiernos han preferido en cambio promover modificaciones parciales mediante resoluciones administrativas y decretos ad hoc, lo que ha conformado un marco fluctuante y poco ordenado, resaltando la discrecionalidad gubernamental (Galperín y Cabello, 2008). En este contexto, se debe destacar la casi nula participación del Poder Legislativo en la fijación de las políticas del sector. En más de 40 años, sólo intervino en forma directa en 1989 para dar su aprobación general a la Ley de Reforma del Estado que habilitó la privatización de empresas públicas, incluyendo las de telecomunicaciones. Tras lo cual sólo se limitó como cuerpo a ‘expresar preocupación’ ante alguna coyuntura puntual de relevancia pública. Y aunque existieron algunos proyectos presentados por legisladores o bloques minoritarios destinados a reglamentar aspectos parciales de las telecomunicaciones, nunca lograron superar el ámbito de las comisiones parlamentarias. A lo que se suma la excepción que confirma la regla, cuando en 2004, como consecuencia de la reacción pública a un conocido caso de secuestro delictivo (en el que se utilizaron teléfonos no registrados), el Congreso sancionó la Ley de Servicios de Comunicaciones Móviles 25.891. Se trata de una norma extremadamente genérica destinada básicamente a establecer “la prohibición de comercialización de servicios por revendedores, mayoristas y cualquier otra persona que no revista carácter de legalmente autorizada para ello”, pero que no avanzó de ningún modo en la regulación del servicio. Y que, como muestra de lo que venimos diciendo, no fue reglamentada por ningún gobierno desde entonces, por lo que no se encuentra en práctica. Se podría atribuir este predominio del Ejecutivo sobre las políticas del sector al arraigado presidencialismo argentino, y remarcar que constituye un rasgo habitual en la región. Pero el asunto se profundiza cuando se evalúa la forma en que el Ejecutivo implementa las políticas.

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1- Los únicos casos que prevén la obligación de consulta con otro organismo público son los de defensa del consumidor y competencia, como corresponde a los servicios públicos (Ley 24.240 Defensa del Consumidor y Ley 25.156 Defensa de la Competencia). Pero se aplica sólo a telefonía fija, dado que ni las telecomunicaciones móviles ni la provisión de Internet son considerados servicios públicos. Y se suma otra particularidad: las agencias de aplicación (Subsecretaría de Defensa del Consumidor y Comisión Nacional de Defensa de la Competencia) no son autárquicas, sino dependencias institucionales de la Secretaría de Comercio Interior del Ministerio de Economía, y sus titulares son designados a voluntad por el Presidente. Además, sus dictámenes operan como recomendaciones al Secretario de Comercio, pero no son vinculantes, y en los pocos casos en que intervinieron en el sector resolvieron acorde a los intereses o directivas del mando político. La dependencia institucional se hace más notoria en Defensa de la Competencia, dado que la Ley 25.516 prevé la formación de un “Tribunal Nacional de Defensa de la Competencia independiente y autárquico, con jurisdicción completa en la defensa de la competencia en todos los sectores de la economía”. El tribunal nunca fue constituido, bajo la decisión de los sucesivos gobiernos, y la agencia de aplicación sigue siendo la CNDC.

Los decretos que configuraron el proceso de privatización de ENTel en 1990 establecieron la emergencia de un ente regulador, la precedente Comisión Nacional de Telecomunicaciones, como agencia descentralizada de la por entonces Secretaría de Comunicaciones y Obras Públicas de la Nación (Decreto 1185/90). La misma debía funcionar en forma autónoma y desarrollar las funciones de regulación administrativa y técnica, control, fiscalización y verificación en materia de telecomunicaciones. No obstante, su autonomía se vio afectada desde el inicio, con sucesivas intervenciones administrativas, cambios de dependencia institucional y traspaso de atribuciones a su principal político (Decretos 136/92, 2160/93, 515/96 y 660/96). Desde entonces, la resultante Comisión Nacional de Comunicaciones (CNC) opera como ente descentralizado a cargo del control y fiscalización técnica del sector, pero plenamente limitada por su vínculo administrativo con la Secretaría de Comunicaciones (SECOM), que concentra las responsabilidades de fijación de las políticas públicas. De hecho, la CNC se encuentra intervenida ininterrumpidamente desde 2002, tras la sanción de la Ley de Emergencia que siguió a la crisis económica y política (Decreto 521/2002). A pesar del crecimiento y estabilidad política de esta década, la intervención ha sido prorrogada año a año vía decreto, ante “la necesidad de finalizar el proceso de reorganización iniciado” (Decretos 25/12 y 326/13). En los más de 20 años de existencia del ente regulador, nunca se consolidó un sistema de concurso de directores ni de formación de una burocracia técnica que opere en forma autónoma (Abdala y Spiller, 1999; Vispo 1999; Galperín y Cabello, 2008). La SECOM, por su parte, es una agencia del gobierno dependiente directamente del Ministerio de Planificación Federal, que tiene “la competencia exclusiva para la elaboración y ejecución de las políticas a aplicar en el ámbito de las comunicaciones” (Decreto 1142/03). La misma opera como la autoridad de decisión y aplicación de las normas del sector, quedando a su cargo por ejemplo el otorgamiento y la declaración de caducidad de las licencias de servicios de telecomunicaciones y la asignación de espectro, lo que otorga al Ejecutivo un poder discrecional de decisión sobre la entrada (o salida) de los operadores al mercado. El problema se refuerza ante la ausencia de canales institucionales o formales que prevean el acceso de otros actores interesados a los procesos de toma de decisiones de las agencias de aplicación o de control: no está prevista la participación regular de otros organismos públicos, ni de empresas (operadoras o proveedores), asociaciones de usuarios, colegios profesionales, representantes académicos, etc.1. Tampoco existe como práctica regular la presentación de agendas de trabajo ni la convocatoria a audiencias: aunque los documentos de consulta y las audiencias están previstos en la normativa, tienen sólo carácter consultivo, y en las pocas ocasiones en que se implementaron fue por exclusiva voluntad del Gobierno y no resultaron en efectos concretos. La única vía que estos actores encuentran para intentar influir institucionalmente sobre las decisiones de política, en general a modo de veto o rechazo, ha sido la presentación de recursos ante el Poder Judicial, lo que ha sucedido en casos puntuales.

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Lo propio no significa que esos actores no sean tenidos en cuenta en los procesos decisorios. Más bien resalta la existencia de un esquema de negociaciones informales con centro en la alta jerarquía política del sector: el Ministro de Planificación, el Secretario de Comunicaciones y sus intercambios con otros altos funcionarios u otros actores públicos o privados que coyunturalmente logran acceso. Un esquema del que por norma no emerge información pública, quitando posibilidad de trasparencia y accountability (Galperín y Cabello, 2008). Lo que aumenta considerablemente las oportunidades de ‘captura’ del decisor o el regulador, que suelen quedar sujetos a intereses particulares de corto plazo (sean políticos o de negocios) que se imponen sobre objetivos sectoriales o sociales de más largo plazo. Este funcionamiento ha operado a su vez como incentivo para que los sucesivos gobiernos no promuevan un cambio general del esquema normativo, dado que el paso a uno institucionalmente más equilibrado reduciría su capacidad de intervención discrecional, algo contrario a sus intereses políticos inmediatos. A lo largo de las dos últimas décadas, se han registrado numerosos procesos de toma de decisiones discrecionales y opacos, a los que se suma una práctica de aplicación errática o arbitraria de las normas vigentes, a través de simples resoluciones administrativas ad hoc o de la demora injustificada en su puesta en práctica. Ejemplos de ello van desde el cuestionado rebalanceo tarifario y las licitaciones ‘a medida’ de las incumbentes del espectro PCS a finales del gobierno de Carlos Menem, como la falta, demora injustificada o precaria instrumentación de los reglamentos vigentes de servicio universal, desagregación de bucle local, portabilidad numérica o regulación de acuerdos de interconexión de la última década (Abeles, Forcinito y Schorr, 2001; Azpiazu, 2003; Forcinito, 2005; Fontanals, 2012).

La falta de regulación sobre las telecomunicaciones móviles y su impacto en el servicio

En los últimos tres años se ha hecho evidente un marcado deterioro de los servicios de telecomunicaciones móviles en la Argentina, especialmente en el Área Metropolitana de Buenos Aires (AMBA) y en las principales ciudades del país. Se ha vuelto habitual tener que hacer múltiples intentos para conseguir comunicarse, que una llamada se corte varias veces, que los mensajes de texto demoren horas en llegar, que los servicios de datos funcionen lento e inestables o que directamente la señal desaparezca por completo. Ante este panorama, es cierto que corresponde buena responsabilidad a las operadoras, que han alentado y visto crecer exponencialmente la cantidad de clientes y el uso que hacen de sus teléfonos móviles sin invertir consecuentemente en la expansión de sus redes. Pero también al Gobierno nacional, que durante años no ha instrumentado incentivos adecuados para que éstas inviertan en infraestructura e innovación tecnológica, demorando activamente decisiones que podrían resultar en mejores servicios.

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Los servicios móviles son actualmente el segmento más dinámico y rentable del sector de telecomunicaciones en la Argentina, representando cerca del 70 % de la facturación total, con tasas de rentabilidad del orden del 30 % durante los últimos 7 años (Balances Anuales de las compañías). Esto los ubica, junto al bancario, entre los negocios más fructíferos del país. Las estadísticas oficiales, provistas por el INDEC (2014) con datos que la CNC obtiene de las operadoras, informan cerca de 62 millones de líneas móviles en servicio. Que con una población de casi 42 millones de habitantes resulta en una penetración superior al 145 %. Estudios más ajustados calculan que más del 30 % de esas líneas están en desuso o corresponden a modems usb o enlaces MachineToMachine, y registran unos 40 millones de líneas en uso y unos 30 millones de usuarios reales o únicos (Carrier y Asociados, 2014; GSMA, 2013). La penetración, igualmente, sigue siendo cercana al 100 %, y constituye el principal servicio de telecomunicaciones del país.

2- En palabras de Norberto Berner, Secretario de Comunicaciones: “En la actualidad, de cada cien reclamos que recibe la CNC, setenta corresponden a telefonía fija. No es porque las líneas fijas funcionen peor que las móviles, sino porque el mecanismo que las regula genera más incentivos para hacer los reclamos al garantizar una solución de los problemas. En el caso de la telefonía móvil, si hoy las empresas no responden no se les puede aplicar multa ni se le da una solución al usuario” (Página 12, 14/11/2013).

A pesar de esa masividad, las telecomunicaciones móviles no son consideradas un servicio público en Argentina, ni están sujetas aún a una regulación púbica específica, como sí sucede con la telefonía fija. La única normativa vigente sobre el servicio a lo largo de sus 25 años de existencia fue el Reglamento General de Clientes de los Servicios de Comunicaciones Móviles, de carácter muy general y bajo alcance (básicamente, definiciones de los términos del servicio). No existe regulación tarifaria (los planes y tarifas son fijados por las empresas), ni sobre metas de inversión o cobertura, y recién ahora se procura instaurarla sobre la calidad de prestación y atención. Eso ha quitado toda posibilidad de control por parte del Estado, dado que no existen disposiciones ni metas públicas específicas con las que regular y comparar2. Algo sobre lo que el propio Gobierno no avanzó por más de 10 años. Y que recién ahora apunta a hacerlo de modo parcial, como un efecto derivado del proceso aquí considerado. En cuanto a las tarifas, la falta de regulación ha llevado a que crecieran a un ritmo superior al 20 % anual durante los últimos 5 años (incluyendo un aumento superior al 30 % en 2012), por encima de las estimaciones de inflación oficial y privadas. Recién en enero de 2013 se registró por primera vez una intervención del Gobierno sobre las tarifas de los servicios móviles, cuando en el marco de la política de congelamiento de precios emprendida para contener la inflación, se produjo una negociación informal que resultó en la suspensión de un aumento anunciado. Y que se reiteró en agosto de 2013 y marzo de 2014, cuando las operadoras volvieron a anunciar públicamente aumentos. Pero no se trató de un procedimiento formal, sino de negociaciones puntuales entre el Gobierno y las empresas, y sigue sin existir ninguna normativa de control tarifario en el sector. No obstante, las operadoras respondieron con medidas defensivas de su rentabilidad, que en la práctica representaron nuevos aumentos. Por un lado, con la cancelación de promociones y bonificaciones (como las ‘tarifas comunidad’ y otros packs promocionales), exigiendo el paso a planes más caros para mantenerlos. Pero también a través de la multiplicación de sus planes, donde los nuevos implican mayores precios finales, y son difíciles de controlar por las autoridades. De hecho, la incorporación a fines de 2013 de la facturación

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3- La facturación por segundo, vigente en muchos países de la región, era reclamada por asociaciones de usuarios frente al redondeo por minuto que beneficiaba a las empresas. Varios fallos judiciales respaldaron los reclamos, intimando a las operadoras. Frente a eso, el Gobierno resolvió introducirla por medio de la Resolución 26/13 de la SECOM. La cual, paradójicamente, contempla la incorporación del ‘cargo de conexión’, que terminó representando un aumento efectivo para la mayoría de los usuarios.

4- Las telecomunicaciones móviles constituyen la principal fuente de reclamos en muchos países de la región y del mundo. Las operadoras argumentan que brindan el servicio con mayor cantidad de clientes en relación contractual directa, motivo por el cual los números totales tienden a ser más altos.

por segundo en las llamadas móviles permitió a las empresas fijar nuevas tarifas, a la vez que incorporó un cargo extra de ‘establecimiento de llamada’. Estos cambios representaron en la práctica aumentos de entre el 9 y el 25 %, con un impacto marcado sobre los planes prepagos3. Precisamente, se ha producido en estos años un distanciamiento entre los precios de los planes prepagos y postpagos, lo que genera que los sectores de menores recursos (que suelen usar tarjeta) terminen pagando conexiones más caras. Y se estima que un 70 % de las líneas activas corresponde a postpagos (GSMA, 2013). A esto se suma la ausencia de regulaciones de tipo tarifa social, orientada a subsidiar a los sectores de menor poder adquisitivo. Por otro lado, tampoco existe la posibilidad de imponer y/o controlar desde el Estado los planes de inversión ni la cobertura de las redes, dado que no existe obligación pública alguna para las empresas, que deciden libremente acorde a sus intereses comerciales. Y si bien, como veremos, el Gobierno puso en marcha a mediados de 2013 una iniciativa destinada a controlar la calidad de prestación de servicios y atención al cliente, la misma se encuentra en etapa de instrumentación, y demandará el desarrollo de capacidades técnicas e institucionales de las operadoras y el regulador que insumirán tiempo hasta volverse efectivas. La escases de controles ha llevado a que las empresas de telefonía móvil lideren por lejos el ranking de reclamos de consumidores, con cerca del 30 % de las quejas presentadas a nivel nacional y distrital. Las mismas no sólo se relacionan con la calidad de prestación (deficiencia o falta de cobertura), sino también a incumplimientos de contratos o promociones, cargos o cambios de planes no solicitados, bajas no realizadas y sobrefacturación4. Haciéndose eco de esa situación, desde 2010 se han presentado en el Congreso cuatro proyectos de ley para declarar a la telefonía móvil como servicio público (Expediente 2096/10, Expediente 4311/10, Expediente 0072-D-2011 y Expediente 8517-D-2012). Los mismos se dirigen a establecer una regulación específica que garantice “el acceso de los ciudadanos a servicios de telefonía móvil eficientes, de acuerdo a los estándares aceptables con la tecnología actual, con tarifas justas y razonables, y con estricto cumplimiento de las obligaciones pactadas dentro de los contratos de servicios” (Expediente 4311/10). No obstante, ninguno de los proyectos alcanzó siquiera dictamen de comisión, lo que nos retrotrae a la lógica política descripta: no está en el interés del propio Gobierno (que detenta mayoría parlamentaria) avanzar en legislaciones que limiten su capacidad de intervención e impliquen la participación regular de otros actores. El Gobierno está igualmente en condiciones de avanzar en este sentido con medios propios, por ejemplo con sólo actualizar vía simple resolución dela SECOM el Reglamento General vigente para hacerlo más efectivo, incorporando metas de inversión, cobertura y calidad, a lo que podría sumar algún tipo de regulación tarifaria. Como mencionamos, dio un primer paso procurando el control público sobre la calidad de prestación y atención, que aunque parcial no deja de ser un avance en relación al vacío existente por décadas.

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Otra forma efectiva en la que los gobiernos suelen introducir regulaciones sobre el sector son las licitaciones de espectro, incorporando metas de obligación pública como condiciones de adjudicación. El Gobierno tampoco ha avanzado en ese camino: en los pliegos de la subasta cancelada sólo figuraba una obligación de cobertura con plazos y exigencias laxas para los entrantes y no para los incumbentes, y no estaba acompañada por ningún otro requerimiento.

Un mercado concentrado y la falta de acción gubernamental para la competencia

Analizando la estructura de mercado del sector encontramos un oligopolio concentrado, en el que prima una dinámica de funcionamiento concertado. Existen cuatro operadoras móviles (Movistar de Telefónica, Personal de Telecom, Claro de América Móvil y Nextel de NII Holding), aunque las tres primeras capturan el 98 % del mercado en cantidad de líneas y el 94 % en facturación. Con variaciones menores a lo largo del tiempo, las tres operadoras dominantes se reparten cerca del 30 % de los clientes y de la facturación total del sector.

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Fuente: Carrier y Asociados, 2014

A la vez, los planes y promociones de las empresas son muy similares, y los aumentos de tarifas se producen siempre en forma concomitante. Esto sería reflejo de una dinámica poco competitiva: las empresas no tienden a competir entre ellas a la baja en base a precios o calidad de servicios, encontrándose cómodas con el reparto equilibrado del mercado. El Gobierno, por su parte, poco se pronunció sobre esa situación. Muy al contrario, demoró inexplicablemente más de una década la instrumentación de diversas medidas que podrían introducir competencia en el sector.

Una Portabilidad numérica demorada y poco efectiva

Una primer demora difícil de justificar fue la reglamentación de la portabilidad numérica, que está prevista en la normativa desde el año 2000, cuando el Gobierno de Fernando De la Rua sancionó el Decreto 764/00. Éste reglamentó la liberalización de las telecomunicaciones tras la finalización del período de exclusividad de las empresas resultantes de la privatización de ENTel, Telefónica y Telecom, y es el principal instrumento jurídico vigente para el sector (en cuanto modifica a la Ley de Telecomunicaciones). Sin embargo, ninguno de los Gobiernos avanzó en su instrumentación, que requería una resolución de la SECOM que la pusiera en marcha, bajo el argumento de que “tras la crisis de 2001 no estaban dadas las condiciones económicas que hicieran aconsejable su implementación” (Resolución 98/10). Recién a mediados del 2010, luego que una sucesión de fallos judiciales promovidos por asociaciones de usuarios intimaran a hacerlo, se procedió a su reglamentación (vía Resolución 98/10, y en forma exclusiva para los servicios móviles, sin incluir a la telefonía fija).

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La definición del sistema quedó a cargo de un “Comité de Portabilidad Numérica” integrado por los “representantes de los Prestadores de los servicios portables”, es decir, las mismas compañías. Que terminó promoviendo un sistema muy laxo, que contempla plazos y requisitos de transferencia que reducen la efectividad de la herramienta. Entre otras cosas, se estableció un período de 10 días hábiles para hacer efectivo el cambio (que ha rondado los 30 días en muchos casos, con escaso control del regulador), un plazo de interrupción total del servicio de hasta 3 horas, la obligación de certificación de antecedentes de cumplimiento de pago (que no existe para la solicitud de líneas nuevas) y la exigencia de presencia en persona de los clientes en los locales de las compañías. Tomando nota de esta situación, en noviembre de 2013 la SECOM dispuso por medio de la Resolución 21/13 una “simplificación del proceso con el objetivo de garantizar mayor rapidez y transparencia”. No obstante, mantuvo todos los requisitos mencionados, con una reducción a 5 días del plazo máximo para concretar la transferencia (aunque estableciendo que no se aplicaran sanciones si se extiende a 10 días por “motivos de complejidad”). 5- La demora en casi 10 años en la implementación de la portabilidad también es motivo de su precaria efectividad, dado que cuando finalmente se puso en marcha el mercado estaba maduro (con una penetración del 100%) y no en fase de crecimiento. A eso se suma la escasa difusión sobre su funcionamiento por parte de la autoridad pública.

Según datos de la CNC, durante el primer año de funcionamiento se concretaron 339.362 traspasos, lo que representa menos del 0,6 % de las líneas en servicio y del 1 % de las líneas en uso. Un monto muy inferior a las estimaciones iniciales y a las comparaciones regionales, donde los traspasos suelen rondar el 3 % durante el primer año. Pero principalmente, no ha tenido efectos considerables sobre la dinámica del sector, promoviendo una reducción de tarifas o una mejora en la calidad de atención. Sucede que para que la portabilidad sea efectiva requiere de un mercado competitivo, donde las empresas busquen diferenciarse en base a precio o calidad de servicio para la captación de clientes5. El modo de propiciar una dinámica más competitiva sería promover el ingreso de nuevos operadores, o al menos generar incentivos para el desarrollo del más débil (Nextel). Lo que también requiere el accionar del Gobierno, que poco ha hecho al respecto en estos años.

Un freno a los Operadores Móviles Virtuales

Un modo inmediato de introducir competencia sería alentando el ingreso de los Operadores Móviles Virtuales (MVNO por su sigla en inglés), lo que también está previsto acorde al Decreto 764/00. Desde entonces, la SECOM sólo ha habilitado a un MVNO, NUESTRO, integrado por una federación de cooperativas telefónicas del interior del país (FECOSUR), que opera sobre la red de Personal. Este emprendimiento fue promovido en el 2010 por el propio Gobierno, como forma de permitirle a esas empresas comenzar a prestar servicios móviles, de modo de complementar los de telefonía fija y acceso a Internet que ya brindaban. Pero la empresa obtuvo una participación muy limitada: cuenta actualmente con unos 30.000 abonados, mientras sus previsiones eran alcanzar 200.000 para esta fecha y rondar 1.3 millón para 2015. La británica Virgin Mobile (que ya brinda servicios MVNO en Chile, Brasil y Colombia) anunció varias veces su intención de ingresar

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al país, pero nunca logró obtener la autorización de la SECOM, y recientemente informó que esos planes están suspendidos. Se debe remarcar igualmente que el negocio de los MVNO es la reventa y comercialización de servicios, en general con estrategias de nicho, y que al depender de las redes de las operadoras existentes no suelen dinamizar mucho el mercado. En este sentido, no pueden avanzar demasiado sobre las tarifas y menos aún sobre la calidad de prestación, aunque sí pueden hacerlo sobre la atención al cliente, lo que de por sí constituye un primer paso. Pero hay otra limitación central a las MVNO en el país: la negativa de las operadoras a acordar el uso de sus redes, sosteniendo que están muy cargadas y que con el espectro disponible no tienen espacio para ‘huéspedes’. El Gobierno, que no tiene herramientas normativas para obligarlas y no asigna nuevo espectro desde 1999, aceptaría esta situación.

Espectro limitado, congestión de redes y problemas para su expansión

Más allá de la falta de competencia, y en parte a causa de ella, los principales motivos de los problemas con el servicio son las redes y el espectro, que están cerca o directamente saturados en varios puntos del país con alto consumo, y adolecen de inversiones en zonas más periféricas. Las compañías vienen insistiendo desde hace años en la necesidad de asignar espectro adicional a telecomunicaciones móviles. Y no sólo del que estaba previsto en la licitación cancelada (el ‘remanente’ que debió devolver Movistar), sino también de nuevas bandas que permitan introducir tecnologías de cuarta generación (4G LTE). Lo cierto es que la Argentina es el país que menos espectro ha adjudicado a telecomunicaciones móviles de los 10 principales mercados de América Latina: se ha atribuido un total de 190 MHz, mientras que en Brasil hay disponibles 524, en Colombia 412.5, en Chile 395 y en México 243 MHz. Eso representa sólo el 14,62 % del espectro recomendado por la UIT para el año 2015, lo que se agrava al considerar que la porción asignada a ArSat se encuentra todavía fuera de uso (Signals, 2013).

La última licitación de espectro en Argentina se realizó en 1999. Y desde entonces se ha registrado un crecimiento exponencial no sólo en la cantidad de líneas sino también en el uso que se hace de ellas: las líneas en servicio se multiplicaron 15 veces (pasaron de 4 a 62 millones), las llamadas 22 veces, y aparecieron no sólo los mensajes de texto sino también los datos móviles (que hacen un consumo más intensivo de las redes y el espectro).

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Se rvicio de te le fonía ce lular m óvil Período

Teléf onos

Llamadas

SMS

en servicio

Millones

Dic 93

140,540

...

.

Dic 94

241,163

...

.

Dic 95

405,395

...

.

Dic 96

667,020

81,469

.

Dic 97

2,009,073

233,757

.

Dic 98

2,670,862

297,311

.

Dic 99

4,199,201

347,278

.

Dic 00

6,380,897

437,052

.

Dic 01

6,741,791

406,502

.

Dic 02

6,566,740

409,215

.

Dic 03

7,842,233

612,235

.

Dic 04

13,512,383

1,159,230

1,463.3

Dic 05

22,156,426

1,681,061

1,926.9

Dic 06

31,510,370

2,210,461

2,560.7

Dic 07

40,401,771

2,805,833

3,569.3

Dic 08

46,508,774

3,809,343

5,049.8

Dic 09

52,482,780

4,748,718

6,144.8

Dic 10

56,725,200

5,878,444

7,447.9

Dic 11

57,860,000

7,339,875

8,995.1

Dic 12

58,599,390

8,661,793

11,822.6

Dic 13

60,597,500

9,681,739

13,086.9

Feb 14

61,681,500

8,693,247

10,904.4

Fuente: elaboración propia, datos CNC 2014

Sólo a lo largo de 2013 se registró un crecimiento del 20 % en las llamadas y del 30 %

6-

Las redes de telecomunicaciones están constituidas por un backbone o cableado troncal que permite interconectar múltiples nodos, subredes o estaciones base por medio de un sistema de backhaul o enlaces intermedios, compuesto de cableados menores y equipos de interconexión.

en los SMS, mientras que se duplicó la cantidad de usuarios que consumen datos. Lo que resulta una tendencia creciente: los smartphones ya constituyen un 46 % del plantel de teléfonos móviles, a lo que se suman los socialphones, que también consumen datos. Y un 84 % de los 13 millones de aparatos móviles vendidos en 2013 correspondieron a esas categorías, marginando a los teléfonos básicos (Carrier y Asociados, 2014). Actualmente, cerca del 50 % de los ingresos de las operadoras provienen de los datos, que seguirán creciendo exponencialmente en los próximos años (UIT, 2012). Ante esto, se hace evidente la necesidad de aumentar la capacidad de las redes móviles, y una parte central corresponde al espectro. Pero no sólo de espectro viven las redes móviles: también de las antenas y radiobases y de todo el sistema de backbone y backhaul de las operadoras para procesar y canalizar los servicios6. Y es éste un punto clave donde el Gobierno descarga responsabilidad sobre las empresas, denunciando que no han invertido lo suficiente en la actualización de sus redes. En los últimos años la relación entre los ingresos y la inversión de las telefónicas estuvo cerca del 8 %. Las empresas dicen que fue más porque contabilizan como inversión el subsidio para facilitar la venta de terminales, pero eso no es inversión de red. Las consultoras internacionales sostienen que una inversión del 20 % de los ingresos equivale a expansión, un 15 % a mantenimiento y un 10 % significa que se están yendo. El problema es que desde hace varios años el nivel de inversión de las empresas está por debajo del 10 %” (Norberto Berner, Secretario de Comunicaciones, Página 12, 20/09/2013).

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Frente a eso, las compañías insisten en la necesidad de licitar nuevo espectro, con el que podrían invertir directamente en el desarrollo de redes con tecnología de punta (4G LTE). Y resaltan que cuentan con inconvenientes para la importación del equipamiento necesario, que suele quedar retenido en la aduana por largo tiempo, afectando sus programaciones. A lo que suman una queja de larga data: las dificultades para la instalación de nuevas antenas, e incluso para conservar las instaladas. Las empresas vienen reclamando desde 2005 la sanción de una normativa unificada a nivel federal (como se hizo por ejemplo en Chile vía Ley). Hasta el momento, la instalación depende no sólo de la aprobación del locatario, sino también de una superposición de legislaciones provinciales con regulaciones municipales de diverso orden. Esto genera inconvenientes ante el creciente rechazo de los vecinos a las antenas (justificados en motivos de salud ante la cercanía de hospitales, escuelas, centros recreativos, o en meros argumentos estéticos, etc.). Pero también por la suma de requerimientos administrativos, técnicos, ambientales y de tasas municipales difíciles de cumplir. Las empresas avanzaron en 2009 en un acuerdo con la Federación Argentina de Municipios y la Universidad Nacional de San Martín para la redacción de un Código de Buenas Prácticas para el Despliegue de Redes de Comunicación Móvil, que dispone de un modelo de ordenanza para los gobiernos locales, pero que no cuenta con carácter vinculante. Lo cierto es que este problema no es exclusivo de Argentina, sino creciente en la región. Y es difícil de regular por el Gobierno, que no puede imponerse sobre las atribuciones provinciales y municipales, lo que sólo sería superado con una Ley nacional (que resulta poco probable). A pesar de estas dificultades, aún sobre la base del espectro asignado, las compañías están en condiciones de avanzar sobre sus redes para mejorar los servicios y responder a la demanda creciente, acordando punto a punto la instalación de antenas, optimizando su distribución, potencia y tecnología para un uso más eficiente, dotando de fibra óptica a sus tendidos y modernizando sus sistemas de backhaul. De hecho, durante los últimos años han anunciado importantes planes de inversión en sus redes, aunque la ejecución ha sido bastante menor. Y han vuelto a anunciar fuertes inversiones para 2013/14, con foco en el fortalecimiento de sus redes. Que éstas se concreten en los montos anunciados deberá ser evaluado en un contexto en que la rentabilidad del negocio ha decrecido, principalmente ante la limitación a la remisión de utilidades instaurada en 2012. Por otra parte, dada esa restricción y la permanencia de un contexto inflacionario, la inversión se convirtió en una buena alternativa para conservar el valor de las ganancias en pesos, que siguen siendo grandes. No obstante, buena parte de esas inversiones requiere de equipamiento importado, lo que implica la negociación de esas divisas con el gobierno. Más allá de lo dicho, el espectro es sin duda un punto clave en esta historia. Sucede que con el espectro disponible las operadoras se ven obligadas a cursar en las mismas bandas dos infraestructuras distintas: GSM/GPRS/EDGE para servicios 2G y UMTS/HSPA para ser-

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vicios 3G. Esto les impide dedicar canales exclusivos para datos, lo que posibilitaría una mayor eficiencia y una reducción de la congestión. Existen efectivamente lugares de alto tráfico donde se está operando al límite del espectro, y en que la solución no pasa por la instalación de antenas adicionales. A esto se suma una limitación propia de la tecnología 3G, que presenta problemas de latencia que degradan el servicio con la suma de usuarios.

La licitación que no fue y la decisión de ingresar en telecomunicaciones móviles

Las telecomunicaciones móviles no han recibido más ‘aire’ desde la última licitación de espectro en 1999, a pesar del ingente aumento en la cantidad de líneas y en el uso que se hace de ellas. Por el contrario, la situación se volvió más grave, ya que las compañías vienen operando con menos espectro que anteriormente. Eso se debe a que Movistar se vio obligada a reintegrar, tras la compra de Movicom BellSouth en 2004, el sobrante encima del spectrum cap vigente (50 MHz para cada una de las tres áreas de explotación en las que está dividido el país). Esto dio lugar a un extenso proceso por el cual entre 2005 y 2009 Movistar reintegró un total de 42,5 MHz en las bandas de 850 MHz y 1,9 GHz, lo que equivale a un poco más del 20 % del espectro total atribuido a móviles, que desde su rescate se encuentra fuera de uso. Desde entonces, tanto las operadoras como otras compañías que cuentan con licencias de telecomunicaciones pero no con espectro solicitaron repetidamente su reasignación. Lo que era considerado como un paso natural, pero también como uno previo a otro más importante: la atribución de nuevas bandas que permitan el desarrollo de tecnologías 4G. Luego de más de un año de silencio, en que la SECOM y la CNC estudiaron qué bandas era apropiado asignar al desarrollo de esas nuevas tecnologías, el Secretario de Comunicaciones anunció a mediados de 2010 que se subastaría el espectro ‘remante’, tras lo cual se haría lo propio con la banda de 1,7-2,1 GHz (conocida como AWS -Advanced Wireless Services-). Siguió la habitual serie de rumores, muchas veces promovidos desde los despachos oficiales, que abarcaron desde que el espectro remanente se asignaría en forma directa a una asociación de cooperativas telefónicas del interior hasta que se redistribuiría entre las incumbentes acorde al tope vigente. Finalmente, en mayo de 2011 el Gobierno dio a conocer la Resolución 57/11 de la SECOM, que llamaba a la licitación para el espectro remanente, habilitando la participación de las operadoras incumbentes (acorde al tope) y de otras compañías que quisieran ingresar. A partir de entonces se abrió otro proceso de idas y vueltas -con escasa información pública-, por el que se postergó en dos ocasiones el anuncio de precalificados, que finalmente fue fijado para junio de 2012. En este proceso quedaron clasificadas para la licitación las tres operadoras incumbentes habilitadas en función de límite de espectro (Personal, Claro y Nextel), a las que se sumaron Superphone (perteneciente a la empresa de TV Paga Supercanal del holding multimedios mendocino Grupo UNO) y Multitrunk (perteneciente

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al holding de obras públicas Grupo Roggio, controlante del IPS corporativo Metrotel). Las previsiones del Gobierno eran obtener unos US$ 230 millones en la subasta, a lo que se estimaba se sumarían inversiones en infraestructura por unos US$ 2.500 millones en un plazo de 3 años. De hecho, el Gobierno ya había asignado esos fondos al presupuesto 2011 de ArSat para el desarrollo de su red de fibra óptica, lo que finalmente fue suplido con aportes del Tesoro Nacional. La fecha fijada volvió a pasar sin anuncios, mientras recrudecían los rumores de contactos entre la jerarquía del Gobierno y representantes de algunos de los clasificados (mostrando a Claro y a Grupo Uno como los de contactos más fluidos). Finalmente tres meses más tarde se dio a conocer el inesperado desenlace que da origen a este relato: la decisión del Gobierno de dejar sin efecto la licitación y asignar en forma directa ese espectro a ArSat. La misma se justificó en fallas de las propias oferentes, que motivaban su descalificación, bajo la amenaza de que se afectara más aún la competencia en el sector. 7- En Argentina, acorde a la normativa de privatización de comienzos de los ‘90, las licencias de telecomunicaciones y concesiones de espectro se otorgan por plazo ilimitado (no tienen fecha de expiración, aunque sí pueden ser canceladas por la SECOM ante el incumplimiento de los términos contractuales). La ausencia de fecha de caducidad es un rasgo inusual a nivel internacional, originado en la intención de valorizar el negocio al momento de la transferencia.

Por un lado, se sostuvo que tres de las oferentes, las entrantes Superphone y Multitrunk y el operador más débil Nextel, no cumplían “los requisitos patrimoniales y financieros mínimos para adjudicarse el espectro casi a perpetuidad”7. Por el otro, se procedió a descalificar a las otras dos oferentes, Personal y Claro, en función de evitar un potencial “proceso de concentración que finalmente terminara en una situación de monopolio”. En el caso de Personal, el Ministro volvió a poner sobre la mesa “la famosa integración monopólica de Telefónica y Telecom, que el Gobierno había encontrado una forma de resolver y luego se volvió a quebrar al comprar Telecom Italia parte del porcentaje de sus socios argentinos”. Y en el caso de Claro, “hubiera sido la única empresa en condiciones de hacerse cargo de las frecuencias [...] pero se tomó la decisión de no adjudicarlas a un sólo oferente”. Esta justificación no es del todo cierta, puesto que Claro también quedaba sujeta al spectrum cap, por lo que en todo caso podría haber incorporado cerca de un tercio del espectro en licitación. La lectura que aquí se propone de la medida parte justamente del lado opuesto: el Gobierno tomó la decisión de ingresar en forma directa al mercado de telefonía móvil, para lo cual resolvió empezar por dotarla del espectro disponible. Y dado el marco normativo vigente, cuenta con todas las capacidades institucionales para hacerlo a discreción: una simple resolución de la SECOM cancela la subasta en marcha, y la sola decisión presidencial lo asigna a la empresa estatal. Este argumento coloca a las justificaciones recién comentadas más como acompañantes retóricos de esa decisión. Si el Gobierno no hubiese preferido el ingreso del Estado en el negocio, con igual discreción los decisores podrían haber sostenido que Telecom y Telefónica son empresas bien separadas (como lo hicieron anteriormente y lo hacen en la Ley de Medios), que Nextel es solvente (como lo hicieron en la clasificación), o incluso despreciar ciertas debilidades de Superphone o Multitrunk sosteniendo que las operadoras entrantes son una apuesta a futuro para la competencia en el sector. El Gobierno tomó esta decisión acorde a la política de incrementar la presencia del Estado en servicios públicos, iniciada por Néstor Kirchner con la reestatización del Correo Oficial y Aguas Argentinas, profundizada con la generalización de los subsidios, y radicalizada por

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Cristina Fernández con la estatización de Aerolíneas Argentinas y la expropiación de YPF. En el caso de las telecomunicaciones, la intervención directa del Estado surgió como respuesta a una crisis en 2005, cuando Argentina estuvo a punto de perder la posición orbital 81º O que manejaba Nahuelsat. El entonces Secretario de Comunicaciones Guillermo Moreno negoció con la UIT la extensión del plazo, y en 2006 el Congreso sancionó por Ley 26.092 la expropiación de Nahuelsat y la creación de ArSat. La empresa comenzó a brindar servicios de telecomunicaciones satelitales, y suscribió un convenio con el instituto público de investigación INVAP para la fabricación de tres satélites nacionales, que se encuentran en producción. A partir del 2010, ArSat también quedó a cargo del desarrollo del programa Argentina Conectada, destinado a la creación de un backbone nacional de fibra óptica, así como del sistema de Televisión Digital Terrestre (TDT). En este sentido, la incorporación de servicios móviles permitiría convertir a ArSat en una compañía integral de telecomunicaciones. Esa es la apuesta que tomó el Gobierno reservando el espectro. Esto se refleja en las recientes declaraciones del interventor de la CNC, Ceferino Namuncurá, quien aseguró en una entrevista: “Cuando en algunos países se regula a través de resoluciones, nosotros lo vamos a hacer con una empresa del Estado” (Página 12, 5/11/2012). Esto avalaría la presunción sobre las falencias del Estado en la regulación del sector (la ausencia de normas, la aplicación errática o las demoras injustificadas en su instrumentación), a la vez que otorga un papel central a la empresa pública. Y lo mismo se desprende de una lectura atenta del discurso de De Vido durante el anuncio. Allí sostuvo repetidamente que ArSat no iba a tener “una participación testigo sino desequilibrante en el mercado”, acorde a “dos objetivos básicos: por un lado ampliar la competencia entre los operadores y por el otro fomentar el ingreso de nuevos operadores”. Aunque sin especificar el modo en que iba a prestar servicios para cumplir con esos objetivos. Recién tres meses más tarde el Gobierno aportó novedades. Por un lado, la Presidenta presentó públicamente la marca Libre.ar, con la que se anunció que ArSat prestaría servicios de telecomunicaciones móviles bajo un esquema de operador mayorista, con el que albergaría a una multiplicidad de operadores móviles virtuales (cooperativas y empresas locales o regionales que así podrían ingresar al negocio). Por otro lado, sancionó los Decretos 2426/12 y 2427/12, que ratifican institucionalmente la asignación del espectro a ArSat y declaran “de interés público el desarrollo de una Red Federal Inalámbrica”. No obstante, siguió sin definirse el modo de integración de la misma: si por medio del tendido de una red propia por parte de ArSat, si a través de acuerdos de prestación de servicios con las operadoras existentes o con una fórmula mixta. Los decretos dejaron la cuestión abierta “conforme al plan técnico y económico que elabore el Ministerio de Planificación”, instruyéndolo a “llevar adelante las acciones y asociaciones necesarias”. Así, el meollo del proyecto quedó como centro de las negociaciones posteriores. Desde el punto de vista de las compañías, la decisión ‘tomó por asalto al mercado’: los postulantes se enteraron de la resolución por medio de la conferencia de prensa. Como es

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habitual, optaron por no hacer ningún comunicado público, pero en privado remarcaron la incerteza que les genera el accionar gubernamental. La decisión de excluirlas de la licitación de espectro afecta sus intereses en mayor o menor grado según de quién se trate; pero el anuncio del ingreso del Estado al negocio altera las perspectivas del sector en general. La más afectada es Nextel, que esperaba hacerse con espectro para concretar la migración de su servicio iDEN de trunking digital hacia tecnologías 3G (que le permita brindar servicios de datos), tal como viene haciendo en los otros mercados de la región en los que opera (Brasil, Chile y México). La decisión condena a la operadora aún más a una posición marginal en el mercado, confinada a una red cada vez más obsoleta. Por su parte, Claro no logró su objetivo de hacerse con espectro en la banda de 850 MHz en el Área Metropolitana de Buenos Aires (AMBA), algo que viene buscando dado su mayor alcance y economía de escala, lo que la deja en desventaja frente a Movistar y Personal. 8- El reciente anuncio de Telecom Italia de venta de su tenencia en Telecom Argentina a manos del fondo Fintech responde a esa situación. Hay que recordar que la operación se anunció luego de que Telefónica informara la ampliación de su participación en Teco, el holding controlante de Telecom Italia, lo que profundiza la integración entre ambas operadoras.

Finalmente, se puede sostener que la decisión afectó poco a Personal y nada a Movistar, que mantienen sus posiciones de liderazgo en espectro. Sin embargo, la mención a la “famosa integración monopólica” fue una carta devuelta a la mesa que las compañías consideraban en el mazo, y que podría incitarlas a ir al pie8. Desde el punto de vista general, la intervención creciente del Estado constituye para las empresas una incógnita ante un negocio donde se encontraban muy cómodas tras varios años de fuerte rentabilidad. Se enfrentan a un Gobierno con alto poder para tomar decisiones discrecionales y que parece decidido a ponerlo en juego. A lo largo de 2012 y 2013, las medidas abarcaron la aplicación de multas masivas frente a fallas de servicio, la limitación a la remisión de divisas (generalizada para toda la economía pero novedosa en un sector que venía pagando altos dividendos) y la restricción selectiva a la importación de equipamiento. Pero por sobre todo, el ingreso de un nuevo e inesperado competidor. La presencia de un nuevo operador en un mercado ya maduro implica un juego de suma cero: el crecimiento del entrante se produce a costa de la pérdida de clientes de los incumbentes. Pero además se trata de un competidor controlado por el Estado, que pasa a desempeñar el rol de juez y parte: regulador por medio de las normas de la SECOM y CNC, y operador a través de ArSat.

Una política con cola: la puja intragubernamental y el cambio de mando

Como vimos, la decisión que se había tomado era la intervención directa del Estado en el sector, pero sin definir las formas concretas de ponerla en práctica. Lo que habría desembocado en otro extenso proceso, en que la implementación de la política se definiría sobre la marcha. Y que incluiría una puja al interior del propio elenco gubernamental,

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entre dos bandos que vienen disputando la toma de decisiones sobre sectores económicos vitales (como la política energética o la importación de combustibles). Por un lado, el vinculado al Ministro de Planificación, que estuvo a cargo de las decisiones sectoriales durante los últimos 10 años, a lo largo de los gobiernos kirchneristas. Por el otro, el que engloba al Ministro de Economía Axel Kicillof y a la agrupación La Cámpora (liderada por el hijo presidencial Máximo Kirchner), que desde 2011 viene ocupando cada vez más espacios de decisión. 9- Fuentes de la propia administración insistieron en intercambios en off que la disputa no estaría resuelta: que el grupo históricamente a cargo de las decisiones sectoriales y las relaciones con los actores habría aceptado que los jóvenes de La Cámpora ocuparan los puestos más visibles, pero habrían retenido para sí los lazos comunicantes.

La puja se habría resuelto a favor de este último grupo, como lo evidenciarían los reemplazos del Secretario de Comunicaciones y del Presidente de ArSat por dos jóvenes poco conocidos en el sector vinculados a esa agrupación. La designación a principios de abril de 2013 de Norberto Berner al frente de la SECOM y de Matías Bianchi al frente de ArSat sería señal de un cambio de mando. El propio De Vido estuvo a cargo del juramento de las nuevas autoridades, y remarcó que a partir de ahí trabajarían en conjunto con foco en el proyecto de comunicaciones móviles de ArSat. Pero la salida de Lisandro Salas de la SECOM, hombre de su extrema confianza y de los pocos funcionarios todavía en funciones desde el inicio del gobierno de Néstor Kirchner, en un contexto en que se está definiendo un proyecto de tanta envergadura, resulta evidencia del cambio en las relaciones del fuerza9. Se esperaba que el recambio de autoridades conllevara la adopción de políticas más activas de intervención y de mayor dureza hacia las operadoras. Y a su vez, que abriera el camino a avances concretos en el lanzamiento de ArSat-Libre.ar. Sin embargo, ha pasado más de un año y sigue sin haber ninguna definición oficial sobre el proyecto.

Las alternativas hacia ArSat-Libre.ar

El anuncio inicial de De Vido cubría varias alternativas sobre cómo ArSat prestaría servicios: “La empresa nacional va a buscar la mejor manera asociativa, que puede ser con las grandes prestadoras o con pequeñas prestadoras. Lo que va a buscar, y es directiva de la Presidenta, es que equilibre. Que trate de buscar en los pueblos, donde son importantes las cooperativas, con las cooperativas la prestación del servicio. [... ] Aquí, en el área metropolitana, seguramente las empresas, o ArSat asociada con las empresas, van a tener que invertir en mayor cantidad de pantallas y mayor cantidad de vínculos para que las comunicaciones vuelvan a tener un nivel de excelencia. [...] Lo que se le adjudica a ARSAT no es la telefonía celular, lo que se le adjudica a partir de esta decisión de la Presidenta es la frecuencia. Luego veremos si puede ser interesante que preste el servicio final de telefonía celular o simplemente que venda frecuencia, pero no en términos de contratos sinendi, sino con contratos con participación clara y concreta en las ganancias de la telefonía celular” (MinPlan, 5/09/2012).

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El proceso de implementación quedaba a definirse. Acorde a las escasas declaraciones oficiales posteriores, pero también a los movimientos de las autoridades y de otros actores interesados, son tres las alternativas principales que se habrían evaluado en este tiempo. Las mismas no son excluyentes, y es probable que resulten en una fórmula mixta en el futuro. En primer lugar, ArSat podría buscar una asociación con las operadoras existentes, aportando el espectro a cambio de cursar servicios en sus redes. Esta sería la opción dejada entrever inicialmente por De Vido, al menos para las grandes áreas urbanas. Y le permitiría comenzar a ofrecer servicios rápidamente. Pero tiene dos claras desventajas. Por un lado, aunque aporta espectro adicional, los problemas actuales de las redes persistirían, salvo que las compañías avancen en mejoras. Por otro lado, ArSat no tendría control sobre la estructura de costos ni sobre las tarifas. No obstante, el hecho de que en este tiempo no se haya avanzado en acuerdos de este tipo marca la capacidad de resistencia de las operadoras a la opción más inmediata en manos del gobierno. En segundo lugar, ArSat podría avanzar en el desarrollo de una red propia, sea en forma independiente o en asociación con otras firmas ya presentes en telecomunicaciones (el operador móvil más débil, pequeñas empresas y cooperativas telefónicas locales, operadoras de CATV e incluso las empresas estatales que prestan servicios telefónicos en algunas provincias). Los anuncios realizados durante la presentación de Libre.ar hacían inferir que se buscaría estos acuerdos donde sea posible, pero sin especificar si para el desarrollo de infraestructura o sólo para la prestación u comercialización de servicios. Ni tampoco si ArSat ofrecería servicios en forma directa a los consumidores o sólo indirectamente como operador mayorista a través de las empresas asociadas. En los últimos meses, se fortalecieron los rumores de que ArSat se asociaría o adquiriría en forma directa o con un socio inversor a la filial argentina de Nextel, cuyo holding controlante anunció la intención de vender sus operaciones locales. Esto le permitiría a ArSat hacerse con una base de clientes de partida y con una red en funcionamiento en los principales centros urbanos, aunque con una tecnología de radio iDEN cada vez más en desuso. Sin embargo, hubo mayores novedades. Una tercera alternativa sería la suscripción de un acuerdo estratégico con alguna compañía internacional que se incorpore al negocio para el desarrollo integral de una nueva red, sea como proveedor y/o como operador. Esta opción se derivaría de los encuentros, difundidos públicamente desde el propio Gobierno, con directivos de las empresas chinas Datang y Huawei y de la vietnamita Viettel. No obstante, no parece una decisión prudente avanzar en un proyecto de la envergadura del desarrollo greenfield de una red nacional con el espectro hasta ahora asignado a ArSat. El mismo es conocido entre los operadores con el nombre de ‘saldos y retazos’: son las porciones que Movistar optó por reintegrar de las bandas en uso (dado que hubo una especificación laxa de devolución), y que han quedado sándwich entre las bandas de las otras operadoras. Pero además, son bandas que estaban destinadas originalmente a servicios 2G y que aunque se utilizan para 3G no cuentan con las economías de escala de otras frecuencias, ni suelen ser utilizadas para brindar servicios con tecnología 4G. Aquí se torna central la posibilidad de asignación

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directa de espectro a entes estatales, por lo que, como veremos, no habría que descartar que el gobierno establezca algún tipo de reserva del espectro AWS para ArSat-Libre.ar. Esta vía, sin embargo, tampoco ha tenido avances concretos en todo este tiempo. En lo que se debe tener en cuenta que un contexto económico con restricción de divisas no resulta alentador para una compañía internacional que por definición busca capitalizar su inversión (aún siendo de propiedad estatal), o que pretende al menos un contexto político con un horizonte de negocios a largo plazo. Como sea, el desarrollo de una red nacional de telecomunicaciones móviles es un proyecto complejo, que requiere de fuertes inversiones extendidas en el tiempo. Como ha explicado el ex Secretario de Comunicaciones Henoch Aguiar (Clarín, 6/9/2012), para que ArSat esté presente en el territorio en forma similar a sus competidores se requiere la instalación de unas 3.000 radiobases con sus respectivas interconexiones, además del backbone de fibra que ya construye (que posibilitaría integrar toda la red). Lo que implicaría una inversión mínima de unos US$ 2.000 millones, y un plazo de trabajo no menor a 24 meses a buena marcha. Pero además, la experiencia internacional muestra que el desarrollo de la red constituye sólo una parte de los gastos necesarios para desarrollar una empresa de telecomunicaciones móviles, mientras que las acciones de captación de clientes (como la subvención de terminales) y los gastos operativos insumen la parte del león. Todo esto en un contexto económico cada vez más restrictivo y unas finanzas públicas sobrecargadas, y con un alto nivel de equipamiento importado que implica fuertes erogaciones de divisas, sobre lo que el Gobierno viene siendo muy selectivo. A esto se suma que en el presupuesto asignado a ArSat para el 2014, de unos US$ 1.000 millones, no se destinaron partidas específicas para el desarrollo de la red de telecomunicaciones móviles (como sí se hace con TV Satelital y fibra óptica). Es aquí donde la estrategia de asociaciones se vuelve más relevante para reducir los montos de inversión y plazos de ejecución. ArSat podría por un lado ganar tiempo y disminuir la inversión inmediata por medio de convenios que impongan a las incumbentes el uso de sus redes. A la vez, suscribir acuerdos con cooperativas telefónicas y otras empresas entrantes para que asuman las operaciones de comercialización y atención al cliente. Y en paralelo, avanzar en el desarrollo de tendidos propios (integrados por su backbone nacional), tanto en forma independiente como en asociación con otras compañías (nacionales o internacionales). No obstante, esto depende de decisiones concretas por parte del Gobierno, con la capacidad de negociar acuerdos con varios actores del mercado que implican la imposición de costos. Capacidad de decisión que, por lo que venimos contando, no parece al alcance de la mano.

Nuevas iniciativas: el control sobre la calidad de servicio

La nueva gestión parece haber tomado nota de la complejidad y los tiempos de ma-

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duración que exige el proyecto ArSat-Libre.ar, en momentos en que las fallas de los servicios móviles se han hecho cada vez más notorias. En este sentido, el Gobierno tomó en junio de 2013 una medida orientada a retener la capacidad de iniciativa, y a volver a mostrarse activo ante una problemática sensible. Por medio del Decreto 681/2013, modificatorio del Reglamento de Licencias para Servicios de Telecomunicaciones, se habilitó a la SECOM a adoptar “las medidas preventivas que resulten idóneas, tales como la suspensión de la comercialización y activación de nuevas líneas y servicios por parte de las licenciatarias, a fin de garantizar al usuario el efectivo cumplimiento de los estándares de calidad”. A su vez, se la instruyó a elaborar “un nuevo reglamento que establezca los requisitos de calidad para la prestación de los servicios de telecomunicaciones”. El Gobierno presentó en julio de 2013 el nuevo Reglamento de Calidad de los Servicios de Telecomunicaciones, incorporando una serie de parámetros e indicadores de calidad de prestación y de atención basados en las recomendaciones de la UIT. En cuanto a calidad de prestación, se apunta a la fiscalización de los operadores, a los que exige la implementación de un sistema de medición de indicadores desagregado que posibilite a la CNC un acceso irrestricto. A su vez, éstos deberán brindar regularmente la información de los indicadores a la autoridad de aplicación, así como publicarla en sus sitios web para consulta pública. En cuanto a la calidad de atención, el reglamento exige la disponibilidad de todos los canales (telefónico con operador, oficinas y on-line) durante las 24 horas todos los días del año, y establece plazos específicos para la resolución de los reclamos. El reglamento fue puesto a disposición del público y se inició una serie de ‘Foros de Participación Ciudadana’ para propiciar “un debate tan amplio como la cantidad de usuarios”. El proceso derivó en la sanción en noviembre de 2013 de un Manual de Procedimientos de Auditoría y Verificación Técnica del Reglamento de Calidad, que especifica los modos de obtención y difusión de los indicadores. Y que establece los plazos de instrumentación, fijando un “período de transición” de entre tres meses y un año según indicador, y luego “una segunda fase en la que los prestadores deberán alcanzar las metas de calidad establecidas”. Las compañías ya han deslizado sus críticas, argumentando que los indicadores son difíciles de recolectar y requieren la incorporación de equipamiento y procedimientos costosos. Otros analistas han marcado que la propia autoridad pública tendrá dificultades para procesarlos, dado que el esquema propuesto depende mayormente de la capacidad de los operadores. Por otra parte, es probable que una vez en vigencia resulte mayormente en la aplicación de sanciones a las operadoras, dado que como analizamos las fallas del servicio responden a causas múltiples, que en parte escapan a las compañías y corresponden al accionar del propio Estado. Sin embargo, se debe destacar la puesta en marcha por primera vez de un esquema de control de calidad, a partir del cual avanzar en su funcionamiento y efectividad.

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Perspectivas futuras: la asignación de espectro para servicios 4G

La Argentina es el único de los grandes mercados de América Latina que no cuenta con un cronograma definido de licitación de espectro para lanzamiento de servicios 4G LTE. La tecnología Long Term Evolution está diseñada especialmente para la provisión de datos móviles con alta velocidad con una utilización eficiente del espectro. En la región, Bolivia, Brasil, Chile, Colombia, Ecuador, México, Paraguay, Perú, Uruguay y Venezuela ya han asignado espectro y cuentan con operadoras que han comenzado a brindar servicios. Esto implica un fuerte retraso tecnológico para el país, por cierto difícil de explicar, pero que en gran medida responde a la historia que venimos contando. Como dijimos, la CNC y la SECOM ya identificaron en 2009 el espectro que se atribuirá para el desarrollo de esta tecnología. Se trata de 90 MHz en las bandas de 1.7-2.1 GHz (AWS), una de las recomendadas por la UIT y en la que ya se prestan servicios LTE en varias partes del mundo, lo que brinda buenas economías de escala en equipamiento y en terminales. No obstante, la cuestión pasó a segundo plano, supeditada a lo que ocurriera con el espectro ‘remanente’. Efectivamente, con el anuncio del ingreso de ArSat al mercado, De Vido deslizó escuetamente “ya nos ponemos a trabajar en la frecuencia 4G, con la cual vamos a estar en un esquema de trabajo muy parecido”. Y corrieron de nuevo los rumores del ambiente: si se asignaría exclusivamente a ArSat, o si se convocaría a una licitación. Lo que se combinó con una gira del Ministro a China en la que se reunió con directivos de la operadora estatal y proveedora de equipamiento Datang, una de las principales fabricantes de tecnología 4G del mundo. La crónica de ese encuentro de la agencia oficial Telam (27/9/2012) sostenía que “así como ARSAT se quedó con casi un 25 % del espectro celular con tecnología 3G, para el segmento 4G la compañía estatal será responsable de operarla en forma íntegra”. No hubo ninguna aclaración oficial, y las dudas siguieron creciendo. En diciembre de 2012, por medio del mismo Decreto 2426/12 que asignaba el espectro ‘remanente’ a ArSat, se procedió a la atribución oficial de la banda AWS a telecomunicaciones móviles. Sin embargo, el decreto no fijó destinatarios, ni estableció la forma de asignación. En mayo de 2013 el Ministro anunció que se preveía realizar a lo largo de ese año “la licitación de 4G, donde el Estado seguramente va a quedar con una cantidad importante [...] , con un sentido estratégico para aumentar la competencia [...] y garantizar el acceso de todos los prestadores interesados en igualdad de condiciones” (Telam, 26/5/2013). Desde entonces, no hubo novedades. Y aunque la lógica de plazos dilatados y marchas cambiantes hace difícil proyectar qué pasará, es posible despuntar algunas opciones. Por un lado, se debe marcar que siguen vigentes los topes de espectro, a pesar de los reiterados pedidos de las operadoras para elevarlos. Lo que otra vez ubica al país como caso extremo, registrando el cap más pequeño entre los principales mercados de la región (Colombia tiene un tope de 115 MHz, Perú de 100, México de 80, Brasil de 80 y Chile de

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60 MHz). Es cierto que el cap está relacionado con la cantidad de espectro atribuido, por lo que es de esperar que las operadores refuercen sus demandas de incrementarlo en caso que se avizoren nuevas asignaciones. Pero nada obliga institucionalmente al Gobierno a seguir ese camino, y podría optar por dejarlo como está si esa es su decisión. En ese caso, como sucedió en la subasta cancelada, la participación de las incumbentes se vería muy limitada, salvo para Nextel. En este sentido, un curso de acción que no debería descartarse es que se opte por otorgar a ArSat una porción de ese espectro en exclusividad, al menos temporalmente: la denominada ‘reserva temporal’. Esto sería difícil de justificar por medio de una asignación directa, dado que el Decreto 764/00 establece que el espectro debe ser asignado “de manera objetiva, transparente y no discriminatoria”. Pero en caso que la reserva sea la voluntad del Gobierno, bien podría realizar de antemano o por separado una asignación de parte de esas bandas a ArSat mientras organiza una subasta por el resto en que vaya dilatando los tiempos. O incluso diseñar una licitación de modo que se vea forzada su vacancia, para luego proceder a la asignación directa a ArSat. Los formas, otra vez, quedan a discreción de la decisión tomada. El resguardo (temporal) del espectro para el desarrollo de LTE le permitiría a ArSat contar con ‘ventajas de precedencia’: ser el primero en el mercado en la provisión de servicios de nueva tecnología. Lo que sería una herramienta importante para expandirse en un mercado maduro, alentando la captación de clientes de los jugadores establecidos. Como remarca Aguiar, “en telecomunicaciones no importa tanto la suma invertida cuanto la inteligencia en instalar equipamiento más avanzado que el de los competidores. Ser nuevo tiene ventajas sólo si se decide invertir en la última generación tecnológica, si se decide brindar servicios de mayor calidad que los que hoy se ofrecen” (Ibid.). Esto refuerza las posibilidades de que los desarrollos en red propia de ArSat recién se produzcan a gran escala en tecnología 4G, y que el Gobierno contemple algún mecanismo de reserva que otorgue ventajas de precedencia.

Conclusión: el impacto de las nuevas iniciativas sobre el mercado y los servicios

En base a lo relatado, resulta difícil que los anuncios de mayor intervención estatal sobre las telecomunicaciones móviles tengan impactos significativos en el corto plazo para los usuarios, y cabe esperar al menos un par de años desde su puesta en marcha para que se produzcan cambios notorios. Como dijimos, la apuesta por el control de la calidad del servicio exige desarrollos técnicos e institucionales por parte de las empresas y el Estado, y es probable que resulte en el corto plazo más en la aplicación de sanciones que en mejoras de prestación, dado que ello depende de innovaciones en las redes que exigen tiempo y otras acciones activas por parte del Gobierno. En todo caso, sí es posible que resulte en un incremento en la calidad

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de atención, uno de los puntos fuertes en las quejas de los usuarios y abierto a soluciones más directas. En cuanto al proyecto ArSat-Libre.ar, mientras no se avance en el desarrollo de una red propia se seguirá dependiendo de las existentes, con las falencias mencionadas y un escaso incentivo de las operadoras a sumar inversiones en un contexto de incertidumbre creciente. De nuevo, ArSat y/o las empresas asociadas para la prestación de servicios podrían avanzar en cuanto a calidad de atención, pero mientras no se vuelvan una opción competitiva en el mercado su impacto será marginal. Y como hemos marcado, el desarrollo de una red propia exige al menos dos años de trabajo, y ya ha pasado más de un año y medio sin novedades concretas. Por el contrario, es de prever que el tráfico móvil siga aumentando, de la mano de la difusión de los smartphones y la expansión de los planes de datos, lo que seguramente resultará en un empeoramiento de las condiciones de prestación en el futuro próximo. Desde el punto de vista político, las iniciativas se muestran beneficiosas para el Gobierno, que aparece como activo e interviniendo a favor de los usuarios en un sector cada vez más criticado por la opinión pública. Y en donde ha logrado despejar su propia responsabilidad en la situación. No obstante, a partir de esta intervención el impacto de sus decisiones en la evolución del servicio se hace cada vez más notorio. Y las demoras, los problemas y sus causas pesan cada vez más sobre sus hombros.

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PRÊMIOS EM JORNALISMO: A CULTURA MERITOCRÁTICA PREMIATIVA DENTRO DA CULTURAL PROFISSIONAL JORNALÍSTICA PREMIOS DE PERIODISMO: UNA CULTURA MERITOCRÁTICA EN EL PREMIATIVA CULTURA PROFESIONAL PERIODÍSTICA PRIZES IN JOURNALISM: A MERITOCRATIC CULTURE WITHIN THE CULTURAL PREMIATIVA PROFESSIONAL JOURNALISTIC

Robson DIAS Doutor em Comunicação, formado pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação (PPGFAC) da Universidade de Brasília (UnB) a partir do vínculo com os seguintes projetos de pesquisa credenciados no CNPQ: A ideia do pós-Jornalismo (2010-2013), O Jornalismo como Teoria Democrática (20062010) e Como o Terceiro Setor pauta a mídia (2003-2006) Email: rbsn.dias@gmail.com

Revista Eptic Online Vol.16 n.2 p.54-68 mai-ago 2014 Recebido em 25/02/2014 Aprovado em 10/04/2014


Prêmios em Jornalismo: a cultura meritocrática premiativa dentro da cultural profissional – Robson Dias

Resumo A cultura profissional em Jornalismo compartilha valores relativos ao profissionalismo e ao status do que é (ou não) legítimo na atividade jornalística. O artigo trata da cultura meritocrática premiativa que estabelece um novo padrão de conduta e normas de comportamentos (1); determinando um sistema paralelo e extra-organizacional de recompensa profissional (2). Este fato incorre no profissionalismo (Soloski) não a partir das rotinas produtivas e processo de produção da notícia (modo direto), mas via cultura meritocrática premiativa dentro da cultura profissional, mirando a subjetividade e a cosmovisão do jornalista. Se os definidores primários mantém uma investida direta sobre as rotinas produtivas e o processo de produção da noticia via Agenda Setting e Newsmaking; aqui, o foco é a partir dos prêmios, num esforço indireto, via cultura meritocrática premiativa e cultura profissional jornalística.

Palavras-chave Jornalista, Meritocracia, Prêmios, Newsmaking

Resumen A cultura profesional en cifras de participación en Periodismo por la profesionalidad y el estado de lo que es (o no es) una actividad periodística legítima. El artículo trata de la premiativa cultura meritocrática que se establece un nuevo estándar de conducta y normas de comportamiento (1), la determinación de un sistema paralelo y la recompensa profesional extra-organizacional (2). Este hecho incurre profesionalidad (Soloski) no de las rutinas de producción y el proceso de producción de noticias (modo directo), sino a través de premiativa cultura meritocrática en la cultura profesional, con el objetivo y la visión del mundo de la subjetividad del periodista. Si los definidores primarios mantienen un asalto directo a las rutinas de producción y el proceso de producción de noticias a través de establecimiento de la agenda y la elaboración de noticias, aquí, el enfoque se basa en las primas en un esfuerzo indirecta a través premiativa cultura meritocrática y noticias de cultura profesional. Palabras clave Periodista, meritocracia, Premios, newsmaking

Summary The professional culture in Journalism share figures for the professionalism and status of what is (or is not) a legitimate journalistic activity. The article deals with the meritocratic culture premiativa establishing a new standard of conduct and standards of behavior (1); determining a parallel system and extra-organizational reward professional (2). This fact incurs professionalism (Soloski) not from the production routines and process of news production (direct mode), but via premiativa meritocratic culture within the professional culture, aiming subjectivity and worldview of the journalist. If the primary definers maintains a direct assault on the production routines and the production process of news via Agenda Setting and Newsmaking; here, the focus is based on premiums in an effort indirectly via premiativa meritocratic culture and professional culture news. Keywords Journalist, Meritocracy, Awards, Newsmaking

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Introdução

Muito se estuda a partir do esforço das organizações em influenciar as rotinas produtivas (Tuchman) e o processo de produção da notícia (Molotch e Lester), de modo direto via Fábrica de Notícias (Newsmaking). Entretanto, existe um esforço dos definidores primários (Hall et al) no sentido de gestar premiações que possam agir sobre a cosmovisão dos jornalistas, incorrendo na certificação extra-organizacional de uma prática exemplar na profissão, muito além do controle do trabalho (Breed), meritocracia, hierarquia, ação pessoal (Lewin), filtro (White) e constrangimentos (Schlesinger). Essa investida atua de modo indireto, via cultura profissional. A cultura meritocrática premiativa estabelece um novo padrão de legitimidade do que é jornalismo com base nos definidores primários e não em relação às organizações noticiosas. Neste sentido, o objetivo se torna influenciar não somente as redações, mas a própria visão de mundo dos jornalistas, no que foi chamado de rotinas cognitivas (SOUSA, 2003) e limites cognitivos (TRAQUINA, 1993). Para tratar deste tema, é necessário regatar a questão da Objetividade como valor implícito ao profissionalismo (Soloski), que dá os contornos da cultura profissional (Schudson), a ser acessada pelas assessorias a partir de estratégias organizacionais (prêmios em Jornalismo) que fomentam modelos jornalísticos, prescrevendo o que é legítimo (ou não) aos olhos dos definidores primários (HALL et al) como o bom ou mau Jornalismo. Quanto à Objetividade, entende-se que seja um pressuposto, referencial ou conjunto de critérios a serem adotados (ou não). Bem, não se trata de um conceito, mas de uma pragmática. Por meio dessa ideia/técnica e, com base nela, está baseada toda a estrutura do que conhecemos como profissionalismo ou processo de profissionalização da atividade jornalística. Trata-se de uma ideologia que tenta esconder um jogo de poder (1) e a própria ideologia que existe na relação entre jornalistas e ambiente organizacional (2), além de uma pragmática na qual é baseada no status de verdade (ou cientificidade) do discurso jornalístico (3). Em suma, “a ideologia dominante no campo jornalístico”, Traquina (2001, p. 65).

O pressuposto gira em torno de limites. Quais?

Os pressupostos de Objetividade aplicados ao campo do jornalismo têm um enquadramento ético, ideológico, epistemológico e filosófico. Santana (2001) problematiza a discussão em torno do termo da seguinte forma: Na discussão ética, a negação assume o caráter de inabilidade. Jornalistas deveriam ser objetivos, mas (muitos) não conseguem ou por deliberada postura aética, ou por desconhecimento dos requisitos mínimos para o cumprimento do dever jornalístico. Na discussão ideológica, tomando ideologia como auto-engano ou alienação, a negação assume o caráter de inconsciência. A Objetividade não é possível por causa de evitáveis injunções ideológicas, reflexo de posições de

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classe invisíveis aos seus integrantes. Jornalistas ou jornais estariam presos, portanto à estrutura do poder, de que seriam apenas representantes. Do contrário, num processo de autoconsciência estariam livres para emancipação? O problema de teses como essa é muitas vezes localizar na opinião o posicionamento ideológico, deixando a ‘informação’ como o campo neutro. Na discussão epistemológica, os jornalistas são marcados pela impropriedade da consideração neste campo profissional. Negando ao jornalismo a cientificidade, ou um dos seus aparatos, como formação intelectual, disciplina acadêmica ou rigor metodológico, reserva-se a consideração do ser-objeto a lotes impenetráveis para os jornalistas. Uma postura mais filosófica alega incapacidade. Ser objetivo só poderá ser, portanto consideração em tese: uma vez que a realidade humana não a permite, já que necessariamente estamos envoltos em crenças, hábitos, ou distantes do real-em-si. A Objetividade, o abandono completo e definitivo, da interferência ou inferência subjetiva, não é possível para o jornalista pelo simples fato de ele próprio ser... um homem, que vive numa realidade que sempre será construída (SANTANA, 2001, p. 51-52). As quatro discussões identificadas por Santana (2001, p. 52) não esgotam os limites dos pressupostos de Objetividade. Contudo, o conceito estabelece contornos dentro do campo jornalístico. O autor considera que a questão dos referenciais objetivos goza de um status quo “insuperável” e até “vicioso”. Para Santana (ibidem), a discussão dos pressupostos de Objetividade circunda frequentemente as mesmas argumentações. No plano ético (1), ideológico (2), epistemológico (3) e filosófico (4), respectivamente, ocorre de tal forma: 1 - “Há Objetividade”, “mas os jornalistas, que deveriam, não a praticam” [anti-éticos] 2 - “Há Objetividade”, “mas os jornalistas, inconscientes, não a alcançam” [inaptos] 3 - “Há Objetividade”, “mas não são os jornalistas que podem praticála” [inviável] 4 - “Há Objetividade”, “mas não ao alcance do homem e do jornalista” [utopia] (Ibidem). Santana afirma que as quatro argumentações negam a Objetividade, mas não conseguem vencer a circularidade, típica das melhores discussões. O autor considera que é melhor esquecer as intrigas, pois remetem ao paradoxo do jornalista ter que se convencer do que não existe de fato (Objetividade), além de trabalhar em prol desse paradigma. (Ibidem). Ressalta-se que os jornalistas não aceitam a premissa epistemológica da adoção dos critérios de Objetividade: A ideologia jornalística defende uma relação epistemológica com a realidade que impede quaisquer transgressões de uma fronteira indubitável entre realidade e ficção, havendo sanções graves impostas pela comunidade profissional a qualquer membro que viola essa fronteira. (TRAQUINA, 2001, p. 66).

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O que é um paradoxo: essas “crenças pessoais como códigos profissionais” (Idem). E também um fato inviável, pois se “há Objetividade”, “não são os jornalistas que podem praticá-la”, apesar de puxarem para si tal atribuição de cientificidade ao discurso e método jornalístico de comprovação da verdade (apuração dos fatos).

A Cultura Profissional como zona obscura no Jornalismo

Há certa ênfase da Teoria Interacionista em estudar os agentes sociais em Molotch e Lester (News Promoters, New Assemblers e News Consumers) e as codificações de preceitos intra-organizacionais (Manuais de Redação e Estilo, linha editorial), mas não existe a mesma preocupação com interações extra-organizacionais, aquelas pulverizadas na amplitude do termo: cultural profissional, muito utilizado para apontar um lócus, mas não para nominar os elementos compartilhados nesse contexto, como os prêmios. Traquina (2001, p. 112) entende que, para os teóricos interacionistas, o acesso dos promotores aos meios de comunicação configuraria um contexto de economia política da sociedade, o que incorreria em uma das questões do Terceiro Setor, a julgar pelo fato de que: “os movimentos sociais com poucos recursos têm dificuldades em ver os seus acontecimentos transformados em notícia. Se pretendem jogar no tabuleiro do xadrez jornalístico, precisam ajustar o seu modo de interação organizacional aos modos das organizações estabelecidas”, pela tribo dos profissionais da notícia. Essa expressão “cultura profissional”, mais do que um conceito em Schudson, talvez seja a caixa de pandora ou um termo guarda-chuva onde se jogam todas as coisas que saíam do foco da Sociologia dos Emissores (Newsmaking). A cultura meritocrática premiativa é um sistema de normatividade extra-organizacional com vistas ao acesso à cultura profissional jornalística. Nesta investida, os preceitos do profissionalismo foram desenvolvidos a partir de modelos jornalísticos e das demandas dos definidores primários (assessorias). Existe a intenção de se ter controle da base cognitiva do profissional em Jornalismo através dessa normatividade dos prêmios a ser compartilhada na cultura profissional pelos premiadores, premiados (vencedores dos certames) e, inclusive, pelos premiáveis (inscritos e concorrentes dos certames). Nesta corrida pelo mérito, os jornalistas buscam a distinção e as organizações as práticas exemplares. O intuito de protocolar como exemplar dada prática é tão grande que, uma vez que haja vencedores e algum concorrente não tenha condições de vencer, há a modalidade de mérito chamada menção honrosa.

Na mira dos prêmios: a cosmovisão dos jornalistas nas rotinas cognitivas A própria organização da informação jornalística obedece a uma condição de cognição e conhecimento, vide as matérias por seções previamente estabelecidas: como internacio-

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nal, política, esporte etc. (Hall et al, 1993, p. 224).

1- A teoria do gatekeepers pode até ser insuficiente como explicação definitiva do papel individual do jornalista, mas é muito operacional com relação ao entendimento das fontes no processo de produção da notícia. A expansão das perspectivas estruturalista, construcionista e etnoconstrucionista (ou interacionista) levam em conta essas partes que são válidas para o conhecimento e as que são superadas. A própria designação etnoconstrucionista enfatiza que ela valida muito do postulado construcionista. Alguns autores adotam o nome interacionista, somente. Para Traquina (2001, p. 77), “o resultado de processos de interação social têm lugar dentro da empresa jornalística

Sousa (2002, p. 40) chama o universo da cultura profissional e extra-organizacional de fatores “ecossistemáticos” que levam os jornalistas, submetidos à pressão do tempo e a uma quantidade enorme de informações, a construírem rotinas cognitivas para organizálas. Assim, para o autor, ao adotar formas rotinizadas e estereotipadas de pensamento, o jornalista tende a fabricar informação padronizada e a “selecionar sempre como tendo valor noticioso o mesmo tipo de acontecimentos”. Ele conclui que, embora mescladas a outras forças, as notícias sempre têm algo da ação pessoal de quem as produz1. Traquina (1993) trabalha a questão dos limites cognitivos em relação aos jornalistas diante do excesso de acontecimentos, quando as redações de grande porte recebem diariamente material suficiente para fechar diversas edições ao longo da semana e não um montante para apenas um dia. O autor fala dos limites cognitivos em vista dos critérios dos jornalistas na avaliação das fontes, além da dependência dos profissionais a esses fornecedores de matéria-prima. Metaforicamente, podemos entender que: dentro da Fábrica de Notícias, a manufatura da notícia fosse dependente de matéria-prima pré-trabalhada pelos fornecedores, canais de rotina. Neste sentido, Traquina desenvolve que o próprio saber profissional se vincula também à capacidade de conhecer formas rotineiras de processar diferentes tipos de informação e adequá-los a determinados padrões cognitivos, tais como: o uso dos exemplos didáticos e comparativos com “a cratera era do tamanho de 7 campos de futebol”, “o dinheiro desperdiçado equivale a 300 carros populares”, “o vilão da cesta básica em relação à inflação do mês é o tomate”, “o dinheiro apreendido equivale a 200 salários mínimos”, “apagão dos aeroportos”, “apagão da energia”, “índices reajustados pelo leão da inflação”. Sabe-se que, Traquina (2001, p. 112-113) vê o polo político e o econômico da Teoria da Notícia. As fontes provêm, sobretudo, da estrutura do poder estabelecido e, por isso, as notícias tendem a apoiar o status quo. E elas agem de forma indireta com dispositivos diluídos no que se convencionou chamar de cultura profissional. Esses organismos não relatados nas instâncias de produção de Molotch e Lester (News Promoters, News Assemblers e News Consumers), com relação a prêmios, é o que chamamos de cultura meritocrática premiativa, como elementos da cultura profissional jornalística. Em momento algum propomos uma pretensa “teoria premiativa da mídia”.

Prêmio Esso e a cultura meritocrática premiativa

O Prêmio Esso, por mais que postule os preceitos do Jornalismo Informativo (anulação do sujeito: isenção, impessoalidade e imparcialidade), além de evitar entrar na questão da ideologia, acaba esbarrando nesta categoria. É desta forma que o próprio Prêmio Esso, em sua gênese, nos anos 1950, não via o jornalista como um “office boy” (MEDINA, 1982, p. 156) ou “pombo-correio da notícia” (PENA, 2006. p. 41): na entrega de um pacote lacrado e isolado, sortido de informações, para o leitor consumir. Entretanto, sabe-se que era importante defender esse discurso de autoridade para legitimação da profissão. É sobre este ponto de contato que o artigo trabalha o Prêmio Esso e seus pontos de con-

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tato com a Teoria da Notícia, principalmente no tocante à Teoria do Espelho. Sobre este fato, cita-se a preocupação de teóricos: O ethos dominante, os valores e as normas identificadas com um papel de árbitro, os procedimentos identificados com o profissionalismo, fazem com que dificilmente os membros da tribo jornalística aceitem qualquer ataque à teoria do espelho. A legitimidade e a credibilidade dos jornalistas estão assentes na crença social que as notícias refletem a realidade, que os jornalistas são imparciais devido ao respeito às normas profissionais, e pelo trabalho de recolher a informação e relatar os fatos, sendo simples mediadores que reproduzem o acontecimento na notícia” (TRAQUINA, 2003: 67-68).

A Teoria do Espelho é determinista, tributária do positivismo, e referenda a Objetividade jornalística. Tem como pressuposto o fato de que o jornalista realmente não participa do processo de produção da notícia, o que historicamente até se justifica numa tentativa de autoafirmação do status de verdade da narrativa e da informação jornalística, do profissionalismo e dos mecanismos de apuração. Entretanto, Barros Filho (1995. p. 23) considera-a uma estratégia de legitimação de um tipo de produto dentro de um campo jornalístico em formação: de um lado, o jornalismo do passado (sensacionalista, marrom, panfletário); de outro, o jornalismo moderno (isento, imparcial, impessoal, objetivo). As técnicas jornalísticas que configuraram a cientificidade, profissionalismo e a credibilidade do texto jornalístico, desde a instauração do modelo de Jornalismo Informativo, até hoje, são as mesmas (lead, copy desk, pirâmide invertida) e ainda circundam o cotidiano dos profissionais. Contudo, sabe-se que essa concepção não é definitiva e que, sim, o jornalista se relaciona com o social. Até mesmo, no início do Prêmio Esso, nos anos 50, já havia um esforço nos regulamentos para reconhecer atributos subjetivos: É interessante notar que a reportagem mantém um estatuto diferenciado dentro do concurso jornalístico. Enquanto os julgadores conferem o Prêmio Esso de Jornalismo ao trabalho de melhor qualidade dentre todos os inscritos, o Esso de Reportagem transforma-se em uma categoria que representa, de certa forma, a essência da atividade jornalística. A leitura do (...) do regulamento do concurso demonstra como os valores construídos em torno da ideia do repórter como aquele que descobre as novidades e denuncia as mazelas escondidas da sociedade são reconhecidos pelo campo e contribuem para a formação de uma certa identidade profissional. Descreve o documento que o Prêmio Esso de Reportagem “será conferido, preferencialmente, ao trabalho em que ficar evidenciado o esforço acima do comum por parte do repórter ou de equipe de jornalistas para obtenção das informações utilizadas na matéria”. O regulamento atual acrescenta que o objetivo é reconhecer a “coragem, determinação, perseverança, senso de oportunidade e isenção”, dentre outras virtudes pessoais e profissionais do repórter. (CASTILHO, 2009, p. 7)

Tais critérios não se afastam muito dos pressupostos que orientavam a atuação da imprensa ainda na virada do século XIX para o século XX, sobretudo no Rio de janeiro.

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Atributos como “coragem”, “capacidade”, e “competência” do repórter remontam a postura combativa assumida por muitos diários a partir da Proclamação da República. Essa autoimagem construída sobre a profissão constitui uma marca de autoridade fundamental do campo jornalístico (Idem). As estratégias de distinção e de certificação de mérito do Prêmio Esso estão ligadas a estes valores, tendo em vista a análise e o reconhecimento por pares dentro do grupo de jornalistas tidos como “profissionais”, como forma de legitimação da própria atividade. Castilho (2010) retoma inúmeros jornalistas famosos que fizeram parte dos juris: Nos primeiros anos, a comissão era formada por profissionais que detinham forte capital específico e institucional na imprensa brasileira nos anos 1950 e início dos anos 1960 – emblemático nesse sentido foi a participação de Herbert Moses, presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), na comissão julgadora de 1956 a 1961. Outros nomes importantes do jornalismo, particularmente no Rio de Janeiro, também fizeram parte dessas comissões nos anos 1950: Danton Jobim (1956), Pompeu de Souza (1957) e Luiz Paulistano (1959 e 1960), todos do Diário Carioca, Otto Lara Rezende (1956 e 1957) e Carlos Castello Branco (1958), ambos da revista Manchete, Antônio Callado (1956 e 1957), do Correio da Manhã, e Odylo Costa Filho (1959, 1960, 1962 e 1963), do Jornal do Brasil e da Associação Brasileira de Relações Públicas. A partir dos anos 1960, constam na lista de julgadores jornalistas que começaram a adquirir status na carreira ao conquistar, eles próprios, o Esso: João Máximo (premiado na categoria principal em 1967 e jurado em 1971); Perseu Abramo (premiado na categoria regional em 1961 e jurado em 1962); o fotógrafo Alberto Ferreira (premiado em 1963 e jurado em 1964); Tácito Lopes Costa (destaque especial em 1962 e jurado em 1964); Mino Carta (premiado na categoria regional em 1964 e jurado em 1967) e Luiz Orlando Carneiro (premiado na categoria Equipe em 1965 e jurado em 1971, 1974 e 1975) (CASTILHO, 2009, p. 4).

O Prêmio Esso instaura a cultura meritocrática premiativa na cultura profissional jornalística ao certificar práticas ditas “exemplares” dentro de um protocolo de valores e procedimentos pertencentes a dado modelo jornalístico. Este tipo de distinção faz emergir no grupo profissional um extrato de trabalhadores que possuem um status reconhecido pela elite da profissão (os pares, profissionais no topo da carreira, notório saber). O Prêmio Esso é o marco inaugural dos prêmios em Jornalismo, no Brasil, mas, em cinco décadas de existência, outras premiações foram criadas e outros modelos jornalísticos também foram fomentados. Na seção, a seguir, a abordagem é sobre os prêmios que valorizam a subjetividade e flexibilizam o determinismo da Ojetividade, com a anulação do sujeito (isenção, impessoalidade e imparcialidade).

Prêmios e o fomento de modelos jornalísticos

A instauração de cada modelo de Jornalismo, no Brasil, está diretamente ligada à criação de um prêmio fomentador deste conjunto de saberes e fazeres:

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Prêmio Esso como marco do Jornalismo Informativo em 1955;

Prêmio Aberje com a lógica de Jornalismo Empresarial e Comunicação Empresarial2 que depois seria revista como Jo rnalismo Institucional em 1974;

Prêmio José Reis de Ciência e Tecnologia quanto ao modelo de Jornalismo Científico em 1980;

Prêmio CNH de Jornalismo Econômico em 1993,

2- Em Cândido Teobaldo de Souza Andrade (Relações Públicas) e Francisco Gaudêncio Torquato do Rego (Jornalismo Empresarial e Comunicação Empresarial).

dentre modalidades mais específicas.

Com a emergência da questão dos direitos humanos e do modelo de Jornalismo Público, nos anos 90, surgem os prêmios com enfoque na cidadania:

Prêmio Ayrton Senna, por exemplo, configura um dos pioneiros relativos ao Terceiro Setor, em 1997;

Prêmio Jornalista Amigo da Criança, na questão da criança e do adolescente, em 1996;

Troféu Mulher Imprensa sobre direitos relativos ao gênero, em 2003.

A expansão do cenário instaurado pelo Prêmio Esso (nos anos 50) é percebida também nos valores distribuidores aos vencedores das premiações. Em 2012, o Prêmio BNB de Jornalismo em Desenvolvimento foi o que mais investiu neste tipo de estratégia: R$ 171 mil, seguido de Prêmio Embratel (R$ 166 mil), Prêmio Esso (R$ 92 mil), Prêmio Allianz Seguros (R$ 90 mil), Prêmio Itaú de Finanças Sustentáveis (R$ 80 mil), Prêmio Estácio (R$ 68 mil), Concurso Tim Lopes de Jornalismo Investigativo (R$ 65 mil). O Prêmio Esso, apesar de ser o mais tradicional e conhecido na imprensa brasileira, investiu quase metade do valor de outra organização (DIAS, 2013). Há uma diversificação das premiações, não sendo todas em dinheiro. Apenas metade dos prêmios costuma ter recompensas em dinheiro (53%), seguidos dos que trabalham com honrarias simbólicas (33%), bolsas subsídio (2%), vales-compra (2%). As ferramentas de trabalho estão inclusivas nas honrarias simbólicas (Idem). Percebe-se também o aumento de prêmios para jornalistas profissionais com categorias para estudantes, além dos exclusivamente estudantis. Alguns nomes que podem ser citados: Prêmio Esso, Prêmio Internet Segura, Prêmio AGERGS/ Banrisul, Prêmio BNB, Prêmio Gandhi de Comunicação, Concurso Tim Lopes Jornalismo Investigativo, Prêmio CBN de Jornalismo Universitário e Prêmio Jovem Fernando Pacheco Jordão (Idem). As formas de adesão aos prêmios também mudaram, sendo por indicação; monitoramento; e por candidatura. Os prêmios que trabalham com indicação costumam ter uma rede

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de associados ou um colégio de responsáveis que elencam premiáveis (trabalho, profissional ou empresa). Essa modalidade trabalha também com votação frente a uma lista de indicados a ser compartilhada entre os membros do grupo de referência. Os que trabalham com monitoramento investigam uma rotina ou noticiário na busca de um perfil. Costumam ser os que têm os critérios de seleção com menor transparência, pois não são revelados e nem mesmo há uma comissão formal e pública que julga os premiáveis. É de caráter bem institucional. Já a grande maioria trabalha com adesão por candidatura: mediante o lançamento de um regulamento normatizando o processo de premiação fazem as chamadas para inscrições e candidaturas (DIAS, 2013). O objeto de premiação não é mais somente a matéria jornalística, mas também a personificação do jornalista exemplar e da empresa fomentadora deste exemplo. As três categorias são objetos de mérito: a matéria, o jornalista e a empresa jornalística. Os prêmios mais antigos e marcados pela ênfase na adoção dos critérios de Objetividade tendem a ter como premissa a questão da anulação do sujeito. Sendo assim, premiam apenas as matérias. Já os prêmios que flexibilizam a isenção, imparcialidade e, principalmente, a impessoalidade em favor da atuação social, tendem a também premiar os próprios jornalistas e as empresas nas quais trabalham, até mesmo por os verem como sujeitos de direito (Democracia Participativa). Atualmente, o Prêmio Esso ainda valoriza a perspectiva do cão de guarda (Democracia Representativa), mas se abriu para práticas em jornalismo imbuídas na questão da responsabilidade social. Nesse sentido, o Jornalismo Público também explica a premiação ao levar em conta a ressignificação do sujeito (atuação social) dentro da função democrática a qual essa tipologia dá ênfase (democracia participativa: jornalista responsável social pelas demandas de cidadania). A abordagem trata das grifes instituídas com a cultura meritocrática premiativa para retomar a questão do sujeito mais à frente, ao abordar o modelo de Jornalismo Público com mais ênfase.

O status de grife de uma nova elite profissional

É importante ressaltar que, a partir dos anos 90, com o neoliberalismo e novos atores sociais como os organismos do Terceiro Setor, expandiram e multiplicarem o número de prêmios em Jornalismo no Brasil. Pereira (2005) declara que os prêmios em Jornalismo instauram um tipo de meritocracia, como efeito da premiação a jornalistas. Em sua análise:

Ao mesmo tempo em que esses prêmios são um estímulo para a produção de textos sobre o tema, também são uma forma de dar um certificado de “bom” ou “mau” jornalista, pois atribuem uma espécie de selo e de qualificação ao profissional (ter o título de Jaca é diferenciarse na redação), contribuindo para a formação das “grifes” de jornalistas. São uma categorização e uma medida de eficiência e eficácia do

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profissional, mencionado por essas organizações como um divulgador, ou seja, aquele que dissemina as iniciativas que contribuem para a solução de problemas sociais. O termo divulgador é recorrente nos comunicados das organizações citadas [ANDI e Instituto Ayrton Senna]. Às vezes, o jornalista também é tratado pelo termo fonte disseminadora, o que provoca certo deslocamento de papéis: posiciona-se a fonte como “repórter” e o jornalista como “fonte”. (PEREIRA, 2005, p. 5)

Os prêmios, oriundos do Terceiro Setor, tentam criar campanhas humanitárias que perpassam o Jornalismo com base nas causas que cada organização defende. Andrade (2001) entende a campanha humanitária como um tipo de “cruzada moral”, na qual profissionais de reconhecimento e prestígio social “se transformam em verdadeiras grifes”. Para o autor, As cruzadas morais, ao se revestirem de um espírito humanitário, esperam que as normas defendidas por elas sejam seguidas, pois elas buscam promover o bem daqueles que são objeto da atenção de seus cruzados. Além do mais, a legitimidade dos agentes de uma cruzada está associada à sua posição moral (uma vez que agem em nome do bem) e à sua posição superior na hierarquia social. São aspectos importantes também que os cruzados se interessam menos pelos meios que pelos fins e que as cruzadas morais podem angariar adesão de interesseiros em busca de vantagens (ANDRADE, 2001, p. 28).

Freitas (2004) estuda a crescente associação entre setores empresariais, Organizações NãoGovernamentais e governamentais cuja ação vincula-se à defesa dos direitos da criança e do adolescente. Para a autora, as “cruzadas morais” identificadas por Andrade (2001) assumem formas distintas e agregam setores conforme alcem suas bandeiras em favor do bem. Em sua análise: Tais associações ganham maior visibilidade particularmente quando empresas do setor midiático compõem a cruzada moral. Esta tem sido a estratégia atualmente buscada por ONGs, organizações multilaterias e governos para ampliar o raio de difusão e penetração de diversas campanhas, muitas delas denominadas de “interesse público”. Por outro lado, a mídia (empresa e profissionais) encontra interesses em participar nessas campanhas. Assim, ao mesmo tempo em que a veiculação de temas e campanhas humanitárias facilita o fluxo de notícias ao público leitor divulgando a causa, reforça a credibilidade do veículo e de seus profissionais. Portanto, os idealizadores e adeptos das campanhas (individuais e institucionais), os próprios ideais e símbolos das campanhas e empresários e profissionais da mídia saem fortalecidos (FREITAS, 2004, p. 112). 3-A instituição de grife, tida pelo autor, é no campo da Comunicação, especificamente no Jornalismo. A sua tese foi produzida pela área de conhecimento da Psicologia Social, mas versando sobre a questão da ideologia e estigmatização da prostituição infanto-juvenil na mídia.

Andrade (2001, p.138) afirma que há a instituição de uma grife com a titulação feita pelos prêmios3. Segundo o autor, o profissional conquista espaço e prestígio no mercado profissional, advindo não apenas de sua remuneração, mas do valor simbólico associado a seu nome, ou seja, uma “matéria sobre determinado tema ganha destaque quando publicada

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sob a grife de jornalista de renome”. No plano institucional das ONGs [o uso de grifes de Direitos Humanos] ocorre de modo similar ao plano dos profissionais em jornalismo. Na década de 1990 foram criadas instituições (ONGs) por personalidades de prestígio, como atletas profissionais (Ayrton Senna, Raí, Guga) ou empresários e profissionais de outros setores, como Oded Grajew (Abrinq, Ethos e assessoria do Governo Federal em 2003), Gilberto Dimenstein (ANDI, Projeto Aprendiz e Folha de S.Paulo), ou por instituições do setor econômico/financeiro que emprestaram seu prestígio criando fundações ou institutos (Banco Itaú, Unibanco, Monsanto, Telesp Celular e outros). Tais instituições ganharam prestígio com ações sociais humanitárias, associando-se a ONGs e aos organismos internacionais (Unicef, Unesco, OIT, e outros) que, por sua vez, ampliaram o prestígio daqueles que a constituíram ou que lá ocuparam cargos (FREITAS, 2004, p. 114-115)

As grifes jornalísticas se organizam em torno de um olimpo de saberes, fazeres, ethos e procedimentos tidos como exemplares dentro do escopo de um prêmio. Pelo jornalista ser defensor dos direitos humanos, os prêmios que evocam a cidadania têm tido muito êxito em fazer uso do modelo de Jornalismo Público para disseminar valores organizacionais a serem compartilhados na cultura profissional jornalística.

O Jornalismo Público como modelo fomentador do sujeito

4- Oliveira (2008)

5- Silva (2004)

O Jornalismo Público não chega a ser antagônico ao Jornalismo Informativo na questão dos pontos de contato com a Teoria da Notícia, pois também referenda a adoção dos critérios de Objetividade, divergindo apenas quanto à questão do sujeito (isenção x atuação), valores-notícia (ou valores-serviço4) e fluxo de agendamento (contra-agendamento e coagendamento)5. Desta forma, utilizando os mesmo princípios de estruturação e produção da notícia, incorre também em controle do seu trabalho (Breed) nas rotinas produtivas (Tuchman), a questão da ação pessoal e seleção de notícias (Lewin) por um filtro (White, Senra), o profissionalismo (Soloski), sofrimento com a pressão do tempo (Schlesinger), relacionamento entre fontes e os jornalistas (Molotch e Lester), além de questões relativas à visão de mundo e à cultura profissional (Schudson, Hall et al). O grande contraste entre Jornalismo Informativo e Jornalismo Público é a concepção burguesa mercantil (a partir do cão de guarda das instituições na democracia representativa) e a concepção social cidadã (a partir do Jornalismo como instrumento de cidadania na democracia participativa). Resumidamente, o Jornalismo Público está situado dentro das teorias construcionistas da notícia (TRAQUINA, 1999; SOUSA, 2002), num contexto sensível de construção social da realidade. O modelo de Jornalismo Informativo, dos critérios de Objetividade, posicionava o Jornalismo como Quarto Poder, o Cão de Guarda vigia da democracia representativa. A partir da adoção dessa perspectiva, os jornalistas passaram a estar em estado permanente de alerta

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e crítica às instituições públicas. Uma ideia quase militante de oposicionismo. A postura jornalística de contestação e contra-argumentação do Quarto Poder se tornou central. Com isso, o noticiário perdeu abertura para outros temas relevantes da vida democrática, tornando em si apenas uma lógica de mercado como citado por Joseph Pulitzer nos seguintes termos: “com o tempo, uma imprensa cínica, mercenária, demagógica e corrupta formará um público tão vil como ela mesma”. O modelo de Jornalismo Público recupera o aspecto positivo e construtivo da notícia, deslocando o Jornalismo para a arbitragem da fiscalização do cidadão em relação ao Estado e da prestação de contas deste ao cidadão. Silva (2004) considera o modelo de Jornalismo Público vocacionado para a mudança para o qual a notícia e as informações que lhes são acrescidas são constitutivas de uma práxis. E considera que os temas cívicos necessitam ser compartilhados simbolicamente no Espaço Público. Neste sentido, o autor retrata os principais objetivos de iniciativa de ação social relativos ao agendamento de notícias na mídia: É preciso destacar que, em geral, grandes “ações sociais” demandam, para além do agendamento das estratégias nos planos das políticas sociais e das políticas públicas, um agendamento específico com relação à mídia, de forma a se obter junto à mesma três tipos de respostas: - a publicação de notícias; - a publicação de notícias, acrescidas de serviços: informações de utilidade pública e instruções quanto a procedimentos a serem adotados pelos públicos; - o estabelecimento de parcerias com a mídia, o que, por vezes, implica em alguma coisa a mais do que a simples sensibilização (SILVA, 2007)

Tal fato vai de encontro ao que Peruzzo (2003) considera ser o acesso do cidadão ao Espaço Público e à participação nas instâncias de produção de conteúdos informativos e noticiosos. Em sua análise: A questão da liberdade de acesso aos meios de comunicação não se refere apenas ao alcance dos meios a que o cidadão tem direito – o que quer dizer poder receber as mensagens transmitidas pela mídia, mas também à sua participação ativa como sujeito em todas as fases do processo de comunicação (PERUZZO, 2003, p. 251).

A grande assertiva do Jornalismo Público está no fato, como exposto em Peruzzo (2003), do conceito de democracia participativa ser estendido também ao processo de comunicação, para além da luta política. O que é o interesse da pesquisa e também o grande cuidado quando consideramos pouco produtivo entrar em questões de ideologia e lutas de classe. Ora, os dois modelos abordados, Jornalismo Informativo e Jornalismo Público, são imersos em lutas, convicções e simbolismos ideológicos. Para Silva (2012), no Brasil, a forma de Jornalismo Público que possivelmente mais prosperou foi essa que resulta de parcerias informais entre ONGs e redações.

Conclusão

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Neste artigo, trata-se da cultura meritocrática premiativa como um elemento pouco estudado na ciência em Comunicação: Cassol (1997), Santos (2004), Magno (2006), Passos (2007), Carvalho (2007), Mora (2008), Dias (2008), Gonçalves (2010) Castilho (2010) e Dias (2013). No Brasil. Alguns autores têm se dedicado ao assunto tentando desvendar e identificar atores e elementos constituintes da cultura profissional. De imediato, a contribuição ficam em torno dos promotores da notícia ou definidores primários sobre este esforço de prescrição de um novo padrão de conduta e normas de comportamentos, além da identificação de um sistema paralelo e extra-organizacional de recompensa profissional. Caso o leitor se interesse por mais informações, além dessas pesquisas na ciência, existe, inclusive, um Centro de Memória dos Prêmios de Jornalismo do Brasil (apoiado por Shell, Gerdau, Ambev, Embraer; e criado em 2011), que faz o Ranking Jornalistas&Cia, com base em quase 70 prêmios em Jornalismo, nacionais e estrangeiros. Por hora, neste formato artigo, prezamos pela circulação deste conhecimento em bases indexadas e em periódicos científicos fazendo circular na comunidade científica esses novos aspectos e desdobramentos dos estudos em Jornalismo e Comunicação.

Referências

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UnB). 2006 MOLOTCH, Harvey e LESTER Marilyn. “As notícias como procedimento intencional: acerca do uso estratégico dos acontecimentos de rotina, acidentes e escândalos”. In: TRAQUINA, Nelson (org.) Jornalismo: Questões, teorias, estórias. Lisboa (Portugal) Vega. P.34-53. MOTTA, Luiz Gonzaga. Pesquisa em jornalismo no Brasil: o confronto entre os paradigmas midiacêntrico e sociocêntrico. Comunicação apresentada no Congresso da IAMCR. Porto Alegre, 2004. OLIVEIRA, Daniel. Jornalismo para além do valor-notícia : o valorconvergente como modelo para selecionar e inserir temas sociais na mídia. (Dissertação, Mestrado em Comunicação), UnB. 2008 SCHLESINGER, Philip. “Os jornalistas e a sua máquina do tempo”. In: TRAQUINA, Nelson. (Org.) Jornalismo: questões, teorias e “estórias”. Lisboa: Vega, 1993. SILVA, Luiz Martins. “Sociedade, esfera pública e agendamento”. In: BENETTI, Márcia; LAGO, Cláudia. (Org.). Metodologia de pesquisa em jornalismo. 1 ed. Petrópolis: Vozes, 2007. ______, Luiz. “Jornalismo Público. O papel preventivo da imprensa”. Observatório da Imprensa. Ano 17 - nº 731. Edição 687. Sexta-feira, 01 de Fevereiro de 2013. ISSN 15197670 SOLOSKI, John. “O jornalismo e o profissionalismo: alguns constrangimentos no trabalho jornalístico”, in TRAQUINA, Nelson. Jornalismo: questões, teorias e estórias’. Lisboa, Vega, 1993. TRAQUINA, Nelson (org). O estudo do jornalismo no século XX. São Leopoldo, RS: Ed. Unisinos, 2001. TUCHMAN, Gaye. “A objetividade como ritual estratégico: uma análise das noções de objetividade dos jornalistas”, in TRAQUINA, Nelson. Jornalismo: questões, teorias e estórias’. Lisboa, Vega, 1993, P. 74-90. WHITE, D. M. “O gatekeeper: uma análise de caso na seleção de notícias”. In: TRAQUINA, N. (Org.) Jornalismo: questões, teorias e estórias. Lisboa: Veja, 1993. p.142-151.

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Dossiê Temático Plataformas Colaborativas: entre a participação e o controle Apresentação Sonia AGUIAR Jornalista formada pela UFF, com mestrado em Comunicação e doutorado em Comunicação/ Ciência da Informação, é professora do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e uma das pioneiras nos estudos sobre redes sociais no Brasil, antes da sua apropriação nominal pelas novas corporações midiáticas da Internet.

Desde o início deste século, um número crescente de artigos e livros sobre os impactos da Internet na vida cotidiana, nos negócios, na governança pública, na comunicação e na cultura vem sendo publicado. No entanto, ao propor um foco nas práticas de cooperação e controle observáveis nas chamadas “plataformas colaborativas”, este dossiê acabou revelando que ainda há muito a se trilhar nessa direção no campo de estudos da EPC: mais da metade dos artigos que atenderam à chamada para trabalhos não demonstraram “aderência” a essa perspectiva, a despeito da sua qualidade acadêmica sob outras abordagens. Os artigos selecionados, bem como os dois de pesquisadores convidados e a entrevista que abre esta seção temática, apontam o quanto há de controvérsia acerca dessas plataformas sob uma ótica crítica do sistema capitalista e das proposições regulatórias da Internet. “A privacidade é um novo front político anticapitalista”, diz Fábio Malini, professor e pesquisador da Universidade Federal do Espírito Santo, que em entrevista exclusiva para esta edição mostra como a história da Internet tem sido um contínuo movimento dialético entre a captura da rede pela “nova economia” e as ações contrahegemônicas da cultura hacker.

Revista Eptic Online Vol.16 n.69-70 mai-ago 2014


Dossiê Temático: Plataformas Colaborativas

Já Marcos Dantas, professor titular da ECO-UFRJ e articulista convidado deste dossiê, dá ênfase ao processo de produção de valor extraído das relações em rede e à atualização do papel da audiência no que ele chama de “mais-valia 2.0”: a apropriação de trabalho não pago, literalmente gratuito, através de um sistema de agenciamento social, via meios eletrônicos de comunicação. Cesar Bolaño, também articulista convidado, por sua vez, procura mostrar, em parceria com Eloy Vieira (ambos do PPGCOM-UFS), que a Internet é fruto da trajetória histórica do capitalismo industrial (monopolista) ao longo do século XX, constituindo-se em espaço de convergência para toda a produção cultural industrializada, para o comércio em geral e também para os indivíduos e grupos sociais, como grande plataforma de comunicação. A cooperação e o controle nas dinâmicas de auto-organização em plataformas colaborativas são o foco do artigo de Beatriz Cintra Martins, da Fiocruz, para quem essas plataformas têm sido celeiro de dinâmicas produtivas geridas de forma distribuída e espaço de experimentação de tecnologias de cooperação, que viabilizam projetos econômicos baseados em uma lógica de sustentabilidade colaborativa. Mas essa lógica também está sujeita a apropriações controversas, como observam Daniel Reis Silva e Leandro Augusto Borges Lima, da UFMG, ao analisarem uma experiência de crowdfunding para financiamento de uma produção audiovisual a partir da mobilização da opinião pública. Por fim, este dossiê traz dois artigos sobre o Marco Civil da Internet no Brasil, sancionado pela presidente Dilma Rousseff em abril de 2014, após longo e controverso debate público. Ivan Paganotti, da USP, avalia a pressão virtual exercida em relação a essa regulamentação e à derrotada Lei Azeredo, enquanto Arthur Coelho Bezerra e Igor Waltz, do IBICT-RJ, destacam os avanços e as deficiências no projeto do Marco Civil, sob a ótica da privacidade, da neutralidade e da inimputabilidade. Em comum, todos esses artigos trazem questões controversas que precisam ser enfrentadas e debatidas como contribuição ao emergente campo de estudos da Economia Política da Internet.

Boa Leitura!

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Entrevista “A privacidade é um novo front político anticapitalista”

Fabio MALINI Doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ, com mestrado em Ciência da Informação no IBICT, Fabio Malini é professor da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), onde se formou em Jornalismo, e tem escrito há mais de 10 anos sobre temas relacionados à Internet, tais como colaboração, uso livre das redes, guerra de narrativas, monitoramento, vazamentos e anonimato nos sites de redes sociais, capitalismo cognitivo e cultura hacker. Atualmente coordena a pesquisa "Cartografia das controvérsias na Internet", em parceria com a ECO-UFRJ, onde também participa do Labtec - Laboratório Território e Comunicação, como professor associado. Na UFES coordena o Laboratório de Pesquisa sobre Internet e Cultura (Labic) e participa como pesquisador do Cibercult - Laboratório de Pesquisa em Comunicação Distribuída e Transformação Política.

Por Sônia AGUIAR

Há, no senso comum, uma percepção de que as tecnologias digitais vêm evoluindo muito rapidamente, a ponto de não ser possível fazer previsões muito precisas para os próximos anos. No entanto, a base de toda a comunicação na Internet ainda parece ser a troca de mensagens entre indivíduos e grupos, com base na tecnologia do correio eletrônico (de 1972), e a coleta e recuperação de informações em bases de dados. Tudo isso viabilizado pelo conjunto de protocolos TCP/IP (de 1982). Então, o que tem evoluído velozmente é a tecnologia ou a inovação nos negócios relacionados à Internet e nas suas apropriações socioculturais?

Revista Eptic Online Vol.16 n.2 p.71-74 mai-ago 2014 Entrevista realizada em abril de 2014


“A privacidade é um novo front político anticapitalista”

- Fabio Malini

A história da internet é de idas e vindas, do ponto de vista da socialização acelerada de suas tecnologias. Até 1979, a internet era bipolar. Era o protótipo da estrutura futura do mercado financeiro globalizado e o campo vasto da colaboração científica. Essa tensão ocorre porque a internet se constituiu primeiro como um dispositivo de resistência: anonimato, distribuição e comutação de pacotes são invenções computacionais para questões políticas. Assim, esse amplo espectro resistente foi a base para a internet popular pós-79, com a invenção da Usenet e dos BBBs [Bulletin Board System]. Veja que curioso: os BBSs, que foram as primeiras comunidades virtuais da internet, tiveram seu código inventado na big science norte-americana. Mas o programa se resumia a um universo nerd. Foi preciso um ativista gay para corrigir o programa, tornando-o uma máquina de "dizer a verdade", um dispositivo onde as pessoas poderiam ser francas e "sair do armário". Isso revolucionou a comunicação mediada pelo computador, porque, afinal, o único povoamento da rede era o email, algo muito restrito às conversações científicas. Com os BBSs, grupos e organizações não-governamentais passavam a criar servidores (baseados em microcomputador e linha telefônica) para fazer clubes virtuais de conversação entre pares (peer-topeer). A política das ONGs se confunde com essa internet das comunidades virtuais. Ao saltarmos 20 anos, em 1999, nos deparamos com qual realidade? A então World Wide Web completamente capturada pela "new economy" de Bill Clinton. A America OnLine (antes o maior provedor de clubes BBSs) se tornava uma mega empresa provedora de acesso à internet. A Web matou os BBSs instituindo a mecânica cliente-servidor. O negócio passou a girar em função das metas empresariais de promover a imersão do usuário em seus sistemas. A grande ilusão capitalista da década de 1990: os usuários transformados em operários fordistas, imersos nos ambientes controlados da Web. E felizes. A história da internet é a incessante história da busca de uma vida (não apenas trabalho) desmedida. Em 1999, o Napster, embarcando na cultura adolescente, desestrutura toda a new economy ao instituir o lema da cooperação, primeiro, o comando, depois. O idílico sonho de transformar a internet em indústria fordista é atropelada por uma geração que não estava nem aí para o trabalho da new economy. Ainda hoje estamos mergulhados nessa tensão 2.0. Que tensão é esta? Liberar o código, faturar na cooperação. Vivemos numa economia política onde o Free é categoria inferior à conta Enterprise. São negócios calculados para ganhar muito dinheiro até serem atropelados por tecnologias hackers. Esse é ponto de tensão.

A incorporação da Internet às mais diversas atividades humanas e sociais tem servido tanto a processos de reprodução do capital e das desigualdades intra e entre sociedades, quanto a projetos de expansão da pluralidade de vozes no debate público, de movimentos sociais anti-capitalistas e de atividades em rede que Yoshai Benkler chama de “economia de nãomercado”. O que explica essa aparente contradição?

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“A privacidade é um novo front político anticapitalista”

- Fabio Malini

Não sei se concordo com essa divisão, porque há uma espécie de grande recalque do mercado. Talvez, no fundo, a sua pergunta signifique: quando seremos comunistas? Há movimentos que resolveram essa bipolaridade a partir do abandono da noção de propriedade capitalista. Produzem mercados e recusam a propriedade liberal. Trocar, distribuir, alterar e até comercializar passam a ser regidos por licenças que instituem a liberdade no centro da criação de novos empreendimentos. E tais licenças impõem que todo produto derivado delas seja também livre. Assim, a liberdade não se subsume nem ao mercado e muito menos ao Estado. Em geral, temos apenas o Linux como exemplo dessa realidade. Mas há uma montanha de outros casos. Veja a linguagem Python, que está revolucionado a ciência, a comunicação e a informática. É uma linguagem de programação multiplicadora de milhares de programas e sites. É uma linguagem completamente livre e promotora de novos mercados.

Que comparação se pode fazer entre as recentes operações milionárias envolvendo empresas de tecnologias de Internet, em especial de mídias sociais, como as fusões e incorporações Youtube-Google e WhatsApp-Facebook, e os grandes negócios das corporações de mídia tradicionais, no contexto da atual reestruturação capitalista? É possível falar que vivemos uma era de “capitalismo digital”?

A compra bilionária de aplicativos é uma corrida pelo monopólio das relações sociais. Essas relações não apenas "agregam valor" como são potenciais geradoras de subprodutos. Todas essas empresas 2.0 possuem, em seus quadros, executivos que advogam pela sociedade. Isto é, defendem "ideias malucas" de negócios a partir do acesso permanente à API [Application Programming Interface] das plataformas. Usam o termo "acesso pleno ao garden". É curioso notar como estamos vivendo uma transição de uma comunicação da mega visibilidade do Facebook para uma sociedade da mensagem privada: Snapchat, Telegram, Whatsapp etc. É por isso, de certa maneira, que o tema da privacidade se tornou muito político. A privacidade é um novo front político anticapitalista, em tempos em que a Google já cumpriu a meta de ter todos os dados online das pessoas. Agora, o target das suas operações são os dados offline. É por isso que sensores e drones são o novo boom no Vale do Silício. É assustador saber que o Google Glass será uma máquina evoluída de captura contínua do offline. Agora, onde houve sensor, haverá muito poder. Muito monopólio da informação.

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“A privacidade é um novo front político anticapitalista”

- Fabio Malini

O conceito de “Internet prosumer commodity”, utilizado por Christian Fuchs, tem sido criticado por autores marxistas que não concordam que os usuários realizem algum tipo de trabalho produtivo ao fornecerem informações aos grandes sistemas de banco de dados de corporações como Google e Facebook. Para César Bolaño, por exemplo, apenas os trabalhadores informacionais dessas empresas são “capazes de transformar os dados em mercadoria audiência e de criar ferramentas que transformam toda a informação coletada da rede em bancos de dados”. Qual a sua avaliação acerca dessa controvérsia? Isso não é verdade totalmente. O salto do Google e do Facebook está justamente em não serem monopolizadores de seus dados. Por um motivo óbvio: não é possível manter esses dados aprisionados exatamente por questões comerciais. Sem acesso a eles, não há possibilidade de surgir outros negócios, como, por exemplo, a sua própria venda. Quem atua com data science é capaz de trazer para si a maior parte dos dados de interações do Foursquare, Twitter, Facebook, Instagram, Youtube, Flickr, Blogs etc. Acredito que um modo mais crítico será analisar os dispositivos reguladores das APIs das plataformas 2.0 dessas empresas. Diríamos que a capacidade social de produção de databases a partir de dados dessas empresas também é muito possível. Esse poder também está diluído no campo hacker.

Quais são as principais conquistas e as lacunas mais importantes do “Marco Civil da Internet” recém-aprovado pela Câmara dos Deputados, em termos de neutralidade da rede, garantias de privacidade, mecanismos de controle e de governança? A maior conquista é a neutralidade da rede. Um dia desses estava eu num hotel. Solicitei a senha para acesso à internet. E a atendente me perguntou qual internet eu queria: "livre ou paga?". Essa realidade não mais existirá. Não existirá mais provedor de acesso à internet reduzindo a velocidade do compartilhamento de arquivos torrents. Não existirá mais a venda de pacotes de acesso apenas às redes sociais, como fazem as operadoras de telefonia. E também não poderá mais haver universidades ou repartições públicas regulando o tráfego da internet ao seu bel prazer. A neutralidade é um chega-pra-lá no Estado e no mercado. De outro lado, a grande lacuna do Marco é a guarda de logs, que são os rastros dos usuários na internet. Há muita pressão de empresas de segurança e instituições policiais para que informações de privacidade dos usuários sejam guardadas por mais de um ano. Isso é um modo fascista de controle das relações comunicacionais. É algo como acontecia na Alemanha Oriental, onde os funcionários dos Correios abriam as cartas, liam e depois cerravam a correspondência. A guarda de logs é justificada pelo desejo de resolução rápida de crimes. No fundo, é um modo abissal de controle político das interações. E um modo de quebrar a cadeia de pequenos provedores de acesso à internet, que não teriam dinheiro para bancar a infraestrutura para guardar tantos dados de usuários.

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ECONOMIA POLÍTICA DA INTERNET E OS SITES DE REDES SOCIAIS* ECONOMÍA POLÍTICA DE LA INTERNET Y LOS SITIOS DE REDES SOCIALES INTERNET POLITICAL ECONOMY AND THE SOCIAL NETWORK SITES

César R. S. BOLAÑO Professor da Universidade Federal de Sergipe, presidente da Associação Latino-americana de Investigadores da Comunicação (ALAIC) e diretor da rede e da revista EPTIC Online. fundador da União Latina de Economia Política da Informação, da Comunicação e da Cultura (ULEPICC). E-mail: bolano.ufs@gmail.com.

Eloy S. VIEIRA Mestrando em Cultura, Economia e Políticas da Comunicação pela Universidade Federal de Sergipe e graduado em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela mesma instituição E-mail: eloy.jor@gmail.com.

Revista Eptic Online Vol.16 n.2 p.75-88 mai-ago 2014 autor convidado


Economia Política da Internet e os Sites de Redes Sociais – Cesar Bolaño; Eloy Vieira

Resumo A privatização da internet não significou simplesmente a passagem de uma lógica estatal, para uma econômica, mas algo mais complexo. O ano de 1995 é o grande marco dessa passagem, pois foi exatamente quando a National Science Foundation cedeu ao setor privado, o controle e exploração da rede. Apesar de o acesso gratuito à informação ter sido mantido nesse processo, o modelo de regulação foi profundamente modificado em favor de uma lógica econômica centrada fundamentalmente na publicidade. Neste texto, após uma breve recapitulação de alguns dos marcos históricos do desenvolvimento da Internet, nos deteremos no caso dos sites de redes sociais, afim de sumarizar alguns aspectos fundamentais com o intuito de entender a economia política da rede. Nossa discussão envolve a explicitação de um problema da contribuição de Christian Fuchs sobre o tema, ilustrativo de um equívoco mais geral de interpretação da teoria marxista presente na tradição da economia política da comunicação de língua inglesa.

Palavras-Chave economia política, comunicação, capitalismo, redes sociais.

Resumen La privatización de internet no significó solamente el pasaje de una lógica de estado para una lógica de economía, todavía algo más complejo. El año de 1995 fue el hito de esa pasaje, pues fue exactamente cuando la National Science Foundation cedió al sector privado el control y exploración de la red. A pesar de que la gratuidad del acceso a la información tenga sido mantenido en ese proceso, el modelo de regulación fue cambiado radicalmente, favoreciendo a una lógica económica centrada esencialmente en la publicidad. En ese paper, después de una breve recapitulación de algunos hitos históricos acerca del desarrollo del internet, enfocamos en el caso de los sitios de redes sociales con el objetivo de resumir algunos aspectos fundamentales para comprender la economía política de la red. Nuestra argumentación destaca un problema en la contribución que Christian Fuchs hice acerca del mismo tema como apenas un ejemplo de un equívoco más amplio y común en la teoría marxista con tradición en la lengua inglesa. Palabras Clave economía política, comunicación, capitalismo, redes sociales.

Abstract The privatization of internet was not only a passage from a state logic to an economic one, but something more complex. The year of 1995 is the greatest milestone of this passage because was exactly when the National Science Foundation let the private sector control and exploit the network. Even though the free access to information was granted, the regulation model was deeply changed aiming to support the economic logic based essentially in advertising. In this paper, after a brief recapitulation about internet history, we focus on social network sites intending to summarize some main aspects to understand the network political economy. Our discussion highlights the problem in Christian Fuchs contribution about this issue as a sample of the major misinterpretation of the Marxist theory that is very common in the Anglophonic stream of political economy of communication. Keywords political economy, communication, capitalism, social network sites.

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Breve histórico da rede

* Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada, com o título “Economia política da internet: sites de redes sociais e luta de classes”, no XXXVI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação (INTERCOM), Manaus, 4 a 7 de setembro de 2013. Uma versão condensada do mesmo, em inglês, encontrase em vias de publicação na revista Television and New Media. Trata-se de mais um resultado da pesquisa sobre Economia Política da Internet, realizada no interior do Observatório de Economia e Comunicação (OBSCOM) da Universidade Federal de Sergipe 1- Arpanet é um acrônimo de Advanced Research Projects Agency Network. Considerada a principal precursora da Internet, foi a primeira rede operacional de computadores à base de comutação de pacotes, ainda em 1969. A rede nasceu no Pentágono durante o período da Guerra Fria, sendo utilizada pelo Departamento de Defesa para interligar bases militares e departamentos de pesquisa do governo americano. Em 1973 a Arpanet passa a se chamar DARPA (Defense Advanced Research Projects Agency). No final da década seu protocolo de comutação de pacotes original, chamado Network Control Protocol (NCP) já não suportava a demanda crescente. Para solucionar o problema o TCP/IP (Transmission Control Protocol/Internet Protocol) – ver nota 4 adiante – passou a ser utilizado. Em 1983, a Arpanet foi dividida e originou a MILNET (mais tarde chamada de NIRPNET – Non-classified Internet Protocol Router Network) – rede exclusiva para assuntos militares – e o restante da rede tornou-se público e finalmente transformado na Internet. É importante distinguir aqui a rede (Internet) da web (WWW). Enquanto a primeira designa essencialmente o suporte técnico, a segunda é apenas a interface criada em 1999,

Durante o período da Guerra Fria, cientistas e militares dos Estados Unidos aliaram-se para desenvolver uma rede que garantisse a segurança do país em caso de ataques nucleares soviéticos. A partir deste esforço conjunto e com o apoio do Departamento de Defesa surgia a Arpanet1. Assim, temos, no surgimento da rede, uma utilidade pragmática, eminentemente estratégica, definida para ela: manter abertos os canais de comunicação entre os núcleos de pesquisa do grupo de elite das universidades conectadas, os órgãos da inteligência militar e empresas com contratos de fornecimento de alta tecnologia de defesa para o governo norte-americano, na iminência de um confronto real com a União Soviética, constituindose, portanto, em um instrumento tecnológico a serviço da defesa de um determinado sistema político e econômico (BOLAÑO et al, 2011, p. 133).2

Nesta primeira fase, que vai da década de 1960 até o final dos anos 1970, a rede apresentou um crescimento persistente, ainda que pouco expressivo, de caráter experimental, essencial para o desenvolvimento das tecnologias atualmente em uso, como o cabo Ethernet3, ou o protocolo de comutação de dados TCP/IP4, que foi adotado e padronizado somente na década seguinte. Em 1979 foi criado o primeiro serviço de informações online, o CompuServ. Cinco anos depois, o sistema de domínios DNS5, responsável por hierarquizar as conexões entre as máquinas ligadas à rede e os servidores. Em 1985 surge um dos primeiros serviços de comunicação através da rede, o Sistema de Boletins Informativos (BBS)6, desenvolvido pela America Online, que acabou se tornando a maior provedora de acesso à Internet do mundo na década seguinte. No ano seguinte, os primeiros backbones7 começaram a ser instalados pela National Science Foundation (NSF) – agência do governo dos EUA responsável por financiar pesquisas em diversas áreas de conhecimento. Em 1989, Tim Berners-Lee e Robert Caillau, ambos cientistas do CERN (Organisation Européenne pour la Recherche Nucléaire)8 começavam a desenvolver a web, considerada um grande marco tecnológico que facilitava o acesso à rede de usuários não profissionais através da nova interface que foi aprimorada e lançada oficialmente em 1991 e ficou conhecida como WWW (World Wide Web). O hipertexto passava de bidirecional a multidirecional e se tornava necessário o uso de um navegador, como o Mosaic ou o Netscape, precursores dos atuais Internet Explorer, Mozilla Firefox e Google Chrome, por exemplo. A passagem da Arpanet para a Internet é o grande marco que lança as primeiras bases para a formação de uma cadeia econômica de exploração da rede baseada então essencialmente nos serviços de provedores de acesso. Com o estabelecimento da web como sua interface, na década de 1990, a rede começa a apresentar altas taxas de crescimento. Em 1995 havia cerca de 5 milhões de conectados, número que praticamente sextuplicou em apenas três anos, pulando para cerca de 30 milhões em 1998 (LEINER et al, s.p.). Ainda em 1995 se dá a ruptura fundamental, quando a National Science Foundation deixa de controlar e explorar a rede e passa somente a

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considerada um marco na história da Internet, como se verá aqui. 2- Vide também SPYER, 2013. Disponível em: http://webinsider.uol.com. br/2013/02/08/queminventou-a-internet/. Acesso em 16 de fevereiro de 2013.

3- Cabo responsável por ligar uma máquina à rede. O que diferencia esse tipo de conexão de seus predecessores é que ele permite a transmissão de grandes volumes de dados, sendo essencial para o surgimento da banda larga.

4- O TCP/IP é um conjunto de protocolos de comunicação entre computadores em rede. Seu nome vem de dois protocolos: o TCP (Transmission Control Protocol) e o IP (Internet Protocol). Foi desenvolvido em 1969 pelo U.S. Departament of Defense Advanced Research Projects Agency a fim de suprir a demanda crescente de comunicação entre várias máquinas de institutos de pesquisa ou instituições militares. Ao utilizar redes de comutação de pacotes, o protocolo era capaz de identificar e encontrar a melhor rota possível entre dois sites, além de ser capaz de procurar rotas alternativas para chegar ao destino, caso qualquer uma das rotas tivesse sido destruída. Em 1983 ficou definido que todos os computadores conectados à Arpanet passariam a utilizar o TCP/IP. No final dos anos 80, a Fundação Nacional de Ciências começou construir o NSFNET, um backbone capaz de interconectar as máquinas ingressas na Arpanet. Em 1990 o NSFNET se tornou o backbone principal das redes para a Internet, padronizando definitivamente o TCP/IP.

gerenciar a infraestrutura da mesma, enquanto empresas como Prodigy, AOL, Compuserve e Teletel (França) se tornavam as maiores empresas a oferecer serviços de provimento de acesso à Internet (BOLAÑO, 2011, p. 146-147). Não se trata de simples mudança de uma lógica estatal para outra privada, mas algo mais complexo: há uma mudança fundamental na organização da internet quando se passa de uma lógica estatal-militar-acadêmica, segundo o modelo clássico norte-americano de inovação puxada pelo complexo industrial-militar, a partir de demandas do Departamento de Estado, para outra acadêmico-mercantil, a partir da privatização geral de meados da década de 90. Não se trata somente da passagem de uma lógica estatal para outra privada, mas, por um lado, de uma economia pública, centrada no investimento estatal, para outra de mercado, de acordo com diferentes modalidades de mercantilização e, por outro, de uma lógica política militar, de defesa, para outra, de privatização, regulação e globalização econômica, de apoio à reestruturação capitalista e à manutenção da hegemonia norte-americana nas relações internacionais no campo econômico (BOLAÑO et al 2011, p.48-49).9

A partir de então, a economia da internet começa a desenvolver sua forma atual. O capital especulativo encontra no setor oportunidades e grandes investimentos são feitos, capazes de transformar pequenas empresas criadas por estudantes universitários em grandes corporações, alimentando o mito norte-americano do “self-made man”. Os fundadores de empresas como Google, Yahoo! e Facebook, por exemplo, são todos oriundos da Universidade de Stanford, que apoia o desenvolvimento dos seus projetos, fornecendo inclusive a infraestrutura inicial de servidores e laboratórios. Empresas de capital de risco, como a Sequoia Capital, por sua vez, costumam dar o impulso primário necessário para a expansão dessas pequenas empresas que já nascem num ambiente propício para o desenvolvimento. Esse cenário de ação conjugada entre academia, setor privado e Estado era tão atraente para investidores de capital de risco que, em pouco tempo, outro grande marco da história da Internet estava para acontecer: a bolha especulativa das empresas de tecnologia. Assim, no final de 1999 “o índice Nasdaq atingiu 150 pontos em apenas uma semana e ultrapassou a marca dos 5 mil pontos em março de 2000 ao supervalorizar empresas como Cisco Sistems, IBM, Informix, Oracle, Microsoft, Sun Microsystems” (MONTEIRO, 2008, p. 20). O estouro da bolha especulativa da Internet em 2000 se traduzirá num extenso processo de demissões em massa e de fusões que constituirão o atual oligopólio da rede. As empresas que conseguiram sobreviver à crise são exatamente as gigantes que conhecemos hoje, as quais passaram a utilizar a Internet como plataforma e não mais como ferramenta. São os internet pure player que Monteiro (2008) chama de “empresa informacional”:

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5- Sigla em inglês para Domain Name System, sistema responsável pela hierarquização de qualquer dispositivo ligado à rede de acordo com os números de IP de cada máquina.

6- Um tipo de software que acabou dando origem aos fóruns de I nternet. Era possível acessá-los a partir de um terminal para interagir com outros usuários cadastrados através do upload de arquivos, imagens e também trocando mensagens ou mesmo através de jogos on-line. 7- Os backbones são como autoestradas para os dados. Toda a informação da Internet transita através deles e segue para pontos estratégicos de redistribuição da informação. O primeiro backbone a ser estabelecido foi o NSFNET, criado pela NSF e gerido pela mesma até 1995. 8- Antigo acrônimo para Conseil Européen pour la Recherche Nucléaire. É o maior laboratório de física nuclear do mundo. Fundado em 1954, sua sede localizase na fronteira entre a França e a Suíça. 9- Veja mais sobre a mudança da regulação estatal para a economia de mercado em LEINER et al. Disponível em: http://www.isoc.org/ internet/history/brief. shtml#Commercialization. Acessado em 03 de Novembro de 2011. 10- Há uma discussão muito mais ampla dentro do marxismo desde os trabalhos pioneiros de Baran & Sweezy, passando por Dallas Smythe, sobre o papel da publicidade no processo de reprodução do capital. Optamos aqui por seguir a mesma perspectiva adotada por Bolaño (2000).

Caracterizada pela prestação de serviços especificamente voltados às necessidades de acessibilidade, comunicação e informação (provedores de acesso à rede, hospedagem de conteúdo, correio eletrônico, grupos de interesse, salas de bate-papo, mecanismos de busca, comércio eletrônico, dentre outros). Ou seja, empresas que funcionam e obtém lucro com a manipulação (produção / processamento / distribuição) de informações [...] que representam nova fase de acumulação capitalista no âmbito da produção capitalista de informações (MONTEIRO, 2008, p. 2).

O modelo de capitalismo industrial (monopolista) que se desenvolveu ao longo do século XX, sobretudo no pós-guerra, proporcionou a estrutura necessária para que a informação, o conhecimento e a cultura fossem produzidos, utilizados e organizados da forma que conhecemos hoje, como instrumentos de poder político e econômico de tipo particular. A internet é fruto também desse processo histórico, constituindo-se em espaço de convergência para toda a produção cultural industrializada, para o comércio em geral e também para os indivíduos e grupos sociais, como grande plataforma de comunicação. Quando falamos de internet, estamos falando em algo substancialmente distinto de todas as inovações tecnológicas anteriores no campo da informação e da comunicação, devido ao seu caráter híbrido. Não se trata de uma nova tecnologia ou de uma nova indústria concorrente com as anteriores, mas do resultado do desenvolvimento das novas tecnologias e da sua interpenetração e expansão global (BOLAÑO et al, 2011, p. 36).

Mas o desenvolvimento tecnológico que resultou na criação da Internet é apenas o primeiro elemento a ser considerado na definição do novo modelo de regulação das comunicações que ela representa. O segundo e crucial elemento é a adoção de uma forma de financiamento já conhecida da Indústria Cultural: a produção da mercadoria audiência, um produto intermediário comercializado num mercado intracapitalista, essencial na organização de um fator chave para a reprodução do capital monopolista, como é a publicidade10. Antes da Internet, as empresas nunca tiveram tantas oportunidades de rastrear e reunir tanta informação sobre seus consumidores. Isso ocorre porque na nova plataforma, a informação, transformada em bits, torna-se passível de rastreamento, armazenamento e manipulação num nível sem precedentes. A migração das grandes corporações de comércio, mídia e entretenimento para a internet, transformou a rede mundial de computadores em mais um veículo da indústria cultural e da mercantilização da sociedade, beneficiando-se inclusive da possibilidade do mapeamento do perfil e hábitos dos usuários (a partir do histórico de seus movimentos pela rede) (MONTEIRO, 2008, p. 12).

Tal como ocorre no mercado de TV, onde o conteúdo é ofertado sem custos ao espectador, na internet, vários serviços (e-mail, notícias, comunicação, clima, informação, jogos, vários tipos de software etc.) são ofertados sem custo para o usuário a fim de atrair e manter a sua atenção. Assim como na TV, “os compradores de audiência são justamente os vendedores de bens e serviços, as autoridades, os políticos, em uma palavra, todos aqueles

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que necessitam comunicar-se com o público” (BOLAÑO, 2000, p.115-116). Os produtos ou serviços oferecidos pelos internet pure players apresentam uma dupla característica: se, por um lado, são mercadorias produzidas por empresas informacionais, por outro, mesmo sendo oferecidos gratuitamente, são meios para o processo circulação, etapa final da reprodução de capital dos anunciantes, os grandes financiadores de fato do sistema. Não há, portanto diferença essencial entre a economia política da internet e a das indústrias culturais do século XX. Aplica- se, em ambos os casos, o conceito de “duplicidade de mercadorias” (BOLAÑO, 2000), a que voltaremos mais à frente.

Internet como plataforma de acumulação de capital: o caso dos sites de redes sociais

Uma rede social pode ser definida como uma estrutura composta por pessoas ou organizações, conectadas entre si através de laços sociais e partilhando interesses em comum. Na Internet, esses atores sociais passam a ser representados por perfis, blogs ou fotologs e, através de plataformas disponibilizadas, estabelecem relações e interagem com outros atores. O conceito de rede social é muito mais antigo e não se confunde como de sites de redes sociais: Quando falamos em redes sociais na Internet estamos, ainda, limitando um espaço no qual focaremos o fenômeno. Assim, por exemplo, o Orkut pode representar diversas redes sociais que são constituídas pelos atores que ali se cadastram e interagem. [...] As redes sociais também devem ser diferenciadas dos sites que as suportam. Enquanto a rede social é uma metáfora utilizada para o estudo do grupo que se apropria de um determinado sistema, o sistema, em si, não é uma rede social, embora possa compreender várias delas. Os sites que suportam redes sociais são conhecidos como “sites de redes sociais” (RECUERO, 2009, p. 3).

Os primeiros sites de redes sociais surgiram no final da década de 1990, quando a Internet começou a se popularizar de fato entre os usuários comuns. Para Boyd & Elison, quase todas as ferramentas de comunicação mediadas pelo computador permitem o estabelecimento de redes sociais, mas “o que torna os sites de redes sociais algo único não é o fato de que eles permitem pessoas conhecer estranhos, mas sim o fato deles permitirem a construção e a publicação das redes sociais” (2007, s.p., online). Ainda segundo as autoras, existem três características básicas para definir um site de redes sociais: (1) construir um perfil público ou semi-público inserido num sistema fechado, (2) articular uma lista com perfis de outros usuários com os quais compartilham conexões e (3) acessar e explorar suas próprias listas de conexões e as de outros indivíduos inseridos no mesmo sistema” (BOYD & ELISON, 2007).

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O primeiro site de redes sociais foi a SixDeegres, que teve início em 1997. Além de perfis, os usuários podiam criar uma lista de amigos e, em 1998, puderam navegar por essas listas. Apesar de ter atraído mais de um milhão de early adopters, o site parou de funcionar em 2000. Depois dele surgiram várias plataformas que tiveram relativamente mais sucesso, principalmente pelo fato da segmentação. Live Journal, Asianevenue, Blackplanet, Migente, Fotolog, LunarStorm, Cyworld e Ryze são alguns exemplos. Três plataformas que surgiram ainda no começo dos anos 2000 merecem destaque. A primeira delas foi o Friendster. Surgido em 2002, logo teve um boom de usuários, o que acabou atraindo a atenção da Google, que tentou adquiri-lo em 2003 (MASHABLE, 2009). Apesar de perder usuários para novas plataformas como MySpace, sobretudo nos Estados Unidos, o Friendster teve mais de 50 milhões de dólares em investimentos de capital de risco. Atualmente a plataforma deixou de ser essencialmente uma rede de relacionamento priorizando a produção de jogos virtuais e outros tipos de entretenimento para o público asiático. A outra plataforma que ganhou notoriedade a partir de 2004 foi o MySpace. Vários integrantes de bandas independentes, não se adaptaram a sites anteriores como o próprio Friendster e viram no MySpace, que suportava a hospedagem de arquivos de música no formato mp3, um novo espaço para manter suas redes sociais e divulgar seus trabalhos. A relação entre as bandas que aderiram ao site e seus fãs foi a principal propulsora do seu crescimento. Em 2005, a News Corporation comprou o MySpace da Intermix Media por US$ 580 milhões (BBC, 2005). Mas, a partir do ano seguinte, o site enfrentou vários problemas como tentativas de phishing, spam e malware, o que levou muitos usuários a abandoná-lo. Apesar disso, Rupert Murdoch, dono da News Corporation, anunciou em 2006 que o site seguia crescendo e já contabilizava mais 100 milhões de usuários (SEEKING ALPHA, 2006). 11- Sobre o histórico do Yahoo! e outras companhias ligadas aos mecanismos de busca, vide Bolaño et al (2013).

No final de 2007, o MySpace era considerado o líder entre os diversos sites de redes sociais existentes. O valor de mercado da plataforma passava dos US$ 12 bilhões quando o Yahoo! recusou uma proposta de fusão com a Microsoft em fevereiro de 2008 (TECHCRUNCH, 2008)11. Depois de um breve período de ascensão, o número de usuários do MySpace foi diminuindo gradualmente. Depois de perder até 10 milhões de usuários em apenas um mês (TELEGRAPH, 2011), os diretores da empresa decidiram mudar o foco: de

site de redes sociais, o MySpace passaria a ser um site voltado apenas para o entretenimento, música, TV, cinema e celebridades. Em fevereiro de 2011, a News Corporation vendeu-o à Specific Media por U$S 35 milhões, valor que correspondia a apenas 6% dos US$ 580 milhões pagos pela empresa de Murdoch em 2005 ao adquiri-lo. Segundo o CEO da Specific Media na época da compra, o cantor Justin Timberlake deteria algumas ações da empresa e exerceria um papel fundamental na remodelação da empresa que planejava utilizar a estrutura pré-existente do MySpace para criar uma plataforma que incentivasse o público a interagir diretamente com os anúncios das marcas. A remodelação não teve sucesso e cerca de um ano depois da aquisição, a Specific Media fez um corte de mais de 500 funcionários e integrou-se ao Facebook, que começava sua ascensão (SEGAL, 2011).

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Uma terceira entrada importante nesse mercado foi a da Google. Desde 2001, o engenheiro turco Orkut Büyükkökten desenvolvia um projeto pessoal com o apoio da companhia. A primeira versão do projeto foi chamada de Club Nexus e três anos depois ganhou o mesmo nome de seu autor. Nascia aí o primeiro site de redes sociais lançado pela Google, o Orkut, que se constitui numa ferramenta de captação da subjetividade coletiva com fins de enriquecer os bancos de dados já formados pelo buscador, pois pretendia aliar vigilância e monitoramento a fim de cruzar as bases de dados do site de redes sociais com as provenientes do buscador que, por sua vez, não dizem respeito, num primeiro momento, a indivíduos ou pessoas particulares, mas a grupos e populações organizados segundo categorias financeiras, biológicas, comportamentais, profissionais, educacionais, raciais, geográficas etc. O cruzamento de dados organizados em categorias amplas irá projetar, simular e antecipar perfis que correspondam a indivíduos e corpos “reais” a serem pessoalmente monitorados, cuidados, tratados, informados, acessados por ofertas de consumo, incluídos ou excluídos em listas de mensagens publicitárias, marketing direto etc. Em síntese, seu principal objetivo não é produzir um saber sobre um indivíduo especifico, mas usar um conjunto de informações pessoais para agir sobre outros indivíduos, que permanecem desconhecidos até se transformarem em perfis que despertem interesses de qualquer natureza. Inicialmente os bancos de dados se situam num nível infraindividual. Eles não têm apenas a função de arquivo, mas uma função conjugada de registro, classificação, predição e intervenção. É exatamente este conjunto de informações que dá às corporações que captam a subjetividade coletiva através de plataformas de internet um grande poder de mercado (BRUNO, 2006, p. 155-156).

O caso do Orkut, bem estudado no Brasil, pode servir de modelo para entendermos o gênero todo. O usuário tem acesso ao serviço de forma gratuita e a empresa é paga através da veiculação de anúncios, tal como na TV. O que diferencia os dois tipos é que, no caso da Internet, a recepção é ativa. O usuário é quem insere suas informações numa plataforma e é a quantidade desse tipo de informação que qualifica os bancos de dados. Assim, a mercadoria audiência pode ser bastante segmentada, como esperam os anunciantes. A empresa se apropria das informações pessoais fornecidas pelos próprios usuários tornando assim o trabalho intelectual de seus empregados mais eficiente no que se refere à elaboração de estatísticas, interfaces, algoritmos e outras ferramentas utilizadas na produção da mercadoria audiência. Já no segundo caso da TV, a audiência é passiva. Os anunciantes compram estatísticas sobre a atenção de um público cuja segmentação pode ser feita dentro de limites que os internet pure players conseguem superar amplamente, coletando informações fornecidas espontaneamente pelos usuários, como seus gostos pessoais, preferências e desejos e monitorando seus rastros de navegação (PARISER, 1012). É nesse sentido que se pode falar em uma audiência ativa.

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Um equívoco de Christian Fuchs

Podemos esclarecer a questão, retomando a contribuição de Christian Fuchs sobre o tema, que interpreta essa atividade da audiência de forma inadequada, reproduzindo um velho equívoco da escola anglo-americana da Economia Política da Comunicação. Segundo o Fuchs, 2012b, the users who google, upload photos, and images, write wall posting and comments, send mail to their contacts, accumulate friends or browse other profiles on Facebook, constitute an audience commodity that is sold to advertisers. The difference between the audience commodity on traditional mass media and on the Internet is that, in the latter case, the users are also content producers; there is user- generated content, the users engage in permanent creative activity, communication, community building, and content-production. That the users are more active on the Internet than in the reception of TV or radio content is due to the decentralized structure of the Internet, which allows many-to-many communication (p.43).

Isto é certo. Mas o autor extrapola ao afirmar em seguida que Due to the permanent activity of the recipients and their status as prosumers, we can say that in the case of Facebook and the Internet the audience commodity is an Internet prosumer commodity (FUCHS, 2012b, p.43).

Ora, o valor econômico só é produzido após o processamento e refinamento dos dados através de softwares e algoritmos que constituem a base das atividades de uma parcela da classe trabalhadora que lida com isso dentro das empresas de tecnologia da informação, e não pelo trabalho do usuário, como pensa Fuchs. O que o usuário produz não tem nenhum valor de troca, pois toda a sua atividade rastreada, assim como o conteúdo eventualmente produzido por ele somente interessa à empresa como matéria bruta para que os trabalhadores informacionais produzam a mercadoria audiência de fato. 12- Fuchs (2011a) trata diretamente desta relação em seu texto sobre o modelo de acumulação de capital da Google a questão da vigilância. Disponível em: http://www.uta.edu/huma/ agger/fastcapitalism/8_1/ fuchs8_1.html. Acesso em 22 de fevereiro de 2013.

De acordo com o autor, a empresa exploraria os usuários de duas formas. Primeira: o conteúdo produzido pelos usuários seria matéria-prima para a indexação feita pelo buscador. Sem esse conteúdo “gratuito” gerado pelos usuários de Internet, o Google não poderia realizar buscas. A segunda forma seria o monitoramento do uso que os usuários fazem das ferramentas dispostas como, por exemplo, o próprio buscador ou um site de redes sociais. Quando um indivíduo utiliza algum dos serviços, garante à empresa a possibilidade de captar suas informações12. Na verdade não se trata de duas formas, mas sim de um único mecanismo de captura da subjetividade coletiva. A empresa, através da sua ferramenta mais poderosa, seu buscador, utiliza toda a informação produzida pelos usuários, não só o conteúdo produzido por eles voluntariamente na rede, mas também os rastros que deixam na sua navegação, para construir, ao final, a mercadoria audiência que vende no mercado anunciante. E, sobretudo, não se trata de exploração, posto que não há trabalho produtivo no sentido

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próprio do termo, na atividade daquilo que o autor chama de “prosumidor”. O seguinte trecho evidencia bem as dificuldades do autor: Google does not pay the users for the production of content and trans- action data. Google’s accumulation strategy is to give them free Acess to services and platforms, let them produce content and data, and to accumulate a large number of prosumers that are sold as a commodity to third-party advertisers (FUCHS, 2012b, p. 45).

Ora, a Google não teria porque pagar aos usuários pelo produto que lhes oferece. Se se tratasse de uma lógica mercantil pura, de exclusão pelo preço, como na TV segmentada, estes é que pagariam pelo acesso ao serviço. Isto não ocorre porque o modelo de financiamento adotado é o da venda da mercadoria audiência, como nos sistemas de TV de massa. A principal diferença é que a produção da audiência é feita com base nas informações do próprio usuário, em geral sem que ele perceba. 13- Para uma revisão crítica do importante trabalho de Smythe, vide Bolaño (2000).

Apesar disso, ao contrário do que defende Smythe, nos anos 1960, quando afirma que as pessoas que assistem TV estão trabalhando para os anunciantes,13 não podemos dizer que o usuário é um trabalhador que tem sua força de trabalho explorada. O erro de Fuchs é idêntico. O trabalho produtivo é somente aquele dos trabalhadores informacionais capazes de transformar os dados em mercadoria audiência e de criar ferramentas que transformam toda a informação coletada da rede em bancos de dados. São estes profissionais que empregam produtivamente sua força de trabalho. Fuchs também não consegue perceber a “duplicidade das mercadorias” na Indústria Cultural (BOLAÑO, 2000). Assim, ao falar da Google afirma: Not a product is sold to the users, but the users and their data are sold as a commodity to advertisers. Google’s services are not commodities. They are free of charge. The commodity that Google sells is not Google services (like its search engine), but the users and their data (FUCHS, 2012b, p. 45).

É fato que os usuários não pagam pelos serviços usufruídos, mas isso não implica em dizer necessariamente que nenhuma mercadoria é entregue a ele. O que ocorre é que o usuário usufrui gratuitamente de um serviço porque há um tier payant. É o que Hercovici (2009, p. 9) chama de “mercantilização indireta”. Nesse caso, o servidor (humano ou eletrônico) ocupa o papel central uma vez que é ele quem negocia os direitos de distribuição, elabora as estratégias de marketing e oferece os referidos produtos ou serviços em troca de uma assinatura ou cadastro (TREMBLAY, 1997, p. 20). O que é vendido pela Google, por outro lado, não são seus usuários, como sugere Fuchs no excerto anterior. O anunciante não compra um usuário em si ou alguma informação específica sobre ele, mas sim um conjunto de informações sobre um público-alvo específico sob a forma de bancos de dados categorizados. Bruno (2006, p.155) evidencia isso quando explica que as empresas repassam aos anunciantes bancos de dados que lhe interessem, e não “pessoas”. O anunciante não escolhe cada usuário que será alcançado pela publicidade, mas sim grupos categorizados de acordo com indicadores estabelecidos

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pelas empresas que disponibilizam os espaços para anúncios (localização geográfica, perfil financeiro, gostos pessoais, entre outros), ou mesmo o mecanismo completo de direcionamento automático da mensagem publicitária ao indivíduo, à medida que este insere informação. Seja como for, é preciso reconhecer que Fuchs acerta ao apontar a “regra de ouro da economia da internet capitalista”: The golden rule of the capitalist Internet economy is that the more users a platform has, the higher the advertising rates can be set (FUCHS, 2012b, p. 45). Para O’Reilly (2006, p.18) a empresa que for capaz de alcançar uma massa crítica de dados através da participação dos usuários e transformar isso em serviços específicos será o vencedor da corrida pela audiência na Internet. A capacidade de investir diretamente no binômio personalização/relevância é crucial para manter a competitividade nesse mercado. “Para os anunciantes, a possibilidade de reunir mais dados pode significar estar o mais próximo possível de atingir a principal meta da publicidade: enviar a mensagem certa para o consumidor certo na hora certa” (NEW YORK TIMES, 2013, p. 2).

Conclusão

Durante a década de 1990, a liberalização e a reestruturação da indústria das telecomunicações ao redor mundo estavam na base do projeto Global Informational Infrastructure (GII) que deu início a uma nova fase de comercialização e permitiu o surgimento de um grande número de corporações responsáveis pela venda de produtos ligados à infraestrutura de rede e serviços voltados à web. Essa fase terminou logo após o estouro da bolha em 2000, dando início ao período dos grandes oligopólios que formam os mercados da internet. A lógica social é a mesma: serviços de inovação que podem alcançar um número massivo de usuários que, enquanto se entretém na rede, introduzem as informações que compõem os bancos de dados que serão usados na produção da mercadoria audiência pelas empresas de Internet. Nos últimos anos, a concorrência tornou-se mais acentuada entre empresas que ofertam sites de redes sociais na internet, como Google e Facebook, por exemplo, consideradas modelos paradigmáticos quando falamos em captação da subjetividade coletiva. Resumimos neste artigo algumas particularidades relativas à economia política dos sites de redes socais e também as similaridades e diferenças em relação ao sistema de radiodifusão. A produção da mercadoria audiência é o ponto crucial de ambos os sistemas. As análises de Christian Fuchs são valiosas e também reconhecem o fato, mas seu suporte teórico é marcado pelas mesmas dificuldades que estão na origem da Economia Política da Comunicação Anglo-Americana.

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Economia Política da Internet e os Sites de Redes Sociais – Cesar Bolaño; Eloy Vieira

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MAIS-VALIA 2.0: PRODUÇÃO E APROPRIAÇÃO DE VALOR NAS REDES DO CAPITAL PLUS-VALIA 2.0: PRODUCCIÓN E APROPIACIÓN DE VALOR EN LAS REDES DEL CAPITAL SURPLUS-VALUE 2.0: PRODUCTION AND VALUE APPROPRIATION IN CAPITAL NETWORKS

Marcos DANTAS Professor Titular da Escola de Comunicação, doutor em Engenharia de Produção pela COPPE-UFRJ, diretor da ULEPICC-Br, membro do Comitê Gestor da Internet do Brasil (CGI.br). É autor de Trabalho com informação: valor, acumulação, apropriação nas redes do capital e A lógica do capital-informação. URL: www.marcosdantas.pro.br

Revista Eptic Online Vol.16 n.2 p.89-112 mai-ago 2014 autor convidado


Mais-valia 2.0: Produção e apropriação de valor nas redes do capital – Marcos Dantas

Resumo. Nas indústrias culturais mediatizadas, o processo de produção de valor envolve tanto o trabalho de seus trabalhadores imediatos (artistas, jornalistas etc.), quanto o tempo de mobiliza-ção das audiências numa relação interativa e participativa com os eventos espetaculares (no sen-tido de Débord) postos nessa relação. Esse trabalho da audiência tornou-se mais evidente nos comentários e postagem em blogs e sítios de grande evidência e nas inocentes conversas coloqui-ais em "redes sociais". Deste trabalho é extraído um valor que se expressa em muitas formas de "monetização", gerando um lucro nascido exatamente de trabalho absolutamente não pago apro-priado pelo capital. Esta forma de apropriação pode ser entendida como "mais-valia 2.0": apro-priação de trabalho não pago, literalmente gratuito, através de um sistema de agenciamento soci-al, via meios eletrônicos de comunicação, lineares ou reticulares, que incorpora, na produção de valor, bilhões de pessoas que estariam aparentemente se divertindo ou cuidando de suas ativida-des profissionais.

Resumen En las industrias culturales mediatizadas, el proceso de producción de valor involucra tan-to el trabajo de sus trabajadores inmediatos (artistas, periodistas etc), así como el tiempo de mo-vilización de las audiencias en una relación participativa e interactiva con los acontecimientos espectaculares (en el sentido Debord) puestos en esta relación. Este trabajo de la audiencia se ha vuelto más evidente en los comentarios y "posts" de blogs y sitios de gran evidencia y en las con-versaciones coloquiales en "redes sociales". De este trabajo, el capital extrae un valor que se ex-presa en muchas formas de "monetización", generando una ganancia nacida exactamente de la apropiación de trabajo absolutamente no pago. Esta forma de apropiación se puede entender co-mo "plusvalía 2.0": la apropiación del trabajo impago, literalmente gratis, mediante un sistema de movilización social, a través de medios electrónicos de comunicación, lineal o reticular, que in-corpora el la producción de valor, miles de millones de personas que al parecer se divierten o ejercen sus actividades profesionales.

Abstract In the media cultural industries, the value process of production involves both the labor of their immediate employees (artists, journalists), and the mobilization time of the audiences, maintaining interactive and participative relationships with spectacular events (in the sense of Debord) in which they participate. This audience labor has become more evident in the comments and posting on blogs and sites of great evidence and in the innocent conversations in colloquial "social networks". From this labor is extracted a value that is expressed in many forms of "monetization", generating a profit born exactly from this labor absolutely not paid by capital. This form of appropriation can be understood as "surplues value 2.0": the appropriation of unpaid labor through a system of social mobilization, via electronic means of communication, are unidirectional, are networked, which incorporates in this the production of value, billions of peo-ple that would seemingly having fun or taking care of their professional activities.

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Mais-valia 2.0: Produção e apropriação de valor nas redes do capital – Marcos Dantas

Rua 24 horas – Inaugurada em 1991 como símbolo da cidade do futuro, onde todas as horas do dia são produtivas (Inscrição no marco inaugural da “Rua 24 Horas”, trecho de rua na cidade de Curitiba (PR) exclusivo para pedestres, com lojas, butiques, restaurantes, outros serviços, que deveriam funcionar nas 24 horas do dia)

Introdução

No início de 2014, o Facebook comprou o WhatsApp por USD 19 bilhões. Há dois anos, pagara USD 1 bilhão, pelo Instagram. Nesse mesmo período, ocorreram outras tantas aquisições similares, seja nos valores envolvidos, seja nos perfis das empresas compradoras e compradas: a Microsoft adquiriu o Skype por USD 8,5 bilhões; o Google, o YouTube por USD 1,6 bilhão; o Yahoo!, o Tumblr. por USD 1,1 bilhão; ainda outras (STENGER, 2014). O WhatsApp é um serviço de troca de mensagens (texto, audio e vídeo) por TCP-IP, suportado em redes de telecomunicações que não controla nem opera. Assim também é o Skype. Instagram é um sítio de relacionamentos, onde milhões de pessoas anônimas e algumas “celebridades” expõem à exibição pública, fotos e vídeos de situações cotidianas, sem qualquer importância social maior, experimentadas em suas vidas diárias, nas relações com familiares, amigos e, não raro, animais de estimação. É similar aos velhos “álbuns de família”, à diferença de que as fotos podem ser vistas por todos e qualquer um a qualquer momento, além de serem clicadas e exibidas, graças aos modernos smartphones, aos milhares, sem limite de tempo ou espaço... ou tamanho do rolo de filme. Semelhantes são o YouTube ou o Tublr. Pois, por negócios assim, o Facebook ou o Google, outros negócios que a rigor não lhes são muito distintos, pagam bilhões de dólares. A questão é: por que empreendimentos como Instagram ou Tumblr., para não falar do próprio Facebook ou do Yahoo!, valem tanto? Por que investidores aplicam fortunas, obviamente esperando bons retornos financeiros, em empreendimentos que parecem não passar de um conjunto de poderosos supercomputadores espalhados à volta do mundo, servindo para a troca de mensagens ordinárias, por voz ou imagens, por parte de pessoas irrelevantes, vivendo suas vidas rotineiras? Obviamente, o interesse no negócio não está nos seus ativos físicos (computadores, cabos, prédios). O interesse, como sabemos, reside nas redes de relações que aqueles ativos físicos permitem estabelecer entre as pessoas que fazem uso do serviço, um serviço, aliás, quase sempre gratuito. Se as pessoas que o utilizam não pagam, num aparente desmentido do aforismo segundo o qual “não existe almoço grátis”, de onde virá o lucro que justifica o investimento de bilhões de dólares? Quem paga o almoço? Nos termos da Economia Política, o valor (econômico) deve derivar do trabalho. Naturalmente, o trabalho de engenheiros e técnicos que projetam esses sistemas, desenvolvem softwares, desenham as páginas, dão manutenção às redes será a fonte do valor dos Facebook, Google, Instagram e similares. No entanto, será bem mais difícil identificar a mercadoria que eles produziram. O resultado desse trabalho não é vendável, aliás, como

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lembrado acima, é quase sempre fornecido de graça. Então, como é pago o resultado desse trabalho? Publicidade, será a primeira resposta. Milhões, até bilhões de pessoas, fazendo uso de uma específica rede, devem atrair para ela o interesse dos anunciantes, tanto quanto também os atraem os milhões que assistem, em alguma hora, um programa de televisão ou de rádio. Então, estaríamos diante de um típico caso de venda de audiência, conforme sugerido por Dallas Smythe e, desde então, geralmente aceito pelos autores que têm estudado a Economia Política da Informação, Comunicação e Cultura (EPICC) (FUCHS, 2012; BOLAÑO, 2000). 1-Fazemos referência aqui à tradicional tipologia das indústrias culturais, estabelecidas inicialmente por Patrice Flichy: imprensa, editorial e onda (ou fluxo). A primeira refere-se ao jornalismo impresso; a segunda à produção de livros, discos e filmes. A terceira, à radiodifusão. Esta divisão considerava a natureza dos produtos finais, tempos de rotação do capital, relações de trabalho, perfis profissionais e outras características distintivas que permitiam, por exemplo, identificar a radiodifusão como fornecedora de um produto perecível assim que é apresentado, enquanto empresas editoriais parecem funcionar conforme os princípios industriais da reprodutibilidade unitária da mercadoria. O desenvolvimento das tecnologias digitais pode estar levando à superação dessa taxonomia, de resto fenomênica.

No entanto, essa audiência – retenhamos, por enquanto, esta hipótese – não é produzida pelos “empregados” (artistas, redatores, animadores, jornalistas, técnicos etc.) do Facebook, do WhatsApp ou do Tumblr. – até porque, no caso, não existem tais tipos de “empregados”. Essa audiência é produzida pelas próprias pessoas alvo das mensagens publicitárias. Elas, com seus posts, com suas fotos, seus vídeos, elas, pela publicação dos seus atos cotidianos e vulgares, elas produzem a audiência que se multiplica e multiplica, sempre que a cada ato publicado, algum outro ato será publicado em resposta. Elas substituem os artistas e jornalistas das tradicionais indústrias editoriais ou de onda1. Ou seja – e aqui, a nossa hipótese –, elas também trabalham. Enquanto essas milhões de pessoas, individualmente, divertem-se ou se realizam pessoalmente nas interações reticulares, trocam mensagens e fotos, “curtem” um filme, uma música, uma notícia ou qualquer ordinário feito de amigos e amigas, como se substituindo, ou talvez substituindo mesmo, o divertido e despreocupado “papo de botequim” por um novo formato de “papo” (ou chat) via computador ou smartphone, aquelas grandes corporações empresariais, dentre elas Google, Apple, Microsoft, Samsung etc., desenvolvem e difundem as tecnologias, serviços e produtos que permitem esses “papos”, nisto auferindo elevadas receitas, altíssimos lucros e ainda maiores ganhos nas bolsas de valores. Elas oferecem, para os indivíduos exercerem as suas práticas, tecnologias que podem ser materialmente palpáveis, a exemplo de um terminal móvel do tipo smartphone; ou materialmente visualizáveis como o desenho básico e seus recursos do Facebook. O principal valor de uso dessas tecnologias reside na ação que elas permitam a seus usuários. Elas proporcionam tanto interação interpessoal desinteressada, buscas informativas, entretenimento, quanto interações e buscas de natureza profissionais ou laborais. Porque contém valor de uso expresso em ação – cultural, econômica, política –, essas plataformas são produzidas, vendidas e geram grandes lucros para seus fabricantes, vendedores ou mantenedores. Onde residirá, porém, o valor de troca? A ação efetuada por qualquer indivíduo na internet, não tem por objetivo produzir alguma transformação material, ainda que essa transformação seja naturalmente inescapável, mesmo que residual. O objeto da ação é a linguagem, a construção e transmissão de pensamentos e idéias por meio de signos lingüísticos, sejam verbais, sejam icônicos, ou ambos. Se Marx e Engels disseram que “a linguagem é a consciência real, prática” (MARX e ENGELS, 2007:34), a internet será uma poderosa ferramenta para a prática da consciência. A linguagem, na internet, teria se transformado em fonte de valor para o capital. A linguagem seria, então, a mercadoria, a unidade do valor de uso e valor de troca?

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2-Ver Marx: "as propriedades físicas necessárias da mercadoria particular, na qual o ser dinheiro de todas as mercadorias deve se cristalizar, na medida em que se depreendem diretamente da natureza do valor de troca, são as seguintes: livre divisibilidade, uniformidade das partes e indiferenciação de todos os exemplares dessa mercadoria" (MARX, 1974: 158).

Devo essa referência à profª Marcela Canavarro

Por mercadoria, Marx entende algum objeto material externo (MARX, 1983-1984: v. 1, t. 1, pp 45 passim ), algo que, por isto, seja cambiável, que possa ser trocado por outro objeto de valor equivalente, na prática, quase sempre, por dinheiro. A mercadoria é o resultado concluído da ação, o seu produto finalizado e materializado, “trabalho congelado”, nos termos de Marx. Daí, a mercadoria deve permanecer conservada, inerte, deve preservar suas qualidades materiais, até pelo menos ser trocada e, então, consumida. A mercadoria deve ainda ser divisível em unidades idênticas e replicáveis2 . A compra ou a venda de uma mercadoria implica obter a posse de um objeto unitário (ou seus múltiplos) para uso ou consumo, ou desfazer-se da posse dele recebendo outro objeto equivalente em troca, ou dinheiro enquanto equivalente universal de valor. Portanto, dificilmente a linguagem se prestaria a esse tipo de intercâmbio, se a linguagem emerge e se reproduz da consciência em ação. Não estamos falando do “livro” ou do “disco”, da linguagem congelada em suportes aparentemente mercantis. Estamos falando da linguagem enquanto linguagem, do ato lingüístico, da ação. Este ato pode deixar um registro, sem dúvida, na forma de “livro” ou “disco” ou “fotografia”. Este ato pode ser “salvo” no disco rígido do computador. Mas não o será como ato lingüístico, sim como alguma memória dele. No percurso entre o pensar e o gesto, entre a consciência prática e a linguagem conforme finalmente ficou registrada, muitas operações que são da própria langue enquanto parole, terão sido provavelmente “deletadas”. Noutros tempos, pré-digitais, seriam os “rascunhos”. Para o Google ou para o Facebook, não existirão “rascunhos”. A foto deve ser enviada no instante do momento – e o Instagram, com seus filtros, corrige os “defeitos”... Para “curtir” qualquer bobagem no Facebook, basta um clique. Recentemente anunciou-se, como a confirmar esta afirmação, que o Facebook estaria desenvolvendo algoritmos que captariam até esboços de mensagens não enviadas (“postadas”) ou apagadas, por seus usuários (DAS e KRAMER, 2013)3. Cada e qualquer ato – cada e qualquer ato semiótico – deve ser de imediato efetuado para a devida captura, classificação, análise pelos algoritmos desenvolvidos por essas corporações que, em cada e qualquer ato, querem identificar um gesto “monetizável”. Batelle (2006), ao propor que a fonte do lucro do Google seria aquilo que denominou base de dados de intenção – “um artefato vivo de imenso poder” –, estará nos dizendo exatamente isso: a ação por meio da linguagem, movimentada pela intenção, pelo objetivo, pela necessidade, gera um sistema de registro que é registro de movimentos, mesmo que sejam meros movimentos de mão e dedos sobre o mouse, mas movimentos da consciência em ação. É movimento mental, orientando e sendo orientado pelos sentidos, especialmente, visão, audição e tato, mas sentidos acionados pelos significantes, e seus significados, de palavras, fotos, desenhos, sons, imagens em movimentos, conforme percebidos numa tela de computador ou num smartphone. O Google ou o Facebook registram estados mentais de bilhões de pessoas, a partir de seus atos de navegação, conforme revelados ou expressos por meio de signos lingüísticos. Por isso, admira-se Batelle, “o Google sabe o que a nossa cultura quer!” (BATELLE, 2006: 2). Em suma, Google, Yahoo!, Facebook, Twitter faturam bilhões de dólares justamente “sabendo”, graças a essas buscas ou postagens, o que quer a “nossa cultura”. A cultura, conforme manifestada nas ações (“cliques”) de bilhões de internautas, torna-se assim objeto

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Mais-valia 2.0: Produção e apropriação de valor nas redes do capital – Marcos Dantas

direto de valorização ou, na linguagem do mercado, “monetização”. A cultura, como já havia anunciado Herbert Schiller anos atrás, muito antes de sequer saber-se da internet, tornou-se diretamente economia. E a economia diretamente cultura (SCHILLER, 1986).

Trabalho semiótico e “jardins murados”

Se falamos de Economia Política, estamos falando de trabalho. Mas se falamos de comunicação e cultura, estamos falando de trabalho semiótico – trabalho semiótico naquele significado mesmo a ele dado por Umberto Eco (1980; 1981). Estamos falando da produção, valorização, distribuição de signos. Um perfil no Facebook, qualquer blog, palavras-chaves no Google, fotos no Instagram ou os 140 caracteres do Twitter são signos organizados para a comunicação, resultados de algum trabalho de produção semiótica. O registro das “intenções” são signos, até porque não são lidos em pulsos binários, mas traduzidos em textos e imagens nas telas de computadores, textos e imagens estes que expressam as ações dos agentes daquelas “intenções”, mas as expressam, agora, nos contextos e circunstâncias dos “analistas” que os lêem e interpretam – ou seja, dos profissionais das corporações capitalistas de olho no lucro possível. Temos aqui em todas as suas fases, do adolescente que busca uma música para baixar no seu iPod, ao engenheiro que examina gráficos expressando a totalidade dos movimentos de milhares de adolescentes “plugados” nos iPods, temos aqui diversos momentos de trabalho semiótico. O produto do trabalho semiótico é, axiomaticamente, comunicação. Desde os primórdios do capitalismo moderno, com a invenção do telégrafo e, também, das máquinas industriais de imprensa (rotativas, linotipo etc.), o capital vem tornando a comunicação indiferente à distância. Como já esclarecera Marx na Seção I do Livro II d’O Capital (MARX, 1983/1984) e no Caderno IV dos Grundrisse, o capital precisa “anular o espaço pelo tempo” (MARX, 1973: v.2, p. 13), ou seja investir em meios de comunicação, nestes incluídos os transportes de mercadoria, que viabilizem a transposição do máximo espaço, no limite das dimensões da Terra, no mínimo tempo, no limite de zero. A mercadoria física, por mais velozes que sejam os meios de transporte, sempre exigirá algum tempo para transpor o espaço. Mas a informação poderá transpô-lo em nanossegundos, se existirem os meios adequados. De fato, tanto a radiodifusão tradicional, quanto a internet ou demais redes contemporâneas definem-se, entre outros atributos fundamentais, pela anulação do tempo de realização; permitem o contato em tempo real dos agentes envolvidos na comunicação. Conforme já muito discutido em textos anteriores (DANTAS, 2002; 2011), a expansão das fronteiras de negócios baseadas nessa anulação do tempo ao limite de zero, desenvolverá a indústria cultural e toda a sociedade do espetáculo, nos termos de Guy Débord (2000). É um processo que, desencadeado ainda nos anos 1920, quando emergiam a radiodifusão, o cinema, a música gravada, experimentará frenético crescimento desde o final do século passado a ponto de os setores relacionados ao espetáculo, dentre os quais as indústrias

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eletro-eletrônica e audiovisual, virem a ser, hoje em dia, provavelmente, os mais dinâmicos do capitalismo contemporâneo, respondendo pela sustentação de suas condições de crescimento. O espetáculo proporciona a relação imediata entre o artista (músico, atleta etc.) e o seu público, e também atua no sentido de gerar, estimular, mobilizar ou agenciar comportamentos, identidades, gostos estéticos necessários à formação e consolidação de hábitos para o consumo, nisso oferecendo, pelas marcas que o patrocinam, os produtos para esse consumo. No contexto do capitalismo espetacular, os produtos já não são mais valores de uso quaisquer, utilitários, instrumentais, mas ganham significados portadores de identidades, de pertencimentos, de símbolos socialmente segmentados que, através desses símbolos – as marcas, as grifes –, mantém permanentemente girando a roda da produção material. O espetáculo vende tênis, vende camisas, vende aparelhos de televisão, vende bebidas, vende investimentos financeiros, vende imóveis, vende pizzas, mas não vende as “coisas” enquanto “coisas”, mas as “coisas” enquanto estilos de vida, comportamentos, modas, as “coisas” enquanto fetiches do fetiche (FONTENELLE, 2002), as “coisas” enquanto expressões materiais significantes dos signos da cultura capitalista avançada. Nada disso seria estranho a Marx: Quanto mais as metamorfoses de circulação do capital forem apenas ideais, isto é, quanto mais o tempo de circulação for = zero ou se aproximar de zero, tanto mais funciona o capital, tanto maior se torna a sua produtividade e autovalorização (MARX, 1983-1984: v. 2, p. 91)

Para o capital, seria ideal prescindir dos tempos de replicação material, algo ainda impossível se os produtos são automóveis, geladeiras ou camisas. Mas não, se tratamos de livros, filmes, discos. Ao, impulsionado por suas contradições, desenvolver a base técnica que reduziu ao limite de zero os tempos de replicação e transporte nas indústrias editoriais ou multiplicar, parece que ao infinito, a oferta de freqüências hertzianas na indústria de onda, o capital promoveu uma completa reestruturação nessas indústrias, destruindo seus sedimentados modelos de organização e negócios, consolidados nos anos 20 do século passado, e fazendo nascer, neste alvorecer do século XXI, novos modelos e, nisto, novos “jogadores” (players) e “vencedores” (winners). Insistamos aqui, antes de prosseguir, na necessidade de distinguirmos os bens entrópicos, dos neguentrópicos (DANTAS, 2008; 2011; 2012). O valor de uso de qualquer mercadoria, por mais que revestida de significados estéticos ou simbólicos, será, ao fim e ao cabo, instrumental: expressará qualidades físico-químicas que atendem às nossas necessidades de alimentação, vestuário, locomoção, moradia etc. – e só pode expressar alguma utilidade estética caso conserve essas qualidades materiais por algum tempo maior ou menor, conforme as exigências tanto dos tempos de circulação, quanto dos de consumo. A mercadoria estará diretamente sujeita à Segunda Lei da Termodinâmica, logo ao princípio econômico dos rendimentos decrescentes. Daí que o valor do trabalho necessário à sua produção estará nela congelado, até que se complete o seu tempo de vida, ou seja, o seu tempo de circulação e de consumo final. Assim materialmente congelado, seu valor poderá ser apropriado pelo capital mediante a troca de cada uma de suas unidades replicáveis. Diferentemente se passa com o produto que usualmente consideramos “artístico” ou

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“cultural” pois o seu valor de uso não reside em algum eventual suporte material conservado no tempo, mas na ação estética, psicológica, simbólica que põe em relação o autor e seu público (leitor, espectador, torcedor etc.). Este resultado não está necessariamente contido, congelado, no suporte de comunicação. Lemos Aristóteles, não importa se em pergaminho, papel ou e-reader. Donde livros ou discos que, durante décadas sustentaram as indústrias editoriais, são, a rigor, falsas mercadorias: folhas de papel ou bolachas de vinil que devem ser conservadas no melhor estado possível para poderem ser reproduzidas sempre que alguém, com elas, efetuar alguma ação informacional (ler, ouvir música etc.). Alimentos, roupas, eletrodomésticos, ferramentas, equipamentos, ao contrário, precisam ser destruídos ou pelo menos desgastados pelo uso, ao longo de um tempo maior ou menor, para que possam ser exatamente consumidos. O valor de uso do livro, ou do disco, entre outros exemplos, não se encontra no trabalho de gráficos ou operários, ou só residualmente aí residem. O valor de uso é produzido realmente pelo escritor, pelo músico, pelo artista, como tal remunerado não por um salário, mas por um “direito autoral”, isto porque trata-se de trabalho concreto não redutível a abstrato, logo despojado de valor de troca. O mero reconhecimento jurídico do direito de propriedade intelectual nem sempre se mostrará eficaz para captura das rendas daí derivadas, razão porque o controle dos canais de reprodução e distribuição tornaram-se essenciais para o exercício da apropriação. Por décadas, o controle desses canais se deu sob a forma das indústrias editoriais (criação de barreiras de entrada através dos custos de impressão e distribuição) ou de onda (criação de barreiras de entrada através da escassez de freqüências hertzianas). Mas não sendo mais possível ou necessário, depois do desenvolvimento das tecnologias digitais, congelar o trabalho artístico em cópias de disco ou em freqüências hertzianas escassas, o capital vem embutindo a produção industrial cultural (espetáculo) em uma nova forma de organização total de sua cadeia de produção, replicação e entrega: os jardins murados (“walled gardens”) (DANTAS, 2010; 2011; 2013). Trata-se de um modelo de negócios que acorrenta o desfrute do valor de uso semiótico (nas suas formas de espetáculos, videojogos, notícias etc.) a um terminal de acesso conectado a um canal criptografado de comunicação. Exemplo paradigmático é o sistema iPod/iTunes da Apple, através do qual o “consumidor” paga pela licença para baixar músicas e vídeos. A TV por assinatura e seus pay-per-views, os smartphones das operadoras de comunicações móveis, o blu-ray conectado à loja virtual da Sony são outras variações de “jardins murados”. Essencialmente, essas tecnologias são desenvolvidas para eliminar os tempos de replicação e distribuição mas, ao mesmo tempo, para condicionar culturalmente a sociedade a pagar, seja por alguma assinatura mensal para desfrute de um serviço, seja pelo acesso, por peça unitária ou por tempo delimitado, a filmes, músicas, espetáculos esportivos, livros etc. E, parece, a sociedade já está mesmo se aculturando. Crescem e se consolidam os serviços pagos na rede. O Netflix funciona em 43 países, possui 40 milhões de assinantes no mundo e responde por um terço do fluxo de dados nos Estados Unidos. Aplicativos pagos para smartphones movimentaram USD 20 bilhões em 2013 e projeta-se uma receita de USD 63 bilhões até 2017. A venda de música digital em linha atingiu USD 7 bilhões, em 2013. Paralelamente, os serviços gratuitos, como os sítios torrentz, parecem estar em decadên-

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cia, não somente devido à repressão cada vez mais violenta (prisões e multas aos criadores do Pirate Bay, do Megaupload etc.), mas porque os “consumidores” estariam aceitando e aderindo ao novo modelo. (RODRIGUES, 2014). Comenta um “especialista” que “a perseguição aos consumidores que faziam downloads ilegais talvez tenha tornado menos vantajosa essa prática, mas se não houvesse serviços eficientes e de baixo custo para comprar filmes e músicas, duvido que as pessoas tivessem deixado de lado o intercâmbio de arquivos” (apud RODRIGUES, idem: p. 7).

Interatividade, “prossumidores”, internet

Muitos anos antes de aparecer a interne tal como a conhecemos hoje, Alvin Toffler (1980), um dos mais conhecidos apologista da “sociedade da informação”, já falava na tendência à crescente superação das diferenças entre “produtores” e “consumidores”. Na medida em que desenvolve os meios de comunicação e, ao mesmo tempo, logra incorporar uma ampla parcela da população mundial aos seus padrões de produção e consumo, inclusive cultural, o capital estreita a distância espaço-temporal entre o momento da produção e o momento do consumo, assim fazendo emergir a aparência do “prossumidor”, de Toffler, ou do “consumidor-cidadão”, de Canclini (2006). Por outro lado, neste processo mesmo, esse momento do consumo incorporando-se ao da produção (ou vice-versa), torna a atividade desse aparente consumidor, uma atividade cada vez mais produtiva, no sentido mesmo, econômico, atribuído por Marx a esta expressão. Em diálogo com o economista Gary Becker, cujos estudos apontam para dimensões psicológicas ou culturais, embora utilitaristas, do processo econômico, pouco abordadas pelo mainstream neoclássico, Jameson (2006: 275 passim) admitirá ser possível aceitar a descrição do lar como uma entidade produtiva, similar à empresa, assim como um amplo conjunto de outras práticas sociais aparentemente externas ao processo produtivo stricto sensu. “Ganha-se muito, em força e clareza, ao se reescrever fenômenos como o tempo livre e os traços de personalidade em termos de matéria-prima potencial” (idem: p. 277), até porque, se não forem por outras razões, será quase impossível consolidar-se um mercado florescente e em expansão, “cujos consumidores sejam todos calvinistas e tradicionalistas diligentes, que sabem muito bem quanto vale o dinheiro” (idem: p. 278). O conceito de mercado, sustenta Jameson, estribando-se em Marx, particularmente o dos Grundrisse, oferece-nos uma estrutura totalizante, um modelo de “totalidade social” que, por isto, envolve ou se decompõe nas várias atividades humanas de provimento das suas necessidades sociais – produção-circulação-consumo-produção –, durante as quais a produção consome os elementos a ela necessários, e o consumo produz a necessidade de consumir e o objeto a produzir. Como escreveu Marx (muito antes de Toffler...), “a produção é imediatamente consumo, o consumo imediatamente produção” (MARX, 1973: v. 1, p. 11).

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Assumindo, portanto,

i) a sociedade do espetáculo como pano de fundo; e ii) a lógica capitalista de acumulação determinada pelo princípio da anulação do espaço pelo tempo; entenderemos a internet como um espaço sócio-cultural onde o valor reside na ação lingüística, nos “atos de fala”, na comunic-ação, na ação de tornar comum. Por isto, será “trabalho vivo produzindo atividade viva”, como poderia dizer Boutang (1998). Não se trataria mais de produzir mercadorias – o resultado congelado da ação – mas de produzir a ação mesma: a mensagem postada por alguém provoca nova mensagem de algum outro e o valor da rede (e de seus componentes, inclusive os terminais) encontra-se na sustentação dessa inter-ação (ou... trabalho). Assim, o capital logra reduzir os tempos de realização aos limites de zero. Ou chega bem mais perto disso. Passado o período inicial de experimentação, testes e consolidação de suas principais soluções tecnológicas, a internet, desde os anos 1990, veio sendo objeto de crescente e, a esta altura, ao que parece, já também consolidada, experimentação de modelos de negócio. Sobretudo ou, talvez, quase exclusivamente nos Estados Unidos, empresas surgiram, fizeram rápido sucesso e tão rapidamente quanto, desapareceram na busca de um meio de tornar rentável a internet, isto é, de solucionar o problema de como fazer retornar com lucros, os investimentos financeiros que nela vinham sendo efetuados. Dentre essas empresas, cite-se a AOL, a Netscape, a Real One, o Yahoo! etc. Nesse processo e como parte dele, milhões de pessoas, em todo o mundo, “descobriram” a internet como um novo médium de entretenimento, acesso à informação e práticas culturais. A internet evoluiu e se moldou ao longo de um processo em que se ia formando a sua audiência, parece que nisto frustrando as expectativas daqueles que a percebiam como algum novo meio capaz de fazer avançar as lutas políticas democráticas: Felizmente, para [as] elites, a criatividade cooperativa não era inerentemente subversiva. Longe de ser um renascimento de alta tecnologia da Comuna de Paris, comunidades virtuais eram – em sua maior parte – apolíticas. Nos textos fundadores do mcluhanismo da Nova Esquerda, os habitantes da ágora eletrônica eram revolucionários, artistas, dissidentes, visionários. Quatro décadas depois, as coisas eram bem diferentes. A maioria absoluta dos contribuidores dos sítios das redes sociais mais populares levam vidas muito mais simples. Mais do que debater os assuntos políticos urgentes do dia, seus tempos de conexão eram gastos com fofocas sobre suas experiências pessoais, amigos, celebridades, esportes, sítios bacanas, músicas populares, programas de TV e viagens de férias. Dentro dessa visão MySpace da ágora eletrônica, o comunismo cibernético era comercial, não excepcional. O que uma vez fora um sonho revolucionário, era agora parte agradável da vida cotidiana (BARBROOKE, 2009: 381).

Nada muito diferente, recordemos, aconteceu, na primeira metade do século XX, quando a indústria organizou o rádio e, depois, a televisão, para o entretenimento das massas. É para isto que a internet agora serve: tanto quanto a radiodifusão em seus áureos tem-

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pos, enquanto proporciona entretenimento ou, sejamos mais claro, espetáculo, a internet vende. E vende melhor, pois os cliques de busca, os perfis pessoais, o conteúdo dos e-mails, as situações das fotos, toda essa animada e mediaticamente estimulada “rede social” fornece para os servidores das grandes corporações e seus sofisticados algoritmos de rastreamento, registro e análise, dados extremamente precisos sobre gostos, vontades, expectativas, de um “consumidor” assim individualizado. É o consumo produzindo a produção em tempo real, com uma precisão inaudita.

Google vs. Facebook

Cada vez mais, aquilo que era uma rede aberta, capaz de acalentar as utopias libertárias dos ciberativistas, parece estar se transformando num arquipélago de frondosos “jardins murados”. Intitulado “Briga de Google e Facebook piora”, um artigo do jornalista Pedro Dória, publicado n’O Globo, em 17 de janeiro de 2012, narra-nos que a Google lançou, no início daquele ano, um serviço de “busca social” que, no entanto, só recomendaria as páginas de artistas que mantém destacados perfis no “Google+”, ignorando aqueles que dão preferência aos seus perfis no Facebook. Segundo Dória, as duas empresas teriam negociado mútuo acesso aos dados, não chegando porém a algum acordo. Para o Facebook, o Google se recusava a acompanhar a sua “política de privacidade” e teria exigido que “toda informação fosse pública”. Para o Google, era o Facebook quem lhe vedava o livre uso de informação “disponível publicamente”. O jornalista não toma partido entre as duas corporações mas percebe que algo pode estar mudando nesse ambiente: o sistema de busca do Google que sempre se disse “neutro” ao relacionar as preferências, poderia estar começando a privilegiar as páginas (de notícias, de vídeos, de músicas) que reciprocamente dessem prioridade ao Google. “Então algo mudou. Difícil dizer quem tem razão numa briga entre Facebook e Google. Ambas competem duro. E, agora, usam suas armas a qualquer custo” (DÓRIA, 2012). Na medida em que a busca movimentada pelo espetáculo (páginas de artistas, desportistas, celebridades) ou pelos “prossumidores” fomenta valorização e acumulação, mudaria a natureza outrora supostamente aberta e livre da internet. Em outro artigo, o mesmo Pedro Dória vai chamar a atenção para a migração das pessoas, da internet para o Facebook, uma “internet paralela” que já somaria (à época) 700 milhões de usuários, “organizada, bem acabada e absolutamente fechada”. Aliás, uma internet “que o Google não vê” (DÓRIA, 2011). Os “jardins murados” não apenas protegeriam melhor a “propriedade intelectual” como, mais importante, eles permitiriam controlar com muito mais eficácia as intenções dos internautas. Como, ao fim e ao cabo, essas intenções precisam estar registradas nos servidores das corporações que comandam essas redes, por isto mesmo elas não devem estar acessíveis a corporações concorrentes. Daí a dificuldade de acordo entre o Facebook e o Google.

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O valor da palavra

Foram Sergey Brin e Larry Page, fundadores do Google, os que conseguiram finalmente encontrar o modelo de negócios mais apropriado à rede: as suas ferramentas publicitárias AdWord e AdSense. Essas ferramentas funcionam com base em palavras-chaves. Alguém que, ao enviar mensagem a um(a) amigo(a), escrever casualmente a expressão |livro|, poderá ser identificado pelos algoritmos do Google como pessoa interessada em livros e perceberá na margem direita da página do seu Gmail, uma coluna expondo links para livrarias ou editoras. Isto é possível porque essas livrarias cadastraram-se na plataforma AdWord com, entre outras, a palavra-chave |livro|. Assim, se alguém escreve esta palavra em mensagens ou buscas, pode, sem querer ou pedir, acabar visualizando, na sua tela de computador ou smartphone, pequenos anúncios padronizados, estilo “classificados”, dessas livrarias. Caso clique num desses conectores, o anunciante correspondente começa a pagar o anúncio ao Google, em valores que variam conforme o tempo durante o qual a pessoa permaneceu visitando o sítio e outras variáveis. No entanto, a tela do computador (ou do smartphone) é obviamente um espaço limitado. Os anúncios distribuem-se verticalmente de alto a baixo da coluna, ficando a área maior e central da tela reservada para as atividades (aparentemente gratuitas) do internauta. É natural que cada anunciante queira ocupar o espaço mais isível da coluna, de preferência aquele situado na sua primeira, ou mais alta, posição. A decisão sobre quem ocupará esta posição privilegiada e também as demais posições, inclusive se na primeira “página” ou “páginas” seguintes, é tomada em leilão. Os anunciantes dão lances pela palavra-chave, o maior lance ganhando naturalmente o direito de ocupar a melhor posição. Este vencedor, porém, pagará o preço oferecido pelo segundo colocado, num modelo conhecido como “leilão de segundo preço generalizado”. Fig. 1. Produção de valor pela palavra-chave

Anunciantes Espaço

Anunciantes

publicitário Leiloeiro

Elaboração do autor

Leiloeiro (Google, Facebook etc.)

Anunciantes

$

P

$

$

tc

Espaço

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publicitário

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Palavra

$ $

tg

Anunciantes Anunciantes Anunciantes Anunciantes

Internauta

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Conforme mostra a Figura 1, o Google, ou o Facebook, comportam-se como leiloeiros cuja “mercadoria” seria um espaço numa webpágina que é desenhada pelo seus trabalhadores contratados (tc) de modo a permitir as atividades do internauta concomitantemente com a oferta dos anunciantes. O valor desse espaço é fornecido por uma palavra “comprada” pelo anunciante mas não produzida pela empresa leiloeira. O produtor dessa palavra é o internauta que a escreveu um tanto quanto aleatoriamente, no curso das suas atividades profissionais ou lúdicas. Por ela, o Google, ou Facebook e congêneres receberão o dinheiro obtido no leilão. Nela, o anunciante fez um investimento, do qual espera retorno em possíveis vendas. Dela, porém, aquele que efetivamente produziu a palavra, aquele que, de fato, valorizou, no seu tempo profissional ou lúdico, o espaço na tela para o leiloeiro e para o anunciante, ele, o internauta, não ganhou nada... Trabalho gratuito (tg). Ou mais-valia 2.0, na ironia de Rafael Evangelista (2007). Na Seção I do Livro 2 d’O Capital, Marx apresenta sua conhecida fórmula do ciclo total de acumulação:

D – M ...P... M’ – D’ (1)

Dinheiro (D) adquire mercadorias (M), inclusive força de trabalho, que introduz no processo produtivo (P), do qual saem mercadorias valorizadas (M’) que serão reconvertidas em dinheiro valorizado, isto é, mais dinheiro que o inicialmente aplicado (D’). O ciclo total sempre consumirá algum tempo, sendo objetivo do capital anular esse tempo o máximo possível (MARX, 1983-1984: v. 2, p. 25 passim). Na busca de anular tempos de circulação e produção, Marx sugere que o capital desenvolve um ramo industrial, por ele denominado “comunicações”, cujo negócio não produz nova mercadoria, mas trata tão somente de deslocar ou movimentar mercadorias de um lugar a outro, para fins de compra ou venda, no menor tempo possível. Neste ramo, ele inclui tanto os setores que hoje em dia identificamos normalmente aos “transportes”, quanto aqueles que identificamos mais propriamente às “comunicações”. Como a produção (P) dos transportes e comunicações é o próprio serviço que presta, sua fórmula será

D – M ...P... D’ (2)

Conforme discutimos acima, nas comunicações propriamente ditas, o trabalho aí efetuado é o de produzir, registrar, comunicar material sígnico. Enquanto o transporte de mercadorias (materiais) sempre demanda algum tempo para transpor algum espaço, o transporte de informação (I) pode se dar, bem sabemos, em nanossegundos. O trabalho vivo efetuado aí, a rigor, não visa transformar material (embora não possa deixar de consumi-los, logo desgastá-los), mas, sim, usa os materiais já disponíveis (já transformados alhures) conforme os fins necessários: escrever, desenhar, filmar, gravar, transmitir... A fórmula da comunicação, a partir de (2), será (DANTAS, 2006):

D – M ...I... D’ (3)

O dinheiro D adquire as mercadorias M que efetuarão o trabalho informacional I, gerando mais-dinheiro D’. Uma parte de M contém os materiais necessários a este trabalho: com-

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putadores, papéis, energia etc. Mas o componente essencial de M será a força de trabalho necessária ao processamento, registro e comunicação da informação: cientistas, engenheiros, um amplo conjunto de outros profissionais de nível superior, também artistas, jornalistas, técnicos de nível médio e ainda digitadores, trabalhadores em call centers etc. O processo de produção I consiste basicamente na organização e realização desse trabalho vivo, conforme seus distintos graus de competência e hierarquia, dada a complexidade, maior ou menor, da informação sígnica a ser tratada e comunicada. Em I, o trabalho vivo não é congelado nalguma mercadoria mas antes será uma atividade continuada até consumar-se diretamente em mais-dinheiro, num tempo total que, preferencialmente, deveria tender ao limite de zero. Imagine-se, como exemplo, qualquer espetáculo ao vivo (show de música, jogo de futebol etc.) ou programa de auditório de televisão: o valor de uso é a própria atividade viva, é o trabalho concreto dos artistas; o tempo de giro e realização é o tempo do show. A internet está dando um passo à frente nesse processo de produção de valor através do trabalho material sígnico ao permitir ao capital comandar diretamente também o trabalho absolutamente não pago capturado nas chamadas “redes sociais”. É claro que, para desenvolver seus algoritmos, examinar e estudar as “intenções”, desenvolver os poderosos sistemas de captura e arquivamento de dados, desenhar páginas atrativas aos usuários, para atividades assim, corporações como Google, Microsoft, Facebook e similares precisam empregar diretamente, como assalariados ou sob alguma outra forma de relação contratual, um número expressivo de trabalhadores qualificados: seus cientistas, engenheiros, publicitários etc. Eles produzem, ao fim e ao cabo, o que poderíamos considerar um “território” – o espaço a ser ocupado pelo anúncio publicitário. Mas este espaço precisará ser “semeado” para dar frutos: as palavras serão aí colocadas por milhões de pessoas que aparentemente não mantêm qualquer contrato de remuneração com os donos da rede, mas encontram-se totalmente “aprisionadas” às suas tecnologias, protocolos, dispositivos... e “jardins murados”: os redescravos (“netslaves”). A fórmula (3) será assim analisada:

tc < = > tg Ft D–M

...I...

D' (4)

Fp O dinheiro D adquire mercadorias m (computadores, papéis, energia etc.) e força de trabalho ft (cientistas, engenheiros, programadores etc.) que desenvolverão e liberarão um ambiente para a realização de trabalho informacional I, onde se encontrarão duas atividades de trabalho vivo: o trabalho contratado das próprias organizações (tc) em permanente interação ( < = > ) com o trabalho grátis (tg) fornecido pelos internautas. Este oferece àquele, as palavras postas em leilão, além de toda uma vasta gama de outros dados (perfis pessoais, hábitos, gostos, relacionamentos etc.) a serem valorizados pelo capital reticular. O trabalho contratado (controlando os sistemas e algoritmos que desenvolve) permanece

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ativamente perscrutando as atividades do trabalho grátis a fim de mantê-lo animadamente ocupado nessa atividade de suprir o capital com informação “monetizável” e, inclusive, censurando algumas iniciativas que possam ser percebidas como ameaças ao, digamos, bom ambiente de trabalho... Não são poucos e tendem a crescer os casos de censura moral ou política no Facebook, no YouTube e similares (LORENZOTTI, 2013). Poderemos entender essa relação interativa do trabalho contratado com o trabalho gratuito, como o desenvolvimento histórico daquilo que Marx, no Capítulo inédito, definia por trabalho socialmente combinado:

[...] como, com o seu desenvolvimento da subordinação real do trabalho ao capital ou do modo de produção especificamente capitalista não é o operário individual que se converte no agente real do processo de trabalho no seu conjunto mas sim uma capacidade de trabalho socialmente combinada; e como as diversas capacidades de trabalho que cooperam e formam a máquina produtiva total participam de maneira muito diferente no processo imediato de formação de mercadorias, ou melhor, neste caso, de produtos – um trabalha mais com as mãos, outro mais com a cabeça, este como diretor, engenheiro, técnico etc., aquele como capataz, aqueloutro como operário manual ou até simples servente – temos que são cada vez em maior número as funções da capacidade de trabalho incluídas no conceito imediato de trabalho produtivo, diretamente explorados pelo capital e subordinados em geral ao seu processo de valorização e de produção. Se se considerar o trabalhador coletivo constituído pela oficina, a sua atividade combinada realiza-se materialmente e de maneira direta num produto total que, simultaneamente, é uma massa total de mercadorias e aqui é absolutamente indiferente que a função deste ou daquele trabalhador, mero elo deste trabalhador coletivo, esteja mais próxima ou mais distante do trabalho manual direto [grifos meus – M.D.]. Porém, então, a atividade desta capacidade de trabalho coletiva é o seu consumo direto pelo capital, ou por outra, o processo de autovalorização do capital, a produção direta de mais-valia e daí, como se há de analisar mais adiante, a transformação direta da mesma em capital (Marx, s/d: 110, grifos no original; grifos meus – M.D. – onde indicado).

Marx sugere que o trabalho produtivo tende a expandir-se para além da oficina, a incorporar novas funções e perfis profissionais, pouco importando se “mais próxima ou mais distante do trabalho manual direto”. A atividade desse trabalho socialmente combinado resulta em seu consumo direto pelo capital, na sua transformação direta em capital. A isto, Marx denominava subsunção real do trabalho pelo capital – não apenas subordinação, mas incorporação. Está claro, ainda nesse parágrafo, que Marx está tratando de trabalho produtivo. Numa outra passagem do mesmo Capítulo inédito, ele nos esclarece este conceito, no conhecido exemplo do professor que dá aulas particulares ou dá aulas assalariado por um empresário de ensino, gerando mais-valia e lucro para este empresário. Trabalho produtivo no conceito rigoroso da Economia Política é aquele produtivo para o capital, aquele que contribui para a acumulação. O indivíduo que trabalha para si, pode ser “produtivo” para a Ética,

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Sociologia, Psicologia ou Antropologia, pode sê-lo de muitos modos para a sociedade, mas não o será para o capital, logo, teoricamente, para a Economia Política. O trabalho é inerente ao ser humano e o projeto marxiano propõe recuperar sua liberdade e alegria desalienada, impossível, acreditava Marx, sob o capitalismo. Trabalhamos todo o tempo, mesmo quando nos divertimos, até quando descansamos, pois o trabalho do ser humano ou de qualquer outro ser vivo, o trabalho orientado, é condição sine qua non de sobrevivência e reprodução num universo determinado pela Segunda Lei da Termodinâmica (DANTAS, 2006, 2012). Afirmar que as pessoas estão trabalhando mesmo quando assistem um filme numa sala de cinema poderia, deste ponto de vista, soar quase acaciano. O que vai nos interessar aqui é determinar se tal trabalho será, ou não, produtivo para o capital. As evidências demonstram, sobretudo nas condições de valorização de corporações como o Google ou Facebook, que as atividades vivas dos internautas e, por extensão, das audiências, tornaram-se essencialmente necessárias e produtivas para a acumulação capitalista, seja ao valorizarem o tempo durante o qual haverá veiculação publicitária na televisão; seja ao “semearem” com palavras-chaves os “territórios” de leilão onde investem os anunciantes, isto é, os produtores das demais mercadorias. O trabalho socialmente combinado envolvido na valorização do tempo publicitário ou da palavra, relacionaria, grosso modo, dois grandes conjuntos de fornecedores desse trabalho: os artistas, desportistas, técnicos, engenheiros, demais profissionais contratados, de um lado; o público, do outro. Artistas ou desportistas efetuam um trabalho concreto dificilmente redutível a abstrato, conforme largamente aceito na literatura da EPICC (BOLAÑO, 2000). Os internautas ou o público-audiência estariam, por sua vez, efetuando aquele trabalho “sem mais nem mais”, aquele trabalho que “qualquer um pode fazer”, aquele trabalho abstrato no conceito de Marx. Se a força de trabalho será também mercadoria dotada de valor de uso e valor de troca, esse trabalho socialmente combinado será a unidade da qualidade expressa pela dimensão socialmente significativa e interativa do conjunto da atividade artística (valor de uso) com a totalidade social da dimensão ordinária, cotidiana, habitual, acessível a “qualquer um”, do trabalho gratuito, do trabalho fornecido, em seus tempos lúdicos ou mesmo profissionais, pelas milhões de pessoas anônimas que se conectam aos programas da TV, ou se interconectam pelas redes da internet. Unidade de contrários. O trabalho (socialmente) concreto sustenta-se no trabalho (socialmente) abstrato. O trabalho (socialmente) abstrato não seria fornecido sem sua utilidade (social e combinadamente) concreta. O capital remunera uma parte desse tempo de trabalho, o dos artistas, desportistas, engenheiros de sistemas, outros profissionais contratados. E nada paga pela outra parte, o tempo ordinário de internautas ou da audiência. Se o valor de troca, apenas produzido em massa pelo trabalho abstrato, teria sido reduzido a zero, porque gratuito, confirma-se que o capital (espetacular) segue sendo um processo de acumulação, na comunicação, que não produz nova mercadoria – objeto para a troca –, daí dependendo do trabalho concreto, dificilmente redutível a abstrato, de artistas ou outros profissionais contratados, inclusive das “celebridades” meteóricas da rede, para crescer com base nas rendas da propriedade intelectual e seus “jardins murados”.

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A mercadoria em discussão Lembramos, lá em cima, que para os autores fundadores da EPICC, os meios de comunicação produziriam, como mercadoria, uma audiência a ser trocada com os anunciantes. Esta hipótese já suscitaria problemas porque aquilo que se entende por “audiência” não reúne quaisquer das características definidoras da mercadoria (divisibilidade, reprodutibilidade, rivalidade, transferibilidade), relembrando-se, além do mais, que o ciclo de acumulação na comunicação se caracterizaria, conforme Marx, pela não produção de mercadoria. Mas esta, como sabemos, sempre foi uma hipótese polêmica. Seu primeiro formulador, Dallas Smythe, se envolveria em debates, entre outros, com Graham Murdock, Sut Jhally, Cesar Bolaño (apud FUCHS, 2012; apud BOLAÑO, 2000), que não aceitariam ou aceitariam só parcialmente tal construção teórica. Para Smythe, a audiência seria uma força de trabalho, simultaneamente produzida e produtora de um valor que os meios de comunicação intercambiariam com os anunciantes. A audiência não é passiva, seu tempo de atenção é tempo de trabalho; no limite, diria ele, “para a grande maioria da população, as 24 horas do dia são tempo de trabalho” (apud FUCHS, 2012: 701). Bolaño rejeita essa hipótese, concordando que essa população identificada como “audiência” seria, porém, a mercadoria que os meios intercambiariam com os anunciantes, mercadoria esta produzida pelo trabalho dos artistas e demais empregados diretos das empresas de comunicação (BOLAÑO, 2000). Jhally, ainda conforme Fuchs (2012), sugere outra hipótese: a real mercadoria seria o tempo de veiculação publicitária, tempo este produzido pelo trabalho da audiência. A hipótese de Jhally deveria parecer, a todos, sensivelmente evidente. O que o anunciante paga é uma unidade de tempo (30 segundos, 1 minuto, 1 hora etc.). Esta unidade de tempo, ela sim, é valorizada pela interação do trabalho contratado artístico e técnico, com a atenção de um determinado público situado em um dado espaço, a assim chamada “audiência” (DANTAS, 2011). O trabalho artístico atrai ou mobiliza esse público, mas o público também informa o trabalho artístico, a ele reage, com ele interage. A aparência unidirecional dos meios de massa poderia ter mascarado, para muitos (mas não para todos), essa realidade (voltaremos, nas conclusões, a este ponto). A internet pode ter retirado esse véu. Se há diferença entre os modos de mobilização de trabalho pelos média tradicionais (rádio e televisão) e pela internet, esta se percebe, sem dúvida, no fato de a internet permitir à “audiência” um papel mais participativo na interação com o meio, e daí, por isto mesmo, ainda mais produtivo. A internet pode substituir o cantor de programa de auditório, pelo amador instantaneamente célebre do YouTube. Mas se, para a apropriação, pelos média tradicionais, do valor do tempo de trabalho dos artistas com o seu público fazia-se necessário monopolizar alguma faixa de freqüência hertziana, na qual o tempo de transmissão seria dividido em unidades iguais, reprodutíveis e rivais; para a apropriação do tempo de trabalho de marqueteiros e engenheiros com os seus internautas, está se fazendo necessário, como estamos vendo, mercadejar a palavra: os negócios do Google, do Facebook e de outras corporações similares valorizam literalmente a palavra ordinária, a palavra que se encontra em qualquer dicionário, ago-

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ra percebida, definida, significada, como palavra que pode conduzir a navegação, que pode orientar uma compra. A produção semiótica aí é por demais evidente. Produzir este ato de conectar um motivo qualquer pelo qual alguém escreveu |livro| numa mensagem, com o movimento de visitar uma livraria “virtual” e, quem sabe?, comprar algum livro, produzir este significado mercantil, é o objetivo de ferramentas como o AdWord. A partir daí, sabendo disso, os projetistas e desenhistas de portais, sítios e blogs esmeram-se em desenhar páginas que, na tela do computador de um navegante qualquer, possam ser atrativas, interessantes, estimulantes – isto é, que exibam uma estética capaz de prender a atenção por algum tempo, em um ambiente sabidamente fugaz e nervoso. E, melhor ainda, que motivem a ação de compra. Uma palavra ao acaso, posta assim no ambiente do AdWord, é esvaziada de qualquer significado pragmático (significado real), exceto o de sugerir e conduzir algum negócio. A forma da palavra reduz-se à forma-palavra tanto quanto a forma da mercadoria abstrai-se na forma-mercadoria. Esta palavra abstrata, passaria a ter um “dono”, aquele que por ela pagou mais caro, mesmo que por alguns minutos ou horas ou dias, mesmo que lhe seja uma propriedade fugidia a cada novo leilão. Ela se torna reprodutível a cada intenção de algum internauta (para quem ela terá muitos outros significados reais), e nessa unidade assim apropriada pelo anunciante, torna-se até mesmo um “bem rival”. Adquire todas as características da mercadoria, ainda que seu tempo de conservação proprietária possa ser muito curto. O “jardim murado” tratará de preservá-lo... É que assim como nos casos do livro ou do vinil (ou do CD), o tempo aprisionado na freqüência hertziana ou a palavra retida numa página proprietária do Google ou Facebook e similares, ainda que se assemelhem, em muitas características à mercadoria (unicidade, repetibilidade, rivalidade), também expressam valores de uso essencialmente não alienáveis pois, mais uma vez, o valor de uso encontra-se na ação, não no objeto. Daí que, a rigor, o anunciante paga por um direito de acesso à freqüência detida pela emissora. Na internet, do mesmo modo, o anunciante não se torna “proprietário” definitivo da palavra-chave, mas seu usuário momentâneo nos termos lhe ditados pela corporação capitalista que controla seu acesso aos valores de uso produzidos pelo trabalho socialmente combinado de seus profissionais com os internautas. O leilão é permanente porque o leiloeiro não transfere (e nem teria como transferir) àquele que dá o lance, alguma propriedade do objeto. O anunciante não pode levá-lo para casa, como levamos, por exemplo, um quadro ou tapete arrematado em leilão. Trata-se de uma falsa mercadoria, como o livro ou o disco. Valor de uso que resulta de trabalho concreto, comunicação, interação dos agentes vivos envolvidos e relacionados na sua produção. Embora possa parecer paradoxal, estamos saindo do universo da mercadoria para adentrarmos no universo do mais puro rentismo, característica essencial do capital financeiro contemporâneo. Ou das metamorfoses apenas ideais... Em seus detalhes, a partir daí, essa economia deveria ser melhor examinada buscando-se entender como se formam, podem ser apropriadas e serão distribuídas entre os agentes, as rendas informacionais extraídas do trabalho socialmente combinado, pago e gratuito, efetuado nas redes e noutros meios de comunicação do espetáculo. A apropriação e distribuição será função das relações esta-

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belecidas pela monopolização dos direitos intelectuais embutidos nos “jardins murados”, conforme condições diferenciais de tempo e espaço, dentre elas, as suas possibilidades (ou não) de replicação a custos marginais próximos a zero (DANTAS, 2008).

Excurso epistemológico à guisa de conclusões

A internet tende a se tornar o medium dominante no século XXI. Muito mais do que os média precedentes, ela oferece a qualquer indivíduo inserido na sociedade capitalista do espetáculo e consumo, amplas condições de também ser participante imediato e direto do espetáculo produtor de consumo, através de perfis em “redes sociais”, postagens no Twitter, vídeos no YouTube, comentários sobre mensagens de outros etc (SIBILIA, 2008). A ação proporcionada será trabalho vivo socialmente combinado que gera valor apropriável pelo capital seja pelo rastreamento das interações, seja pela atratividade publicitária dos portais, sítios, blogs, perfis que mais agenciam audiências interativas. Esse valor, não podendo ser apropriado pela troca, sê-lo-á pela imposição jurídica de “propriedade intelectual”, associada, para maior efetividade, à construção de “jardins murados” à sua volta. Assim formuladas, essas hipóteses podem suscitar debates, questionamentos, investigações em ainda outros níveis lógicos da teoria. Insistir aí em identificar alguma “mercadoria”, seja a “audiência”, o “tempo”, os “dados”, ou quaisquer outras, a mediar a relação da força de trabalho com o capital, quando essa “capacidade coletiva” já é consumida diretamente pelo capital, pode ser efeito ainda de heranças paradigmáticas. O capitalismo, na sua superior etapa rentista, reduziu a mercadoria tão somente à sua aparência fetichista, às modas, aos estilos, à palavra, ao signo. Logo, também, às relações na ação: à informação. Estamos tratando, em última análise, de uma economia da informação, de uma economia neguentrópica (DANTAS, 2012). Poderia parecer platitude afirmar que qualquer discussão de natureza econômica deveria estar solidamente ancorada na teoria, conceitos, metodologia da Ciência Econômica. Do mesmo modo, seria necessário reconhecer que qualquer discussão relativa à Informação, Comunicação e Cultura precisa estar ancorada nas teorias, conceitos, metodologias próprias dos estudos informacionais ou comunicacionais. Se falamos de uma “economia da cultura”, ou de uma “economia da comunicação”, ou mesmo de uma “economia da informação”, estamos abordando um espaço de convergência e interação entre os dois campos. Ora, se não será dado ao teórico da comunicação tratar de modo arbitrário ou descuidado os conceitos econômicos, também se espera dos economistas que conheçam e observem as teorias e conceitos das ciências comunicacionais. Estamos diante de um processo de convergência interdisplinar que muito enriquecerá cada campo se ambos souberem aprender um com o outro. A Economia Política nos oferece, sabidamente, uma obra teórica e metodológica canônica: o Capital de Karl Marx. À sua volta, dispomos de uma alexandrina biblioteca de estudos,

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ensaios, também polêmicas, contradições, cujo todo nos permite estabelecer as categorias e conceitos básicos sobre os quais podemos e devemos, pelo menos, dialogar, concordar, até divergir. No campo da informação e da comunicação, ao contrário, não podemos afirmar que dispomos também de uma tal referência assim tão forte, menos ainda se pensamos – e temos que pensar – num corpo teórico e metodológico rigoroso que possa dialogar com Marx. Obviamente, este texto, nas suas dimensões, não nos permite muito avançar nesse debate. No máximo, podemos delineá-lo. De um ponto de vista dialético, entender o lugar ativo da “audiência”, seja nos velhos ou novos média, nada mais será que compreender plenamente o papel ativo do assim impropriamente chamado “receptor” no processo de produzir os significados das mensagens que percebe. “Produzir signos implica um trabalho, quer estes signos sejam palavras ou mercadorias”, já escreveu Umberto Eco (1980: 170). Mikhail Bakhtin, um dos primeiros marxistas e enfrentar o problema da significação e da linguagem, ainda na primeira metade do século XX, escreveu por volta de 1950: Até hoje ainda existem na lingüística ficções como o ‘ouvinte’ e o ‘entendedor’ (parceiros do ‘falante’, do ‘fluxo único da fala’ etc.). Tais ficções dão uma noção absolutamente deturpada do processo complexo e amplamente ativo da comunicação discursiva. Nos cursos de lingüística geral (inclusive em alguns tão sérios quanto o de Saussure), aparecem com freqüência representações evidentemente esquemáticas dos dois parceiros da comunicação discursiva – o falante e o ouvinte (o receptor do discurso); sugere-se um esquema de processos passivos de recepção e compreensão do discurso no ouvinte. Não se pode dizer que esses esquemas sejam falsos e que não correspondam a determinados momentos da realidade; contudo, quando passam ao objetivo real da comunicação discursiva eles se transformam em ficção científica. Neste caso, o ouvinte, ao perceber e compreender o significado (lingüístico) do discurso, ocupa simultaneamente em relação a ele uma ativa posição responsiva: concorda ou discorda dele (total ou parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo etc.; essa posição responsiva do ouvinte se forma ao longo de todo o processo de audição e compreensão desde o seu início, às vezes literalmente a partir da primeira palavra do falante. Toda a compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza ativamente responsiva (embora o grau desse ativismo seja bastante diverso); toda compreensão é prenhe de resposta, e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte se torna falante (BAKHTIN, 2011: 271, grifos meus – MD).

O lingüista russo prossegue, inclusive esclarecendo que a resposta nem sempre precisa se dar na forma de voz ou fala, pode “realizar-se imediatamente na ação” (como no caso da obediência a uma ordem militar) ou pode permanecer silenciosa se “os gêneros discursivos foram concebidos para tal compreensão, como, por exemplo, os gêneros líricos” (idem: p. 272). O próprio falante está determinado precisamente a essa compreensão ativamente responsiva: ele não espera uma compreensão passiva, por assim dizer, que apenas duble o seu pensamento em voz alheia, mas uma resposta, uma concordância, uma participação, uma objeção, uma

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execução etc. [...] Ademais, todo falante é por si mesmo um respondente em maior ou menor grau: porque ele não é o primeiro falante, o primeiro a ter violado o eterno silêncio do universo [...] (idem, ibidem).

É verdade que as condições sociais ou culturais, sem falar das econômicas, políticas ou tecnológicas, prevalecentes na maior parte do século XX, muitas vezes mascararam essa compreensão. Não somente o objetivismo saussuriano ou estruturalista, mas outras formulações como o modelo da “agulha hipodérmica” de Harold Lasswell ou o popular desenho emissor-canal-receptor (ruído filtrado) de Claude Shannon (apud MATTELARD e MATTELARD, 2003) remetem a uma mesma abordagem epistemológica, o dualismo sujeito-objeto positivista. A alternativa a essa abordagem, já exibida por Bakhtin desde o seu seminal Marxismo e filosofia da linguagem (BAKHTIN, 1986, original de 1929), ou reafirmada por Wilden (2001), Escarpit (1991), Dantas (2012), também esclarecida por Sfez (1994), não raro enfrenta resistências até no campo marxista vulgar, para o qual a relação “patrão-empregado” também aparentará o mesmo desenho shannoniano, a exemplo do conhecido modelo “concepção-execução” de análise do “fordismo” apresentado por Braverman (1981). Shannon, é sabido, construiu um modelo tipicamente de engenharia, visualizando um sistema técnico de comunicação: telegrafia, telefonia, radiodifusão. Interessava-lhe os processos físicos (eletro-eletrônicos) próprios desses sistemas, não o conteúdo significativo das mensagens humanas que trafegam neles. A análise e compreensão desse conteúdo situam-se num nível lógico distinto, na relação discursiva entre os falantes, para a qual o sistema técnico é um mero facilitador, ao anular o espaço pelo tempo. Tanto quanto num palco de teatro ou num estádio esportivo, o artista ou o desportista mantêm relações imediatamente interativas com a platéia, dela obtendo respostas e estímulos para a sua atuação, a ela transmitindo emoções que já espera ou já sabe, como “falante”, que ela, a platéia, espera e responderá ativamente, como “ouvinte”; da mesma forma, o artista, jornalista, publicitário ou esportista sabe que haverá uma audiência, espacialmente distante mas emocional, cultural, significativamente com eles relacionada e conectada num mesmo tempo, respondendo ativamente aos seus desempenhos, às suas “falas”. No momento do gol do seu time, você pulará do sofá da sala da TV, assim como pularia do assento da arquibancada. E, não raro, o autor do gol corre para a câmara de TV mais próxima, como correria para o alambrado junto aos torcedores. O modelo de Shannon não funciona aqui; funciona sim, o modelo “emirec” de Escarpit (1991), ou seja, cada pólo envolvido na comunicação será simultaneamente “emissor” e “receptor”. “Emissão é imediatamente recepção; recepção é imediatamente emissão” (DANTAS, 2012: 36), mesmo se essa relação esteja mascarada pelo formato sócio-técnico das emissoras de rádio e TV. Máscaras estas retiradas pelos ágeis dedos que se movem em alguma telinha de smartphone na internet. Em suma, se a divisão de trabalho nas indústrias tradicionais de comunicação podia obscurecer tal percepção, ela se torna por demais evidente nas práticas sociais na internet. Se o “espectador”, assim como o “internauta” trabalham, isto é, ocupam parte de seus tempos a produzir significados necessários à geração de valor na indústria cultural espetacular,

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o nosso objeto de investigação deverá ser o de tentar entender melhor esse processo de trabalho como parte mesmo do nosso esforço para compreender melhor o próprio processo de valorização do capital nesta etapa avançada do capital-informação, na qual, mais do que trabalho não pago, o capital segue avançando ao explorar trabalho absolutamente não pago. Que, entretanto, para a grande maioria das pessoas, sequer se mostra como trabalho, mas antes como diversão. O capitalismo nos fez a todos atores do seu espetáculo cotidiano de alienação e show de Truman...

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Mais-valia 2.0: Produção e apropriação de valor nas redes do capital – Marcos Dantas

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COOPERAÇÃO E CONTROLE NAS DINÂMICAS DE AUTO-ORGANIZAÇÃO EM PLATAFORMAS COLABORATIVAS COOPERACIÓN Y CONTROL EN LAS DINÁMICAS DE AUTO-ORGANIZACIÓN EN PLATAFORMAS COLABORATIVAS COOPERATION AND CONTROL IN DYNAMICS OF SELFORGANIZATION IN COLLABORATIVE PLATFORMS

Beatriz Cintra MARTINS Doutora em Ciências da Comunicação. Pesquisadora dos grupos de pesquisa Novas Tecnologias, Cultura e Práticas Interativas e Inovação em Saúde (FIOCRUZ), e Economias Colaborativas e Produção P2P no Brasil (IBICT/UFRJ), ligado à P2P Foundation Email: bia.martins@gmail.com

Revista Eptic Online Vol.16 n.2 p. mai-ago 2014 Recebido em 27/02/2014 Aprovado em 15/04/2014


Cooperação e controle nas dinâmicas de auto-organização em plataformas colaborativas - Beatriz C. Martins

RESUMO As plataformas colaborativas auto-organizadas têm demonstrado qualidade e vitalidade. Com dinâmicas produtivas geridas de forma distribuída pelo coletivo de participantes, esses projetos têm sido espaço de experimentação de tecnologias de cooperação, isto é, de instrumentos criados a fim de viabilizar sua sustentabilidade. Neste artigo, abordamos alguns aspectos dessas tecnologias, especialmente os mecanismos de controle participativo empregados para assegurar a evolução positiva da produção colaborativa. Num primeiro momento, apresentamos a visão de Michel Foucault sobre o poder como positividade para, em seguida, explorar a configuração do controle na atualidade. Abordamos, então, o papel do monitoramento nas estratégias de cooperação em rede, sob inspiração dos estudos de Elinor Ostrom. Por último, apresentamos o caso do website Slashdot, como exemplo de articulação entre esses dois vetores.

Palavras-Chave Cooperação. Controle. Auto-Organização. Plataformas Colaborativas. Slashdot

RESUMEN Las plataformas colaborativas auto-organizadas han demostrado calidad y vitalidad. Con dinámicas productivas gestionadas de manera repartida entre los participantes, esos proyectos han sido espacios para experimentar tecnologías de cooperación, o sea, instrumentos creados para viabilizar su sostenibilidad. En este artículo, abordamos algunos aspectos de esas tecnologías, especialmente los mecanismos de control participativo de los empleados para garantizar la evolución positiva de la producción colaborativa. En un primer momento, presentamos la visión de Michel Foucault sobre la positividad del poder, para enseguida explorar la configuración del control en la actualidad. Abordamos luego el papel del monitoreo en las estrategias de cooperación en red, inspirándonos en los estudios de Elinor Ostrom. Por último, presentamos el caso del sitio web Slashdot como ejemplo de articulación entre esos dos vectores. Palabras-Clave Cooperación. Control. Auto-Organización. Plataformas Colaborativas. Slashdot.

ABSTRACT Self-organized collaborative platforms have demonstrated quality and vitality. With productive dynamics managed in distributed fashion by the participants’ collective, these projects have become spaces for experimenting with cooperative technologies, i.e., instruments created to make their sustainability viable. In this article, we address some aspects of these technologies, especially mechanisms for participatory control, employed to ensure the positive development of collaborative production. Initially, we present Michel Foucault’s views on power as a positivity. Later, we explore the control configuration in contemporary times. Then, we tackle the role of monitoring in strategies of cooperation in networks, inspired by Elinor Ostrom’s studies. Finally, we present the case of the Slashdot website, as an example of articulation between those two vectors.

Keywords Cooperation; Control; Self-Organization; Collaborative Platforms; Slashdot.

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Cooperação e controle nas dinâmicas de auto-organização em plataformas colaborativas - Beatriz C. Martins

INTRODUÇÃO

As redes de comunicação têm transformado as formas de produção de conteúdo ao incentivar uma dinâmica mais interativa, na qual a autoria se dá através da cooperação produtiva entre uma multidão de atores. Em plataformas colaborativas auto-organizadas não há uma coordenação central, o que por vezes pode levantar questões sobre sua validade ou credibilidade, já que não correspondem ao modelo hierarquizado de produção onde existe um centro gerencial especializado que chancela o produto final. 1- Endereço eletrônico em: <http://www.wikipedia. org>.

2- Endereço eletrônico em: <http://slashdot.org>.

No entanto, esses projetos colaborativos têm demonstrado qualidade e vitalidade. Na ainda breve história da internet, a Wipédia1 completou 13 anos de existência em janeiro de 2014, quando contava com cerca de 30 milhões de artigos em 287 versões idiomáticas, editados por mais de 130 mil colaboradores ativos. Outro exemplo de sucesso é o website Slashdot2, um fórum de discussão da comunidade hacker que examinaremos em detalhe mais adiante, ativo desde 1997. Isso não acontece por acaso: esses projetos têm sido espaço de experimentação de tecnologias de cooperação, isto é, de instrumentos e mecanismos criados a fim de viabilizar sua sustentabilidade. Neste artigo iremos abordar alguns aspectos da dinâmica de auto-organização existente nesses ambientes, especialmente no que diz respeito aos mecanismos de controle participativo, isto é, aos instrumentos de monitoramento mútuo empregados pela comunidade de colaboradores para assegurar a evolução positiva de seu trabalho em rede. Deste modo, propomos uma reflexão sobre as relações entre a cooperação e o controle que não seja de contradição: não mais o controle visto como um agente exterior que restringe ou limita a ação colaborativa, mas sim como um elemento que participa e viabiliza a sua própria realização. Como ponto de partida, apresentamos a visão de Michel Foucault sobre o poder como positividade para, em seguida, explorarmos a configuração do controle na atualidade. Abordamos, então, o papel do controle nas estratégias de cooperação em rede, sob inspiração dos estudos de Elinor Ostrom. Por último, apresentamos o caso do website Slashdot, no qual podemos identificar a existência de um monitoramento distribuído como parte de seu modelo colaborativo de mediação da comunicação.

O PODER COMO POSITIVIDADE

Para iniciar esta reflexão, ressaltamos um ponto chave em nossa argumentação, qual seja, o entendimento do poder como positividade, como propõe Michel Foucault. Para este autor, o poder produz realidade, delimita o campo de ação e estabelece os rituais de verdade. O poder produz modos de ver e modos de ser, fabrica subjetividades. Mais do que reprimir a vida, o poder vai geri-la, para extrair dela o máximo de produtividade, com o mínimo de resistência. Como afirma o autor:

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O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir. (FOUCAULT, 2004, p. 8)

Assim, Foucault busca compreender as dinâmicas e configurações de diagramas de poder em diferentes períodos históricos como tecnologias que se implantam e se consolidam na medida em que atendem a demandas políticas, econômicas e sociais, e comprovam sua utilidade. Em seus estudos, procurou identificar como, em determinados períodos históricos, certos mecanismos de poder tornaram-se economicamente lucrativos e politicamente úteis. (FOUCAULT, 1999, p.38) É conhecida a análise foucaultiana sobre o dispositivo do Panóptico como o representante do diagrama de poder na Modernidade: uma construção em forma de anel com uma torre ao centro, do alto da qual um vigia pode ver a movimentação nas celas dispostas abaixo. Em cada cela, um detento é mantido sozinho e isolado do contato com outros detentos. Uma janela permite que se observe o movimento no seu interior, porém o detento não pode ver quem o vigia nem se assegurar de que está sendo efetivamente observado. O par ver-ser visto foi dissociado. Há aí uma economia do poder, pois ele se exerce o tempo todo através de uma vigilância potencial, não necessariamente efetivada. A figura do vigia, que vê e não é visto, é internalizada pelo preso, que passa a ter então o vigia dentro de si. Este é o efeito mais importante do Panóptico, que assegura o funcionamento automático do poder. O modelo do Panóptico, criado como uma arquitetura prisional, deve ser compreendido, segundo Foucault, como um modelo generalizável de funcionamento do poder em outros espaços da vida cotidiana da Modernidade, como a fábrica, a escola, o exército, a família etc. Nele o olhar opera em uma vigilância constante tendo como critério a norma e como objetivo a docilização e a fixação dos corpos. Distribuídos em espaços esquadrinhados, os corpos são objeto de observação contínua, seus comportamentos são analisados sem cessar para se verificar se seguem as regras do treinamento e se estão de acordo com a normalidade. Ao mesmo tempo, a norma funciona como um parâmetro interno de subjetivação, tendo a anormalidade como sua negatividade ética. O Panóptico não representa apenas uma arquitetura ou um modelo de visibilidade, mas expressa a combinação entre os diferentes elementos que compõem uma estratégia de poder definida por Foucault como a da sociedade disciplinar. A vigilância ali exercida está associada a uma norma, quem vigia quer flagrar o desvio. Ao mesmo tempo, a norma é produzida através da escrita ininterrupta feita pela observação dos corpos e representa um saber construído pela disciplina. Cada processo tem um tempo de execução – a operação na linha de produção; o aproveitamento na sala de aula; os treinamentos no exército; o restabelecimento dos pacientes etc –, é preciso acompanhar seu desempenho e avaliá-lo à luz da norma.

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Segundo Foucault, a disciplina despontou nos séculos XVII e XVIII como uma resposta à demanda de uma burguesia emergente que pedia uma mecânica de poder bastante diferenciada do modelo anterior que dominou durante a Idade Média, o da soberania, no qual o poder se exercia “muito mais sobre a terra e seus produtos do que sobre os corpos e seus atos” (FOUCAULT, 2004, p.188). Naquele momento, as exigências de um capitalismo nascedouro pediam tecnologias de poder para extrair tempo e trabalho dos corpos. Uma série de técnicas começava a surgir e perpassar toda a sociedade com o objetivo de gerir e ordenar as multiplicidades advindas da grande explosão demográfica. Era preciso regulamentar e deter os movimentos, fixar os corpos num processo de antinomadismo.

DA DISCIPLINA AO CONTROLE

Para Deleuze (1992) o fim da Segunda Guerra Mundial marca a passagem para um novo diagrama de poder, o da sociedade de controle, no qual o monitoramento se dá por modulação: um controle contínuo, ilimitado e infinito. Os meios de confinamento – a prisão, o hospital, a fábrica, a escola, a família – entram em crise. O espaço do controle é aberto, não mais confinado, e a formação não termina nunca, está sempre se dando de forma modular. O declínio da sociedade disciplinar coincide com a mutação do capitalismo. As mudanças na economia e na sociedade foram acompanhadas por mudanças nas estratégias de poder, que não se fundamentam mais nos fatores de ordem e obediência. Hoje a empresa tomou o lugar da fábrica. Sua meta não é mais tanto a produção, mas o consumo. Não tanto a ordem, mas a eficácia. Os corpos dos trabalhadores não precisam mais ser vigiados em seus menores movimentos, mas seu desempenho global será avaliado e comparado com os demais, servindo de parâmetro para uma modulação salarial. Não mais o padrão da linha de produção, mas a competição entre os colegas – a cada um será dado um salário de acordo com seu rendimento. Não mais a fábrica como um só corpo, mas a empresa como “uma alma, um gás” (DELEUZE, 1992, p.221). A cada diagrama de poder, Deleuze (1992) relaciona um tipo de máquina. Na soberania são máquinas simples, operadas por mecânicas de alavancas e roldanas. Na disciplina o domínio é das máquinas energéticas, caracterizadas pela linha de montagem da fábrica. Já no controle, as máquinas são os computadores. Os bancos de dados, nesse sentido, comparecem como os operadores por excelência da modulação do controle. O olhar do Panóptico está sendo substituído pela monitoração das câmeras e dos agentes eletrônicos. A vigilância hierarquizada deixa de ser dominante, e a movimentação passa a ser monitorada e controlada por modulação. A visibilidade não parte mais de um ponto central e nem é efetuada hierarquicamente, mas varre todo o campo social monitorando os movimentos e registrando-os em bancos de dados.

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3- O termo vigilância é empregado por vários autores (BRUNO, 2004, 2013; LYON, 2002; MARX, 2002; POSTER, 1995; ROSE, 2000) para falar da estratégia de poder contemporânea. Neste trabalho, no entanto, vai se optar pelo uso do termo monitoramento a fim de se demarcar a diferença entre dois diagramas de poder distintos: o da disciplina e o do controle.

Para pensar o significado do monitoramento3 contemporâneo, operado através de bancos de dados, será necessário investigar as descontinuidades que perpassam o dispositivo, tendo sempre em vista que a história não se faz por movimentos de corte, mas de passagens nas quais padrões mais antigos vão se tornando ultrapassados e novos padrões vão emergindo. O panoptismo tinha sua maior eficiência na interiorização do vigia. O homem moderno se interrogava sobre a natureza de seus pensamentos e seus desejos, e moldava sua subjetividade tendo como critério a norma. O perverso, o louco e o delinquente representavam a anormalidade, o monstruoso a ser evitado. Na sociedade atual, o monitoramento contemporâneo tem como propósito não mais a ortopedia da alma, mas uma modulação da ação dos indivíduos que serve para antecipar comportamentos, especialmente para promover o consumo e evitar o risco. Os perfis são preditivos, isto é, baseados em uma lógica de previsão do futuro: de acordo com a análise das ações do passado de um sujeito se quer antever a sua ação futura. Os perfis eletrônicos conseguem prever riscos, ao cruzar dados de acordo com critérios técnicos de peritos e identificar criminosos potenciais, ou predizer possibilidades de consumo, através ação de agentes inteligentes que definem potenciais de compra. A subjetividade, nesse sentido, passa a se caracterizar por uma exterioridade feita de registros superficiais que não se interessam mais por uma interioridade oculta do sujeito, mas pela modulação de suas ações e comportamentos (BRUNO, 2004). Se a norma não é mais norteadora da subjetividade, a escrita ininterrupta do exame dá lugar ao registro modulado dos perfis eletrônicos. No lugar da observação e do registro contínuos dos movimentos e dos desvios de um indivíduo, o monitoramento dos comportamentos através do registro das ações. A nova monitoração na sociedade contemporânea é, na análise de Marx (2002), pouco visível ou invisível, geralmente involuntária e contínua, integrada à atividade de rotina. A coleta de dados é feita preferencialmente por máquinas, é remota e pouco dispendiosa. O foco do monitoramento, por outro lado, é voltado mais para o contexto (geográfico, temporal, de sistemas ou categorias de pessoas) e menos para o sujeito já previamente conhecido. A disciplina produzia o indivíduo, com sua assinatura, e a massa, na qual cada um existe como um número. Na sociedade de controle os indivíduos são dividuados em bancos de dados. Não mais a palavra de ordem, mas a cifra e a senha. Diferentes perfis são construídos atendendo a diferentes módulos da identidade. Eles acompanham o deslocamento e a fragmentação do sujeito contemporâneo, que não tem mais compromisso com uma linha de coerência, existente na Modernidade. As identidades tornaram-se provisórias, mutáveis, instáveis, por vezes até contraditórias. Ocupam diversos espaços da vida ou se revezam em diferentes momentos, de acordo com a ocasião, deslocando continuamente as identificações (HALL, 2002). Um perfil no cartão de crédito; um outro no plano de saúde; ainda outro no currículo escolar; mais um na receita federal etc. Cada um dando conta de uma face da vida, controlando movimentos e tendências, modulando a ação. Poster (1995) analisa os perfis computacionais como o discurso da atualidade, produtor da subjetividade contemporânea. Na disciplina, o exame fazia o levantamento minucioso das características e do comportamento de cada sujeito de acordo com padrões de normalida-

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4- Tradução nossa:“[...] the discourse of the database is a cultural force which operates in a mechanism of subject constitution that refuses the hegemonic principle of the subject as centered, rational and autonomous. For now, through the database alone, the subject has been multiplied and decentered, capable of being acted upon by computers at many social locations without the least awareness by the individual concerned yet just as surely as if the individual were present somehow inside the computer”.

de. No controle, informações diversas sobre ação dos sujeitos se inscrevem como símbolos em campos de bancos de dados, operando como um superpanóptico capaz de rastrear as movimentações de forma ainda mais capilarizada. A subjetividade interiorizada produzida pelo Panóptico, argumenta o autor, é substituída por uma objetivação exteriorizada feita por identidades dispersas das quais os indivíduos podem nem ter consciência. O princípio formador do indivíduo moderno, como uma subjetividade interiorizada e centrada, é violado. [...] o discurso do banco de dados é uma força cultural que opera em um mecanismo de constituição do sujeito que rejeita o princípio hegemônico do sujeito centrado, racional e autônomo. Agora, através do banco de dados, o sujeito foi multiplicado e descentrado, capaz de ser agido através dos computadores em vários espaços sociais sem a menor consciência do indivíduo em questão, como se o indivíduo estivesse de algum modo dentro do computador. (POSTER, 1995, p.88) 4

A noção de superpanóptico, no entanto, pode induzir à ideia de um rastreamento totalizante, como o Big Brother descrito por George Orwell. Rose (2000) se opõe a este pensamento. Para ele, se o controle é constante e ubíquo, também é disperso e descentralizado. Não há um banco de dados central que armazene todas as informações. Os dados estão distribuídos em diversos pontos e atendem a diferentes interesses, especialmente os relativos à segurança e ao mercado – perfis de risco e de consumo. As estratégias do controle, para Rose, devem ser entendidas como uma barreira, modular, para o acesso aos circuitos de consumo e cidadania. Os dados do cartão de crédito, do banco, do seguro saúde e do passaporte vão dizer se o sujeito está qualificado ou não para diferentes patamares de consumo e de cidadania. Se pode ou não frequentar determinados espaços; se pode ou não atravessar determinadas fronteiras. A monitoração infinita do controle seria uma forma de monitorar capacidades ou potencialidades para participar de diferentes redes de sociabilidade, funcionando como um mecanismo de inclusão e exclusão. Bauman (1999a) também vê o banco de dados como um modulador de acessos: A principal função do Panóptico era garantir que ninguém pudesse escapar do espaço estreitamente vigiado; a principal função do banco de dados é garantir que nenhum intruso entre aí sob falsas alegações e sem credenciais adequadas. [...] Ao contrário do Panóptico, o banco de dados é um veículo de mobilidade, não grilhões a imobilizar as pessoas. (BAUMAN, 1999a, p.59, grifos do autor)

O conceito de risco está ligado ao controle do futuro: poder calculá-lo, discipliná-lo e evitar que traga danos. O presente, naquilo que é conhecido, seguro e já dominado, deve ser preservado e estendido. O perfil de risco, por sua vez, será montado não apenas pelas ações desviantes conhecidas do indivíduo, mas por características definidas por especialistas como fatores de risco (CASTEL, 1991). Por isso, o monitoramento exercido pelo Estado se preocupará em detectar e antever padrões de desvio, como forma de evitar um futuro

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ataque à segurança (combate ao crime e ao terrorismo). Se todos são potencialmente perigosos, o rastreamento deverá ser constante e ubíquo para que o controle do futuro, nesse sentido, tenha a máxima eficácia. A outra faceta do monitoramento da atualidade é a construção de perfis que definam potenciais de consumo. Se norma disciplinadora formava produtores e soldados, o capitalismo pós-industrial quer consumidores. O modo de inclusão na sociedade ocidental contemporânea é, primeiro e acima de tudo, através da capacidade de cada um de desempenhar o papel de consumidor (BAUMAN, 1999b, p.85-90). No entanto, esse rastreamento não deve ser pensado por um viés meramente negativo. Lyon (2002) argumenta que o monitoramento é uma resposta da sociedade contemporânea ao desaparecimento do corpo nas relações sociais, cada vez mais mediadas pelas tecnologias de comunicação. A interação pessoal, face a face, ainda existe, mas novas interações estão sendo estabelecidas, de forma desterritorializada e assíncrona. Nelas, signos de confiança, como o contato olho no olho e o aperto de mão, precisam ser substituídos por outros signos que façam a mediação de confiabilidade. Nesse sentido, para esse autor, o monitoramento é um instrumento de organização social que não deve ser visto como unilateral, nem oposto à privacidade. Os dados coletados, relativos à segurança ou ao consumo, envolvem o gerenciamento do risco na vida social. Em muitos casos participa-se ativamente do monitoramento, fornecendo espontaneamente dados pessoais em troca de algum benefício, seja o aumento da segurança pública ou vantagens comerciais. 5Tradução nossa: “Although the word surveillance often has connotations of threat, it involves inherently ambiguous processes that should not be considered in a merely negative light. Much everyday convenience, efficiency and security depends upon surveillance”.

6- Endereço eletrônico em: <http://www.amazon. com>.

Apesar de a palavra vigilância ter frequentemente uma conotação de ameaça, ele envolve inerentemente processos ambíguos que não devem ser considerados meramente sob um enfoque negativo. Muita da conveniência, eficiência e segurança do dia-a-dia depende da vigilância. (LYON, 2002, p. 242-243) 5

Se no período moderno a visibilidade era uma armadilha, já que representava a vigilância e a moldagem de uma subjetividade culpabilizada, hoje a visibilidade proporcionada pelos perfis eletrônicos tem dois lados: por um lado pode representar uma barreira, ao identificar e impedir o acesso a determinados circuitos; por outro pode representar oportunidade de inclusão. Ao consentir em ser monitorado, o cidadão pode abrir portas para um futuro desejável. Campbell e Carson (2002), afirmam que os consumidores estão dando outro sentido à sua privacidade, entendida agora não mais como um direito civil, mas como uma commodity a ser negociada com as corporações. Eles seriam agentes de uma espécie de monitoramento participativo, embora nunca tenham plena ciência de como seus dados serão armazenados e processados. A livraria eletrônica Amazon6 é um exemplo do que Campbell e Carson veem como um monitoramento na forma de uma negociação entre o consumidor e o comércio. Para poder usufruir das vantagens de ter uma página pessoal com indicações de compra de acordo com o seu perfil, o consumidor fornece em contrapartida seus dados, como uma commodity, e concorda em ter sua movimentação no site monitorada para que depois

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7- Endereço eletrônico em: <http://www.oglobo.com. br>.

8- Cookies, flash cokies e web beacons são diferentes tecnologias de rastreamentos de dados durante a navegação pela Internet. Os cookies são armazenados no navegador web, podem rastrear a navegação do usuário por diferentes sites e são mais fáceis de bloquear. Os web beacons ficam alojados em uma página web e permitem o acompanhamento da navegação nesta página. Já os flash cookies se infiltram no computador do usuário e permitem rastrear toda a navegação. Os dois últimos são mais difíceis de detectar e bloquear.

possa receber recomendações com base nessa movimentação. Muitas publicações on-line, como o site do jornal O Globo7 por exemplo, pedem que o leitor preencha um formulário com seus dados pessoais para poder ter acesso ao texto das matérias na íntegra. Os dados fornecidos voluntariamente no início serão acrescidos de outras informações sobre gostos e preferências – editoria mais lida; dentro da editoria, que assuntos; em cultura, que artistas procurados etc. – coletadas através de sua navegação no site. Em pesquisa realizada em 2010, foram identificados 362 rastreadores de dados de usuários (cookies, flash cookies e web beacons8) nos sites brasileiros Terra, UOL, Yahoo, Globo. com, além de 295 rastreadores nas redes sociais Orkut e Facebook (BRUNO, 2013, p. 125). Os dados coletados compõem perfis que podem ser usados para gerar propagandas direcionadas, ser cruzados com outros perfis gerando informações sobre tendências de comportamento ou consumo, como também poderão ser negociados com outras empresas para diversos fins como: segurança; desenvolvimentos de produtos e serviços; gestão do trabalho; entretenimento; saúde etc.

O CONTROLE NAS TECNOLOGIAS DE COOPERAÇÃO

Ao lado dos perfis de consumo e de risco efetuados por empresas e agências governamentais, iremos enfatizar neste artigo a existência de perfis resultantes de monitoramento entre parceiros na rede. São perfis em banco de dados que têm também como característica serem preditivos/preventivos, e operam na lógica da sociedade de controle: não mais uma moldagem dos corpos e das almas, mas uma monitoração dos movimentos e uma modulação de acessos permitidos e restritos. Seu propósito, nesse caso, é funcionar como uma tecnologia de cooperação, ou seja, como um instrumento para a evolução da cooperação nas interações mediadas por computador. Em comunidades virtuais a lógica do monitoramento está relacionada à garantia da qualidade da comunicação, tida como um bem comum entre os participantes. O trabalho de Ostrom (1990) sobre as características de comunidades cooperativas bem-sucedidas é uma referência para se pensar a administração positiva desses ambientes. Esta autora se dedicou à pesquisa da ação coletiva na gestão de recursos comuns, com ênfase nas estratégias de auto-organização. Em seu estudo, aborda casos de governança de bens comuns em comunidades cooperativas como, por exemplo, o manejo da pastagem no Japão e na Suíça e os sistemas de irrigação em comunidades das Filipinas, a fim de identificar práticas e critérios que favoreceram sua sustentabilidade. Em sua visão, o sucesso na auto-gestão dessas comunidades depende, entre outros princípios, de: limites claramente definidos da comunidade envolvida; monitoramento do comportamento dos participantes; escala de sanções graduais para quem viole as regras comunitárias etc. Ostrom ressalta, portanto, o papel do controle nas estratégias para a sustentabilidade de comunidades cooperativas auto-organizadas. Também em plataformas colaborativas

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bem-sucedidas no meio digital, é possível observar diferentes tipos de monitoramento, que podem ser mais ou menos distribuídos, como forma de garantir sua sobrevivência. Apresentamos a seguir o caso do website Slashdot como um exemplo de utilização de instrumentos de controle participativo como fator de estímulo ao comportamento cooperativo. Antes de analisar o seu funcionamento, será feita uma pequena apresentação de seu histórico.

O CASO SLASHDOT O Slashdot foi criado em 1997 por Rob Malda, então um estudante de Ciências da Computação no Hope College, Michigan, Holanda, como um espaço de troca de informações entre ele e seus colegas. No início, o próprio Malda, com a ajuda de alguns amigos, se encarregava de moderar os debates, incentivando a troca de ideias e minimizando os ruídos causados por aqueles que estavam mais interessados em tumultuar as discussões, com comentários ofensivos, provocativos ou totalmente fora do assunto. Quando o número de participantes aumentou, Malda decidiu criar um grupo de 25 pessoas para dar conta da moderação. Em pouco tempo, essa decisão se mostrou também ineficaz. O volume de trabalho era muito grande, já com centenas de comentários diários, para uma equipe ainda reduzida. Partiu-se então para a seleção de 400 moderadores entre aqueles que postavam os melhores comentários nas discussões. Aí surgiu outro problema: o comportamento abusivo de muitos moderadores que faziam avaliações injustas ou tendenciosas. Era preciso criar uma maneira de impedir o “reino do terror” dos moderadores e que ao mesmo tempo fosse ágil suficiente para garantir uma qualificação à leitura do conteúdo. A solução encontrada foi desenvolver um sistema de moderação coletiva. O Slashdot funciona como um fórum de discussão sobre assuntos ligados à área de tecnologia e temas afins, especialmente informações sobre a produção de programas de Software Livre e Código Aberto. Diariamente são postados cerca de 20 tópicos, que consistem em um resumo de um parágrafo de um assunto com links para um site externo, no qual a história foi originalmente publicada. Qualquer pessoa pode sugerir tópicos, mas a seleção do que será publicado é feita por uma equipe de editores. Cada um dos tópicos publicados será tema de um fórum de discussão e passará a receber comentários dos participantes. Aos comentários somam-se réplicas e tréplicas, resultando em uma das interfaces mais dinâmicas e interativas encontradas na Internet.

9- Não há uma palavra em português que signifique nerd. O Dicionário Aulete define assim o termo: “que é pouco sociável; que só quer saber de estudar ou trabalhar”. Informação disponível em: <http:// aulete.uol.com.br/nerd>. Acesso em: 24 fev. 2014.

Suas manchetes, de modo geral, reproduzem o que é notícia na área de tecnologia, com links para outros sites, e muitas vezes pautam outras publicações especializadas. Não à toa, seu slogan é “News for Nerds. Stuff that Matters” – algo como “Notícias para Nerds9. Aquilo que Importa”. Como tem entre seus participantes profissionais muito experientes, as notícias recebem comentários altamente qualificados, o que faz do site um lugar de referência na área. O estranho nome do site nasceu de uma brincadeira de Malda, que queria tornar o endereço impronunciável em inglês. Slashdot corresponde ao símbolo [/.], barra invertida

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e ponto, muito usado em programação. Desenvolvido por hackers e voltado para um público também hacker, o sucesso do site provavelmente está relacionado com a cultura que o rodeia. Malda acredita que seu modelo funciona tão bem provavelmente porque seus leitores são pessoas acostumadas a trocar centenas de e-mails por dia e a usar a Internet para discutir, compartilhar e produzir coisas.

SEU MODELO DE MODERAÇÃO DISTRIBUÍDA

10- As informações sobre o modelo de comunicação do Slashdot estão disponíveis em: <http://slashdot.org/ faq>. Acesso em: 24 fev. 2014.

11- Na avaliação dos comentários pelos moderadores é feita a atribuição de termos qualificativos para cada um deles, como por exemplo: provocativo; redundante; interessante; informativo etc. Pelo espaço limitado e por não ser relevante para nossa análise, esse aspecto não será abordado neste artigo.

O modelo de comunicação do site Slashdot10, tal como existe hoje, foi criado para administrar as discussões, inibindo as ações de provocadores e destacando os comentários relevantes. Existe um sistema randômico de moderação coletiva, para indexar os comentários de acordo com sua relevância num ranking que vai de –1 a +5, possibilitando vários níveis de leitura. No nível –1, a mais caótica, com todos os textos postados. No nível +5, a mais seletiva, só com as mensagens mais relevantes, segundo a avaliação dos moderadores11. A interface do site permite ao visitante escolher em qual dos níveis quer acompanhar a discussão, gerando dessa forma uma economia no excesso de informações disponíveis. Para dar conta da tarefa de indexação dos comentários, o sistema do site escolhe randomicamente 400 moderadores de cada vez entre os participantes registrados, de acordo com a participação, assiduidade, tempo como usuário registrado e qualidade das contribuições de cada um. Eles têm a função de pontuar os comentários, mas sua tarefa dura no máximo três dias ou até acabarem os cinco pontos que têm para distribuir. O sistema se encarrega de substituí-los automaticamente e a rotatividade é usada para dividir a responsabilidade entre um número maior de pessoas. Os moderadores também são monitorados pelos que estão entre os 92,5% mais antigos frequentadores do fórum, no que é chamado de meta-moderação. Esta é uma maneira de impedir que existam abusos de poder por parte dos moderadores. Os metamoderadores avaliam 10 moderações de cada vez, classificando-as como justas ou injustas. Os editores do site também podem atuar como moderadores e têm pontos ilimitados para isso. Completando o modelo de mediação da comunicação do site, um sistema de pontuação, chamado karma, monitora o comportamento de cada um, podendo variar entre Terrível; Ruim; Neutro; Positivo; Bom e Excelente. Seus critérios de avaliação incluem: a qualidade dos comentários postados; a frequência com que se visita o site; a participação com contribuições de notícias a serem discutidas; o número de vezes em que participa da moderação e da meta-moderação. E num efeito recursivo: a qualidade das moderações e meta-moderações que faz, e a avaliação que recebe dos parceiros na moderação e na meta-moderação. A soma de todos os itens resultará no karma. Seu objetivo é impedir que aqueles que só querem atrapalhar a conversa influenciem na moderação dos comentários – quem tem karma negativo não pode participar das tarefas de moderação e meta-

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moderação –, o que representaria a falência de todo modelo de comunicação. De acordo com informações contidas no site, o karma é um índice dinâmico que pode flutuar: um karma Excelente pode se transformar em Terrível, e vice-versa, dependendo do comportamento do participante. No entanto, não é tão simples conseguir reconquistar um índice positivo depois de ter chegado ao nível mais inferior, pois há o risco de se ficar preso a um círculo vicioso. Isto porque quem tem um karma negativo não pode participar das tarefas de moderação e meta-moderação, e não pode, portanto, incrementar sua pontuação pela realização dessas tarefas. É importante ressaltar que existem pesquisas que demonstram que, apesar de operarem em uma rede aberta e distribuída sem um controle central, o modelo do Slashdot apresenta uma tendência ao consenso (LAMPE; RESNICK, 2004) e ao fechamento de opinião (JOHNSON, 2002). Como se, por fazerem parte de uma comunidade que compartilha valores em comum, no caso os hackers, o público participante tendesse a cair em um pensamento de grupo, excluindo aqueles que têm ideias divergentes, mesmo que estas sejam bem fundamentadas e até mesmo relevantes para o debate. Não cabe aqui analisar em mais profundidade como se observa essa restrição, mas apenas pontuar a sua existência a fim de que se tenha uma ideia mais precisa das potencialidades e limitações desse projeto. 12- Endereço eletrônico em: <http://www.overmundo. com.br>.

De todo modo, vale ressaltar que o modelo de ranqueamento dos comentários criado pelo Slashdot serviu de inspiração para muitos outros projetos on-line, transformando-se mesmo em uma referência na qualificação das interações em rede. Há muitos exemplos dessa influência, como o website brasileiro Overmundo12, dedicado à cultura brasileira e produzido pelo próprio público, que se inspirou nesse modelo para criar seu sistema de avaliação coletiva das matérias.

PERFIS COLABORATIVOS

Na análise dos sistemas de moderação e meta-moderação do Slashdot, o que se quer ressaltar é a constituição de um sistema de controle distribuído, que funciona como um instrumento de modulação do comportamento de cada participante da comunidade. Seguindo a linha proposta por Lyon (2002), de que o monitoramento não é necessariamente negativo, e tendo como base a afirmação de Foucault (1999), de que o poder produz positividades e tem uma utilidade social, pode-se pensar que existam diferentes tipos de rastreamentos, relacionados a diferentes contextos e subjetividades. No caso do Slashdot, observamos a operação de um monitoramento colaborativo que ocorre em um patamar de igualdade, isto é, mutuamente, tendo em vista a preservação do bem comum, representado ali pela comunicação qualificada. Existe ainda outro aspecto que merece ser analisado. Conforme visto em relação aos perfis de consumo e risco, as informações armazenadas em perfis de banco de dados têm a função de modular acessos de consumo e cidadania. No caso do Slashdot, o perfil de karma tem também a utilidade de modular as fronteiras da comunidade. Por um lado, é

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observada a tendência à exclusão daqueles que não se comportam da forma esperada ou não seguem as regras daquela comunidade. Por outro, há uma significativa tendência à homogeneidade, com pouco espaço para opiniões divergentes. Isto leva a pensar que o monitoramento mútuo, nesse caso, também opere como um modulador de inclusão e exclusão de integrantes aptos a participar das discussões, o que é coerente com os princípios, já citados, para a sustentabilidade de comunidades cooperativas, elencados por Ostrom (1990). O karma, seguindo essa linha de raciocínio, pode ser visto como um perfil colaborativo. Suas funções preditiva e preventiva são evidentes: funciona como um banco de dados que, com base nas ações passadas dos participantes, distingue aqueles que estão aptos a participar das tarefas de moderação e meta-moderação. Desse modo, impede que aqueles que atuam de forma nociva nas discussões participem de sua qualificação. Paralelamente, atua como uma barreira modular que restringe acessos e define as exclusões, ajudando a definir os limites da comunidade. Assim, esse perfil colaborativo é um elemento basilar de uma sofisticada tecnologia de cooperação que viabiliza a sustentabilidade da comunicação em uma plataforma colaborativa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os ambientes colaborativos existentes no meio digital se apresentam como um objeto de estudo desafiador na medida em que não se encaixam nas tradicionais abordagens teóricas sobre os meios de comunicação. Com estruturas distribuídas em rede e dinâmicas produtivas auto-organizadas, pedem instrumentos de análise que possam dar conta de sua complexidade, evitando os extremos do estranhamento por sua diferença ou do deslumbramento por sua novidade, a fim de se aproximar do entendimento de suas características, potencialidades e limites. Neste artigo, apresentamos uma contribuição à pesquisa sobre as plataformas colaborativas através da análise da articulação entre dois vetores aparentemente contraditórios: a cooperação e o controle. Propomos pensar o controle não necessariamente como um elemento externo que se exerce sobre indivíduos, mas como um elemento partícipe de uma interação, exercido não só com a aquiescência dos sujeitos envolvidos, mas também com seu próprio engajamento na tarefa de monitoramento. Dessa forma, o controle pode ser pensado como parte das tecnologias de cooperação e um instrumento necessário à sustentabilidade de comunidades virtuais colaborativas.

REFERÊNCIAS

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Cooperação e controle nas dinâmicas de auto-organização em plataformas colaborativas - Beatriz C. Martins

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A INFLUÊNCIA DA OPINIÃO PÚBLICA NO DESENVOLVIMENTO DO PROJETO DE CROWDFUNDING VERONICA MARS: UMA APROPRIAÇÃO CONTROVERSA LA INFLUENCIA DE LA OPINIÓN PÚBLICA SOBRE EL DESARROLLO DEL PROYECTO DE CROWDFUNDING VERONICA MARS: UNA APROPRIACIÓN CONTROVERTIDA THE INFLUENCE OF PUBLIC OPINION ON THE DEVELOPMENT OF THE CROWDFUNDING PROJECT VERONICA MARS: A CONTROVERSIAL APPROPRIATION

Daniel Reis SILVA Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais. Bolsista CAPES Email: daniel.rs@hotmail.com.br

Leandro Augusto Borges LIMA Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Graduado em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais. Bolsista CAPES. Email: leandroablima@gmail.com

Revista Eptic Online Vol.16 n.2 p.127-142 mai-ago 2014 Recebido em 27/02/2014 Aprovado em 10/04/2014


A influência da opinião pública no desenvolvimento do projeto de crowdfunding - Daniel R. Silva; Leandro B. Lima

Resumo O trabalho versa sobre como o crowdfunding, uma prática de financiamento coletivo realizado pela internet que congrega valores da cibercultura, começa a ser apropriado por conglomerados da indústria do entretenimento, deixando de lado ideias de colaboração e democratização para assumir contornos de uma estratégia de influência na opinião pública. Para tanto, realiza uma análise do caso Veronica Mars, identificando, a partir de uma literatura de propaganda, algumas das lógicas de influência que perpassam o episódio.

Palavras-chave Crowdfunding; Cibercultura; Propaganda; Opinião Pública; Veronica Mars

Resumen La ponencia analiza cómo el crowdfunding, una práctica de la financiación colectiva llevada a cabo por Internet y que reúne los valores de la cibercultura, comienza a ser utilizada por la industria del entretenimiento, dejando de lado las ideas de colaboración y la democratización para asumir contornos de una estrategia de influencia en la opinión publica. El estudio presenta un análisis del caso Veronica Mars para identificar, a partir de una literatura de propaganda, parte de la lógica de la influencia que impregna el episodio. Palabras clave Crowdfunding; Cibercultura; Propaganda; Opinión Publica; Veronica Mars

Abstract The paper discusses how crowdfunding, a practice of collective financing conducted via internet influenced by the values of cyberculture, begins to be used by the entertainment industry, leaving aside ideas of collaboration and democratization to take outlines of a strategic influence in public opinion. The study presents an analysis of the case Veronica Mars, identifying, from a propaganda literature, some of the logic of influence that pervades the episode. Keywords Crowdfunding; Cyberculture; Propaganda; Public Opinion; Veronica Mars

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A influência da opinião pública no desenvolvimento do projeto de crowdfunding - Daniel R. Silva; Leandro B. Lima

Cibercultura e Valores

Dos diversos autores da cibercultura, Pierre Levy (1999) é aquele que traz uma das melhores definições deste termo, conjugando os avanços tecnológicos e novos modos de pensar que organizam outra forma de se perceber o mundo e de agir neste. Não é negar ou abdicar das outras culturas, mas a realização de que estas compõem e são compostas por um cenário contemporâneo em que o ciberespaço ocupa um papel central na sociedade, formando a cibercultura. Perceber a cibercultura é perceber o “cultivo do mundo, nós incluídos, em termos cibernéticos” (RÜDIGER, 2011, p.10). E este cultivo se dá de forma reflexiva, se constrói pela comunicação em seus vários níveis e caminhos – dos homens com os homens, dos homens com as máquinas, das mediações tecnológicas etc. Não podemos, no entanto, olhar para a cibercultura sem pensar nos valores ali presentes – ou melhor, nos valores conferidos à cibercultura – pequenas palavras que se tornam recorrentes no linguajar do ciberespaço como a participação e a colaboração, a conectividade e a democratização, ou mesmo o individualismo e o conservadorismo, e que se configuram como valores convocados nos discursos sobre a cibercultura. Rüdiger (2011) aponta que três correntes de pensamento são predominantes: os populistas tecnocráticos, os conservadores midiáticos e os cibercriticistas. Cada uma destas correntes aciona diferentes valores para pensar a cibercultura e como esta afeta a sociedade. Nossa perspectiva de valores, entendidos como referências culturais que regem as relações dos sujeitos com o mundo, orientando nosso viver neste (ALMEIDA, 2012), nos permite perceber que os valores da cibercultura são acionados pelos sujeitos que experienciam o ciberespaço e seus caminhos de hiperlinks. Os valores conferidos à cibercultura de forma alguma significam que antes da existência desta não fôssemos uma sociedade que valorizasse a participação ou a colaboração. Pelo contrário: nosso desenvolvimento social, cultural e econômico sempre teve como base fundamental a ação coletiva, o crescimento cooperativo e uma busca por sistemas mais democráticos de governo, pautando necessidades individuais e também coletivas. Ao observar tais valores exclusivamente na cibercultura, o que pretendemos é ressaltar, como bem disse Yochai Benkler (2011), que há uma mudança cultural proporcionada pela adesão destes valores ao imaginário da cibercultura que “produziram uma cultura de cooperação impensável há cinco ou dez anos atrás” (p.13). Assim, valores já presentes na vida social são potencializados com a cibercultura, que permite que nos organizemos de maneira mais rápida, barata e democrática (SHIRKY, 2011) e que trabalhemos nosso excedente cognitivo em projetos que façam parte dessa cultura colaborativa e participativa (SHIRKY, 2012). Na prática do crowdfunding, objeto deste artigo, acreditamos que tais valores conferidos são, simultaneamente, possibilitadores da existência desta prática e apropriados por ela para que sejam acionados pelos seus participantes.

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Crowdfunding: um sistema cooperativo-comunicativo de produção-consumo

Conhecida no Brasil como financiamento coletivo, o crowdfunding é uma prática que se pauta na mobilização das pessoas para que estas colaborem com os projetos criados e depositados em plataformas online como a brasileira Catarse. Em geral, falamos de projetos de cunho independente, que dificilmente conseguiriam se materializar de outra forma, seja pela dificuldade burocrática das leis de incentivo à cultura, seja pela ausência de interesse por parte das empresas que compõem a indústria cinematográfica, de quadrinhos ou fonográfica. O crowdfunding guarda semelhanças com práticas comuns da vida social, como a vaquinha e a ação entre amigos. De fato, podemos pensar o mesmo como a versão moderna e mais bem elaborada destas, uma prática que se aproveita das tecnologias da informação e, principalmente, dos valores conferidos à cibercultura e que operam para o estabelecimento de uma forte cultura de participação. O crowdfunding efetiva-se através de uma tríade relacional e interdependente. Desta tríade fazem parte as plataformas, responsáveis pelas normas de funcionamento e pelo fornecimento da arquitetura de informação e participação da prática; os proponentes, que precisam captar os recursos para algum projeto; e os colaboradores, vértice mais polivalente da tríade, responsável direto pelo sucesso ou fracasso do projeto, agindo simultaneamente como produtor e consumidor. Existem diversos modelos de crowdfunding, como o equity e o de caridade, mas neste artigo nosso foco recai sobre o chamado modelo de recompensas, em que os apoiadores dos projetos recebem algo em troca de sua ajuda financeira. A maioria dos sites de crowdfunding de recompensa atuam no sistema tudo ou nada: os proponentes do projeto e a plataforma só recebem o valor arrecadado caso a meta seja alcançada. Caso isto não ocorra, o valor investido pelos colaboradores retorna e eles podem reinvesti-lo em outros projetos na mesma plataforma ou ter o dinheiro depositado de volta em sua conta bancária. Numa perspectiva global, é possível perceber a relevância das plataformas de crowdfunding focadas no modelo de recompensas. O site crowdsourcing.org, que concentra informações a respeito de crowdsourcing, crowdfunding e outras práticas correlatas, conta atualmente em sua base de dados com 768 registros de sites de plataformas de crowdfunding no mundo. O supracitado Catarse, mas também os sites Kickstarter, RocketHub, GoFundMe, Ulele, dentre outros, se estabeleceram como plataformas confiáveis, sendo o principal deles certamente o Kickstarter. Alguns projetos ali alocados arrecadaram milhões de dólares em apenas um dia – como o projeto do filme Veronica Mars, que aqui analisaremos – ou conseguiram bater e superar a meta em mais de 1.000% do valor inicialmente solicitado, como o caso do relógio inteligente Peeble. Não podemos negar que, por qualquer ângulo que se observe e recorte que se faça, o crowdfunding é, essencialmente, uma prática econômica. Ele consiste, invariavelmente, na troca de um produto por outro. No caso, de dinheiro por outra coisa que pode ser um

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produto, um ingresso de show, uma realização pessoal etc. Compreender o crowdfunding passa por não ignorar sua dimensão econômica como uma prática de consumo. Porém, é uma prática contemporânea que funciona de forma diferente do tradicional, principalmente na proposição de um processo em que a cooperação é a base fundamental, bem como a diluição do abismo entre produtor-consumidor. Podemos afirmar que a prática se enquadra nos preceitos do consumo colaborativo conforme proposto por Rachel Botsman e Roo Rogers (2010), sendo um modo de consumo diferenciado, sustentável e cooperativo que “não é mais uma atividade assimétrica de aquisição sem fim, mas uma relação dinâmica de dar e colaborar para conseguir o que você quer” (BOTSMAN, ROGERS, p. 202). O risco, porém, é reduzir o processo à esfera do consumo, motivo pelo qual acreditamos que o financiamento coletivo é melhor caracterizado como um sistema cooperativo, o que para Benkler (2011) consiste em um modelo de relações econômicas, sociais, trabalhistas e consumistas que se pauta não por um sistema hierárquico, de ordens e punições, movido puramente pelo egoísmo humano, mas um sistema cuja base de ação se dá pela cooperação. É a transição do leviatã hobbesiano para o pinguim do Linux, um sistema em que o lucro, a recompensa, os outcomes necessários a uma sociedade capitalista advêm do engajamento e não do controle (BENKLER, 2011). A web exerce papel fundamental, hoje, no estabelecimento desse sistema cooperativo, facilitando a produção de pares (peer production) e a cooperação entre os sujeitos. Consideramos que o crowdfunding se estabelece então como um sistema cooperativocomunicativo de produção-consumo, um modo de fazer particular cuja base cooperativa é também comunicativa na medida em que depende da relação entre os vértices da tríade; em que a interação exerce papel fundamental e os papéis de produtor e consumidor não são mais fronteiriços e sim compartilhados. Projetos que apostam na formação de vínculos e na abertura à participação dos colaboradores tendem a ter mais sucesso. Isto é possível pela construção de um sistema horizontal, em que o processo se pauta pela interação constante e fluida em que todos os envolvidos se sintam engajados e participantes de um processo de criação e não apenas de consumo. Neste sentido, as alavancas de um sistema cooperativo conforme apontadas por Benkler – a comunicação, justeza, reputação, moralidade, enquadramento, reciprocidade dentre outros – são condicionantes ao funcionamento do crowdfunding como uma prática balizada pelos e propagadora dos valores da cibercultura. Destas alavancas apontadas por Benkler nos interessam especialmente as relacionadas à percepção de justeza que envolve a prática. Tomar o processo de crowdfunding como justo é resultado da honestidade e transparência do proponente e da plataforma, da reputação destes perante os potenciais colaboradores. É principalmente através do estabelecimento de um processo justo e transparente que o sistema cooperativo-comunicativo do financiamento coletivo consegue se estabelecer como prática colaborativa do ciberespaço. Benkler define três instâncias de justeza: dos resultados, das intenções e do processo. A primeira diz respeito à dinâmica das recompensas. No crowdfunding esperamos que os valores com que contribuímos sejam condizentes com as recompensas oferecidas, materiais ou simbólicas, ainda que aqui o conceito de equidade financeira seja maleável: o valor

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da contribuição no crowdfunding agrega elementos diferentes. Importamo-nos menos de pagar mais caro num CD nesse tipo projeto do que indo à loja, pois a prática propõe outro tipo de relação. A percepção do que é justo quanto aos resultados varia de situação para situação e depende de fatores particulares, como a transparência do processo e as expectativas em relação à situação enfrentada. Não há uma definição universal e única para o que consideramos justo: “diferentes conceitos de justeza podem levar a distribuições radicalmente diferentes, todas passíveis de justificativa naquele contexto, e cada uma podendo ter diferentes implicações para todos os envolvidos” (BENKLER, 2011, p. 87). Não só a perspectiva de justeza e as expectativas quanto aos resultados são variáveis, mas também a intencionalidade dos envolvidos no processo, algo muito importante na relação triádica que se estabelece na prática de financiamento coletivo. Projetos colaborativos como os que caracterizam o modelo de recompensas do crowdfunding são, em geral, sonhos, projetos e invenções pessoais que querem ser lançadas ao mundo. Há uma forte presença do proponente e suas intenções com o projeto que devem ser percebidas pelos colaboradores como justas. A transparência no processo, marcada pela sinceridade das intenções, honestidade na sua condução e credibilidade do proponente e da plataforma, é fundamental para gerar confiança e empatia nos potenciais apoiadores. A justeza das intenções e do processo influem no que esperamos quanto às recompensas: “quando acreditamos que os sistemas que habitamos nos tratam com justeza, estamos inclinados a cooperar mais efetivamente” (BENKLER, 2011, p. 155). Um projeto que vise claramente um ganho desproporcional por parte do proponente, com recompensas que sejam incoerentes com a proposta e as possibilidades do autor do projeto, pode ser visto com desconfiança e não atrair colaboradores. É difícil medir questões como a motivação intrínseca dos sujeitos para participação; elas podem ser de diferentes ordens e é difícil construir um sistema que as atenda plenamente. Contudo, nosso senso acerca do que é justo parte dos nossos valores. Importamo-nos com eles e com um senso de moralidade e retidão. Benkler acredita que valores podem ser compartilhados e apropriados pelos participantes de um sistema cooperativo, “de maneira simples, discutir, explicar e reforçar o que é a coisa certa ou ética a se fazer em determinada situação vai aumentar o grau de pessoas se comportando daquela maneira” (BENKLER, 2011, p.156). Tais códigos de valores empregados para um bom sistema cooperativo não devem se basear em preceitos morais ou regras, mas em normas sociais, mais maleáveis e aceitas através do tempo. Elaborar um projeto de financiamento coletivo que seja de fato justo não é uma tarefa das mais fáceis. Pensando em termos da experiência que esta prática propõe aos sujeitos, a justeza do processo interfere nos modos de experienciar o crowdfunding, pois diz das relações que serão estabelecidas (ou rompidas) entre a tríade relacional. O crowdfunding propõe aos envolvidos uma experiência singular e compartilhada, que posiciona os colaboradores como protagonistas do processo, exercendo um duplo papel de consumidor-produtor que traz ao proponente a oportunidade de criar em conjunto com seus colaboradores. Mas o que acontece quando este sistema e esta experiência é apropriada sub-repticiamente como uma estratégia por grandes corporações do entretenimento?

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Veronica Mars: estabelecendo recordes, abrindo precedentes

1- Fandoms são grupos de fãs de determinado produto cultural, porém mais organizados e envolvidos que fã-clubes. Uma característica peculiar dos fandoms está na sua dedicação a criar novas manifestações de produtos culturais (JENKINS, 2009).

Recentemente, um caso de crowdfunding ganhou manchetes mundiais e se tornou um dos maiores exemplos sobre o alcance e o impacto da prática no mundo contemporâneo: a tentativa de financiamento do filme Veronica Mars. Originalmente um seriado criado por Rob Thomas e que contou com apenas três temporadas, sendo sua estreia em setembro de 2004 no canal UPN, e o seu derradeiro episódio no canal The CW em 2007, Veronica Mars não foi uma série de sucesso estrondoso de público. Desde o início, a série – que gira em torno de uma detetive adolescente interpretada por Kirsten Bell – teve que se equilibrar entre números modestos de audiência e um custo elevado de produção, um cenário em que a lucratividade daquele seriado era constantemente questionada e a ameaça de cancelamento iminente. Durante sua exibição, porém, Veronica Mars criou um nicho de fãs – os marshmellows – que, juntamente com o autor e criador da série, se viram órfãos com o cancelamento da mesma em 2007 e insatisfeitos com o final daquela história. Desde então, Veronica Mars acumulou ainda mais fãs e se tornou cult graças à internet e ao fortalecimento do fandom1 das marshmellows, ao mesmo tempo em que diversas sugestões de filmes e continuações foram cogitadas e debatidas, mas sem sucesso em atrair o interesse da Warner Bros.2, detentora dos direitos da série, em dar continuidade à franquia.

2- A Warner Bros. é um dos membros do chamado Big Six, o grupo dos seis maiores estúdios de cinema e entretenimento do mundo. Em 2012, a Warner ficou em segundo lugar no mercado americano e canadense de cinema, arrecadando mais de um bilhão e meio de dólares nas bilheterias. Números disponíveis em < http://www.thenumbers.com/market/2012/ distributors>, acesso em 23 de fev. de 2014.

Foi a partir desse cenário que o criador da série Rob Thomas lançou em março de 2013 um projeto para a realização do filme Veronica Mars por meio do Kickstarter, prevendo inicialmente a arrecadação de dois milhões de dólares. A iniciativa, que contava com a vinculação de praticamente todo o elenco original, teve sucesso estrondoso e imediato, com o projeto arrecadando a meta inicial em menos de dez horas. Nos dias seguintes, Veronica Mars estava onipresente na mídia, com matérias que iam desde entrevistas com o elenco e retrospectivas sobre a série até longos textos que apontavam como o projeto estava quebrando as barreiras da produção cultural, escrevendo uma nova página na história dos recordes do crowdfunding e levando as ideias de colaboração e participação na internet a novos patamares. O projeto se tornou o caso de crowdfunding com maior número de apoiadores até hoje no Kickstarter, reunindo 91.585 pessoas que contribuíram para que mais de U$ 5.700.000 de dólares fossem arrecadados. Ao mesmo tempo em que se tornava um símbolo da nova produção colaborativa, algumas pessoas começaram a questionar determinados aspectos do projeto e apontar para incoerências naquela iniciativa. A primeira que chamou a atenção foi o custo do projeto e o orçamento inicial de dois milhões de dólares, um valor considerado muito baixo para a produção de um longa-metragem como aquele, filmado na Califórnia e com um grande número de atores envolvidos. Esse valor era ainda mais suspeito quando se observava que em 2007, ano no qual a série Veronica Mars foi cancelada, cada episódio de 42 minutos do seriado custava em média um milhão e oitocentos mil dólares (VANAIRSDALE, 2013). A questão do valor orçado do filme foi acompanhada por outros questionamentos sobre um aspecto central do modelo do Kickstarter: as recompensas, em especial o valor que seria gasto com estas. Oferecendo uma grande gama de recompensas físicas – desde ca-

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misetas exclusivas para aqueles que contribuíssem com pelo menos vinte e cinco dólares, além de DVDs e Blu-Rays, pôsteres autografados pelo elenco principal, boxes de DVDs com todas as temporadas da série, jantares com os atores do filme e sessões exclusivas para até cinquenta convidados na estreia do longa – alguns começaram a se perguntar sobre a viabilidade daquele projeto, e se realmente os fãs que produziriam o filme. Jornalistas como S.T. VanAirsdale (2013) fizeram cálculos médios do gasto das recompensas prometidas, observando que os custos para a manufatura e envio de mais de setenta mil camisetas, cinquenta mil DVDs, três mil boxes da série e todo o restante significaria um golpe enorme no orçamento do filme, diminuindo e muito o valor arrecadado. Questionado sobre o assunto, Rob Thomas, criador da iniciativa, afirmou que, nas estimativas da equipe, se o projeto tivesse arrecadado os dois milhões de dólares iniciais, cerca de seiscentos mil dólares teriam que ser gastos apenas com as recompensas (THOMAS, 2013a). Ou seja, o filme teria um orçamento total com um valor bastante inferior ao que cada episódio da série demandava sete anos antes, sendo difícil imaginar como as contas fechavam para permitir que o filme fosse, de fato, materializado. Todas essas suspeitas convergiam para uma questão central: qual era efetivamente o papel da Warner naquele episódio? No texto do projeto no Kickstarter, a Warner era citada originalmente em três momentos. Na primeira citação, Rob Thomas afirmava que a Warner não estava convencida a investir em um novo projeto de Veronica Mars, e por isso aquele Kickstarter era necessário. Na segunda, a afirmação era que a Warner era proprietária dos direitos de Veronica Mars, mas que eles haviam concordado em permitir que aquele projeto tentasse suas chances por meio do crowdfunding. Finalmente, em um terceiro momento, ao abordar os riscos do projeto, um ponto obrigatório naquela plataforma, o texto afirma que a Warner iria ajudar a distribuir o filme. Nos dias seguintes ao início do projeto, porém, as coisas ficaram consideravelmente mais complicadas no que tange à participação da Warner no caso. Em entrevistas, Rob Thomas (THOMAS, 2013a; 2013b; 2013c) esclareceu que a Warner seria a única responsável pela distribuição e marketing do filme – o que significa que a arrecadação do filme nas bilheterias e após seu lançamento seria do estúdio –, além de estar também encarregada de todas as questões relacionadas com as recompensas. Mais ainda, a Warner estava envolvida em todos os momentos daquela iniciativa desde 2012, quando ela começou a ser pensada, mantendo contato diário com Thomas. Na questão financeira, a Warner seria a responsável por gerir os recursos arrecadados pelo projeto, além de Thomas comentar sobre a possibilidade de o estúdio auxiliar o orçamento do filme. No total, Thomas disse ter a expectativa de que a Warner faça lucros com o filme, até porque eles investirão muito no longa e que, até aquele momento, eles eram parceiros satisfeitos (THOMAS, 2013b). Tais informações tornaram o projeto alvo de diversas críticas sobre como a Warner, um estúdio bilionário, estaria subvertendo a prática de crowdfunding. O próprio Thomas, quando questionado sobre o assunto, defendeu a Warner, afirmando que o valor das recompensas oferecidas compensava por si o investimento nelas, de maneira tal que os fãs da série não estavam dando dinheiro para a Warner em última instância (THOMAS, 2013c). Outros diretores também comentaram sobre o assunto: Joss Whedon, por exem-

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plo, afirmou entender aquelas críticas, já que de alguma forma a presença do estúdio fazia a situação parecer menos pura, um pouco mais enganosa (WHEDON, 2013). Retornaremos a alguns pontos do debate sobre as consequências dessa apropriação da prática por parte da Warner ao final do artigo, mas primeiro acreditamos ser necessário refletir sobre a apropriação em si e as lógicas envolvidas na mesma. Dessa forma, abordaremos não o ponto de vista financeiro, mas sim uma perspectiva comunicacional relacionada, principalmente, com a influência na opinião pública.

Propaganda, crowdfunding e a influência na opinião pública

No intuito de aprofundarmos a reflexão sobre a apropriação do crowdfunding por um estúdio como a Warner e as lógicas a partir das quais tal fato opera na tentativa de influenciar a opinião pública, nos parece propício recorrer a uma literatura que aborda práticas marcadas por uma atuação semelhante à que observamos no caso tratado: uma literatura clássica sobre relações públicas e propaganda. São trabalhos que buscam entender e explorar as práticas persuasivas da propaganda, elucidando algumas das lógicas pelas quais elas se orientam para influenciar a opinião pública e refletindo sobre os efeitos das mesmas na sociedade e na esfera pública (BERNAYS, 2005; 2011). Nossa proposta é reconhecer que no caso apresentado operam lógicas similares às existentes em diversas das práticas de propaganda voltadas para influenciar a opinião pública. Destacamos, em especial, três dessas: a ocultação de intenções, a criação de um novo revestimento simbólico e a tentativa de pautar a mídia e as conversas cotidianas. A lógica primordial que observamos no caso de Veronica Mars se assemelha com o ponto apresentado por Edward Bernays (2005) sobre a atuação indireta do propagandista – algo relacionado, em última instância, com o reconhecimento de que existem diferentes potenciais de influência a partir do autor de determinada fala. O que Bernays observa é que não é apenas a amplitude da circulação de uma ideia na sociedade que importa para influenciar a opinião pública, mas também a credibilidade de quem a defende. Nesse sentido, há uma desconfiança natural em relação àqueles que possuem interesses claros atrelados ao assunto. Uma ideia terá impacto potencialmente maior quando aparentar ser originária de fontes “neutras” ou respeitadas. O autor defende uma abordagem indireta para influenciar a opinião pública, que coloca as ideias em circulação a partir de líderes de grupos, personalidades, especialistas e veículos de comunicação reconhecidos. A partir de tal observação, Bernays popularizou um artifício que visava aumentar a capacidade do profissional de propaganda e relações públicas exercer influência: a criação de institutos, associações e grupos de suporte supostamente independentes que podem, mantendo oculta sua natureza, divulgar e defender ideias como uma parte “neutra” ou voltada apenas para o interesse público – uma prática que ficou conhecida como front

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groups. Tal aspecto figura entre os principais pontos da crítica de Habermas sobre as relações públicas e as consequências sociais de suas práticas. O filósofo alemão identifica o elemento chave da atividade justamente no fato do emissor esconder “suas intenções comerciais sob o papel de alguém interessado no bem comum” (HABERMAS, 1984, p. 226). Para tanto, é mandatório que suas práticas não sejam reconhecidas como uma representação de um interesse privado, devendo ser criada a “ilusão” de que se trata de algo de interesse público, dotado de uma autoridade como se tal interesse fosse gerado espontaneamente por pessoas privadas como um público. Podemos pensar que o caso de Veronica Mars opera de forma semelhante a tais pressupostos – trata-se de uma tentativa de apresentar uma ideia ocultando sua fonte, aumentando assim seu potencial de influenciar a opinião pública ao não dar visibilidade aos interesses particulares existentes por detrás da mesma. As intenções e a participação da Warner são ocultadas, mantidas longe dos holofotes públicos. O projeto é assinado pelo criador Rob Thomas, e, como vimos anteriormente, existem apenas três menções ao estúdio na página do projeto no Kickstarter, sendo que a primeira delas ainda estabelece um distanciamento do projeto perante a Warner, afirmando que o estúdio não teve interesse de investir naquela ideia. Ao mesmo tempo em que o papel da Warner é ocultado, a participação do público é exaltada por meio da noção de que os apoiadores é que farão o filme acontecer, que tudo está nas mãos do público – dessa forma, mais ainda do que ocultar os interesses originais da mensagem, tal prática tenta revestir a mesma com um caráter público, já que é um público que é colocado em primeiro lugar. Importante notar que a afirmação de que o projeto dependia do público não é, por si, totalmente uma mentira. Provavelmente a Warner não investiria no filme se ele não tivesse conseguido atrair a atenção do público. Porém, tal afirmação não conta toda a história sobre a situação, já que o filme é também dependente da atuação do estúdio mesmo conseguindo sua meta de colaborações. Se a Warner viesse a público e criasse ela mesma a página daquele projeto, afirmando que os fãs teriam que contribuir para a produção de um filme cujos lucros seriam todos dela, a recepção pública da iniciativa certamente seria muito diferente – como de fato se tornou em alguns círculos após os indícios que apontavam para o real papel do estúdio na iniciativa. A segunda lógica que identificamos está diretamente relacionada com a ocultação de intenções: a criação de um novo revestimento simbólico para aquela ação. É um fator que Bernays (2011) também trabalhava e que surge em decorrência da manutenção das intenções originais em um segundo plano – isso permite reconfigurar ações e opiniões com uma nova roupagem simbólica, novos elementos e valores. Bernays trabalhava principalmente com a ideia de revestir algo privado com uma roupagem de um interesse público. No que tange ao caso Veronica Mars, porém, podemos argumentar que tal roupagem segue uma direção distinta, menos relacionada com interesses públicos e mais com valores. Como observamos anteriormente, o crowdfunding é uma prática tanto portadora quanto difusora dos valores da cibercultura, aliando ideias de colaboração, participação e demo-

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cratização ao desenvolvimento tecnológico, apontando para modos de fazer distintos e particulares. São justamente essas características que estão em jogo quando um grande estúdio de cinema se apropria de tal prática. No caso, o projeto do filme Veronica Mars ganhou uma nova roupagem como algo colaborativo, algo que estaria democratizando a produção cinematográfica graças à participação direta dos sujeitos ordinários. A imagem do projeto – entendida como a percepção dos sujeitos sobre o mesmo –, é profundamente afetada por essa roupagem simbólica, gerando uma nova maneira de olhar aquela situação. A alteração dessa percepção dos sujeitos reverbera também na forma com que estes se posicionam perante aquele acontecimento, impactando diretamente na própria mobilização dos públicos ao redor do projeto. Muitas pessoas que não eram fãs de Veronica Mars apoiaram massivamente a iniciativa devido a tal roupagem. A maior contribuição ao projeto, no valor de dez mil dólares – o que garantirá para o apoiador não apenas participar do longa-metragem, mas também ter uma fala na cena em questão –, foi realizada pelo americano Steve Dengler, que afirma não ser um profundo seguidor da série, mas sim um grande entusiasta do crowdfunding, prática que em sua visão permite uma maior autonomia para os artistas e limita o poder de estúdios, executivos e produtores (BUSIS, 2013). Ou seja, a ideia de que o projeto é colaborativo, participativo e democrático funciona como um importante catalisador para o movimento dos públicos. A terceira lógica que identificamos diz respeito à capacidade daquele acontecimento ou ação pautar a mídia e as conversações cotidianas. Esse é um ponto de crucial importância para a influência na opinião pública, já que tanto as mídias como as conversações estão no cerne do processo que acaba por formar o que as pessoas acreditam (GAMSON, 1992). Bernays (2005) foca grande parte de suas atenções na tentativa de compreender como a propaganda busca conquistar esse espaço, reverberar na mídia e nas conversações. Podemos observar como, ao ocultar os interesses privados da Warner e revestir o projeto com uma roupagem simbólica relacionada com os valores do crowdfunding, aquela iniciativa conquistou grande visibilidade. A narrativa ao redor de um filme daquele tamanho, rejeitado pela Warner e realizado por meio da participação e contribuição dos fãs, se tornou um aspecto central do apelo midiático do projeto, bem como das conversações sobre ele. Ele estava cercado de um apelo do novo, já que até então nenhum projeto de filme havia utilizado o crowdfunding de maneira tão ambiciosa. Os recordes conquistados, principalmente os de projeto mais rápido do Kickstarter a conseguir um e dois milhões de dólares, e os diversos atores envolvidos naquela produção, ajudaram a multiplicar os atrativos e a fazer com que Veronica Mars pautasse jornais, revistas e sites de todo o mundo. Não é difícil imaginar que sem aquela roupagem a reverberação do filme seria sensivelmente menor. Afinal, não se trata de uma grande produção, nem de uma série que foi um enorme sucesso na televisão ou considerada universalmente amada. Se o filme fosse simplesmente anunciado, ele teria provavelmente gerado algumas notas em sites de entretenimento e sumido até que um trailer fosse exibido. Ele não se tornaria elemento central de pauta de veículos como a Forbes (TASSI, 2013) e diversos jornais americanos – conquistando visibilidade inclusive no Brasil, com reportagens como a Revista Veja (FURQUIN,

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2013). Para a Warner e para os envolvidos no filme, a visibilidade gerada pelo projeto foi um ganho inimaginável, fazendo com que Veronica Mars se tornasse um símbolo muito maior do que a série jamais foi e influenciasse a opinião pública de uma maneira muito mais contundente.

Refletindo sobre consequências

De posse de uma compreensão mais aprofundada sobre algumas das lógicas envolvidas na apropriação do crowdfunding por um dos maiores estúdios de cinema do mundo, é hora de retornarmos a discussão sobre as consequências de tal acontecimento e refletir sobre o que o projeto do filme Veronica Mars de fato significou. Perante as acusações de que o tal projeto era uma subversão da lógica do crowdfunding pela Warner, em especial afetando a elaboração de um processo considerado justo dentro da lógica de um sistema cooperativo-comunicativo, o principal ponto levantado pelos defensores do projeto está relacionado com o aumento do alcance e da visibilidade da própria prática do financiamento coletivo. O argumento central é que tal sistema não se trata de um jogo de soma zero, e que o projeto do filme de Veronica Mars teve uma enorme importância em atrair olhares para o Kickstarter, sendo inclusive um ponto de partida para que novos usuários tenham contato com aquela experiência e se tornem apoiadores de outros projetos menos conhecidos. Segundo uma declaração do próprio Kickstarter, 63% dos apoiadores do projeto de Veronica Mars eram novos usuários na plataforma, sendo que muitos deles retornaram para contribuir com outros projetos, afirmando em seguida que na realidade do crowdfunding é possível que alguém ganhe sem que outra pessoa perca (ADLER; CHEN; STRICKLER, 2013). É importante, porém, frisar que essa postura otimista deixa de lado instigantes questões trazidas por tal apropriação, especialmente sobre uma eventual polarização do crowdfunding. Em primeiro lugar, o argumento de que o financiamento coletivo não é um jogo de soma zero possui também um contraponto. Enquanto é verdade que um projeto como Veronica Mars traz uma série de novos apoiadores que poderão apoiar iniciativas menores, é importante considerar que existe um limite financeiro no investimento dos sujeitos, ou no excedente financeiro a disposição para esse tipo de contribuição. Quando um projeto consegue captar uma soma enorme de recursos, outros projetos não estão conseguindo tal investimento, pois há uma sobrecarga do sistema cooperativo – é impossível contar com a cooperação constante de todos os sujeitos dentro do sistema. A balança pesa contra o mais fraco, os projetos menores, que podem ser alvo de menos investimento dos potenciais colaboradores. Um segundo ponto a se notar é a questão da visibilidade. Para que os projetos de crowdfunding aumentem sua probabilidade de sucesso é necessário que eles sejam notados pelos públicos, que eles se tornem visíveis. A visibilidade e a atenção dos sujeitos são recursos escassos, pelos quais os projetos devem batalhar. Mas um projeto como Veronica

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Mars tem nesse campo diversas vantagens, especialmente por ter à disposição a estrutura de comunicação do estúdio que é parceiro na iniciativa. Apesar de a Warner ter se mantido por detrás dos panos, a “musculatura” de comunicação do estúdio permanecia em jogo – minutos após o início do projeto no Kickstarter ele já era notícia em alguns dos principais veículos de comunicação do mundo. Além do relacionamento com a imprensa, no dia seguinte ao início do projeto, a Warner liberou todos os episódios da série para streaming gratuito, gerando mais notícias e visibilidade para o projeto. Um cenário prejudicial para projetos menores se forma, já que eles devem competir com um conhecimento técnico especializado de comunicação. Além disso, o caso Veronica Mars tensiona a ideia de justeza sobre o processo, algo que, como vimos, é fundamental para o funcionamento de um sistema cooperativo-comunicativo. O projeto muda a forma de percepção de justeza dentro da prática ao instaurar novos patamares de recompensas – a iniciativa trazia um grande número de recompensas, principalmente materiais, o que acarreta um grande aumento de gastos. Um conflito constante dos projetos de crowdfunding é dosar as recompensas ao mesmo tempo em que desenvolvem o seu projeto. O que muitos desses não possuem é um estúdio bilionário responsável por cuidar dessas recompensas, permitindo que essas sejam muito mais chamativas. Perante tais recompensas, outros projetos se vêm em uma situação em que devem aumentar sua oferta para melhorar as chances de apoio, já que a própria noção de justeza dos potenciais colaboradores se altera com aquele caso. Na batalha pela visibilidade que se estabelece dentro da plataforma Kickstarter, as recompensas são responsáveis por atrair o interesse dos públicos. Este interesse pode surgir, por exemplo, através da escolha de recompensas peculiares capazes de oferecer experiências singulares aos seus colaboradores, ou permitindo que estes se envolvam profundamente no processo produtivo. Projetos com o apoio de um grande conglomerado do entretenimento como a Warner são capazes de tornar as recompensas (e a experiência) ainda mais atrativas e singulares, à custa do desbalanceamento da justeza para a prática como um todo na medida em que estabelece novos patamares de expectativa. 3- Apesar do Kickstarter do filme ter acabado em abril de 2013, em julho do mesmo ano já foi exibido o primeiro trailer da obra.

O orçamento total do filme se encaixa na mesma questão. Dois milhões de dólares é uma meta reconhecidamente pequena para a produção do filme (e se torna ainda pior quando se considera que grande parte desse recurso teria que ser utilizado nas recompensas), mas que faz sentido quando se pensa que a Warner também irá investir na obra. Se um filme como Veronica Mars, um longa-metragem com atores conhecidos e uma produção realizada na Califórnia em um tempo recorde3, pede tal valor, quanto um filme realmente independente pode pedir? Uma perigosa relação de comparação pode ser estabelecida: quando um desses filmes, sem a estrutura e o suporte de um grande estúdio, pedir um valor parecido, isso será considerado por aqueles que apoiaram Veronica Mars como um valor justo quanto às intenções? Tais fatores apontam para uma preocupação pertinente sobre o episódio, relacionada com uma polarização da produção cultural no crowdfunding e o tensionamento do princípio da justeza. A apropriação da prática pelos grandes estúdios de cinema abre espaço para um cenário em que a ausência desse apoio torna progressivamente mais difícil conquistar visi-

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bilidade e apoio público, oferecer recompensas no mesmo padrão e manter a meta dentro de um parâmetro considerado como aceitável. Enquanto o próprio crowdfunding aparecia como uma resposta contra a polarização da produção, tal apropriação pode caminhar em um sentido inverso: uma polarização do financiamento coletivo, fazendo com que projetos apoiados por grande estúdios sejam revestidos dos valores presentes naquela prática para gerar lucros, fazer pré-vendas ou testar a receptibilidade dos públicos para determinadas produções consideradas de risco. 4- “They want to see if this model works, and they made the calculated decision (…). I think [for] Warner Bros., if this works, it works, and they could start doing more of these. And you know that if it works at one studio, that they’re not going to be the only studio in town that will be trying it”.

É significativa, nesse sentido, a declaração de Thomas sobre como a Warner encara a experiência Veronica Mars com extremo interesse, não a tratando como um caso isolado, mas como um verdadeiro teste: “ela quer ver se o modelo funciona, e tomou uma decisão calculada (...). Acho que a Warner pensa que se funcionar, eles podem fazer mais projetos como esse. E se funcionar para um estúdio, eles não serão os únicos a tentar” (THOMAS, 2013a, tradução nossa4). Se o crowdfunding surge como uma alternativa interessante e fundamental à produção cultural independente – os quadrinhos, por exemplo, têm tido grande sucesso no financiamento coletivo no Brasil – sua apropriação sub-reptícia pelos conglomerados do entretenimento é, no mínimo, uma preocupação real. Se por um lado esta pode ser uma estratégia de marketing interessante, por outro sua utilização se dá de maneira velada, se aproveitando e influenciando a opinião publica. A prática ainda é recente e carece de amadurecimento, inclusive legal, para que se torne um sistema cooperativo de alta confiabilidade, com normas e valores bem definidos. Porém, casos como Veronica Mars acendem uma luz amarela no percurso do crowdfunding e nos obrigam a pensar com mais cuidado sobre as potencialidades e possibilidades desta prática.

Referências

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BUSIS, Hillary. ‘Veronica Mars’ movie: meet the guy who just pledged $10k for a speaking role. Entertainment Week. Publicado em 13 de mar. de 2013. Disponível em: < http:// popwatch.ew.com/2013/03/13/veronica-mars-movie-kickstarter-speaking-role/>. Acesso em 23 de fev. de 2014. DEWEY, John. A arte como experiência. São Paulo: Martins Fontes, 2010. GAMSON, William. Talking politics. Cambridge/Nova York/Melbourne, Cambridge University Press, 1992. FURQUIN, Fernanda. ‘Veronica Mars’ garante sua versão cinematográfica. Veja. Publicado em 13 de mar. de 2013. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/blog/temporadas/versaocinematografica/veronica-mars-garante-sua-versao-cinematografica/>. Acesso em 23 de fev. de 2014. JENKINS, Henry. A Cultura da Convergência. São Paulo: Ed. Aleph, 2009. LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999. RÜDIGER, Francisco. As teorias da Cibercultura. Porto Alegre. Ed. Sulina, 2011. SHIRKY, Clay. A Cultura da Participação: criatividade e generosidade no mundo conectado. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. SHIRKY, Clay. Lá vem todo mundo: o poder de organizar sem organizações. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. TASSI, Paul. How exactly did Veronica Mars fund a movie in 10 hours?. Forbes. Publicado em 3 de mar. de 2013. Disponível em < http://www.forbes.com/sites/insertcoin/2013/03/14/ how-exactly-did-veronica-mars-fund-a-movie-in-ten-hours/>. Acesso em 23 de fev. de 2014. THOMAS, Rob. Exclusive: ‘Veronica Mars’ creator Rob Thomas on the wildly successful Kickstarter movie campaign. [mar.2013a] Entrevistador: Alan Sepinwall. Hitfix. Disponível em <http://www.hitfix.com/whats-alan-watching/exclusive-veronica-mars-creator-robthomas-on-the-wildly-successful-kickstarter-movie-campaign>. Acesso em 23 de fev. de 2014. THOMAS, Rob. ‘Veronica Mars’ movie: Rob Thomas talks details, fears and how it almost fell apart. [mar.2013b]. Entrevistador: Chris Harnick. Huffington Post. Disponível em: <http://www.huffingtonpost.com/2013/03/18/veronica-mars-movie-rob-thomasinterview_n_2886643.html>. Acesso em 23 de fev. de 2014. THOMAS, Rob. Q&A: ‘Veronica Mars’ creator Rob Thomas. [mar.2013c]. Entrevistador: Claire Suddath. Bloomberg Business Week. Disponível em: <http://www.businessweek.com/articles/2013-03-19/q-and-a-veronica-mars-creator-rob-thomas>. Acesso em 23 de fev. de 2014. VANAIRSDALE, S.T. The Veronica Mars Kickstarter problem, and ours. S.T VanAirsda-

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PRESSÃO VIRTUAL E REGULAMENTAÇÃO DIGITAL BRASILEIRA: ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE O MARCO CIVIL DA INTERNET E A LEI AZEREDO PRESIÓN VIRTUAL Y REGLAMENTACIÓN DIGITAL BRASILEÑA: ANÁLISIS COMPARATIVO ENTRE EL MARCO CIVIL DE LA INTERNET Y LA LEY AZEREDO VIRTUAL PRESSURE AND BRAZILIAN DIGITAL REGULATION: COMPARATIVE ANALYSIS BETWEEN THE INTERNET CIVIL LAW AND THE AZEREDO LAW PROJECT

Ivan PAGANOTTI Doutorando e Mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (PPGCOM-USP), membro do “Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura” (OBCOM-USP) e do “Grupo de Estudos de Linguagem: Práticas Midiáticas” (Midiato/ECA-USP). E-mail: ipaganotti@usp.br

Revista Eptic Online Vol.16 n.2 p.143-160 mai-ago 2014 Recebido em 03/03/2014 Aprovado em 30/04/2014


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Resumo Esta pesquisa analisa propostas legislativas brasileiras de regulamentação da internet, comparando seus princípios, formulação e participação de usuários afetados. Em 2012, o projeto de Lei Azeredo, que criminalizava práticas como invasão de sistemas digitais, divulgação de dados privados e difusão de vírus, competia com o Marco Civil da Internet, que determina direitos como acesso à internet de banda larga e garantias de neutralidade nas condições de velocidade de tráfego. O segundo projeto também é um marco pela sua formulação: foi apresentado em plataforma colaborativa para consulta popular com a possibilidade de discussão, crítica e complementação pelo público interessado. Entretanto, o cenário foi alterado devido a um caso célebre de violação de privacidade, que culminou em nova proposta de lei. A presente pesquisa pretende avaliar como esse caso e a reação da celebridade envolvida fortaleceram o foco no combate aos ciber-crimes, deixando a garantia dos direitos para o segundo plano.

Palavras-chave regulamentação, internet, privacidade, política, comunicação.

Resumen Esta investigación estudia propuestas legislativas brasileñas para regular internet, comparando sus principios, formulación y participación de usuarios afectados. En 2012, el Proyecto de Ley Azeredo, que tipificaba como delito las prácticas como la invasión de los sistemas digitales, la divulgación de los datos privados y la difusión de virus, compitió con el Marco Civil de Internet, que determina derechos como el acceso a internet banda ancha y garantías de neutralidad en las condiciones de velocidad de tráfico. El segundo proyecto es también notable por su formulación: se introdujo en plataforma de colaboración para consulta pública con la posibilidad de discusión, revisión y adición por el público. Sin embargo, el escenario ha cambiado debido a un caso célebre de violación de la intimidad, que culminó en un nuevo proyecto de ley. Esta investigación tiene como objetivo evaluar como este caso fortaleció la lucha contra delitos cibernéticos, obscureciendo los derechos. Palabras clave reglamentación, internet, privacidad, política, comunicación.

Abstract This research evaluates Brazilian legislative projects that intend to regulate internet conducts, comparing their principles, formulation processes and affected users’ participation. In 2012 the Azeredo Law project (which criminalized practices such as digital systems invasion, publishing private data and virus diffusion) competed with the Internet Civil Law project (which determines users’ rights, such as broadband internet access and network neutrality that guaranties equal data traffic speed conditions). This second project also intends to be a landmark due to its formulation process: it was presented in a website to popular critique, allowing the public to discuss, criticize and complement it. However, this scenario was reversed after the online privacy invasion of a famous actress, which inspired a new law project. This research evaluates how this case and the actress’ reaction brought to light the focus against cybercrimes, eclipsing internet civil rights. Keywords regulation, internet, privacy, policy, media.

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Introdução

Uma das questões centrais ao debate sobre as formulações de políticas públicas discute justamente os processos pelos quais os sujeitos podem debater e tomar decisões democraticamente. Por um lado, esse problema pode ser encarado pelo foco que procura otimizar os resultados a partir da restrição do espaço de debate aos envolvidos – e, dentre eles, eleger os mais capazes para tomar essas decisões. Durante a consolidação do campo de estudos de comunicação, no início do século XX, Lippman (2010) foi um dos expoentes no debate não só sobre políticas de comunicação, mas também sobre o acesso público às esferas de decisão. Entretanto, o espaço restrito reservado por Lippman para o debate público e o dirigismo implícito em sua defesa de que “para serem adequadas, as opiniões públicas precisam hoje ser organizadas para a imprensa e não pela imprensa” (LIPPMAN, 2010, p. 42) suscitam críticas aos métodos e aos resultados dessa proposta: 1- Tradução livre do autor: “Como ninguém pode interessar-se por todas as questões, o resultado ideal seria que os diretamente envolvidos em uma disputa cheguem a um acordo, visto que a participação de “alguém interessado em uma causa” é fundamentalmente diferente da experiência de alguém que não é. Para Lippman, a conclusão inevitável foi que o ideal democrático não pode nunca, devido a ambição excessiva, levar a nada além de desapontamento e desvios que permitam formas de tirania invasiva. Então, era necessário “coloca o público em seu lugar”, em ambos os sentidos: lembrá-lo de sua obrigação em se comportar modestamente e colocá-lo em seu assento na plateia, como um espectador” (BENSAÏD, 2012, p. 34-35).

Since nobody can take an interest in all the issues, the ideal outcome would be for those directly involved in a dispute to reach agreement, the experience of “one who is party to a cause” being fundamentally different to the experience of someone who is not. For Lippman the inevitable conclusion was that the democratic ideal could never, on account of excessive ambition, lead to anything but disappointment and a drift toward forms of invasive tyranny. So it was necessary to “put the public in its place” in both senses: remind it of its obligation to behave modestly and give it a seat in the grandstand, as a spectator. (BENSAÏD, 2012, p. 34-35)1

Entretanto, talvez seja possível resgatar o público desse papel passivo de espectador e reconsiderar outras possibilidades mais abertas à sua participação ativa. Uma abordagem diversa desse foco restritivo pode ser vista por outro prisma, que procura abrir o espaço de debate para um maior número de tomadores de decisão. Essa segunda abordagem encontrou novo fôlego nos processos de abertura política e econômica dos anos 1990 que foram acompanhados pela emergência de um novo espaço de debate virtual e globalmente conectado por redes digitais, como proposto pela ciberdemocracia (LÉVY, 2003): A democracia (no seu aspecto de isonomia) não só confere iguais direitos aos seus cidadãos, assim satisfazendo a dignidade destes, como (no seu aspecto de autonomia) também é o regime que encoraja um pensamento coletivo da lei, isto é, traduz a inteligência coletiva em política. (LÉVY, 2003, p. 18)

Ao contrário da primeira resposta, a proposta de Lévy procura utilizar dos potenciais do espaço de conexão em rede e permitir aos indivíduos o acesso ao debate público em iguais condições (isonomia), ao mesmo tempo em que os responsabiliza pela autogestão dessa construção coletiva (autonomia). Talvez um dos locais mais privilegiados para avaliar a tensão entre essas duas propostas seja justamente a internet – e, particularmente, o debate sobre os projetos de regulação da própria rede. Por um lado, encontramos propostas que tentam representar preocupa-

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ções de setores da sociedade receosos sobre as dificuldades em combater as ameaças de ataques em um espaço ainda pouco regulamentado e com práticas e códigos igualmente opacos para alguns de seus usuários menos experientes. Por outro lado, alguns espaços abertos nessa própria rede para a participação dos usuários – ou ocupados por eles – permitem a expansão do debate e a incorporação de sugestões dos próprios internautas sobre uma dinâmica que afetará as condutas na rede com as novas regulamentações sugeridas. Entretanto, a abertura ao debate público na rede não significa que os resultados dessas discussões resultem em mudanças políticas diretas na regulação da internet. Como será visto nos casos avaliados a seguir, outras estratégias tradicionais adotadas pelos tomadores de decisão – como a restrição dos canais de aprovação como método de controle da concomitante abertura de propostas, além da resposta pontual à emergência de casos chocantes, relegando as causas estruturais de sua eclosão para debates mais complexos e sempre adiados – continuam a predominar em algumas esferas de decisão pública. Entretanto, os novos canais que foram ocupados podem ainda configurar-se como pontos de apoio para maior visibilidade das demandas latentes e instrumentos de pressão para a incorporação de seus resultados e de processos mais abertos no debate público. Para avaliar como os mecanismos de tomada de decisão são tensionados no debate sobre a (auto-)regulação da rede, esta pesquisa analisa propostas legislativas brasileiras de regulamentação da internet, comparando seus princípios, seus processos de formulação, além da pressão e da participação dos usuários afetados. O mais antigo desses projetos de lei sob avaliação do Congresso Brasileiro, conhecido como Lei Azeredo (PL-84/99) em homenagem ao ex-senador do PSDB que o criou, criminaliza práticas como invasão de sistemas digitais, divulgação de dados privados e difusão de vírus – crimes que não apresentavam tipificação explícita no antigo código criminal brasileiro. Esse projeto atraiu polêmica por seu caráter punitivo e pelo temor de que seus artigos poderiam dificultar a liberdade de expressão, a privacidade e o anonimato dos usuários na rede. Na contracorrente, o governo federal brasileiro propôs posteriormente o Marco Civil da Internet, um projeto que pretendia determinar os direitos dos usuários, como o acesso à internet de banda larga e garantias de neutralidade nas condições de velocidade de tráfego – considerados como prioridade antes da definição das punições dos crimes virtuais. Esse segundo projeto pretendeu também ser um marco em seu formato de formulação: foi apresentado em uma plataforma colaborativa aberta para consulta popular com a possibilidade de discussão, crítica e complementação pelo público interessado – de forma que o público interessado pudesse discutir os direitos e deveres na rede usufruindo justamente de um de seus potenciais, por meio da criação de um espaço de debate e troca de ideias a partir da divisão de tarefas e pelo respeito em relação às contribuições coletivas. No início de 2012, ecoando a reação do público norte-americano que enterrou a proposta legislativa do Stop Online Piracy Act (SOPA) por meio de vasta mobilização de usuários, entidades e empresas que operam na rede, a Lei Azeredo perdia espaço ante o Marco Civil. Entretanto, esse cenário foi alterado devido a um caso de violação de privacidade que atraiu a atenção nacional e polarizou o debate: fotos nuas da atriz brasileira Carolina

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Dieckmann foram divulgadas em diversos sites após seu computador ser invadido. A presente pesquisa pretende avaliar como a notícia e a reação da atriz (que procurou os meios legais para impedir a divulgação das fotografias e reparar os danos à sua imagem) deram novo fôlego para o projeto contra os ciber-crimes, refletindo sobre como o caso afetou a aprovação posterior do marco civil coletivamente construído. Para isso, é importante, inicialmente, refletir sobre o potencial da rede em construir um espaço de debate sobre propostas de intervenção sobre a própria dinâmica da internet, apontando os mecanismos de regulação de um local que nasceu sob o signo da liberdade, mas que cada vez mais passa por intervenções de controle – por vezes nascidas da própria dinâmica da rede e de seu potencial de autorregulamentação, ou, outras vezes, devido aos receios exteriores sobre suas ameaças. A proposta de Lessig (2006) sobre o código de programação como lei – tanto como delimitação de condutas possíveis, mas também como mecanismo de autogestão de suas alterações – será discutida para avaliar os interesses envolvidos nas transformações da rede e nas propostas de controle legislativo e informático sobre a internet. A segunda seção a seguir também mostrará como os ambientes de grande interação social propiciados pela web 2.0 abrem espaço para resistência contra ameaças de controle externo, como sugerido por Zuckerman (2007), e podem criar, como dano colateral, maior consciência dos participantes envolvidos justamente nos casos em que os usuários percebem que suas liberdades são ameaçadas. A terceira seção dessa pesquisa descreve os processos de preparação dos projetos de lei mencionados anteriormente – a Lei Azeredo, o Marco Civil da Internet e a Lei Carolina Dieckman – analisando como cada um reflete facetas distintas de seu contexto e procura responder a anseios diferentes do público usuário da rede, propondo uma análise comparativa das propostas, avaliando seus princípios, suas circunstâncias, seus mecanismos de formulação e sua aprovação. Essa análise comparativa dos projetos a partir de seus princípios, diretrizes e processos de formulação permitirá esboçar, por fim, algumas considerações sobre a dinâmica em que emergem e são discutidas as propostas de intervenção e controle sobre a rede – trazendo à tona espectros que ainda ameaçam a jovem democracia brasileira.

O Código e a Lei: da legislação que comanda às normas que condicionam

Conectando os indivíduos de todo mundo em uma só rede, a internet funciona, antes de mais nada, como um código – e, como todo código, lembra Lessig (2006, p. 5), o da rede determina as possibilidades de conduta em sua estrutura. Ao defender que “código é lei”, Lessig (2006, p. 1) destaca que, em certo sentido, há um mecanismo regulatório sobre o que é possível ou impossível inscrito na própria arquitetura e nos programas que garantem o funcionamento da rede.

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Entretanto, destaca Lessig, o efeito regulador do código é ambíguo, por ser ao mesmo tempo mais forte e mais flexível do que as leis. Por um lado, é mais forte que a lei porque determina – como a física ou a arquitetura – o que pode ser feito: ao contrário da legislação, que condiciona os comportamentos indesejados à punição (é proibido matar, mas qualquer um ainda pode ser um assassino, ainda que nesse caso corra o risco da punição) o código limita o possível, e não só o indesejado; nesse sentido, qualquer um pode enviar um e-mail, mas não é possível trazê-lo de volta, uma vez enviado, com minha própria vontade, visto que isso não é permitido pelo código. Por outro lado, o código digital encontra certa flexibilidade: pode ser alterado com facilidade, permitindo rápidas e drásticas mudanças do horizonte de possibilidades de seus atores (LESSIG, 2006, p. 6) – como, por exemplo, a criação de filtros nos e-mails que permitem ao usuário selecionar o que desejam ver e ocultar o indesejado. Além disso, não podemos negar que o código da rede também pode ser diretamente influenciado por – e influenciar – novas leis, que condicionam o que os programadores e indivíduos possam ou não fazer. Assim, além da arquitetura própria ao código, outras instâncias – como as leis e as normas, sem contar o mercado – condicionam as condutas na rede (LESSIG, 2006, p. 123). Dessas outras esferas, vale a pena destacar, inicialmente, a diferença já apontada entre leis e a arquitetura do código, relacionando essas duas instâncias com as normas: ao contrário das leis e das arquiteturas, que punem e condicionam as condutas, as normas são ainda mais flexíveis, e envolvem práticas consideradas como adequadas ou não por diferentes atores, em circunstâncias distintas – que podem resultar na valorização ou desprezo por parte dos pares em relação às condutas possíveis, esperadas, desejadas ou estimadas. 2- Tradução livre do autor: “A ideia – e até mesmo o desejo – de que a internet permaneça sem regulação já não existe mais” (LESSIG, 2006, p. IX).

Lessig destaca, com isso, que a arquitetura do código da rede pode não só propiciar um novo espaço para debate das normas e leis que influenciam a vida dos indivíduos conectados pela rede, pois pode haver também o condicionamento do que é possível pelos programadores ou pelos usuários da internet através da sanção legal: “The idea – and even the desire – that the Internet would remain unregulated is gone” (LESSIG, 2006, p. IX)2. Ainda assim, como a rede pode ser controlada por mecanismos externos – e como seus usuários podem influenciar esse debate ou até mesmo resistir ao controle?

3- Tradução livre do autor: “leis são aprovadas quando beneficiam interesses especiais. E isso não ocorre quando interesses especiais se opõem” (LESSIG, 2006, p. 337).

Uma resposta à primeira parte dessa pergunta pode ser encontrada no próprio Lessig (2006, p. 337), “lawmaking happens when special interests benefit. It doesen’t happen when special interests oppose”3 – e, na rede, os interesses podem ser evidenciados e encontrar novos canais para sua visibilidade, como será discutido nas seções a seguir. Quanto à influência e à resistência, elas também podem fluir da rede para a política passando por temas tão inesperados quanto banais devido à característica socializante da rede, como sugere Zuckerman (2007). Ao contrário das plataformas tradicionais da web 1.0, que foi criada para a troca de informação entre militares, pesquisadores, hackers e, posteriormente, expandiu seu público e seus usos em resposta aos interesses de comunidades de usuários e da exploração comercial (CASTELLS, 2003), as novas plataformas da web 2.0 focam primordialmente a interação entre seus usuários (ZUCKERMAN, 2007).

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Por tratarem principalmente da socialização, a visibilidade e a credibilidade dos usuários passam a ser questões mais prementes do que o domínio das ferramentas e do código estrutural, permitindo que redes de interesse multitemáticas surjam para compartilhamento e interatividade de novos públicos – que não precisam mais de grandes conhecimentos de programação para poder usar de plataformas como as redes sociais, blogs ou plataformas de publicação de vídeos e fotos. Além disso, a abertura para o comentário público garante a persistência do questionamento, da contestação e da sugestão que já faziam parte da rede desde a criação da internet, mas são expandidas com as novas plataformas da web 2.0. Esse novo potencial – que, evidentemente, só foi possível pelas mudanças no código da rede – permitiu transformações bastante surpreendentes no comportamento dos indivíduos, segundo a avaliação de Zuckerman (2007): 4- Tradução livre do autor: “[...] enquanto a web 1.0 foi inventada para que físicos teóricos pudessem publicar suas pesquisas online, a web 2.0 foi criada para que as pessoas pudessem publicar fotos fofas de seus gatos. Mas essa mesma tecnologia de disseminação de gatos se mostrou extremamente vantajosa para ativistas, que usaram essas ferramentas para seus próprios propósitos” (ZUCKERMAN, 2007).

[...] while Web 1.0 was invented so that theoretical physicists could publish research online, Web 2.0 was created so that people could publish cute photos of their cats. But this same cat dissemination technology has proved extremely helpful for activists, who’ve turned these tools to their own purposes (ZUCKERMAN, 2007, online).4

Provocadora já em seu nome, a chamada “teoria do gatinho fofinho” [cute cat theory] sobre ativismo digital proposta por Zuckerman também procurou seguir seu objeto de análise – as plataformas interativas da web 2.0 que abrem novos caminhos para mobilização e compartilhamento – ao adotar justamente esses canais para divulgar suas hipóteses: ao invés de publicar seus achados em um livro ou em um de seus artigos acadêmicos (ZUCKERMAN, 2013), o pesquisador preferiu apresentar sua pesquisa em palestras difundidas no YouTube e em posts no seu próprio blog (Idem, 2007). Como sintetizado na frase acima, plataformas que propiciam a troca de conteúdos mundanos e despolitizados (como as fotos de gatos fofos) – grande parte da interação na rede e foco principal da maioria dos usuários – criam espaço que pode ser apropriado simultaneamente para mobilização política. Da mesma forma, nos países em que há controle da expressão em meios mais visados (como a mídia impressa ou portais na internet), pode haver um efeito manada de produtores e públicos para outros veículos (como blogs, plataformas de vídeo ou redes sociais) mais difíceis de controlar, abrindo espaço para contestação clandestinamente latente. Nesse cenário, as autoridades – públicas ou privadas – que procurarem controlar essas novas plataformas não enfrentarão somente as dificuldades técnicas de sites de compartilhamento descentralizados; ao procurar bloquear o acesso total a essas páginas, podem evidenciar as práticas de controle que poderiam permanecer implícitas para a maioria dos usuários que somente compartilhavam conteúdos despolitizados (exemplificados pelas “fotos de gatos fofos” de Zuckerman), criando novos insatisfeitos (ZUCKERMAN, 2007). O risco do controle dessas novas plataformas não é novidade. A atração pelo proibido e a migração para novas mídias como válvula de escape para a censura já foram identificadas em estudos sobre períodos tão remotos como a França pré-revolucionária, quando a grande demanda popular por livros proibidos pelos reis franceses no século XVIII levou milhares de leitores a trilharem o caminho das leituras moralmente perniciosas – como os

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relatos libertinos – para a contestação política (DARNTON, 1998, p. 31). Seja nas livrarias clandestinas da Paris do século XVIII ou nos blogs e redes sociais bloqueados nos últimos dias da ditadura de Hosni Mubarak no Cairo em 2011, as tentativas de controle aumentam a visibilidade da opressão por parte dos usuários afetados, canalizando a indignação para outras vias – das páginas impressas ou virtuais para cafés ou mesquitas e, finalmente, as ruas. Devido à própria dinâmica de compartilhamentos e ao policiamento das ameaças à liberdade de expressão, muitas tentativas de controle da rede acabam por sofrer um revés indesejado por parte dos que tentam ocultar publicações indesejadas, atraindo ainda mais atenção sobre o que se procura bloquear. Esse fenômeno muitas vezes é chamado pelos próprios usuários das redes como “efeito Streisand” (CACCIOTTOLO, 2012), em alusão à frustrada tentativa da atriz Barbra Streisand de bloquear em 2003 imagens de sua casa na praia de Malibu, publicadas como parte de um projeto fotográfico – http://www.californiacoastline.org – que registra ocupações imobiliárias da costa californiana. Como resposta à ameaça de processo movido por Streisand, o site que divulgava a imagem de sua casa tornou-se um sucesso instantâneo na rede, atraindo tanta atenção que levou internautas a batizarem esse fenômeno colateral com o nome da atriz.

5- A íntegra do processo REsp 1316921 está disponível em: http:// www.stj.jus.br/webstj/ processo/justica/detalhe.

No Brasil, três episódios recentes também envolveram atrizes e tentativas de controle de suas imagens. Entretanto, esses casos atraíram ainda mais atenção do público por relacionarem-se com a expressão da sexualidade de três mulheres consideradas, em diferentes momentos, como representantes icônicos de traços da feminilidade brasileira. O primeiro deles foi a recusa do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), em junho de 2012, em obrigar o site de buscas Google a restringir pesquisas feitas por usuários que buscassem pelo termo “pedófila” atrelado ao nome da apresentadora de TV Xuxa Meneghel. Essas pesquisas permitiam aos usuários da rede acessar páginas sobre o filme “Amor Estranho Amor”, (1982, dir: Walter Hugo Khouri), no qual Xuxa atua em cenas eróticas com um menino5. Ao procurar evitar que o público tenha acesso ao filme, Xuxa acabou por atrair ainda mais atenção sobre o caso, mas a justiça brasileira, nesse caso, decidiu por privilegiar o direito social à informação em detrimento da privacidade de um indivíduo. O oposto ocorreu com os outros casos avaliados nesta pesquisa. Em janeiro de 2007, um encontro íntimo da atriz Daniella Cicarelli e Renato Malzoni em uma praia na Espanha foi filmado e divulgado em diversos canais internacionais, até ser reproduzido no site de compartilhamento de vídeos YouTube. Na época, o YouTube ainda engatinhava e não havia nem completado seu segundo ano de funcionamento, mas o vídeo se tornou um sucesso tão grande que passou a incomodar a atriz, indisposta pela sua intimidade continuar a ser violada. Seguindo o pedido do casal, o juiz Lincon Antônio Andrade de Moura, da 23ª Vara Cível de São Paulo, com base em decisão da 4ª Câmara do Tribunal de Justiça do Estado, determinou em 5 de janeiro de 2007 que o acesso ao vídeo deveria ser proibido. Porém, uma dificuldade já antevista pela linha de raciocínio de Zuckerman (2007) acabou se impondo: como proibir um vídeo que poderia ser rapidamente replicado em novos endereços na plataforma do YouTube? A criativa solução encontrada pelo juiz atraiu a fúria dos internautas brasileiros ao proibir o acesso a todo o acervo do site do YouTube para os

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usuários que acessassem suas páginas por meio dos provedores IG, IBest e ou BrTurbo – o que representava, na época, mais de 5 milhões de internautas brasileiros (ZIMMERMANN, 2007). Esse caso mostra, em primeiro lugar, que o mecanismo de controle e imposição do poder de censura se torna acessível para quem se sentir incomodado – como Cicarelli – e possibilita impor sua vontade sobre a conduta alheia – tolhendo o acesso ao vídeo inconveniente. Por outro lado, a resistência contra esse poder evidenciado pela proibição desproporcional revelou-se com a revolta de milhares de internautas e a crítica da imprensa em relação à decisão judicial, que incluiu também ataques contra Cicarelli: diversos usuários da rede reprovaram o que foi retratado como uma tentativa de violar o direito de milhões de internautas de acessarem outros vídeos que não tinham qualquer relação com as suas imagens. A modelo precisou retratar-se, pedindo desculpas aos usuários que se manifestavam contra a censura, e a decisão draconiana foi posteriormente revertida (MUNIZ, 2007), revelando a porosidade dessa medida de controle, fragilizada ante a força dos indivíduos que resistiram e procuraram também exercer sua prerrogativa de crítica em relação ao comportamento alheio (do juiz e de Cicarelli) que consideraram inadequado. Os dois casos acima demonstram a insegurança jurídica do ciberespaço brasileiro – onde a lacuna de legislação específica abre espaço para decisões judiciais contraditórias – ao mesmo tempo em que sinalizam para o potencial de mobilização dos usuários da rede interessados em sua manutenção e na garantia de seus direitos. Porém, para além das tentativas individuais de controle perpetuadas por Xuxa e Cicarelli, o último caso de violação de privacidade na rede envolveu não só uma atriz – Carolina Dieckmann – mas alterou toda a dinâmica da legislação sobre condutas coletivas na rede, como será analisado a seguir.

A abertura do espaço ao risco: propostas para organizar condutas na rede

A mais antiga entre as três propostas de regulação da rede avaliadas por esta pesquisa data ainda do final do milênio passado: o PL 84/99 foi proposto em 1999 pelo ex-deputado Luiz Piauhylino (PSDB-PE), porém ganhou reconhecimento nacional após o trabalho de seu relator, o ex-senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG), o que levou esse projeto a ser conhecido como “Lei Azeredo”. A proposta original pretendia incluir no Código Penal brasileiro ciber-crimes como a disseminação de vírus, o estelionato eletrônico (como o roubo de senhas), a divulgação inadvertida de dados pessoais e a criminalização não só da produção e divulgação de conteúdos que promovem a pedofilia, mas também o armazenamento desses materiais. O projeto também criava regras para identificar e armazenar dados de usuários para potencialmente identificar melhor os suspeitos de incorrer nesses crimes, obrigando provedores a preservar esses registros por três anos e ampliando suas obrigações de fiscalização e denúncia de crimes.

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6- A proposta original está disponível em: http://imagem.camara. gov.br/Imagem/d/ pdf/DCD11MAI1999. pdf#page=59 7- A tramitação e o conteúdo do projeto estão disponíveis em: http://www.camara. gov.br/proposicoesWeb/fich adetramitacao?idProposicao =15028 8- A versão final da lei aprovada pela presidência, com as justificativas dos vetos, está disponível em: http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/_Ato20112014/2012/Lei/L12735.htm

9http://culturadigital.br/ marcocivil

Com as emendas na relatoria, seus 18 artigos originais6 passaram para mais de 20, porém somente cinco artigos foram aprovados pelo Congresso em 20127 – e dois deles, sobre a falsificação de cartões de crédito e a divulgação de dados estratégicos militares, ainda foram finalmente vetados pela presidência8. O resultado final sancionado na Lei 12.735, de 30 de novembro de 2012, trata somente de uma vaga proposta de estruturação do policiamento para investigar os crimes em rede de computadores e da ampliação do escopo de ação dos juízes que, por meio da Lei do Crime Racial (Lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989), já podia apreender publicações impressas, fazer cessar as transmissões radiofônicas ou televisivas e interditar páginas da internet que incorressem de crimes de ódio racial – agora, com a nova lei, esse escopo é timidamente ampliado para também abarcar a possibilidade de cessar transmissões “eletrônicas ou da publicação de qualquer meio”. O projeto apresentou severa resistência da sociedade civil pelo temor de que seus artigos amplos poderiam ameaçar a liberdade de expressão e a privacidade dos usuários – tópicos que ficaram de fora da versão final da lei. Durante a conturbada tramitação do projeto, que demorou mais de uma década, outras propostas acabaram sendo cogitadas para complementar ou substituir o projeto de Azeredo. Entre elas, o governo federal passou a patrocinar o Marco Civil da Internet (PL 2126/2011), que foi aprimorado a partir da participação de internautas pelo fórum de debate na plataforma Cultura Digital9 [Imagem 1]. Esse foi o primeiro projeto de lei colaborativo do Brasil, abrindo espaço para o debate de usuários interessados pela própria rede que seria objeto da regulação – propiciando um espaço de reflexão dos próprios usuários sobre seus direitos e deveres como cidadãos e coautores desse projeto.

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Imagem 1. Página inicial do site Cultura Digital, que debateu publicamente o Marco Civil da Internet. Fonte: http://culturadigital.br/marcocivil

10-http://edemocracia. camara.gov.br/web/marcocivil-da-internet/inicio

Com o fim dos debates sobre o aprimoramento do projeto, o site da Câmara dos Deputados apresenta, uma síntese dos resultados e da tramitação do projeto [Imagem 2], além de comparar as versões originais e as sugestões apresentadas, com a identificação de seus autores [Imagem 3]. Essas páginas do site E-democracia10, da Câmara dos Deputados, complementam e facilitam a navegação em comparação com a tradicional página de tramitação no Congresso [Imagem 4].

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Imagem 2. Guia da Discussão do Marco Civil da Internet no site E-democracia, da Câmara dos Deputados, que apresenta o andamento do projeto e os resultados dos debates. Fonte: http:// edemocracia.camara.gov.br/web/marco-civil-da-internet/inicio

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Imagem 3. Página do Marco Civil da Internet no site E-democracia, da Câmara dos Deputados, que permite comparar as versões originais e sugestões apresentadas, com identificação dos autores a partir dos debates na plataforma colaborativa. Fonte: http://edemocracia.camara.gov.br/web/marcocivil-da-internet/andamento-do-projeto/-/blogs/conheca-a-ultima-versao-do-relatorio-do-marcocivil-11-7

Distanciando-se do foco na criminalização que caracteriza as outras propostas aqui avaliadas, o Marco Civil da Internet pretende garantir os direitos e deveres de usuários, entidades e empresas na rede, defendendo os direitos de acesso, inclusão digital, privacidade e liberdade de expressão. Três dos tópicos mais polêmicos do projeto – que colaboram para atrasar sua aprovação devido à resistência de produtores culturais e de provedores da internet – envolvem o incentivo à produção e utilização de software nacional livre, a defesa da reforma das leis de direitos autorais e a garantia da neutralidade, sancionando operadoras e provedores que restringirem o acesso de usuários a determinados dados ou serviços. A garantia da neutralidade pode comprometer o lucro de servidores da internet que pretendam oferecer pacotes diferenciados com velocidade maior para certos serviços ou limites para acesso a outros produtos – que, por exemplo, podem concorrer com os seus próprios ou de parceiros, como a telefonia pela rede ou o acesso a conteúdo audiovisual sob demanda

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Imagem 4. Página do Projeto de Lei do Marco Civil da Internet (PL 2126/2011) no site da Câmara dos Deputados, que permite acessar sua tramitação e seu conteúdo. Fonte: http://www.camara.gov.br/ proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=517255

Além disso, apesar de a iniciativa ter rendido bons frutos com o debate sobre o Marco Civil da Internet, nem todos os projetos que procuraram adotar essa mesma plataforma colaborativa posteriormente conseguiram replicar seus resultados, como foi justamente o caso do abandonado projeto de reformulação da lei brasileira dos direitos autorais. Enquanto aguardava a votação no plenário, esse projeto construído coletivamente acabou por ser atropelado por outra iniciativa mais recente, composta por uma frente parlamentar, e que ganhou reconhecimento não pelo seu debate coletivo, mas por se aproveitar da comoção nacional com um caso particular de invasão de privacidade pela rede. Em maio de 2012, fotos nuas da atriz Carolina Dieckmann foram divulgadas na internet em diversos sites, blogs e por e-mails. A atriz teve sua caixa de e-mail invadida após preencher uma formulário na internet em resposta a um e-mail falso. Suspeitos da invasão e divulgação das imagens foram presos após ameaça de extorsão para impedir que as imagens viessem a público. Em resposta ao ocorrido, a atriz procurou a justiça para bloquear buscas em ferramentas de pesquisa na internet e impedir a divulgação de sua imagem na rede. Para responder ao clamor popular que se identificou com a imagem de fragilidade da atriz após a invasão de seu computador, legisladores brasileiros aprovaram em tempo recorde um projeto que acabara de ser formulado no ano anterior, como uma resposta mais bran-

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11- A tramitação e o conteúdo do projeto estão disponíveis em: http:// www.camara.gov.br/ proposicoesWeb/fichadetr amitacao?idProposicao=52 9011 12- A versão final da lei aprovada pela presidência está disponível em: http:// www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_Ato20112014/2012/Lei/L12737.htm

13- A versão final da lei aprovada pela presidência está disponível em: http:// www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_ato20112014/2014/lei/l12965.htm

da aos ciber-crimes de que tratava a Lei Azeredo. Batizado informalmente de “Lei Carolina Dieckmann”, o PL 2793/2011 havia sido proposto por um coletivo de deputados ligados à base governista, como Paulo Teixeira (PT-SP), Brizola Neto (PDT-RJ), Luiza Erundina (PSBSP), Manuela D’ávila (PCdoB-RS), João Arruda (PMDB-PR) e Emiliano José (PT-BA)11. Após ser sancionada no mesmo dia da Lei Azeredo, a Lei 12.737, de 30 de novembro de 201212 agora criminaliza a invasão de dispositivos informáticos para adulterar, destruir ou divulgar dados, além de punir também a falsidade ideológica para fraude de cartão e a interrupção ou perturbação de serviços eletrônicos. Não surpreende o fato de que as penas podem ser aumentadas nos casos em que se divulgarem segredos industriais ou privados e/ou causarem prejuízo às vítimas, e também se o alvo do ataque virtual for chefe do executivo, judiciário ou legislativo federal, estadual ou municipal. Essa garantia maior para os próprios representantes políticos – que raramente temem sacrificar a imagem de isonomia ao reservarem maior proteção para seus próprios pares – pode sinalizar para um motivo da facilidade com que esse projeto foi aprovado. Além da proteção de seus eleitores, os representantes legislativos pretendiam, mais do que todo, resguardar seu próprio papel privilegiado – talvez simbolicamente ameaçado pela estrutura colaborativa direta proposta pelo Marco Civil. Por fim, a resistência de interesses econômicos altamente influentes – como o dos servidores de internet, que podem ter seus lucros afetados pela garantia da neutralidade da rede – só foi superada pela pressão de grupos da sociedade civil e pelo desejo do governo federal brasileiro em apressar a aprovação da legislação brasileira para a internet. Dessa forma, o Marco Civil da Internet foi sancionado como Lei 12.965, de 23 de abril de 201413, e apresentado internacionalmente pela presidência durante a conferência NETmundial, sobre o futuro da governança da internet, que acontecia simultaneamente à sua aprovação, em São Paulo. A necessidade de apressar sua tardia aprovação aproxima o Marco Civil das outras duas propostas analisadas anteriormente: por fim, foi beneficiado também (mas não somente) pela necessidade de apresentar uma resposta legislativa à invasão de comunicações privadas – mas dessa vez em relação às mensagens de altos escalões de estatais e do governo brasileiro que foram alvo de espionagem pelo governo norte-americano em esquema denunciado no ano anterior pelo ex-analista da Agência de Segurança Nacional (NSA) dos EUA, Edward Snowden. Ao mesmo tempo, no final de sua tramitação no legislativo, o Marco Civil foi alterado para garantir que conteúdos considerados ofensivos só possam ser retirados com decisão judicial (artigo 19), e não mais com simples notificação, como era feito até então por muitos provedores e sites. A essa cláusula foi adicionada a exceção explícita (artigo 21) de imagens pornográficas que violem a intimidade de terceiros, que agora podem solicitar a retirada de suas próprias imagens divulgadas sem autorização – uma resposta direta aos casos recentes de “pornô vingança”, ou seja, de imagens íntimas publicadas sem autorização dos retratados. Esses dois fatores – a invasão das mensagens do governo brasileiro pelos EUA e os casos de imagens íntimas de cidadãos comuns publicadas sem autorização – foram elementos que contribuíram essencialmente para a aprovação do projeto, construindo consenso e atraindo a atenção do público para casos recentes de invasão que evidenciavam como direitos coletivos e individuais estariam sob ameaça sem a nova lei.

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Considerações finais: pressão midiática e influência do público interessado

Ao elencar o que considera serem “Os inimigos íntimos da democracia” que dão título à sua obra, Todorov (2012, p. 18) defende que o estado democrático deve manter o equilíbrio entre o tripé fundamental que ancora a participação política com o povo, a liberdade e o progresso. Assim, é necessário evitar a polarização ou sobredeterminação de um desses três aspectos: desequilibrando seu regime de poderes sobrepesados, acabamos por desvirtuar sua temperança ao privilegiar demasiadamente o clamor popular (caindo na armadilha do populismo), a liberdade desenfreada (adotando o ameaçador ultraliberalismo) ou a demanda por progresso (incorrendo no messianismo).

Os perigos inerentes à própria ideia democrática surgem quando um dos ingredientes dela é isolado e absolutizado. O que reúne esses diversos perigos é a presença de uma forma de descomedimento. O povo, a liberdade, o progresso são elementos constitutivos da democracia; mas se um deles se emancipa de suas relações com os outros, escapando assim a qualquer tentativa de limitação e erigindo-se em um único e absoluto, eles transformam-se em ameaças: populismo, ultraliberalismo, messianismo, enfim, esses inimigos íntimos da democracia. Aquilo que os antigos gregos denominavam húbris, ou descomedimento, era considerado como a pior falha da ação humana: uma vontade ébria de si mesma, um orgulho que persuade quem o sente de que para ele tudo é possível. Seu contrário é considerado como a virtude política por excelência: a moderação, a temperança. [...] O primeiro adversário da democracia é a simplificação que reduz o plural ao único, abrindo assim o caminho para o descomedimento. (TODOROV, 2012, p. 18-19)

Como esse artigo pretendeu mostrar, falta moderação na regulação do espaço virtual brasileiro. A lei inicialmente proposta ainda nos anos 1990 ignorava a participação dos envolvidos, que deveriam ser guiados pelo legislador messiânico em direção a um cenário supostamente melhor, sem poder interferir no processo – ecos dos traços políticos do messianismo apontado por Todorov (2012, p. 47): “programa generoso”, apoiado pela força, “com divisão assimétrica dos papéis, ou seja, sujeito ativo de um lado, e do outro, beneficiário passivo – cuja opinião não é pedida”. Também a resposta ao clamor popular do episódio lamentável da invasão de privacidade da atriz Carolina Dickmann foi politicamente explorada para aprovar nova leva de medidas populistas contra invasões, ampliando as possibilidades de punição e controle contra os temidos ciber-crimes sem as necessárias contrapartidas de garantias de direitos para os usuários. Entretanto, o que mais choca é resistência à delimitação de freios ao mercado potencialmente ultraliberalizado dos servidores da internet: o Marco Civil da Internet, que garantia os direitos mínimos dos usuários, só foi aprovado recentemente, no final de abril de 2014. Como sugerido nas seções anteriores, houve uma particular inversão de ordem ao permitir que as normas do direito penal – que trata das condutas excessivas que devem ser comba-

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tidas – precedam as garantias de direitos civis. Confirmando as hipóteses de Zuckerman e Lessig debatidas na segunda parte desse trabalho, o debate sobre o controle de liberdade de expressão atraiu a atenção do público interessado durante a formulação do Marco Civil da Internet e na mobilização ativada em resposta aos ataques à privacidade da atriz Carolina Dieckmann: no primeiro caso, trata-se de uma preocupação geral com as garantias dos direitos diretos de todos e os deveres dos provedores de internet, o que envolveu muitos atores no processo de formulação da proposta; no segundo caso, houve o aproveitamento da oportunidade criada pela pressão midiático/popular episódica, ecoando e demandando resposta a um caso específico que revelava potenciais ameaças a outros indivíduos. O caso da Lei Carolina Dieckmann também evidencia que a inércia parlamentar pode ser rompida ante o clamor que demanda resposta rápida e pontual para os problemas discutidos e propagados pela mídia massiva, visto que o episódio de crise gerado pelo ataque contra a atriz foi aproveitado como oportunidade para aprovação do projeto – e projeção de seus defensores – em tempo recorde para o congresso brasileiro. Da mesma forma, é possível também avaliar que a aprovação (ainda que tardia) do Marco Civil também foi afetada por esse mesmo clamor por uma resposta às ameaças de ataque – mas dessa vez em relação às mensagens de autoridades do governo brasileiro que foram espionadas pelos EUA. Por fim, é possível retomar a questão inicial desta pesquisa, refletindo sobre a mobilização dos atores sociais e sua relação com a restrição do espaço dos tomadores de decisão em um ambiente mais aberto (para consulta popular) ou mais restrito (para formulação dos especialistas). O Marco Civil recentemente aprovado foi ousado por permitir que usuários, grupos, entidades e especialistas da área pudessem discutir, em igualdade e no mesmo espaço, suas propostas para aprimoramento do projeto. Entretanto, esses grupos que foram engajados na formulação do projeto ainda encontraram dificuldade para influenciar os processos fechados e restritos da aprovação do projeto, que está na mão dos partidos políticos tradicionais que dominam a pauta de votação no Congresso. Por um lado, essa iniciativa evita a solução tecnocrática de poucas mentes ilustres que controlam o debate público (LIPPMAN, 2010), evitando o messianismo criticado por Todorov (2012, p. 18) no início desta seção e por Bensaïd (2012, p. 35) na introdução desse trabalho. É possível – e necessário – permitir que o público afetado seja consultado e construa suas próprias justificativas para as decisões que julgar mais justas (HABERMAS, 2010) na autorregulamentação da rede. Entretanto, não podemos negar a ambiguidade do envolvimento das personalidades midiáticas ameaçadas pelos ataques e dos políticos beneficiados pela aprovação do projeto: nos três casos, a exposição pública não pode eclipsar os interesses coletivos que deveriam nortear a regulação da rede – e, como não poderia deixar de ser, também na rede e pela rede.

Referências BENSAÏD, Daniel. Permanent Scandal. In: AGAMBEN, Giorgio. [et al.]. Democracy in what state? New York: Columbia University Press, 2012. CACCIOTTOLO, Mario. ‘The Streisand Effect: When censorship backfires’. BBC, 15/06/2012. Disponível em: <http://www.bbc.co.uk/news/uk-18458567> Acesso em: 2 de mar. 2014.

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Pressão Virtual e Regulamentação Digital Brasileira – Ivan Paganotti

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PRIVACIDADE, NEUTRALIDADE E INIMPUTABILIDADE DA INTERNET NO BRASIL: AVANÇOS E DEFICIÊNCIAS NO PROJETO DO MARCO CIVIL PRIVACIDAD, NEUTRALIDAD Y INIMPUTABILIDAD DE LA INTERNET BRASILEÑA: AVANCES Y LIMITACIONES EM EL MARCO CIVIL PRIVACY, NET NEUTRALITY AND NONIMPUTABILITY: STRENGTHS AND WEAKNESSES IN THE BRAZILIAN INTERNET LAW PROJECT

Arthur Coelho BEZERRA Doutor em sociologia pela UFRJ, com pós-doutorado pela mesma instituição. Pesquisador adjunto do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT). Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação (PPGCI - IBICT/UFRJ). Pesquisador do Núcleo de Estudos da Cidadania, Criminalidade e Violência Urbana (NECVU- UFRJ) Email: arthurbezerra@ibict.br

Igor WALTZ Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação (PPGCI - IBICT/UFRJ) Email: igor.waltz@gmail.com

Revista Eptic Online Vol.16 n.2 p.161-175 mai-ago 2014 Recebido em 28/02/2014 Aprovado em 20/04/2014


Privacidade, neutralidade e inimputabilidade da internet no Brasil - Arthur C. Bezerra; Igor Waltz

Resumo O trabalho examina a governança da internet no Brasil, a partir do texto do Marco Civil, sancionado pela Presidente Dilma Rousseff em abril de 2014. A crescente centralidade da rede na vida política e social urge a delimitação de direitos e responsabilidades de usuários, empresas e demais atores envolvidos. Acerca dessa demanda, são analisados os artigos do PLC 21/2014 que dizem respeito à “Privacidade”, “Inimputabilidade” e “Neutralidade da Rede”, seus avanços e limitações de ordem técnica, econômica e legal.

Palavras-chave Marco Civil da Internet; Governança; Neutralidade da Rede; Privacidade; Inimputabilidade.

Resumen Este artículo examina la Gobernanza de Internet en Brasil, desde el Marco Civil sancionado por la presidente Dilma Rousseff en abril de 2014. La creciente centralidad de la red en la vida política y social insta a la delimitación de los derechos y responsabilidades de los usuários, las empresas y otras partes involucradas. Por tanto, se analizan los artículos del proyecto 21/2014 que conciernen a la "Privacidad", "Inimputabilidad" y "Neutralidad de la red", los avances y limitaciones de orden técnico, económico y jurídico. Palabras clave Marco Civil de Internet; Gobernanza; Neutralidad de la red; Privacidad; Inimputabilidad.

Abstract The paper examines the governance of the Internet in Brazil, from the Marco Civil text which is being discussed in the Legislature. The growing centrality of the internet in social and political life urges the delimitation of rights and responsibilities of users, companies and other stakeholders. About this demand, we intend to analize the articles of the law project PL 2.126/2011, focusing on issues such as net neutrality, net privacy and net nonimputability. Keywords Internet law, Governance, Net Neutrality, Privacy, Nonimputability.

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Privacidade, neutralidade e inimputabilidade da internet no Brasil - Arthur C. Bezerra; Igor Waltz

Introdução

Nas últimas décadas, com a popularização das tecnologias de informação e comunicação (TICs), a internet tem assumido um destacado papel na formatação de uma esfera pública de abrangência global. Com implicações nos campos econômico, político e sociocultural, a rede das redes se tornou um importante palco para o exercício da cidadania e livre expressão. Essa dimensão destaca a governança da internet como uma questão urgente na contemporaneidade. Ainda que a internet tenha propiciado mais democratização na concessão de vozes por meio de uma proliferação de polos emissores, por ela também espreita uma miríade de ameaças a liberdades democráticas. A defesa da privacidade, em teoria apregoada consensualmente por quase todos os atores envolvidos na rede, é posta em xeque por ações de espionagem e vigilância de governos e grandes empresas. A neutralidade da rede, por sua vez, é ponto de divergência entre os interesses público e de provedoras de internet, no Brasil e ao redor do mundo. Em vistas de estabelecer uma regulamentação do uso da internet, o Brasil aprovou em abril de 2014 o Marco Civil da Internet, a constituição do país para o setor, que estabelece direitos, deveres e garantias dos usuários. Ainda que a nova lei constitua um passo importante para o estabelecimento de parâmetros legais para a internet, a governança vai muito além de um marco legal e incide também sobre questões econômicas (modelos de negócio) e de infraestrutura (manter compatibilidade de sistemas e dispositivos, mitigar os riscos de fragmentação, etc), entre outras. Este artigo se propõe a discutir os pontos considerados de maior relevância e controvérsia do Marco Civil da Internet, a saber, a privacidade, a neutralidade da rede e a inimputabilidade da rede, bem como sua eficiência frente a desafios econômicos e infraestruturais.

A questão da governança da internet

A rede mundial de computadores tem suas raízes nos laboratórios militares de pesquisa tecnológica dos Estados Unidos durante a Guerra Fria. Uma das redes pioneiras foi a Advanced Research Projects Agency Network (ARPANet), idealizada pelo Departamento de Defesa estadunidense nos anos 1960, como um modelo descentralizado de transmissão de dados por computadores interligados, com o intuito de proteger o fluxo de informações militares de um possível ataque soviético. Na década seguinte, com o desenvolvimento dos protocolos TCP/IP, foi possível que diferentes redes de distintos países e continentes se comunicassem entre si, o que lançou as bases para uma rede em escala global.

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A formatação de uma grande rede de redes sem um nó central, somada à popularização dos computadores pessoais, smartphones e serviços de comunicação nas décadas seguintes, fizeram da internet um fenômeno com implicações políticas, econômicas e socioculturais. Segundo MacKinnon (2012), a rede se consolidou como uma nova esfera política internacional, uma vez que plataformas e serviços oferecidos na internet atribuíram mais poder aos cidadãos, permitindo-os desafiar o governo de seus países e governos estrangeiros que de alguma forma os afetam. 1 - MINISTÉRIO DAS COMUNICAÇÕES. “Começa de fato a implantação do anel óptico sul-americano”. Disponível em http://www.mc.gov.br/ telecomunicacoes/noticiastelecomunicacoes/27200comeca-de-fato-aimplantacao-do-aneloptico-sul-americano. Acesso em 30 de abril de 2014

2- isponível em: http://www. observatoriodaimprensa. com.br/radios/view/ gt_gt_o_big_brother_ desmascarado_lt_br_gt_gt_ gt_soberania_e_privacidade ) Acesso em 30 de abril de 2014

3- Idem

A ausência de uma centralidade da rede, no entanto, não configura uma dispersão equivalente dos fluxos. Quase a totalidade do trânsito de dados da América Latina passa pelos Estados Unidos, que concentra grande parte da infraestrutura global de telecomunicações. Apenas em 2013 foi inaugurado o primeiro caminho digital binacional entre Brasil e Uruguai, considerado o primeiro passo para a implantação de um anel óptico sulamericano, que conectará os países do continente entre si e com a Europa e a África1. O debate em torno do tema ganhou força no país após a divulgação de ações espionagem da Agência Nacional de Segurança dos EUA (NSA, na sigla em inglês), por meio da quebra da criptografia de mensagens que circulam pela internet e armazenamento de metadados (e possivelmente de dados) dessas comunicações. Não apenas países considerados como integrantes do Eixo do Mal, como China, Rússia e Irã, foram alvos de espionagem, mas também Brasil, México, Alemanha e França. Segundo o jornalista Luciano Martins Costa, “esse tipo de informação privilegiada coloca em xeque o mito da liberdade comercial e, teoricamente, quebra o princípio da igualdade de condições que supostamente governa o capitalismo globalizado”2. Como exemplos, Costa cita o risco de uma empresa norte-americana de petróleo conseguir mapear a estratégia de investimentos da Petrobras, ou dos benefícios que o setor agrícola dos Estados Unidos teria a partir do rastreamento de informações do agronegócio brasileiro; “se a espionagem americana no Irã e no Paquistão é motivada por questões de segurança, o monitoramento das comunicações na China e no Brasil deve ter outras razões, uma vez que esses dois países estão fora do mapa principal do terrorismo internacional”3. O abuso de poder de vigilância do governo norte-americano veio à tona por meio de denúncias do jornal The Guardian, com base em informações vazadas por Edward Snowden, ex-analista de segurança da NSA. O programa de vigilância Prism, usado pela agência, coletaria dados de provedores online, como e-mail, chats, vídeos, fotos e toda a sorte de dados armazenados na internet, com o envolvimento de gigantes da internet, como Google e Facebook (BEZERRA; SCHNEIDER; SALDANHA, 2013). Após as revelações, a governança da internet para uma nova arquitetura que permita uma governança global da rede foi reconduzida ao protagonismo dos debates internacionais. O tema já vinha sendo debatido no âmbito dos órgãos de direito internacional desde 2004, época da realização do primeiro fórum global sobre o assunto. Em 2014, São Paulo sediou a Conferência Multissetorial Global sobre o Futuro da Internet (NETMundial), com a presença de representantes de 95 países, tendo como um dos principais temas de debate

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a transferência de parte do controle de Washington sobre a internet do mundo para organismos multilaterais, como a Organização das Nações Unidas (ONU), por meio da União Internacional de Telecomunicações (UIT). Como afirmam Bezerra, Schneider e Saldanha (2013), a pregnância mundial e a natureza descentralizada da internet trazem um considerável potencial democratizante, possibilitando uma maior autonomia para produção, reprodução e distribuição de bens culturais e informacionais do que aquela alcançada no século anterior. No entanto, ao mesmo tempo em que as redes empoderam usuários com mais voz e capacidade de mobilização social, elas abrem uma importante lacuna à vigilância de governos e grandes corporações, possibilitando maior controle estatal sobre a vida dos cidadãos, violação da privacidade de indivíduos e de segredos empresariais, espionagem internacional e outros expedientes. De acordo com MacKinnon, ao redor do mundo, “todos os governos, de ditaduras a democracias, estão aprendendo rapidamente como usar a tecnologia para defender seus interesses” (MacKINNON, 2012, p. 5. Grifo da autora. Tradução nossa). No Brasil, o debate em torno da legislação específica para regulamentar os direitos e as garantias dos usuários da internet tomou corpo depois da revelação da espionagem norteamericana à Presidente Dilma Rousseff e outras autoridades. O PLC 21/2014, aprovado em 22 de abril de 2014, foi redigido para dar maior peso à questão da privacidade e foi uma das prioridades do governo brasileiro no ano de 2013. Com a instituição da nova lei, o Brasil passou a compor, junto com Países Baixos e Chile, um seleto grupo de nações que promulgaram legislações específicas para regular a rede. Apesar de ter sido aprovado em tempo recorde pelo Senado Federal, e sancionado pela Presidente Dilma Rousseff no dia seguinte, durante a abertura do NETMundial, o projeto do Marco Civil permaneceu quase três anos emperrado na Câmara dos Deputados, principalmente por conta do lobby das grandes empresas de telefonia contra a chamada neutralidade da rede, isto é, a não-discriminação no trânsito da rede dos pacotes de dados em relação a seu conteúdo ou origem. Assim como nos debates que tomam corpo em todo o mundo, as discussões que prenderam o projeto na Câmara giraram em torno de duas correntes: os defensores da neutralidade como uma garantia à liberdade de expressão, e os “desreguladores”, que apregoam que qualquer tipo de intervenção no setor poderia desincentivar investimentos e inovações dos provedores de serviços na rede. Ramos (2005) lembra que o discurso do livre-mercado e da desregulação dos serviços públicos tornou-se hegemônico na América Latina a partir dos anos 1980, com a consolidação da doutrina neoliberal. Nas palavras do autor, durante a onda de privatizações, o Estado passou a se distanciar do papel de “definidor da políticas” para a área de telecomunicações e adotou a postura de “fiscalizador”, por meio de agências reguladoras. Não obstante, é possível afirmarmos que a postura mais atuante do governo em relação a um marco regulatório para a internet a partir de 2013 ganhou impulso especial por motivações de segurança e especificidades da rede.

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Como explica Califano (2013), a internet representa novos desafios regulatórios em relação aos modelos tradicionais de telecomunicações, pelo volume de dados que se transporta. E por esse mesmo motivo, é preciso que haja intervenção dos governos por meio de leis específicas para assegurar os direitos de quem acessa a rede. “A gestão do tráfico da internet requer regulação específica, com intuito de equilibrar os interesses dos usuários, dos provedores de serviço de conectividade e dos provedores de conteúdos e aplicações”. (CALIFANO, 2013, p. 33) O texto da nova lei foi elaborado com base no documento “Princípios para a governança e o uso da internet”, do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), organismo multissetorial responsável por integrar iniciativas de uso e desenvolvimento da internet brasileira. O documento é resultado de uma consulta pública, promovida entre 2009 e 2010, na qual foram arroladas mais de 800 contribuições de diferentes representantes da sociedade civil. Entre os principais eixos temáticos tratados pelo texto, e adotados pelo Marco Civil da Internet, estão a privacidade, a neutralidade da rede e a inimputabilidade da rede. Tais princípios garantiriam os direitos e liberdades democráticas de internautas frente a ações abusivas de governos (nacionais e estrangeiros) e empresas prestadoras de serviços. Trataremos mais a fundo a efetividade de cada um desses eixos a seguir.

Privacidade e Segurança contra Espionagem

A privacidade e a intimidade são direitos fundamentais presentes na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Constituição da República de 1988. A privacidade refere-se a tudo o que o indivíduo não pretende que seja de conhecimento público, reservado apenas aos integrantes de seu círculo de convivência particular, enquanto a intimidade diz respeito única e exclusivamente ao indivíduo. Esses direitos se estendem ao domicílio, à correspondência, às comunicações e aos dados pessoais. O advento das tecnologias digitais foi acompanhado por uma gradual restrição à proteção desses direitos. Silva aponta que, a respeito de uma ameaça que atente contra a privacidade, a expectativa culturalmente firmada é a de que “o trânsito facilitado de informação não evada a dimensão pessoal, de coisas que os indivíduos têm o direito e/ou o dever de guardar para si” (SILVA, 2013, p. 396). Mas o fluxo e o armazenamento de comunicações e informações pessoais na rede abrem brechas à vigilância estatal indevida, uso impróprio de dados de clientes por empresas, ataque de hackers a data centers e a dispositivos pessoais, vazamento de informações sigilosas por pessoas mal-intencionadas a fim de denegrir a imagem de terceiros, entre outros. A necessidade de se estabelecer regras claras e específicas para a proteção da privacidade e da intimidade parece ter sido o motor para a tentativa do governo de acelerar a votação do Marco Civil no Congresso Nacional. O artigo 7º reconhece a importância da internet para a cidadania e reitera a inviolabilidade da vida privada e das comunicações em fluxo

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e armazenadas, salvo ordem judicial. O artigo 8º, por sua vez, estabelece a liberdade de expressão e da privacidade como condições para o pleno exercício de direito da internet. Além de salvaguardar garantias já previstas pela Constituição, a aprovação de uma legislação nacional que regule o uso da rede colocaria o Brasil em posição de destaque no debate internacional. A governança global da internet parece ter entrado na agenda das relações exteriores do país, e a inviolabilidade das comunicações, inclusive, foi a tônica do discurso da Presidente Dilma Rousseff durante a abertura da 68ª Assembleia da Organização das Nações Unidas. Tal fato se explica pela própria líder ter sido alvo de espionagem pelo governo dos EUA, algo que considerou uma ameaça à soberania nacional. Como afirmam Assange, Müller-Maguhn, Appelbaum e Zimmermann (2013), em nome do combate ao que chamam de “Cavaleiros do Infoapocalipse” – pornografia infantil, terrorismo, lavagem de dinheiro e tráfico internacional de drogas – erigiu-se um sistema de vigilância de alcance global, sem grande resistência da opinião pública. Mas os autores denunciam que todo esse aparato é utilizado para fins outros que o combate ao crime internacional. O armazenamento em massa das informações transmitidas por serviços de telecomunicações, aponta Assange, seria uma das estratégias em curso de um processo de militarização do ciberespaço. Se antes havia uma seleção dos indivíduos dos quais se queria interceptar, a estratégia hoje é a de interceptação e armazenamento geral de dados, ou o que Müller-Maguhn chama de “armazenamento em massa – o armazenamento de todas as telecomunicações, todas as chamadas de voz, todo o tráfego de dados, todas as maneiras pelas quais se consomem serviços de mensagem de texto (SMS), bem como conexões à internet” (ASSANGE et al., 2013, p. 56). Segundo Appelbaum, trata-se de “uma questão de controle por meio da vigilância. Em certos aspectos, é o panóptico perfeito” (idem, p. 39). Appelbaum refere-se à ideia do jurista inglês Jeremy Bentham, analisada na década de 1970 pelo filosofo francês Michel Foucault (2000), de uma arquitetura de poder, conhecida como panopticon, em que a possibilidade de uma vigilância se faz interiorizada na forma de disciplina pelos sujeitos. É na ideia de “panóptico perfeito”, ou seja, da vigilância perpétua real, e não apenas presumível, que reside o grande paradoxo da rede: na mesma medida em que permite a proliferação de uma infinidade de novas formas de comunicação mais livres de censura, aumenta também a vigilância sobre essas novas formas. É por esse imperativo ao oversharing e à tecnointeração que se exercem as novas formas de controle, como a infovigilância e o datacontrole, listados por Sodré (2012). Apesar do tom pessimista de denúncia que permeia a obra de Assange et al., os autores apontam duas saídas para o problema da infovigilância. De um lado, pelas leis da física, que possibilitariam o desenvolvimento de dispositivos que impedissem a interceptação, e do outro, pelas “leis dos homens”, por meio de controles democráticos e prestação de contas em termos legislativos, sob o slogan cypherpunk “privacidade para os fracos, transparência para os poderosos”.

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Mas até que ponto interessa aos governos proteger a privacidade de seus cidadãos? Estariam comprometidos com a questão da transparência a despeito de interesses próprios? Como coibir abusos do próprio Estado que, teoricamente, nas democracias, legisla em nome dos cidadãos? Essas questões se fazem pertinentes, uma vez que, enquanto brada em órgãos internacionais contra a espionagem, o governo brasileiro adota medidas similares por meio da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Segundo Ronaldo Lemos, o sistema criado pela citada agência permite acessar os registros de todas as ligações telefônicas feitas no País. Soma-se a isso a proposição da Anatel, também lembrada por Lemos, de “obrigar empresas de telefonia a revelar à polícia a localização exata de qualquer usuário de celular, imediatamente e por mera solicitação, sem o controle do Judiciário” (apud BEZERRA; SCHNEIDER; SALDANHA, 2013). A tecnologia, enquanto campo de luta entre governos e cidadãos por hegemonia, aparece com mais evidência após as ondas de protestos que tomaram as ruas de diversos países do mundo, inclusive do Brasil. Tal fenômeno chama a atenção especialmente por aparecer sem grandes constrangimentos em regimes democráticos ocidentais. Na Espanha, a recente Ley de Seguridad Ciudadana estabelece como “infração muito grave”, sujeita a multa de 3 mil a 6 mil euros, a convocação de “manifestações com finalidade coativa”. Nos EUA, o FBI coletou nos sistemas das Universidades, com a conivência das reitorias, informações sobre alunos participantes do movimento Occupy Wall Street, em 2012. No Rio de Janeiro, houve uma tentativa de se criar, via decreto, uma Comissão Especial de Investigação de Atos de Vandalismo em Manifestações Públicas (CEIV), que conferiria ao governo do estado poderes para a quebra de sigilo telefônico e de internet. “O governador Sérgio Cabral, ao propor tal medida, parece se alinhar ao discurso de Barack Obama para justificar as denúncias de Snowden: você não pode ter 100% de segurança, e então 100% de privacidade e zero de inconveniência” (BEZERRA; SCHNEIDER; SALDANHA, 2013).

O Papel das Empresas

Uma vez que a efetividade da proteção à privacidade aludida pelo Marco Civil pode ser limitada por medidas governamentais de caráter antidemocrático, o que dizer de abusos externos a esse direito constitucional? Como dito anteriormente, grande parte dos fluxos de dados da América Latina são transportados e armazenados por empresas sediadas em solo estadunidense. O governo brasileiro defendeu que poderia contornar o problema ao obrigar grandes provedores estrangeiros de serviços de internet, tais como Google e Facebook, a implantarem data centers em território nacional. Contudo, o artigo do Marco Civil que previa tal norma não foi aprovado na Câmara dos Deputados, em parte graças à ação de lobby das empresas citadas. O grande problema em relação à eficácia da instalação de tais bancos, porém, diz respeito à arquitetura da rede. Mesmo que os dados sejam armazenados no Brasil, eles trafegam

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em infovias que passam por outros países – especialmente os EUA. Ou seja, ainda permaneceriam vulneráveis à interceptação e vigilância. O fato é que os produtos e serviços fornecidos pelos provedores de conexão e aplicativos de internet são os meios pelos quais os cidadãos interagem e exercem sua cidadania na rede. Cada vez mais, empresas privadas tomam para si um papel fundamental de mediação do debate público ao redor do mundo. E isso não se daria sem perdas à democracia, ideologicamente pautada pelo confronto entre diferentes vozes. Um exemplo: o algoritmo do Facebook faz com que um determinado usuário veja com mais frequência atualizações de pessoas mais próximas, com base em interações prévias. Ele deduz o que e quem são mais prováveis ao interesse do usuário. O restante geralmente tende a se perder na saturação de mensagens, imagens e vídeos do site de rede social. A formação desses feudos informativos por meio do excesso de personalização, que caracteriza aquilo que Pariser (2011) chama de bolha filtro (filter bubble), seria a arma silenciosa das empresas de internet para fortalecer suas estratégias comerciais.

Assim como o sistema de produção da fábrica que produz e fornece nosso alimento molda o que comemos, a dinâmica da mídia modela que informação consumimos. (...) Os filtros de personalização funcionam como uma espécie de autopropaganda invisível, doutrinando-nos com nossas próprias ideias, ampliando nosso desejo por coisas que nos são familiares e deixando-nos alheios aos perigos à espreita no escuro território do desconhecido. (PARISER, 2011, p. 9. Tradução nossa)

MacKinnon (2012) vai além e propõe que a habilidade de organizar nossa fala está sendo moldada pelos provedores de serviços de internet. Se haveria uma velada manipulação das nossas comunicações, nossa competência para entender como o poder está agindo sobre nós e nossa capacidade de tomar esse poder de volta começariam a ser erodidas de uma maneira insidiosa, imperceptível. Para a autora, companhias de internet como Google e Facebook ganharam muito poder sobre a vida dos cidadãos, com muito pouca transparência ou prestação de contas (accountability) ao público. Conforme denuncia Lannier (2013), para tornarem-se rentáveis e desenvolver anúncios relevantes, as companhias precisam conhecer profundamente os usuários, seguindo seus rastros e informações que disponibilizam na rede. O conteúdo produzido gratuita e voluntariamente pelos indivíduos, que inclui seus hábitos de consumo, cybermovimentos e outras informações relevantes, é armazenado e convertido em estratégia comercial por meio de potentes servidores, batizados por ele de “servidores-sereia” (siren servers), acessíveis apenas a grandes conglomerados do setor. Para o autor, a saída – um tanto quanto utópica – seria a instituição de micropagamentos a cada vez que os dados individuais são utilizados para a tomada de decisão.

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Suponhamos que qualquer servidor em nuvem, seja uma rede social, um esquema de Wall Street ou mesmo uma agência governamental, fosse obrigado a pagar-lhe por dados úteis derivados de você. (...) Você teria direitos comerciais intrínsecos, inalienáveis aos dados que não existiriam sem você. Isso significaria, por exemplo, que o Facebook lhe enviaria pequenos pagamentos quando dados obtidos automaticamente a partir de você tenham ajudado algum anunciante a vender algo para um amigo seu. Se o seu rosto aparece em um anúncio, você é pago. Se você é rastreado enquanto anda pela cidade, e ajuda ao governo tornar-se ciente de que a segurança de pedestres pode ser melhorada com uma melhor sinalização, você deveria obter um micropagamento por ter contribuído dados valiosos. (LANIER, 2013, p. 673-674. Tradução nossa)

A proposição do autor dificilmente será levada a cabo pelo modelo concentrador desenvolvido pelos grandes do Vale do Silício, mas atenta os usuários sobre usos de informações geradas por eles sem que tenham sequer consciência disso. Os artigos 10, 11 e 12 do Marco Civil da Internet tratam da proteção aos registros dos usuários, mas em nenhum momento regulam os usos desses registros. O Art. 10 estabelece que a guarda e a disponibilização de registros de conexão e acesso a aplicações na internet deve ocorrer de forma a preservar a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das partes direta ou indiretamente envolvidas, determinando que o responsável pela guarda somente será obrigado a disponibilizar informações que levem à identificação do usuário mediante solicitação judicial. Após o parecer do relator do projeto de lei, foram incluídos dados pessoais e conteúdo de comunicações privadas no escopo do artigo. Mas embora a lei proteja o usuário da divulgação imprópria de informações de caráter pessoal, não contempla o fato de que o uso comercial dessas informações em poder das empresas também poderia ser considerado uma violação de privacidade e da intimidade dos indivíduos. Em suas obras, MacKinnon, Lanier e Pariser apontam o grande empoderamento das grandes empresas da internet nas relações políticas e econômicas atuais. Mas haveria alguma forma de regular ou limitar tal poder de gerenciamento do fluxo da rede, em torno da qual cada vez mais se organiza a sociedade contemporânea? Essa questão permanece aberta a futuras considerações.

Neutralidade da Rede

Um dos principais empecilhos que atrasaram a votação do Marco Civil foi a falta de consenso ao redor do tópico “neutralidade da rede”. Prevista no Artigo 9º, a neutralidade estabelece que todos os dados que trafegam na rede devem receber o mesmo tratamento

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das empresas provedoras de acesso, sem distinção de origem, destino, serviço, conteúdo ou dispositivo (computador ou aparelho móvel). O conceito de neutralidade da rede alinha-se à resolução da Organização das Nações Unidas que aponta o acesso à internet como um Direito Humano. O Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos, adotado pelo Brasil em 1992, estabelece no 2º parágrafo do Art. 19 que “toda pessoa terá direito à liberdade de expressão; esse direito incluirá a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito”. A ONU entende que qualquer restrição ou bloqueio à internet constitui uma violação do artigo 19, mesmo por conta de infrações de direitos autorais, como acontece em países como Reino Unido e França. As empresas de telecomunicações alegam que neutralidade acarreta um prejuízo ao modelo de negócios baseado em vendas de planos específicos de tráfego, como os de acesso exclusivo a redes sociais, jogos ou vídeos. Esses planos bloqueariam ou reduziriam a velocidade para acesso a outros serviços ou páginas da internet. Outro argumento das companhias é o de que aplicativos gratuitos de mensagens instantâneas para dispositivos móveis, como WeChat e WhatsApp, estariam sobrecarregando a rede e reduzindo o uso de serviços pagos de SMS. Temendo que a legislação atrapalhasse seus interesses comerciais, empresas de telecomunicações, por meio de um eficiente lobby, entraram em um acordo diretamente com o Poder Executivo para que a venda de pacotes diferenciados fosse permitida, o que gerou tensão no Congresso Nacional. De acordo com o Marco Civil, a degradação do sinal só poderia ocorrer por conta da ausência de requisitos técnicos necessários ao bom funcionamento ou para a priorização de serviços de emergência, mas, mesmo nesses casos, as empresas responsáveis deveriam “abster-se de causar danos aos usuários” e “agir com proporcionalidade, transparência e isonomia”. No Artigo 9º, o 3º parágrafo veda expressamente o bloqueio, monitoramento, filtro ou análise dos pacotes de dados, sendo excluída a proibição de “fiscalizar”, presente na redação original do projeto. Livres para “fiscalizar”, as empresas não seriam impedidas de acessar os cabeçalhos dos pacotes de dados, que argumentam ser essencial para a boa gestão da rede e evitar congestionamentos. Califano (2013) aponta que novas tecnologias permitem identificar o conteúdo de um pacote de dados ao transmití-lo, o que permite aos provedores saber se ele precisa ser transportado em uma largura de banda maior ou menor. Da mesma forma que essas tecnologias podem ser utilizadas com propósito de identificar a que velocidade ele deve ser transmitido, podem usá-lo para sobretaxar esse envio. Silveira (2009) afirma que esse controle do fluxo de pacotes pode conferir às operadoras de telefonia e de conexão um papel de controladores de acesso (gatekeepers) da internet. Dessa forma, é observado mais uma vez um foco de tensão entre modelos comerciais de exploração da rede e interesses sociais inerentes a ela. A internet foi concebida a

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partir da necessidade de um fluxo de comunicação livre da ameaça de interferências e sem distinção de origem e destino. A neutralidade garante que conteúdos e usuários sejam tratados de maneira equivalente. Se a cidadania é cada vez mais exercida por meio da rede, o modelo das provedoras de telecomunicação garante melhor acesso àqueles que podem pagar mais por isso.

Inimputabilidade da Rede

A inimputabilidade da rede – ou a exclusão de culpabilidade – alude à delimitação das responsabilidades de diversos atores envolvidos na disponibilização e no uso da internet, com vistas a impedir a censura e promover a liberdade de expressão. De acordo com o Artigo 18 do Marco Civil, “o provedor de acesso à internet não será responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros”. Ou seja, companhias provedoras de conexão, de hospedagem de sites ou de search engines responderiam apenas em caso de desobediência de ordem judicial para exclusão de determinados conteúdos. Exemplos de penalização de provedores da internet se proliferam no Judiciário brasileiro. Em setembro de 2012, Fábio Coelho, diretor-presidente do Google Brasil, foi detido pela Polícia Federal após a empresa negar a responsabilidade de vídeos publicados no YouTube que acusavam um candidato a prefeito de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, de cometer crimes como lesão corporal e enriquecimento ilícito. Com a aprovação do Marco Civil, situações como essa não devem se repetir. A adequada responsabilidade limitaria ações indiscriminadas de censura e coerção. Mas há na lei uma importante restrição: ela não se aplica a direitos do autor nem a direitos , que dependerá de uma legislação específica futura. Tal mudança foi incluída pelo relator do projeto graças à pressão de emissoras de televisão, especialmente pela Rede Globo. Apesar de o Marco Civil ser baseado em um documento que expressa demandas da sociedade por meio de consultas públicas, a demora de sua votação provém da tentativa de ajuste do projeto aos interesses comerciais de grandes empresas. Tanto as teles como as emissoras fazem parte do grupo que Silveira (2009; 2011) classifica como “indústrias de intermediação”, cujos negócios se baseiam na venda de suportes materiais, controle dos canais de exibição e transmissão de bens imateriais. Com a desintermediação, ou seja, a libertação desses bens de seus suportes por meio da rede, grupos de radiodifusão e de telecomunicações estão iniciando uma verdadeira cruzada para a criação de dispositivos legais possam bloquear a libertação da criação e distribuição na internet.

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Considerações finais

Por delimitar direitos e responsabilidades de usuários, a partir das demandas da sociedade enviadas por meio de consultas públicas, o Marco Civil da Internet representa um importante avanço na governança da rede no país. Todavia, exatamente por conta do caráter global da rede, medidas legais de segurança perdem efetividade se não forem acompanhadas de devidos avanços de infraestrutura. O Marco Civil constitui talvez uma das pedras fundamentais para a promoção da liberdade de expressão, combate à censura e promoção de direitos constitucionais da internet, mas não encerra o debate, uma vez que é preciso avançar em termos técnicos, políticos, legais e sociais. A efetividade de uma legislação para a rede depende que o governo produza, em curto prazo, uma série de regulamentações que instituirão os detalhes de como serão tratados temas centrais do novo arcabouço jurídico, como liberdade de expressão, segurança de dados e, especialmente, direitos de autor e copyright, que dependerão de leis ainda a serem criadas. Somente dessa forma será possível caminhar para que os avanços propostos pelo marco se tornem efetivos e as suas deficiências sejam superadas.

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