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Eptic On Line, v. XIII, n. 2, may-ago. 2011

1. Expediente 2. Presentación

Artículos 3. Mapas subjetivos de um mundo em movimento: migrações, mídia étnica e identidades transnacionais Mohammed ElHajji

4. Escolha Coletiva, Governança e Direitos de Propriedade Intelectual: uma Análise Econômica dos Commons Alain Herscovici

5. Face paulista da TV digital: reflexão sobre a multiprogramação na TV Cultura Vivianne Lindsay Cardoso; Juliano Maurício de Carvalho

Entrevista 6. "A produção do espaço em época de valorização financeira do capital": entrevista com Vera Pallamin Ruy Sardinha Lopes

Especial Economia Política da Arte 7. Elementos para una crítica de la economía política del arte José María Durán

8. A arte do avesso: a função da denegação econômica no mercado artístico e as novas formas de recomendação e mediação cultural na internet Rose Marie Santini

9. As influências da Política Nacional de Cultura na criação do Núcleo de Arte Contemporânea da Universidade Federal da Paraíba no final dos anos 70 Fabricia Cabral de Lira Jordão


2 10. Milionários nada por acaso: capital rentista e apropriação do trabalho artístico nas redes do espetáculo Marcos Dantas

Investigación 11. TV digital aberta: conflitos na implantação de uma nova mídia no Brasil Patrícia Maurício

12. Mídia étnica em Portugal: a construção de representações identitárias na revista Afro Rosangela Ferreira de Carvalho Borges

13. La comercialización intra e interregional del cine euro-iberoamericano en la era digital Cristina Paz García

14. La segmentación del mercado como estrategia de venta en España: el caso del diario Público Rosalba Mancinas Chávez; Belén Zurbano Berenguer; Sara Domínguez Martín

Reseña/Nota de Lectura 15. TV digital: da promessa a realidade. Os caminhos da digitalização Alexon Gabriel João


EXPEDIENTE Revista de Economía Política de las Tecnologías de la Información y Comunicación Volume XIII, Número 2, May. a Ago. de 2011 - www.eptic.com.br ISSN 1518-2487 Revista avaliada como “Nacional B” pelo Qualis/Capes Eptic On Line,

DIRECTOR César Bolaño (UFS - Brasil)

Edgar Rebouças (UFPE - Brasil) Enrique Bustamante (UCM – Espanha) Enrique Sánchez Ruiz (UG – México)

EDITOR Valério Cruz Brittos (UNISINOS – Brasil)

Francisco Rui Cádima (UNL – Portugal) Gaëtan Tremblay (Un. de Québec - Canadá) Gilson Schwartz (USP - Brasil)

EDITORES ADJUNTOS Luis A. Albornoz (Un. Carlos III - Espanha) Francisco Sierra (Un. Sevilla – España) APOIO TÉCNICO Joanne Mota (UFS – Brasil) Eloy Vieira (UFS – Brasil) Elizabeth Azevedo Souza (UFS – Brasil) Rafael Silva Bispo (UFS - Brasil)

Giovandro Marcus Ferreira (UFES - Brasil) Graham Murdock (Loughbrough Univ. - UK) Guillermo Mastrini (UBA – Argentina) Hans - Jürgen Michalski (Univ. Bremen Alemanha) Helenice Carvalho (UNISINOS – Brasil) Isabel Urioste (Un. Compiègne – França) Jean-Guy Lacroix (Un. de Québec - Canadá) Jorge Rubem Bitton Tapia (UNICAMP - Brasil) Joseph Straubhaar (Univ. Texas - EUA)

PARECERISTAS AD HOC Anita Simis (Unesp – Brasil) Alexandre Barbalho (UFCE – Brasil)

Juan Carlos de Miguel (Un. Pais Vasco Espanha) Luiz Guilherme Duarte (UOPHX - EUA)

Ana Letícia Fialho (Brasil)

Márcia Regina Tosta Dias (FESPSP - Brasil)

Roberto de Magalhães Veiga (PUC-RJ – Brasil)

Marcial Murciano Martinez (UAB – Espanha)

Sayonara Leal (UNB – Brasil) Verlane Aragão (UFS – Brasil)

Marcio Wohlers de Almeida (UNICAMP - Brasil) Murilo César Ramos (UnB – Brasil) Nicholas Garham (Westminster Unv. - UK)

CONSEJO EDITORIAL

Othon Jambeiro (UFBa - Brasil)

Abraham Sicsu (Fund. Joaquim Nabuco – Brasil) Alain Herscovicci (UFES – Brasil)

Peter Golding (Loughborough Univ. - UK)

Alain Rallet (Univ. Paris - Dalphine-França)

Philip R. Schlesinger (Stirling Univ. - UK)

Anita Simis (UNESP - Brasil) Cesare G. Galvan (UFPb - Brasil) Delia Crovi (UNAM - México) Dênis de Moraes (UFF - Brasil) Diego Portales (Univ. del Chile) Dominique Leroy (Un. Picardie – França)

Pedro Jorge Braumann (UNL – Portugal)

Pierre Fayard (Un. Poitiers – França) Ramón Zallo (Un. Pais Vasco – Espanha) Reynaldo R. Ferreira Jr. (UFAL – Brasil) Roque Faraone (Um. de la República - Uruguai) Ruy Sardinha Lopes (USP – São Carlos – Brasil) Sérgio Augusto Soares Mattos (UFBA - Brasil)


Presentación O segundo número da Revista EPTIC On Line acompanha o debate latinoamericano sobre a centralidade da Cultura, no início do século XXI, no interior da Indústria Cultural. Desse modo, compila, em sua Sessão Especial, organizada pelo prof. Dr. Ruy Sardinha Lopes, presidente da Ulepicc-Br e professor do Instituto de Arquitetura da USP, campus São Carlos, pesquisas referentes ao campo da ‘Economia Política da Arte, uma área ainda incipiente, mas que tem se mostrado de fundamental importância no esclarecimento das relações entre as dimensões simbólicas e materiais na contemporaneidade. Para esta sessão foram selecionados cinco trabalhos, o primeiro trabalho intitulado ’Elementos para una crítica de la economía política del arte’, de autoria do pesquisador José María Duran propõe uma estrutura conceitual para as análises da economia política das obras de arte, tanto em sua particularidade econômica como em sua especificidade histórica.O segundo trabalho apresentado pela pesquisadora Rose Marie Santini e que tem como título ‘A arte do avesso: a função da denegação econômica no mercado artístico e as novas formas de recomendação e mediação cultural na internet’, problematiza o processo de “produção de valor simbólico” de obras e artistas através da recomendação, considerando as contradições do mercado artístico, instauradas nos limites da relação entre a “economia” e o público. Com o título ‘Entre o reconhecimento e a reificação: o dilema da diversidade nas atuais políticas culturais recifenses’, a pesquisadora Michely Peres de Andrade identifica a contradição entre essencialismo e construtivismo no ideário de diversidade cultural que orienta as políticas públicas destinadas à cultura no Brasil nas últimas décadas. Ainda com foco no Nordeste do Brasil, a penúltima publicação do Especial que traz como título ‘As influências da Política Nacional de Cultura na criação do Núcleo de Arte Contemporânea da Universidade Federal da Paraíba no final dos anos 70’ e é de autoria da pesquisadora Fabricia Cabral de Lira Jordão, evidência a importância das universidades federais durante o Regime Militar, sobretudo no momento em que o país se prepara para a abertura política, na implementação das políticas públicas de cultura. A última contribuição, que é de autoria do pesquisador Marcos Dantas, e é intitulada ‘Milionários nada por acaso: capital rentista e apropriação do trabalho artístico nas redes do espetáculo’, analisa a questão do processo de valorização e realização de um produto artístico nas condições da indústria cultural nestes tempos. Confirmando o caráter interdisciplinar do periódico, esta edição traz entrevista realizada pelo pesquisador Ruy Sardinha Lopes, que entrevistou a arquiteta e filósofa Vera Pallamin, professora doutora da Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo (USP). Durante a entrevista a pesquisadora problematiza o campo da “Economia Política da Arte”, suas influência e contradições.


Além disso, na sessão Investigación foram divulgados 4 contribuições que versão sobre os aspectos peculiares do mercado de mídia em diferentes regiões do globo. O primeiro ‘TV digital aberta: conflitos na implantação de uma nova mídia no Brasil’, de autoria da pesquisadora Patrícia Maurício, no qual apresenta um recorte de sua Tese de Doutorado defendida em março de 2011 na Escola de Comunicação Social da UFRJ. A segunda publicação versa sobre ‘Mídia étnica em Portugal: a construção de representações identitárias na revista Afro’, de Rosangela Ferreira de Carvalho Borges, que elabora pesquisa com o objetivo identificar e analisar (pesquisa quali-quantitativa) quais as estratégias midiáticas utilizadas pela revista Afro - primeira publicação portuguesa e comercial, etnicamente segmentada, dirigida à comunidade africana em Portugal. Em ‘La comercialización intra e interregional del cine euro-iberoamericano en la era digital’, Cristina Paz García reflete sobre o volume, o comportamento e as características dos filmes locais que transcendem as fronteiras nacionais, com foco na valorização e potencialidades que a digitalização da indústria cinematográfica fornece aos mercados menos maduros. Por fim, os pesquisadores Rosalba Mancinas Chávez; Belén Zurbano Berenguer; Sara Domínguez Martín fecham a Sessão Investigación com o trabalho ‘La segmentación del mercado como estrategia de venta en España: el caso del diario Público’, no qual elaboram discussão sobre o uso do jornal Público pode funcionar como ferramenta de segmentação do mercado é uma estratégia para a venda e que a pluralidade da informação é uma quimera, quando há grupos empresariais proprietários dos meios de comunicação mais influentes. Nesta edição, também foram disponibilizados 3 artigos de temática livre, que complementam a apresentação das pesquisas científicas. O primeiro de Mohammed ElHajji com pesquisa intitulada ‘Mapas subjetivos de um mundo em movimento: migrações, mídia étnica e identidades transnacionais’, o segundo do pesquisador Alain Herscovici com título ‘Escolha Coletiva, Governança e Direitos de Propriedade Intelectual: uma Análise Econômica dos Commons’, e o terceiro enviado por Vivianne Lindsay Cardoso; Juliano Maurício de Carvalho, com título ‘5. Face paulista da TV digital: reflexão sobre a multiprogramação na TV Cultura’. Mesmo por tratarem de assuntos de certa forma diferentes, as três publicações não fogem do olhar empregado pelo campo da economia política da comunicação. Além disso, como habitual, a resenha crítica, de autoria do pesquisador Alexon Gabriel João, fecha nossa publicação, que para esta edição trouxe um desenho do livro: Para entender a TV digital: tecnologia, economia política e sociedade no século XXI, de autoria do professor doutor Valério Brittos e do pesquisador Denis Gerson. A obra compõe a Coleção TV Digital, V 1, publicado pela Intercom em 2011 na cidade de São Paulo.

César Bolaño Director Eptic On Line

Valério Brittos Editor Eptic On Line


Mapas subjetivos de um mundo em movimento: Migrações, mídia étnica e identidades transnacionais1 Mohammed ElHajji Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ

Resumo: O presente trabalho objetiva estabelecer um nexo conceitual entre o fato migratório, a mídia comunitária dos grupos étnicos e culturais inseridos em tecidos sociais pluriculturais e as novas configurações identitárias decorrentes desse agenciamento sociotecno-subjetivo. A ideia central da análise é que os três termos da equação não são fenômenos distintos, mas sim manifestações da mesma realidade contemporânea e panos da mesma ecologia cognitiva. Palavras-chave: Migrações; Mídia Étnica, Identidades Transnacionais Resumen: Este trabajo tiene como objetivo establecer un vínculo conceptual entre la questión migratoria, los medios de comunicación comunitaria de los grupos étnicos y culturales, inseridos en tejidos sociales pluriculturales, y las nuevas configuraciones de identidad multicultural como resultado de ese agenciamiento socio-tecno-subjetivo. La idea central del análisis es que los tres términos de la ecuación no son fenómenos distintos, sino más bien manifestaciones de la misma realidad contemporánea y partes de la misma ecología cognitiva. Palabras clave: Migraciones, medios de comunicación étnica, identidades transnacionales Abstract: This work aims to establish a conceptual connection among the migration fact, the communitarian media of ethnic and cultural groups inserted into the social fabric, and the new multicultural identity configurations resulting from this socio-techno-subjective agency. The main idea of the analysis is that the three terms of the equation are not distinct phenomenons, but manifestations of the same contemporary reality and parts of the same cognitive ecology. Keywords: Migration, Ethnic Media, Transnational Identities

O presente trabalho objetiva estabelecer um nexo conceitual entre o fenômeno migratório, a mídia comunitária dos grupos étnicos e culturais inseridos em tecidos sociais pluriculturais e as novas configurações identitárias decorrentes desse agenciamento sociotecno-subjetivo. A ideia central dessa análise é que os três termos da problemática não são nem fenômenos distintos nem fatos pontuais implicados numa redutora relação causal linear; mas, antes, manifestações da mesma realidade contemporânea e panos da mesma

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É doutor em Comunicação e Cultura, professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFRJ, coordenador do Laboratório de Comunicação Social Aplicada – LACOSA: www.lacosaufrj.net. Especialista em questões relacionadas às migrações internacionais e mídias comunitárias e transnacionais, uma parte da pesquisa por ele coordenada pode ser acessada em: www.etnicidade.net. Email: mohahajji@gmail.com


ecologia cognitiva. Os deslocamentos humanos, as redes sociais, os fluxos midiáticos e os novos espaços identitários que superam e ultrapassam os quadros políticos e geográficos convencionais, constituem uma composição civilizacional inédita que exige abordagens e métodos originais; no afã de apreender a questão em estudo de modo completo e abrangente. 1. Estações migratórias Perguntado sobre o motivo de ter acrescido três novos itens (o direito de errar, o direito de mudar de opinião e o direito de ir embora) à Declaração dos Direitos Humanos pendurada no seu laboratório, Humberto Maturana respondeu: “O direito a ir-se é semelhante ao direito de mudar de opinião, pois é o direito de mudar de espaços. Penso que esses três direitos acrescentados são importantes porque constituem uma ampliação da aceitação do outro” (1999: 12). Sem pretender a qualquer verdade científica ou autoridade epistemológica, a boutade do teórico da Complexidade tem o mérito de recolocar a questão migratória no registro do desejo, da subjetividade, da sensibilidade e até de certa ambigüidade constitutiva da natureza humana e de seu devir social e civilizacional. Pois, sem negar as injunções econômicas e políticas, muitas vezes atrás dos deslocamentos humanos, acreditamos que a redução de um fenômeno milenar e universal à sua dimensão instrumental imediata acaba solapando as possibilidades de sua apreensão abrangente e entendimento completo. Direito de ir embora / desejo de voltar; vontade de ficar / necessidade de ir; nostalgia / insatisfação; realização / fracasso; presença / ausência. A migração é, em si, um movimento duplo e dúbio, no qual imigração sempre equivale a emigração, chegada a partida, expectativas a frustrações, sorrisos a lágrimas. Mas também significa a possibilidade de hibridizações, cruzamentos subjetivos, afetivos, simbólicos, imaginários e materiais. Pode-se até apontar o componente libidinal subjacente ao processo migratório – sendo todo projeto migratório movido por desejos e frustrações de natureza sexual, conforme sentencia o sudanês Tayeb Saleh (1996) no seu inigualável “A estação de migração para o norte”; uma mistura de fascínio e repulsa / desejo e rejeição do Outro e, principalmente, uma insaciável busca de si mesmo. Idas e voltas ou idas sem volta que, a cada troca, enriquecem a condição da espécie, a transformam e lhe dão um novo significado. São laços de sentido que se tecem, se intensificam e se densificam, costurando a teia simbólica global que vem cobrindo o mundo e transformando a sua morfologia social e humana a todos seus níveis; desde o discursivo e imaginário até o físico e biológico. Ou seja, não seria temerário afirmar que o próprio processo de estruturação da semiosfera planetária é profundamente tributário dos


fluxos humanos e seus rastros existenciais; de tal modo que não há como dissociar a civilização humana de sua experiência migratória original e contínua. 1.1. Ecos persistentes

Condição fundadora de nossa espécie – a única a ter colonizado todos os cantos do planeta, a migração não pode ser vista como anomalia ou exceção, mas sim como regra absoluta que sustentou o inicial processo de hominização, propiciou as bases materiais de nossa capacidade de abstração e continua reformulando o sentido ontológico de / do ser humano e o significado social e histórico do sujeito. Tanto a paleontologia e a biologia como a arqueologia e a historiografia deixam evidente o papel fundamental das migrações na configuração de que veio a ser a Humanidade, na formação e extinção de agrupamentos civilizacionais e na prosperidade e decadência de impérios, reinos e nações. Ainda que na maioria das vezes as ciências sociais e naturais buscam causas materiais para explicar o impulso migratório de nossa espécie; tais como guerras, crises sociais, escassez de recursos, avento de novas tecnologias ou mudanças climáticas, as mesmas teorias nunca desconsideraram o fator psicológico inerente à natureza humana de sempre querer e desejar descobrir novos horizontes. Assim, além de ser um imperativo evolucionário determinante para a sobrevivência e melhora da espécie, essa inclinação migratória constitui um arquétipo mítico-mitológico. Que seja na Bíblia e no Alcorão, nas escrituras hindus e persas ou nas mitologias africanas, indígenas ou gregas, as figuras messiânicas, proféticas e/ou heróicas quase sempre são definidas por seu percurso migratório; do mesmo modo que a maioria das narrativas iniciáticas no mundo é, geralmente, condicionada pela migração real, simbólica ou metafórica. Ulisses, Noé, Abraão2, Moisés, Jesus, Maomé, Xangó, Buda, etc. todos teriam saído de sua terra de origem (entre peregrinação e migração) para poder cumprir seu (pré) destino divino e/ou heróico. “Que há de comum entre Abraão e o apóstolo Paulo, de um lado, Ulisses e Dom Quixote, de outro?” pergunta Pe. Alfredo J. Gonçalves (2011). “Por mais díspares que sejam esses quatro personagens”, responde ele, “desfilam todos ante nossos olhos como 'figuras errantes'. À sua maneira, cada um deles protagoniza a condição do ser humano sobre a face da terra, hóspede de um solo estrangeiro, em busca da pátria definitiva”.

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“Iahweh disse a Abraão: ‘sai da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai, para a terra que eu te mostrarei’” (Gn 12,1)


Não somos migrantes por opção, mas sim pela nossa própria condição humana; ainda que não se deva ignorar toda a literatura, imaginário e simbologia universais ligados ao amor (às vezes excessivo) à terra de origem. Vale se perguntar, aliás, se esse discurso de apego ao terroir não seria uma estratégia hegemônica de imposição de um dado modus vivendi ou um antídoto à propensão natural do homem a vagar pelo mundo em busca de novos espaços reais e simbólicos, no afã de descobrir seu self profundo – aquele que só se deixa aflorar quando consegue se livrar das amarras discursivas do grupo, horda, clã, nação e outros quadros normativos. Podemos até arriscar, em guisa de provocação, um paralelo entre a metáfora edipiana do assassinato simbólico do pai e o imperativo de alforria dos pertencimentos impostos, tradições deterministas e outras neuroses tribais para alcançar a maturidade e se impor enquanto sujeito responsável e discursivamente autônomo. Lembremos a eterna sabedoria de Hugo de São Vitor: “O homem que acha a sua pátria agradável não passa de um jovem principiante; aquele para quem todo solo é como o seu próprio já está forte; mas só é perfeito [leia-se adulto] aquele para quem o mundo inteiro é como um país estrangeiro”3.

1.2. Coordenadas atuais

No contexto específico da contemporaneidade, a paisagem migratória mundial vem sofrendo transformações radicais, devido a fatores de ordem política, econômica, organizacional, social e psicológica. Dentre os quais a instituição das fronteiras em decorrência da constituição dos estados nacionais – tornando os deslocamentos humanos mais visíveis, quantificáveis e coercíveis, a industrialização e urbanização de grandes regiões do mundo e aumento da pobreza em outras, a recrudescência das guerras e lutas armadas, o declínio da natalidade nos países avançados, o surgimento das migrações planejadas (tanto na Europa como nas Américas), a aceleração e barateamento dos meios de transporte, o avanço do processo de globalização, a revolução tecnológica midiática e a tomada de consciência da possibilidade de mudança da trajetória pessoal e a naturalização de novas formas de desejo, subjetivação e realização pessoal. De fato, no campo político, os séculos XIX e XX foram marcados pela emergência e consolidação dos estados nacionais, as duas grandes guerras, a revolução soviética, as inúmeras lutas armadas aos quatro cantos do planeta, as colonizações e, em seguida, descolonizações e a imposição do ideal democrático (incluindo seus pilares operacionais de direitos humanos e liberdade de expressão) enquanto fundamento político universal. 3

1096 – 114. Filósofo, teólogo e autor místico da Idade Média.


Mudanças abruptas que contribuíram para que milhões de pessoas deixassem suas terras de origem e buscar novos lares, voluntária ou involuntariamente. O correlato econômico dessas transformações encontra suas raízes já na Revolução Industrial, quando as novas atividades econômicas e as novas tecnologias da época levaram a profundas reconfigurações sociais, reestruturando o mapa das cidades e provocando migrações em massa. À medida que a indústria se tornava o centro de gravitação da sociedade humana, ela também se imponha com principal fator de aglomeração e distribuição da população; o que implicou, evidentemente, na aceleração dos fluxos migratórios e a reformulação de suas trajetórias geográficas. A modernização das economias centrais e o enriquecimento de certas regiões do globo, conjugados à urbanização maciça, êxodo rural, empobrecimento de outras regiões do mundo e a aparição de atividades econômicas inéditas relacionadas a novas necessidades e novos hábitos de consumo culminaram na adoção, tanto na Europa como nas Américas de políticas de imigração planejada. O que terá um impacto determinante no redesenho de toda a paisagem migratória mundial, doravante predominantemente organizada em colônias, bairros étnicos e comunidades lingüísticas; trazendo, assim, à tona acirrados debates políticos acerca da ideia de identidade nacional, reconhecimento cultural, lealdade política, multiculturalismo, etc. Para completar o quadro da questão migratória na atualidade, há de assinalar ainda as transformações sociais e organizacionais inerentes a nossa época. O avanço do processo de globalização, a sofisticação e acessibilidade das novas tecnologias de comunicação e o desenvolvimento e barateamento dos meios de transporte resultaram naquilo que David Harvey (1992) conceituou como “encolhimento do planeta” e a produção de um espaço civilizacional unificado; de certo altamente diversificado, mas, ao mesmo tempo, amplamente integrado. Configuração espaço-temporal que favorece o reforço dos laços comunitários dos migrantes e a consolidação de seu sentimento de pertencimento ao país ou cultura de origem – dificultando, assim, sua assimilação completa pela sociedade de destino. Essa interconexão tecnológica e midiática do planeta se traduz, por outro lado, na unificação gradativa dos imaginários, subjetividades e códigos éticos e estéticos de seus povos e nações; o que acaba acentuando mais ainda o desejo de migrar em todos aqueles que sonham em participar da festa do consumo e do gozo ininterrupto veiculados pela mídia global. Percebe-se, portanto, que os movimentos migratórios não deixam de corresponder às

estruturas

impostas

pelas

principais

plataformas

discursivas,

ideológicas

e

organizacionais de cada época e contexto civilizacional humanos. Assim, ao contrário das


migrações conseqüentes da industrialização dos países centrais ou das descolonizações que tinham como principal motivo a produção material ou a disputa das narrativas políticas, as migrações atuais não podem ser dissociadas da ordem do simulacro midiático e consumista. 2.

Os Outros na mídia e a mídia dos Outros

O que lembra e salienta o fato comunicacional fundador e original da sociedade humana; já que, conforme nos ensinou a antropologia estruturalista, as trocas materiais, matrimoniais e simbólicas (que corresponderiam, hoje, ao deslocamento de homens e mulheres, mercadorias e informações) são imprescindíveis para toda organização social. Ou seja, só sociedade na medida em que existem processos e sistemas de comunicação para subtendê-la; do mesmo modo que todo ato comunicacional é, em si, um fenômeno cultural e processo social organizacional. Não se pode esquecer, por outro lado, que tanto a identidade individual como a comunitária (seja ela étnica, nacional, regional, confessional ou outra) são, antes de tudo, um exercício de enunciação de si; um esforço discursivo de dizer-se, dizer o outro e dizer o mundo. Sem precisar voltar até a raiz etimológica comum (com perdão pelo jogo de palavras involuntário) à comunicação, comunidade, comunhão e outros derivativos “comunais”, é sabido (tanto no âmbito da teoria da comunicação como em termos filosóficos) que não há possibilidade de “dizer” (o mundo e/ou o outro) sem antes “se dizer”; ou “dizer-se” sem, ao mesmo tempo, “dizer” a sua visão de mundo e seu projeto social individual e/ou coletivo. Identidade e discursividade são, assim, dois planos isomórficos do mesmo continuum existencial e subjetivo que rege a vida comunitária e regula suas relações e seus relacionamentos com o resto da sociedade. Recorrendo, enfim, à tese sodreana do bios midiático (uma quarta forma existencial que se sobrepõe às três categorias estabelecidas por Aristóteles) (SODRÉ, 2002), fica evidente que as coordenadas do real contemporâneo só se efetivam e tomam forma dentro e em função da esfera midiática. Assim, a bourdivina luta pelo poder simbólico ou gramsciana mobilização contra-hegemônica não teriam, hoje, sentido fora deste bios; a fortiori quando se trata das modernas relações intercomunitárias, embebidas da atual ideologia culturalista e etnicista que rege o nosso imaginário – midiatizado ao extremo. Ou seja, se como sugere Brandão (1986) na sua perspectiva antropológica, a identidade étnica tradicional implicava na delimitação espacial de territórios identitários étnicos, hoje no contexto socio-tecnológico e tecno-sociológico que conhecemos, essa presença, afirmação ou negociação de territórios existenciais e identitários se dá, em grande


parte, no novo lócus -por excelência- de luta pelo poder que é a esfera midiática. É na mídia e através dela que os discursos identitários comunitários e étnicos (reivindicativos ou afirmativos) são formados e formatados, ensaiados e formulados; no afã de expressar as marcas e marcos simbólicos, subjetivos, existenciais, sociais e políticos das comunidades engajadas nos processos de luta pelo poder e negociação de posições e posicionamentos sociais que assegurem seus interesses e/ou garantam a sua continuidade enquanto projeto (social, histórico e político) e diferença (cultural, identitária e subjetiva). Não há dúvida, pois, que as variadas formas de luta pela hegemonia, contrahegemonia, consenso e consentimento, encontram nos textos da mídia o espaço ideal para revelar a complexidade do tecido social contemporâneo, alinhavar os diversos campos de que são provenientes e possibilitar, assim, uma melhor compreensão da multiplicidade de vozes que compõem os discursos ideológicos em vigência. Já que, se toda organização social é estruturada, primeiramente e antes de tudo, no âmbito discursivo, a importância do discurso da mídia não se limita à sua capacidade de representação do real, mas sim é proporcional à sua eficácia em produzir sentido e estabelecer o consenso necessário para a manutenção do status quo. A comunicação tem, neste sentido, uma função política ideológica e organizacional inerente às relações de poder que sustentam toda organização social, funcionando, portanto, como mecanismo de articulação dos diferentes níveis da estrutura social. É através dela que se adscreve o status de cada categoria da sociedade e se elabora o projeto existencial da comunidade em conformidade com os interesses do grupo que controla os meios de produção de sentido. 2.1. O fardo da representação

De fato, não há como ignorar a centralidade da questão discursiva para a compreensão de qualquer ação humana; neste sentido que o par língua / discurso constitui a interface simbólica universal que intermedeia a nossa relação com o mundo, e sem o qual nenhuma representação do mundo e do Outro seria possível. O que não quer dizer apenas que a linguagem é indispensável para a representação do Outro, mas antes que toda representação do Outro passa obrigatoriamente pelo filtro semântico e ideológico da linguagem. Assim, toda construção discursiva do real é, necessariamente, o produto de uma realidade cultural, civilizacional e histórica determinada. Toda visão do mundo é fruto do mundo no qual ela nasce e se desenvolve e toda produção de sentido é, antes de tudo, um ato social no qual intervêm as forças hegemônicas de controle e de ordenação do imaginário do grupo e de seus quadros de expressão simbólica: a própria palavra é um “fenômeno ideológico por


excelência” (BAKHTIN, 1999). O discurso, com efeito, não é somente “o que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, aquilo pelo que se luta, o poder do qual procuramos apoderar-nos” (FOUCAULT, 2001: 36). Fica flagrante, portanto, a dramaticidade da questão da representação midiática do Outro nas relações intercomunitárias e, mais ainda, na relação das comunidades especiais (étnicas no caso deste trabalho) com a sociedade em geral. Também fica evidente que não importa saber se as eventuais representações depreciativas ou preconceituosas são atos conscientes, voluntários e premeditados ou ingênuos vícios de linguagem e/ou mímesis retórica; já que, conforme temos aludido, os discursos sempre são sociais e ideológicos. Importa, sim, todavia, saber que o vocabulário escolhido, metáforas e outros recursos retóricos são atos políticos integrantes do edifício ideológico que rege nosso real e determina nossas ações e atitudes sociais. Os clichês ou estereótipos midiáticos (equivalentes contemporâneos dos provérbios, lendas, mitos e fábulas), por exemplo, podem constituir um precioso atalho semântico e condensado imagético que economizam tempo e esforço reflexivo na equação comunicativa [teor informativo / tempo necessário para seu processamento] e possibilitam ao receptor / espectador ter acesso rápido e eficiente ao cerne da mensagem desejada. Como também podem servir de poderosos recursos retóricos que se valiam do patrimônio cultural e social compartilhados e da cumplicidade do público visado para, em situações de controle autoritário ou opressivo, driblar a censura e as burocracias ditatoriais. Justapor a imagem cinematográfica da torre Eiffel ao avião decolando pode sugerir, de modo direto e sucinto, uma viagem romântica ou um final feliz. Porém, mostrar o calçadão de Copacabana, no final de um filme policial, pode ter um significado bastante depreciativo. Não que criminosos não fogem para o Brasil (ou qualquer outro lugar do mundo), mas a ligação automática e redutora do crime ao Rio de Janeiro é, em si, condenável por seu caráter generalizante e, portanto, preconceituoso. O exemplo acima exposto é bastante anódino; porém, muitas vezes (como no caso da propagação de idéias e imagens racistas, anti-semitas ou islamófobas), os clichês ou estereótipos acumulados, ancorados e consolidados no imaginário popular, acabam compondo um terreno fértil para a discriminação, opressão e, em situações extremas, a aniquilação física. No contexto político-social diário, eles atuam como forma de controle e de imposição hegemônica de dada visão de mundo e determinados valores sociais, políticos e morais; de tal modo que a superioridade dos grupos detentores do poder pareça normal, inevitável e até desejada por todos. Já que o Outro é privado de seu poder de “significar, de negar, de iniciar seu desejo histórico, de estabelecer seu próprio discurso institucional e oposicional” (BHABHA, 1998: 72).


Enfim, não é preciso insistir na força discursiva potencializadora da mídia enquanto lócus principal de produção, construção e formatação do real político, social, étnico e cultural. A imagem do Outro, o discurso sobre o Outro, a alteridade e a diferença são, hoje, categorias políticas, culturais e psicológicas intimamente ligadas ao aparato e discurso midiático global; tanto no sentido de aproximação dos povos distantes e ampliação de sua capacidade de aceitação do diferente e da diferença como, ao contrário, para reforçar e arraigar clichês e preconceitos. Motivo pelo qual, os grupos étnicos e culturais vêm lutando pela interferência e influência nos meios de comunicação como, também, pela apropriação das mesmas estratégias midiáticas e construção de eficientes sistemas contra-hegemônicos de comunicação comunitária. 2.2. Estratégias comunitárias

As tentativas de intervenção comunitária identitária na paisagem midiática local, nacional e global se dão a vários níveis, de diversos modos e pelo viés de um amplo leque de tecnologias, suportes e linguagens – tanto na ponta da produção como do consumo. Desde a presença e visibilidade na grande mídia até a produção de sua própria mídia comunitária, passando pelo uso das diferentes TICs existentes e até lançar mão de TVs transnacionais por satélite. Os objetivos dessa mobilização, todavia, são bastante convergentes: negociar uma representação positiva do seu grupo; opinar sobre as questões de ordem social, cultural e política em debate nas sociedades e países onde o grupo se insere; produzir discursos argumentativos favoráveis a situações e causas relacionadas à sua terra ou cultura de origem; divulgar e veicular discursos benevolentes sobre as suas características identitárias junto à sociedade de destino; controlar e cobrar eventuais discursos considerados prejudiciais à sua identidade ou cultura de origem; produzir quadros argumentativos destinados a seus membros para eles poderem representar positivamente e defender, quando é preciso, a imagem da comunidade; elaborar espaços discursivos que sirvam de base para a manutenção e coesão da identidade do grupo; manter e desenvolver laços simbólicos com a terra e cultura de origem e com as comunidades irmãs presentes em outros países e outras sociedades. A visibilidade e representação positiva dos grupos étnicos e culturais minoritários e/ou oriundos das migrações podem ser consideradas como um fiel indicador do grau de integração, ascensão e sucesso social da comunidade em questão. Já que, como temos tentado demonstrar, o chamado “fardo da representação” não é uma lenda urbana, mas sim


a triste realidade de todos aqueles que não se adéquam ao padrão ético e estético da maioria. Porém, quando esse trunfo não é adquirido de antemão, as comunidades étnicas e culturais tentam, na medida do possível, limitar os prejuízos morais, sociais e materiais deste “déficit representativo”; recorrendo a meios institucionais e garantias constitucionais. Sendo o ideal civil, todavia, a manutenção permanente de boas relações e bons relacionamentos com os agentes e atores sociais midiaticamente influentes; de tal modo que o diálogo seja uma dinâmica contínua e não um ato político excepcional e circunscrito – daí a importância de uma vida associativa rica e diversificada. Paralelamente, a manifestação pública midiática por parte da comunidade étnica a propósito da pauta social e política da sociedade hospedeira, além de ser uma ocasião de visibilidade participativa e uma prova de cidadania plena, também constitui uma maneira de fazer presente a voz e ponto de vista da comunidade no cenário midiático; conferindo-lhe, assim, credibilidade e autoridade moral. Esforço que, geralmente, é acrescido de ações concretas a favor das populações desfavorecidas, em campanhas sociais pontuais e outras manifestações de solidariedade extracomunitária, no afã de afastar o estigma do sectarismo e fechamento comunitário. Do alcance de um posicionamento estratégico favorável no contexto de disputa pelo poder simbólico e reconhecimento identitário, nos moldes acima expostos, depende a capacidade do grupo em defender a imagem e as escolhas políticas e ideológicas do país de origem. Ou seja, melhor a comunidade é avaliada pela população em geral mais fácil fica conseguir o apoio, simpatia e compreensão da sociedade de destino à nação de origem em eventuais conflitos, atritos ou outras dificuldades históricas. Já no âmbito da mídia (intra) comunitária, os objetivos almejados são, conforme antecipamos, o fortalecimento do sentimento de pertencimento à comunidade e à cultura de origem, assim como a produção de um discurso argumentativo que permita a seus membros enunciar e defender, quando é preciso, seus princípios identitários. O marco regulador deste tipo de comunicação é, de fato, a estreita dependência entre as formas organizacionais de uma comunidade e as suas instâncias de enunciação de seu projeto sócio-histórico; na medida em que, ao elaborarem as suas práticas discursivas, procuram desenvolver estratégias que atuem como dispositivos simbólicos na disputa pela imposição do sentido. Tais discursos e práticas, essenciais no processo de produção e reprodução do sentido, não são, contudo, formas inocentes ou inconscientes de uso da linguagem, mas sim construções ideológicas reflexivas que objetivam provocar um impacto na cognição social de seus receptores. Eles desempenham, assim, um papel intencional crucial na validação, expressão e legitimação de seu universo social ou cultural. Não é por acaso que os grupos


étnicos e culturais, tanto no Brasil como no resto do mundo, geralmente são dotadas de uma eficiente mídia comunitária que assegura a sua coesão social, cultural e política aos níveis local, regional, nacional e global. Vale ressaltar, todavia, que o mapeamento acima elaborado não é uma realidade sistemática e universal, mas sim a combinação de ações comunicativas comunitárias que podem ser conferidas em situações e contextos determinados. Ainda mais se considerarmos que a efetivação de tais estratégias depende tanto da riqueza material do grupo como da capacidade de mobilização de seus membros e sua expertise em manipular os equipamentos coletivos simbólicos à sua disposição. 3.

Redes, fluxos e interferências

Em compensação, não há como ignorar que os atuais deslocamentos humanos em massa, fluxos midiáticos planetários, redes sociais de múltiplas formas e expressões identitárias que transbordam dos recortes geográficos e políticos convencionais são manifestações integrantes do processo de globalização. Fenômeno que não deve ser entendido apenas em relação ao nível espacial do globo terrestre, como é geralmente o caso, mas sim no sentido da globalidade temporal de uma ação – a sua realização ou vivência simultânea em múltiplos e distintos pontos do planeta. É, justamente, essa equação que possibilita o surgimento efetivo de modalidades culturais e modos de enunciação identitários (sejam eles étnicos, culturais, confessionais, de gênero ou outros) de extensões e repercussões transnacionais. Já que o principal efeito da globalização (dos meios de comunicação em particular) é a superação dos planos territoriais estatais de representação simbólica, gestão do imaginário coletivo, sedimentação do senso comum, formação da opinião pública e outros mecanismos reguladores das identidades coletivas. A atual estrutura tecno-organizacional que sustenta o processo de globalização se caracteriza, de fato, pela reformulação e rearticulação das instâncias de produção de sentido da contemporaneidade em torno dos meios de produção, controle e distribuição da informação. O papel central da comunicação nessa nova ordem sócio-tecnológica criou uma base material tão inédita para o desenvolvimento das atividades humanas em seus diversos sistemas e tão específica historicamente, que acabou impondo a sua própria lógica à maioria dos processos sociais e condicionando, de maneira fundamental e inédita, todos os níveis da sociedade contemporânea. Com relação à problemática aqui em questão, a globalização se configura como quadro conceitual sintético no qual e pelo qual se dá a apreensão das mudanças em curso e


suas implicações em termos sociais, identitários e simbólicos. Globalização é uma viragem histórica marcada pelos contínuos, generalizados e cada vez mais velozes fluxos e deslocamentos – materiais, humanos, subjetivos, midiáticos, imaginários e simbólicos. O que justifica a pertinência e relevância deste trabalho em investigar a correlação entre a proliferação de instâncias e meios tecnológicos de comunicação comunitária étnica nacional e a emergência ou consolidação de espaços identitários transnacionais dos grupos imigrantes. Pois são milhares de comunidades étnicas, nacionais, culturais e/ou confessionais espalhadas pelo mundo, cuja identidade transnacional se encontra, hoje mais de que nunca, ressaltada e reforçada. Até nas comunidades de imigrantes mais antigas, se observa um movimento de “volta” às origens, “re-produção” de narrativas culturais, étnicas, religiosas ou nacionais diferenciadas e “re-construção” de referenciais mnemônicos supostamente autênticos e originais; cuja finalidade é a enunciação de uma identidade coletiva hifenizada ou transnacional. De fato, se o distanciamento espacial e a relativa lentidão das comunicações da época pré-global permitiam uma re-elaboração aprofundada dos códigos componentes da identidade minoritária no ambiente local e a sua conseqüente progressiva integração ou até assimilação, hoje, à medida que se configure uma nova esfera midiática étnico-cultural transnacional (Internet, rádios e webrádios e TVs por satélite – várias centenas de canais abertos de todo mundo e disponíveis por meio de tecnologias acessíveis), se torna mais difícil a desvinculação do universo simbólico de origem ou o afastamento das comunidades irmãs espalhadas pelo mundo. 3.1. Identidades trânsfugas

Pode-se afirmar, portanto, que a passagem de um quadro comunitário local de pertencimento étnico-cultural à sua reverberação transnacional se apóia na configuração atual dessa nova esfera pública global e na concretude de sua nova economia política das comunicações. A importância das TICs para a conformação de construtos identitários transnacionais equivaleria assim, hoje, ao papel do “Capitalismo Editorial” – referido por Deutsch (1969), Anderson (1996) e outros, na consolidação dos imaginários nacionais. Para uma aplicação possível da equação acima ao contexto da comunicação comunitária étnico-cultural / transnacional, lembremos que, numa época ainda recente, a mídia comunitária étnica se reduzia a algumas poucas publicações locais, onerosas, de baixa qualidade, restritas a pequenos grupos e a circulação limitada. Jornais, almanaques, revistas, boletins internos (geralmente com periodicidade bastante irregular) eram um luxo


cobiçado, do qual só as comunidades mais organizadas e mais abastecidas podiam desfrutar. Existiam também programas de rádio e de TV e até algumas rádios comunitárias (em clubes ou bairros específicos), mas o tudo era bastante precário e sem penetração significativa nas respectivas comunidades. Portanto, o contato direto e contínuo com as notícias sociais e políticas e as manifestações culturais e artísticas do país ou cultura de origem não era nem fácil nem regular nem especialmente incentivado. O que contribuía no sentido de uma maior integração das comunidades étnicas nas sociedades de destino, seu gradativo afastamento afetivo do universo simbólico de origem e até sua possível assimilação. Enquanto, hoje, com o barateamento e a popularização das tecnologias de comunicação e, ao mesmo tempo a sua sofisticação, ampliação de seu campo de ação, aumento de sua acessibilidade, facilitação de seu manuseio e sua definitiva universalização, se pode notar que praticamente todas essas comunidades dispõem de um impressionante arsenal de meios de comunicação comunitária – tanto local como transnacional. Salto tanto quantitativo como qualitativo que reinventou, por completo, a prática de comunicação comunitária cultural e deu um impulso decisivo na reorganização das comunidades étnicas, seu “reavivamento”, seu religamento à sociedade e cultura de origem e sua inserção na nova dimensão transnacional. Dentre as mudanças notáveis neste contexto, se pode assinalar a migração da maior parte da produção editorial (jornais e revistas) do papel para o ciberespaço, a proliferação de sites comunitários étnico-culturais a caráter transnacional em centenas de milhares, o excesso de voluntarismo e a multiplicação de iniciativas pessoais sem credenciamento formal pela comunidade. O fenômeno merece até uma indagação sobre as inovações discursivas e estéticas introduzidas na prática jornalística e comunicacional em geral, a partir desses experimentos comunitários originais sem compromisso com as formulas midiáticas tradicionais. Paralelamente, se pode atestar que houve um declínio quantitativo considerável na programação comunitária radiofônica e televisiva local tradicional, a aparição de webrádios étnicas e, principalmente, a explosão de uso de antenas parabólicas e receptores digitais que permitem a captação de canais de televisão diretamente dos países ou regiões de origem. Evolução que indica uma tendência à superação das instituições locais tradicionais (mídia dos países hospedeiros), da linguagem a ela correspondente (passagem da radiodifusão para as webrádios) e o uso de aparelhos voltados para a difusão transnacional de programação radiofônica e televisiva.


Assim, ainda que não seja regra absoluta, no contexto global, as composições identitárias tendem a se reformular e se afirmar numa perspectiva propriamente transnacional; no sentido que é o referencial extra-estatal (remetente ao território ou à cultura de origem) que serve como catalisador semântico simbólico para a ativação e a efetivação dos discursos de reconhecimento, identificação e diferenciação dessas comunidades. Com o processo de globalização (principalmente no seu substrato comunicativo tecnológico), pois, a questão de pluri-pertencimento, de múltipla lealdade e de superposição de recortes simbólicos está chegando ao paroxismo de sua exacerbação. De fato, paralelamente à sua estruturação organizacional em redes de redes, o presente cenário global, sustentado pelas TICs, favorece a multiplicidade de sensibilidades e subjetividades transnacionais que desconhecem a continuidade física do terreno social e prescindem de uma ancoragem exclusiva no território efetivo ou no mapa estatal oficial. Trata-se, portanto, de um fenômeno “pós-estado-nacional” inerente à realidade social e política que caracteriza o mundo contemporâneo, marcado pela inequação, doravante estrutural, entre os planos nacional-estatal e cultural-identitário. O que nos leva a conceituar a ideia de transnacionalidade à luz do conjunto de movimentos tectônicos que vêm reconfigurando toda a paisagem sociopolítica de nossa época atual. A noção, cada vez mais recorrente nas ciências sociais, diz respeito aos modos de organização e ação das comunidades humanas inseridas em mais de um quadro social nacional estatal, tendo referenciais culturais, territoriais e/ou lingüísticos originais comuns, e conectadas através de redes sociais transnacionais que garantem algum grau de solidariedade ou identificação além das fronteiras formais de seus res0pectivos países de destino. 3.2. Diásporas e gemações

Todavia, a conjugação dessa ideia de transnacionalidade ao quadro global acima descrito e sua nova esfera pública, à atual economia política das comunicações e ao fenômeno migratório cada vez mais massificado e diversificado, resulta numa fórmula política e socio-simbólica bastante instigante. De fato, a equação que a nós se impõe nos impele a não mais abordar o fato migratório e os fluxos midiáticos a partir de um recorte individual (sujeito migrante) ou enquanto produtos (midiáticos), mas sim numa perspectiva maior que abrange os fluxos midiáticos, materiais, simbólicos e populacionais na mesma experiência humana civilizacional e subjetiva de um mundo em contínuo movimento. Portanto, os termos da problemática aqui exposta não devem ser considerados nem como fenômenos distintos nem enquanto fatos pontuais implicados numa


redutora relação causal linear; mas, antes, manifestações da mesma realidade contemporânea e panos da mesma ecologia cognitiva. Ou seja, os deslocamentos humanos, as redes sociais, os fluxos midiáticos e os novos espaços identitários que superam e ultrapassam os quadros políticos e geográficos convencionais são projeções integrantes da atual composição civilizacional global. A composição em questão não é, contudo, exclusiva ao migrante, mas sim é doravante constitutiva da paisagem subjetiva humana na sua totalidade; seja pela generalização da perspectiva pluricultural, onipresença dos fluxos midiáticos globais ou pela incorporação das TICs na prática individual e coletiva diária. Situação subjetiva e simbólica que se aproxima da noção de “ethnoscape” instituída por Appadurai (2004), põe em xeque o princípio regulador do estado-nação e complexifica os axiomas de identificação e afiliação de modo geral e não, apenas, com relação aos grupos étnicos e/ou de imigrantes. Por outro lado, além do surgimento de modos de pertencimento móveis, volúveis e pontuais, há também de salientar a nova realidade espacial decorrente deste contexto. Enquanto, na perspectiva sociológica e antropológica tradicional, é praticamente um consenso o espaço (físico) local ser o elemento fundador do estar-junto coletivo de toda comunidade a caráter étnico, podemos observar que, hoje, as relações comunitárias transnacionais parecem ser regidas por instâncias desprovidas da dimensão material espacial e inscritas na temporalidade vácua de uma difusão instantânea. Muitos grupos diaspóricos podem tanto se reconhecer numa origem territorial comum, geralmente correspondente a um recorte estatal externo ao espaço de destino como cultivar laços afetivos, ideológicos e culturais entre comunidades irmãs que não passam nem pela pátria de origem nem pelo país de destino. Vários são os exemplos de produtos culturais e artísticos elaborados e consumidos pela e na diáspora; nos quais o referente territorial original não passa de um significante abstrato. São, na verdade, novas modalidades espaciais e novas territorialidades, condizentes e em sintonia com o mundo em movimento no qual se inscreve a ação e marca existencial dos grupos imigrantes em particular e a sociedade humana em geral. Localismos fluidos que nos lembram a maleabilidade do espaço e seu valor subjetivo ao ser vivido, desejado, imaginado e investido de subjetividade; transmutando o “espaço” em “espacialidade”. O que nos leva a concluir o presente percurso reflexivo compartilhando a ideia de “gemação” de Canevacci (2010), enquanto movimento multiplicador das subjetividades e das territorialidades existenciais. O fato diaspórico, segundo este autor, não seria mais ligado às migrações reais, deslocamentos espaciais ou, ainda, limitado a matrizes identitárias étnicas, mas sim um modo de estar-no-mundo contemporâneo global, marcado,


conforme já explicitado, pela mobilidade e movimento. O indivíduo diaspórico, hoje, é “um sujeito desconexo, que opta por atravessar os fluxos metropolitanos e comunicacionais”; o que significa que a própria inserção do indivíduo contemporâneo na esfera global o faz um sujeito nômade, cosmopolita e desterritorializado. Fluxos humanos, materiais e mediáticos são, de fato, os três motores que movem nosso real contemporâneo. No seu rastro, as identidades em trânsito se tornam transnacionais, marcadas pelo pluripertencimento e múltiplas lealdades. Enquanto o sujeito local, outrora enraizado no seu espaço imediato (não mediado), se vê hoje propulsado, pelas tecnologias de comunicação, numa nova dimensão diaspórica; não física, mas sim imaginária e simbólica. São facetas da mesma esfera cognitiva e existencial: migrações massificadas, tecnologias banalizadas e incorporadas no cotidiano, comunicações aceleradas e a instância espacial menorizada. Assim, os migrantes, através da mídia comunitária e novas tecnologias, tendem a domar as distâncias que lhes causavam tanta lástima psicológica e superar o imperativo autoritário de pertencimentos únicos e lealdades exclusivas. Já os locais (os donos e filhos de uma terra só) descobrem que, graças aos fluxos midiáticos, não há mais limite à sua força de criatividade e vontade subjetiva. Não há mais motivo para se resignar à sujeição do lugar, se submeter à ditadura da ordem social ou aceitar os fatalismos identitários. Pode ser morador de uma favela, uma aldeia distante ou a periferia deprimente da metrópole – há sempre meio de se libertar da estreiteza do “aqui”, reinventar o “agora” e se sentir de e em todo lugar. Ou seja, os deslocamentos não devem mais ser considerados apenas na sua forma espacial e física, mas também e, sobretudo, na sua dimensão subjetiva, simbólica e imaginária. Uns como os outros são passageiros da mesma nave comunicativa – no modo de meios de transporte espacial ou na modalidade de espaços midiáticos. Uns viajam para alcançar as imagens que vem de longe; outros se deixam levar longe pelas imagens que vem até eles. Referências ANDERSON, Benedict. L’imaginaire national, Paris, La Découverte, 1996 APPADURAI, Arjun. Dimensões Culturais da Globalização. Lisboa, Teorema, 2004 ----------. O Medo ao Pequeno Número: ensaio sobre a geografia da raiva. SP: Iluminuras, 2009 BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. SP: Hucitec, 1999 BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. RJ: Jorge Zahar, 2003


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Desiguais

e

Desconectados:

mapas

CANEVACCI, Massimo. Gemação diaspórica e subjetividade http://www.sescsp.org.br/sesc/images/upload/conferencias/204.rtf

da

sincrética

COELHO, Teixeira. A Cultura e seu contrário: cultura, arte e política pós 2001. SP: Iluminuras, 2008 DEUTSCH Karl, Nationalism and Social Communication, London, MIT Press, 1969 FEATHERSTONE. Mike. O Desmanche da cultura: Globalização, pós-modernidade e identidade. SESC, Studio Nobel, 1997 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. SP: Loyola, 2001 GONÇALVES, Alfredo J. O arameu errante. http://www.migrante.org.br/IMDH/ (Acessado em 09/04/2011) HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1992 MATURANA, Humberto. A ontologia da realidade. BH: UFMG, 1999 PARK, Robert E. Human migration and the marginal man. The American Journal of Sociology, v. 33, n. 6, 1928 SALEH, Tayeb. A estação de migração para o norte. Arles: Actes Sud, 1996 SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental [1902]. In: VELHO, Otávio Guilherme (org.) O fenômeno urbano. RJ: Zahar, 1967 ----------. O estrangeiro [1908]. In: MORAIS FILHO, E. de (org.). Georg Simmel: Sociologia. SP: Ática, 1983 SODRÉ, Muniz. Antropológica do Espelho; uma teoria da comunicação linear e em rede. Petrópolis: Vozes, 2002


Escolha Coletiva, Governança e Direitos de Propriedade Intelectual: uma Análise Econômica dos Commons Alain Herscovici* Universidade Federal do Espírito Santo (UFS)

Resumo: A partir das ferramentas analíticas construídas por Williamson e Ostrom, este trabalho propõe-se em analisar as implicações s ligadas ao desenvolvimento dos diferentes sistemas de propriedade coletiva e dos bens comuns. Especificarei os diferentes elementos que permitem construir uma função de bem-estar coletiva e mostrarei porque, as modalidades de negociação privada não constituem, sistematicamente, o mecanismo mais eficientes, em termos de bem-estar social. Palavras chaves: Direitos de Propriedade – Commons- Governança- Bem-Estar social Abstract: From an approach related to the “old instituionalism”, and to the analytical tools built by Williamson and Ostrom, this paper aims to analyze the implications of the development of different systems of collective Property Rights and of Commons. I will specify the different elements necessary to built a function of collective welfare, and I will show why, the overnance based on private negotiation is not systematically the most efficient mechanism, in terms of social welfare. Key-words: Property Rights- Commons- Governance- Social Welfare. Resumen: Desde las herramientas analíticas construidos por Williamson y Ostrom, este estudio tiene como objetivo examinar las implicaciones del desarrollo dos diferentes sistemas de propiedad colectiva y los bienes comunes. Voy especificar los diferentes elementos que permiten construir una función de bienestar colectivo y demostrar por qué las modalidades de las transacciones privadas no son sistemáticamente los mecanismo más eficiente en términos de bienestar social. Palabras llaves: Derecho de Propiedad – Commons- Gobiernancia – Bienestar social

A Ciência Econômica continua sendo lúgubre (dismal), como escrevia David Ricardo? A ler a literatura que trata das escolhas coletivas e dos sistemas de Direitos de Propriedade Intelectual (DP), poderíamos responder afirmativamente a esta pergunta. Tragédia dos commons versus tragédia dos anticommons? Quais são as formas de organização social da produção, do consumo e da propriedade viáveis durante determinado período histórico? Para os economistas ligados ao mainstream, a tragédia dos commons pode se transformar em um *

Doutor em Economia pelas Universidades de Paris I Panthéon-Sorbonne e de Amiens, Coordenador do Grupo de Estudo em Macroeconomia (GREM) e do Grupo de Estudo em Economia da Cultura, da Comunicação, da Informação e do Conhecimento (GEECICC), Programa de Pós-Graduação em Economia (PPGEco) da UFES, Professor e Coordenador do PPGEco, membro da ULEPICC e pesquisador do CNPq (e-mail: alhersco.vix@terra.com.br).


hino à felicidade a partir do momento em que os mecanismos de mercado, ou seja, de negociação privada, são reintroduzidos. Ao contrário, para aqueles que acreditam nos limites das lógicas privadas, a tragédia dos anticommons pode ser resolvida a partir da introdução de formas de propriedade coletiva ou semicoletiva. Este trabalho se situa na linha da economia institucional, mais especificamente dos trabalhos pioneiros realizados por Williamson (2000, 2002) e Ostrom (2000,2005). Apesar de certas ambiguidades, o primeiro ressalta a especificidade dos ativos e o fato dos contratos serem, por natureza, incompletos; o segundo estuda mais especificamente as diferentes modalidades de produção e de apropriação social diretamente ligada a formas coletivas de propriedade. Neste sentido, este trabalho pretende fornecer elementos para propor uma alternativa em relação às análises oriundas dos escritos de Coase, e que preconizam modalidades de negociação privada. As análises desenvolvidas aqui se aplicam plenamente a diferentes atividades sociais: meio ambiente, informação, conhecimento e cultura, produção científica e tecnológica, estruturas cooperativas ou solidárias ligadas à gestão coletiva da terra ou aos diferentes sistemas de microcréditos, entre outros. Não obstante, a economia digital ligada às redes eletrônicas e à internet representa, por excelência, um setor no qual este tipo de estudo se aplica: a natureza de bem público dos serviços produzidos e distribuídos, as novas formas de direitos de propriedade diante a impossibilidade de implementar um sistema de DP privado eficiente, o desenvolvimento das diferentes comunidades on line são elementos que ressaltam a importância dos componentes comuns, inclusive no âmbito de uma lógica privada, e que tornam necessária a análise econômica dessas modalidades de governança. A problemática desenvolvida neste trabalho é dupla: ela consiste em identificar as diferentes variáveis que determinam uma função de Bem-Estar social, no que diz respeito a determinada coletividade. Ela define igualmente a viabilidade de determinada modalidade de governança . Em uma primeira parte, mostrarei como a literatura concebe o problema dos commons e dos anticommons, e porque isto é diretamente aplicável à economia digital. Em uma segunda parte, especificarei os diferentes elementos que permitem construir uma função de bem-estar coletiva. Na parte final, definirei o conceito de viabilidade de determinada modalidade de governança e mostrarei como, a partir do momento que os custos de transação (CT) são positivos, os conceitos definidos neste trabalho permitem escolher uma modalidade de governança específica.


I) Tragédia dos commons, tragédia dos anticommons e DPI: uma primeira abordagem.

1. Comuns versus anticomuns?

Quando trata-se de um bem comum, em uma determinada coletividade (componentes ecológicos, recursos naturais, conhecimento comum, etc.), a apropriação privada de tais bens pode ser prejudicial para a comunidade: geralmente, pode se traduzir pelo esgotamento do estoque disponível. Hardin (1968, p. 1243) explica o fracasso da propriedade comum pela ausência de um sistema institucional capaz de preservar o estoque deste bem comum. O exemplo do lago ilustra este tipo de situações: se este lago for um bem comum, cada pescador vai maximizar seu ganho, o que não é compatível com a preservação do estoque de peixes. A solução consiste em implementar um princípio de coerção: a propriedade privada do lago cumpre esta função e permite evitar a exaustão do estoque de peixes. Hardin explica desta maneira as enclosures, no final do século XVII. Os limites desta tese são os seguintes: i) No caso da apropriação privada dos recursos que provêm do bem comum, existem outros meios para regular o sistema. Nas diferentes coletividades, há convenções e regras que determinam e controlam as diferentes modalidades de apropriação social desses bens. As diferentes formas de propriedade coletiva não podem ser assimiladas à ausência de propriedade (Orstom, 2000, p. 335): elas geram regras e convenções explícitas e/ou implícitas que os diferentes membros da coletividade têm que seguir, o que permite controlar os comportamentos oportunistas, minimizar assim as implicações ligadas a tais comportamentos, para um nível de custo de transação compatível com o funcionamento do sistema. ii) É preciso, igualmente, diferenciar as situações em função da natureza econômica do bem comum. Quando os recursos obtidos do bem comum são bens privados e divisíveis, “ the benefits consumed by one individual subtract from the benefits available to others” (Orstom, 2000, p. 337); mas a situação é diferente quando trata-se de bens públicos indivisíveis. De fato, a explicação de Hardin só faz sentido no caso dos bens serem privados e totalmente divisíveis. Quando, ao contrário, trata-se de bens públicos distribuídos no seio de redes, as externalidades positivas dependem diretamente da quantidade de usuários/participantes. No caso das redes eletrônicas, as externalidades de demanda expressam esta relação (Katz and Shapiro, 1985). Podemos observar a existência deste tipo de externalidade na indústria de softwares e nos sistemas de compartilhamento de arquivos digitais (Herscovici, 2007). Na


presença de bens públicos, as modalidades de apropriação privada desses bens provocam falhas de mercado importantes: qualquer processo de exclusão se traduz pela diminuição do número de participantes e da qualidade indivisível do serviço disponível para o conjunto da comunidade. Isto representa uma limitação das externalidades positivas e da taxa de crescimento da produção, conforme ressalta o exemplo da privatização dos scientific commons (Nelson, 2003). Os anticommons (Heller et Eisenberger, 1998) se caracterizam pelo fato do Conhecimento ser o objeto de DPI privados múltiplos; neste caso, o jogo de mercado produz externalidades negativas e importantes falhas de mercado. Há um aumento dos custos de transação relativos à aquisição dos diferentes processos necessários à implementação de uma determinada tecnologia, à medida que os utilizadores têm que negociar esses direitos com vários titulares dos direitos 1. Quando houver vários titulares dos DPI necessários à adoção de uma determinada inovação tecnológica, o preço será maior que na situação na qual há apenas um titular. O desenvolvimento dos comportamentos oportunistas faz com que apareçam externalidades de demanda 2: essas externalidades produzem falhas de mercado e se traduzem por uma diminuição do bem-estar. Nesta situação, os preços relativos à aquisição da tecnologia são mais altos, em relação a uma situação na qual há apenas um detentor dos DPI (Herscovici, 2010). A privatização das modalidades de apropriação da produção científica e tecnológica se traduz pelo desenvolvimento dos comportamentos predadores e pela queda da taxa de crescimento da produção, em função do caráter cumulativo deste tipo de atividades, o que traduz uma ineficiência dos mecanismos de negociação privada (Nelson, 2003). Na perspectiva desenvolvida neste trabalho, essas falhas de mercado se explicam a partir da incompatibilidade entre modalidades de apropriação privada ligadas a um sistema de DPI privado e a produção de bens públicos não rivais e não exclusivos. Existem

duas

maneiras

de

controlar,

ou

de

eliminar

parcialmente,

esses

comportamentos oportunistas: ou eliminar o DP privado, no que concerne ao consumo, ou, ao contrário, privatizar a propriedade do bem comum. O primeiro caso corresponde a formas de economia cooperativa nas quais (a) a apropriação privada não é determinada a partir da contribuição individual de cada agente, mas em função de outros princípios de redistribuição 3 e

1

A este respeito, ver igualmente Posner (2005, p. 69). Trata-se de externalidades de demanda, no sentido definido pelos novos-keynesianos. 3 Isto corresponde ao funcionamento das redes de compartilhamento de arquivos, às modalidades de produção e de distribuição dos programas livres e aos scientific commons. 2


(b) a propriedade do bem público é coletiva. Esta última característica não significa que há ausência de propriedade e de regras de comportamentos. No segundo caso, trata-se de privatizar o estoque de bem comum; a preservação deste estoque será assegurada a partir do comportamento “racional” do proprietário privado: a exclusão pelos preços permite eliminar os comportamentos oportunistas. É preciso acrescentar as seguintes observações: esta escolha entre um sistema coletivo ou privado de DP depende em parte da natureza econômica do bem considerado: no que diz respeito a um bem público, os custos de transação necessários para controlar os comportamentos oportunistas podem ser proibitivos. A escolha de uma modalidade de governança será feita, em relação a um mesmo nível de produção, a partir do nível dos custos de transação relativo a cada uma dessas modalidades; por outro lado, este nível dos custos de transação depende diretamente da natureza econômica dos bens e do sistema de DP vigente. A tragédia dos comuns, assim como a tragédia dos anticomuns, se explica pela incompatibilidade entre a natureza econômica dos bens e serviços consumidos e o sistema de DP vigente. 2. DPI e novas formas de Propriedade intelectual

É na economia digital que as diferentes formas de economia solidárias apresentam a maior eficiência social. Os sistemas dos comuns baseados sobre o compartilhamento de informações e de bens culturais são social e economicamente mais eficientes que os sistemas baseados sobre a propriedade privada e sobre a distribuição a partir de suportes materiais individualizados. Esta eficiência pode ser avaliada em relação à diversidade dos títulos disponibilizados e à ampliação social das modalidades de acesso (Herscovici, 2007). De um ponto de vista geral, o desenvolvimento da economia digital se traduz por um duplo movimento: a transformação da natureza econômica dos bens e dos serviços, e dos sistemas de DPI correspondentes. Por um lado, a maior parte dos bens pode ser assemelhada a bens públicos, cujas principais características são a não exclusão e a não rivalidade. Esta transformação se explica a partir da tecnologia, ou seja, da digitalização desses conteúdos; neste caso, a tecnologia ( o que Ostrom e Heller (2005, p. 10) , chamam de “physical characteristics of the ressource” ) determina esta natureza econômica. As estratégias desenvolvidas consistem, num primeiro tempo, em desenvolver serviços gratuitos, ou semigratuitos, para os diferentes consumidores. Esses mecanismos permitem criar


as redes e as externalidades que lhes correspondem, assim como divulgar as informações que o sistema de preços não tem condições de divulgar: vários produtores de softwares disponibilizam gratuitamente seus programas, durante um período limitado. Certos estudos econômicos tentam determinar o nível de pirataria que maximiza o lucro do produtor

de

programas proprietários (Darmon, Torres, Rufini, 2008) . Por outro lado, tendo em vista a ausência de suporte material no que concerne à distribuição (o caso das redes peer to peer ou das diferentes formas de streaming), não é possível controlar nem limitar a pirataria privada: os custos que permitiriam implementar esses processos de controle são proibitivos (Herscovici, 2007). Em função dessas evoluções, novas formas de propriedade coletivas aparecem: os creative commons e as diferentes formas de copy left. No que diz respeito aos programas livres, a licença GPL (General Public License) pode ser qualificada de extensiva: se um componente protegido por tal licença for incorporado num outro programa, este outro programa tem que ser regido pelo mesmo tipo de licença. De um ponto de vista mais geral, nessas novas formas de propriedade coletivas, os autores cedem parte de seus direitos privados para criar um bem público (Ostrom and Hess, 2007, p. 17). 3. Uma tipologia dos diferentes tipos de direitos

A tipologia estabelecida por Ostrom and Hess (2005) ressalta o fato que existem vários tipos de direitos de propriedade (o conceito de feixe de direitos) e que esses direitos se aplicam a diferentes níveis. Vou utilizar parcialmente esta tipologia para distinguir os seguintes direitos: i) Acesso: o direito de ter acesso a um estoque de bens ou de serviços e de poder utilizá-los. Em função da natureza divisível ou indivisível do bem, as implicações econômicas são diferentes. ii) Contribuição:

o direito de contribuir com a

preservação/ampliação do estoque

comum, no caso dos Scientific Commons ou dos programas livres, por exemplo. iii) Extração: o direito de obter unidades ou produtos do estoque existente. Aqui, também, as implicações, no que diz respeito ao nível do estoque comum, são diferentes em função da natureza divisível ou indivisível dos bens que compõem este estoque. iv) Management/participação: o direito de modificar as regras vigentes no seio do “clube”, o que implica em modificar a natureza da governança.


v) Exclusão: o direito de determinar quem pode utilizar os direitos anteriormente definidos. O sistema de preços constitui umas dessas modalidades vi) Alienação: o direito de vender ou de “alugar” os direitos anteriormente definidos. A privatização se traduz pela venda da totalidade desses direitos como o caso dos direitos de poluição. Por outro lado, o fato de modificar alguns desse direitos implica em modificar a natureza econômica dos bens e dos serviços; por exemplo, as modalidades de acesso ao estoque e de extração determinam o caráter público ou privado dos bens. A passagem de um sistema de DP privado para um sistema comum consiste em ceder alguns desses direitos privados para criar um capital social (Hess, Ostrom, 2000), no sentido empregado por Bowles and Gintis (2001). No caso dos programas livres, a construção deste common se implementa a partir da cessão dos componentes ligados ao acesso e à alienação, e do desenvolvimento das atividades ligadas à contribuição dos diferentes participantes. As diferentes comunidades científicas funcionam igualmente desta mesma maneira. A natureza econômica dos bens e dos serviços depende de duas variáveis: as evoluções tecnológicas e o sistema de DP adotado. Um bem, em sí, não é público ou privado; é o sistema de DP, em função das evoluções tecnológicas, que lhe confere sua natureza econômica. Neste sentido, o sistema de DP tem que ser concebido como uma instituição. É preciso observar que há uma determinação recíproca entre a natureza econômica dos bens e o sistema de DP. À medida que esses dois componentes não são compatíveis, existem duas soluções: (a) adaptar a natureza dos bens ao sistema de DP vigente. Isto pode se traduzir por uma privatização ou uma “publicização” do bem, ou (b) mudar o sistema de DP para que ele seja compatível com a natureza econômica dos bens. A dinâmica das evoluções institucionais pode ser explicada a partir deste mecanismo; as escolhas dependem dos CT associadas a cada uma dessas dinâmicas, ou seja, de sua viabilidade. II) A construção da função de Bem-Estar social

1. Os determinantes da função de Bem-Estar social

A formalização simples que vou apresentar agora tem por principal objetivo construir uma função de bem-estar social, identificar as principais variáveis determinantes e, por fim, mostrar em que medida o tipo de governança determina este bem-estar social. Em função das escolhas epistemológicas e metodológicas feitas aqui, a problemática que norteia esta formalização é ligada à uma lógica de regulação, no sentido empregado pelo


Velho Institucionalismo ou pela Escola Francesa da Regulação: estudarei os mecanismos de regulação

dos

diferentes

sistemas

sociais

em

função

do

jogo

das

compatibilidades/incompatibilidades entre variáveis institucionais e variáveis econômicas, independentemente de qualquer mecanismo de maximização micro, meso ou macroeconômico. A função de bem-estar social, aplicável ao nível das diferentes coletividades, depende das seguintes variáveis: as quantidades consumidas individualmente qi, o nível inicial do estoque disponível para a coletividade, Nj , o nível dos custos de transação que corresponde àquela modalidade de governança, CT, e os mecanismos de exclusão, Ex. Esses são determinados a partir do sistema de DP vigente; no caso de um sistema de DP privado, a exclusão se concretiza pelos preços que condicionam o consumo individual, ou seja, o acesso ao estoque disponível.

A função de bem-estar social é a seguinte: Uw = f1 (qi, Nj, CT, Ex)

Temos as seguintes relações:

Os componentes ligados à produção são diretamente incorporados nesta função, via a função de estoque; o bem-estar social aumenta quando aumenta o nível do estoque e o consumo individual, o que é bastante óbvio. Os efeitos de uma intensificação dos mecanismos de exclusão são mais complexos, à medida que eles dependem da natureza dos bens que constituem o estoque. No que diz respeito à tragédia dos commons, a exclusão permite preservar o estoque e assegurar o consumo futuro; trata-se de uma escolha intertemporal de consumo de bens escassos. No caso dos anticommons, a exclusão diminui o bem estar social, à medida que o caráter indivisível do bem público permite aumentar o consumo individual sem diminuir o estoque disponível. Este efeito é ampliado quando há externalidades de redes (Katz and Shapiro, 1985): independentemente de qualquer nível de consumo, a exclusão diminui a qualidade indivisível do serviço. O mesmo tipo de observações se aplica às atividades que apresentam um caráter cumulativo, como a produção científica e tecnológica, por exemplo (Nelson, 2003). Este caso concerne diretamente à tragédia dos anticommons. Quando os bens são bens de experiência, o sistema de preços não fornece as informações qualitativas necessárias, é preciso compartilhar a experiência dos diferentes


usuários, para poder aumentar a utilidade do consumo. Assim, quanto maior o número de usuários, maior a utilidade de cada usuário. Este fenômeno caracteriza a economia das redes eletrônicas, tanto o hard quanto o software, e ressalta o papel econômico das diferentes comunidades on line. Quando o consumo alcançou um valor crítico, aparecem efeitos de congestionamento: a qualidade indivisível diminui para cada um dos participantes4 . Neste caso, a exclusão, que permite limitar o consumo, pode ser implementada a partir de um sistema de preços, ou a partir de outros critérios institucionais: regras, princípios de coerção, etc. Uma das limitações das conclusões de Hardin consiste no fato que ele não concebe outras modalidades de exclusão que não sejam os preços (Cox, 1986, p. 60). Podemos afirmar assim que o bem-estar social depende diretamente das compatibilidades entre a natureza econômica dos bens e o sistema de DP vigente relativo ao estoque e ao consumo individual; a manutenção ou o crescimento do estoque disponível para a coletividade, e o nível dos custos de transação dependem diretamente do grau de compatibilidade entre esses elementos. Por exemplo, a tragédia dos commons se explica a partir da não compatibilidade entre a natureza coletiva do estoque, o consumo privado e o caráter divisível dos bens que constituem este estoque; a tragédia dos anticommons, pela não adequação entre o caráter indivisível e cumulativa da produção, e o consumo privado. Finalmente, o problema relativo às redes de compartilhamento de arquivos digitais se relaciona com o caráter indivisível do estoque e com umas lógicas de oferta e de consumo ligadas a um sistema de DPI privado e individualizado (Romer, 2002); os custos de transação necessários para controlar os comportamentos “oportunistas” seriam maiores que os ganhos que este tipo de ação tenta preservar (Herscovici, 2007).

2. Sistema de DP, natureza econômica dos bens e viabilidade do modo de governança

2.1 Os diferentes níveis de aplicação dos DP

É preciso fazer as seguintes observações: primeiramente, o sistema de DP se relaciona simultaneamente com as modalidades de acesso ao estoque e com as modalidades

4

Por exemplo, no caso de uma estrada, além de um certo volume de tráfico,a segurança diminui, para cada motorista.


de consumo 5. O primeiro mecanismo depende diretamente das diferentes lógicas de exclusão: é

possível

imaginar

o

livre

acesso

para

os

membros

de

uma

determinada

comunidade/coletividade, e a exclusão, por regra, para os agentes que não pertencem a esta comunidade. Estamos na presença de externalidades locais que são limitadas a um certo espaço geográfico, o que é característico dos problemas dos clubes locais (Ostrom, 2000, p. 336). Neste caso, a partir de um sistema de regras, é possível limitar o acesso aos bens que provém do estoque local. É o caso dos sistemas de microcréditos hoje, ou das modalidades de propriedade comum das terras,

no século XVIII: os custos necessários para limitar e/ou

regulamentar o consumo privado não são proibitivos. O segundo nível se relaciona diretamente com as modalidades de apropriação individual, e com o conceito de enforcement utilizado por Alchian and Demsetz (1973, p. 17): i) No caso das redes de compartilhamento de arquivos digitais (e-mule, por exemplo), há mecanismos que impõem uma razão entre o download e o upload (Herscovici, 2007); assim, cada usuário tem uma participação mínima na renovação do estoque comum. ii) No caso dos programas livres, como Linux, parte dos usuários contribui para melhorar o programa, socializando suas próprias contribuições. Os membros da coletividade podem ser

usuários, ou seja, apenas utilizar os programas, mas eles podem igualmente

contribuir para a complexificação deste programa, a partir de modificações do código fonte; neste caso, essas modificações são obrigatoriamente disponibilizadas para o conjunto dos usuários. Finalmente, a partir do conceito de Scientific Commons, a produção científica (e as aplicações tecnológicas decorrentes) funciona da mesma maneira. Certos consumidores são, ao mesmo tempo, produtores, à medida que eles contribuem para a ampliação do estoque disponível. Por outro lado, aqueles que acessam a rede criam utilidade social e, consequentemente, valor para os agentes que têm condições de valorizar as modalidades de acesso a esta rede; é a estratégia desenvolvida, com sucesso, por Google, por exemplo. Neste caso, que caracteriza boa parte das atividades desenvolvidas no âmbito da economia digital, a configuração do sistema de DP compatível com a viabilização econômica das atividades de redes deve permitir verificar as seguintes condições: (a) o livre acesso ao estoque de informações disponíveis (b) o fato dos bens que compõem este estoque serem indivisíveis e (c) a propriedade privada no que diz respeito às modalidades de acesso à rede, quando essas modalidades geram valor: as empresas que anunciam no Google. (a) e (b) correspondem à criação da utilidade social necessária à valorização da rede, e (c) a suas 5

Ver Heller e Ostrom (2005, p. 10): o ressource system corresponde ao estoque, as ressource units àss modalidades de consumo


condições de valorização, no âmbito de uma lógica privada. Neste caso, é possível falar em propriedade semicomum no que diz respeito ao estoque: há open acess para os consumidores finais, mas acesso pago para as empresas, tendo em vista que o pagamento depende diretamente da utilidade social da rede, ou seja, do open acess por parte dos consumidores finais.

2.2 A viabilidade da modalidade de governança

O

problema

da

viabilidade,

ou

da

inviabilidade,

surge

quando

aparecem

incompatibilidades entre os diferentes elementos do sistema, e quando a resolução desses antagonismos não pode ser implementada sem custos de transação proibitivos. A tragédia dos commons, ou os conflitos atuais a respeito dos direitos autorais, no âmbito da indústria musical, são a consequência de tais blocagens do modo de governança vigente. É possível definir a viabilidade da governança da seguinte maneira: uma governança é viável quando os CT são compatíveis com o nível da produção dos bens e dos serviços , ou seja, quando a implementação da atividade não se traduz por uma queda do bem-estar. Numa perspectiva intertemporal, é importante observar que a viabilidade se traduz igualmente pela preservação e/ou pela ampliação do estoque disponível. O conceito de viabilidade definido desta maneira é alheio a qualquer mecanismo de maximização produzido “naturalmente” por uma hipotética mão invisível. QUADRO 1: GOVERNANÇA, BEM-ESTAR SOCIAL E VIABILIDADE Estoque (DP)

Natureza Eco

Consumo indiv. (DP)

comum

divisíveis

comum

indivisíveis Apropriação coletiva

Apropriação privada

Contribuição

privado

divisíveis

semi-comun indivisíveis

Bem –estar -

Viabilidade -

+

0

+

+

CT +

1

-

2

-

3

Exter. de redes

+

+

-

4

Congest.

-

-

+

5

+

+/-

+/- .

6

Apropriação privada + indireta (two sided markets)

+/-

+/-

7

Apropriação privada direta


O caso 1 corresponde à análise de Hardin: a inviabilidade se traduz pelo esgotamento do estoque disponível e pelo fato dos CT serem particularmente altos. Os casos 2, 3 e 4 correspondem a modalidades de governança/regulação viáveis: as variáveis institucionais permitem manter o nível dos CT compatível com o bem estar e não provocam o esgotamento do estoque. O caso 5 ressalta a necessidade de um controle do consumo social; neste caso, essas atividades de monitoramento se traduzem por um aumento dos CT e, consequentemente, por uma diminuição do bem- estar. O problema consiste em determinar se o aumento dos CT é inferior a perda de bem-estar provocada pelo congestionamento. A situação 6 corresponde a uma lógica puramente privada, no que diz respeito à produção e ao consumo. Para a escola neoclássica, esta situação é a mais eficiente: (a) ela maximiza o bem-estar e (b) ela corresponde a CT nulos. Isto só é verificado no caso de um mercado concorrencial, no sentido walrasiano: na ausência de comportamentos oportunistas, e quando o sistema de preços fornece gratuitamente a totalidade da informação necessária à realização das trocas. Se essas condições não foram verificadas, nada indica que o mercado concorrencial corresponda à governança que tem o menor nível de CT . Ao contrário, em certos casos, o nível dos preços ligado a uma lógica de negociação privada é mais alto que aquele que resultaria de uma outra modalidade de governança.: quando há vários detentores dos DPI ligados a um mesmo processo tecnológico, o preço a pagar para adquirir aquele processo é mais alto que o preço que se pagaria com um só detentor dos DPI relativos ao conjunto do processo. . Finalmente, a situação 7 corresponde aos mecanismos que atuam na economia digital: o estoque é privado, mas os bens são indivisíveis; o consumo é parcialmente gratuito, mas, a partir das estratégias dos double sided markets, as modalidades de acesso às redes de usuários representam uma nova modalidade de apropriação privada da utilidade social assim criada (Bomsel, 2007): os consumidores/usuários produzem a utilidade social que permite a viabilização econômica da rede a partir da privatização de certas modalidades de acesso a esta rede. Os resultados, em termos de bem-estar e de viabilidade parecem positivos: a gratuidade, ou semigratuidade, constitui uma melhoria do bem-estar. Não obstante, a viabilidade deste sistema depende das evoluções do sistema de DPI. O sistema atual de direitos autorais é baseado sobre um consumo individual, na base de suportes matérias individualizados (livro, CDs, DVD, etc.), enquanto a fonte de criação do valor não é mais ligada a este consumo individual mas, ao contrário, à criação de utilidade social: Google soube utilizar esta estratégia.


Os CT necessários para controlar as diferentes formas de “pirataria”, em relação ao sistema de DPI vigente, são altos e podem inviabilizar a governança privada; é preciso imaginar outras formas de remuneração dos criadores, em sintonia com essas evoluções econômicas. Conclusão

Em última instância, esta linha de pesquisa corresponde a uma redefinição do objeto da Ciência Econômica: não trata-se mais de estudar como um sistema de preço concorrencial permite alocar recursos escassos, produzir a partir de uma minimização dos custos e alcançar um estado de ótimo social (Williamson, 2002): i) Uma série de avanços tecnológicos produziu uma abundância de certos fatores de produção: (a) os aumentos da produtividade do trabalho se traduziram por uma queda do valor dos bens, o que permite falar em abundância relativa (b) a digitalização da Informação e do Conhecimento,

paralelamente

ao

desenvolvimento

das

redes

eletrônicas,

diminui

substancialmente a escassez deste tipo de serviços. Consequentemente, o objeto da Ciência Econômica se modificou. As atividades relativas às modalidades de governança tornam-se fundamentais: elas se relacionam diretamente com as modalidades concretas de apropriação social dos bens e serviços produzidos, com a perenidade desta governança, ou seja, com os problemas de coordenação das diferentes atividades, e com sua viabilidade social e econômica. No âmbito de tal perspectiva, trata-se de uma análise institucionalista, à medida que o mercado não é concebido como um mecanismo social autônomo, socialmente eficiente e desprovido de dimensão histórica. Os componentes institucionais, largo senso, cumprem um papel fundamental: permitem assegurar a regulação do sistema a partir das compatibilidades entre as lógicas de acumulação do capital e as diferentes formas institucionais, coordenar a atuação dos agentes e manter os custos de transação a um nível que seja compatível com o funcionamento do sistema. Referências Alchian Armen A., Demsetz Harold, 1973, The Property Rights Paradigm, The Journal of Economic History, Vol. 3,n No 1, pp. 16-27 Bowles Samuel and Herbert Gintis, 2001, Social Capital and Community Governance, site www.santafe.edu/sfi/publications/ Working-Papers./03-04-027, acesso em 1 de julho de 2004. Bomsel Olivier, 2007, Gratuit! Du déploiement de l´économie numérique, Folio Actuel, Paris


Coase, R. H., 1960, The Problem of Social Cost, in Journal of Law and Economics, 3. Cox Susan Jane Buck, 1986, No Tragedy on the Commons, Discussion Papers, Workshop in Political Theory and Policy Analysis, Indiana University. Darmon E., Rufini A., Torre D., 2007, Back to Software “Profitability Piracy”: The role of delayed adoption and information diffusion, paper présenté au colloque Services on line, Université de Paris 11 Sceaux. Hardin Garret, 1968, The Tragedy of the Commons, Science, Vol. 162, pp. 1243-1248. Heller M. and Eisenberg R, 1998, Can Patent Deter Inovation? The Anticommons Tragedy in Biomedical Resaerch, in Science, Vol. 29, pp. 698-701 Herscovici, Alain, 2007, Information, qualité et prix : une analyse économique de l´internet et des réseaux d´échange d´archives. Congrès International Online services ADIS/Université de Paris Sud, Paris, décembre 2007. --------------------, 2010, Intellectual Property rights, assets specificity and strong uncertainty: an approach in terms of "institutional form".(Theme 2: The dynamics of socio-economic models of development: understanding the recentpast to foresee the future), 12th Conference of the Association for Heterodox Economics, Université de Bordeaux, Julho de 2010. Katz M.L. and Shapiro C., 1985, "Network Externalities, Competition and Compatibility", in American Economic Review, Vol.75 n°3. Nelson R., 2003, Markets and the Scientific Commons, WP, Columbia University. Nordhaus William D., Paul Samuelson and Global Public Goods, in Samuelsonian Economics and the twenty-first century, Oxford University Press, pp. 88-98. Ostrom Elinor, 2000, Private and Common Property Rights, Workshop in Political Theory and Policy Analysis, Population and Environmental Change, Indiana University. Ostrom Elinor and Charlotte Hess, 2007, A framework for Analyzing the Knowledge Commons, in Understanding Knowledge as a Commons, Edited by Charlotte Hess and Elinor Ostrom, The Mit Press, Cambridge, Massachusetts, London, England. Posner, Richard A., 2005, Intellectual Property : The Law and Economics Approach, Journal of Economic Perspectives-Volume 19, Number 2- Spring 2005- Pages 57-73. Romer Paul ,2002, When Should we Use Intellectual Property Rights, American economic Review, Vol. 92, No.2 (May, 2002). Williamson, Oliver E, 2000, The New Institutionnal Economics: Taking Stock, Looking Ahead, Journal of Economic Litterature, Vol. XXXVIII (September 2000). -------------------------, 2002, The Theory of the Firm as Governance Structure: From Choice to Contract, Journal of Economic Prospectives – Volume 16, Number 3 - Summer 2002.


Face Paulista da TV Digital: Reflexão Sobre A Multiprogramação na TV Cultura Vivianne Lindsay Cardoso 1 Universidade Estadual Paulista (FAAC/UNESP) Juliano Maurício de Carvalho2 Universidade Estadual Paulista (FAAC/UNESP) Resumo: O processo de implantação da multiprogramação pela TV Cultura, emissora sob responsabilidade da Fundação Padre Anchieta, a partir da regulação da televisão digital no Brasil, por meio do Sistema Brasileiro de Televisão Digital Terrestre (SBTVD-T), envolve a criação e implantação dos canais de multiprogramação da emissora, o Univesp TV e o Multicultura, que estão em funcionamento por meio de autorização especial em caráter científico e experimental. Analisado a partir da visão da Economia Política da Comunicação, esta pesquisa contribui com a reflexão sobre a multiprogramação que pode criar alternativas para novas opções de programação e conteúdo na televisão do País. Palavras-chave: Multiprogramação. Televisão Pública. Políticas de Comunicação Abstract: The implantation procedure of the multiprogramming for TV Cultura, a station under the responsibility of the Fundação Padre Anchieta,from the regulation of digital television in Brazil, through the Sistema Brasileiro de Televisão Digital Terrestre (SBTVD-T), involves the creation and implantation of multiprogramming channels of the station, the Univesp TV and the Multicultura channels, which are functioning through means of a special authorization in scientific and experimental character. Analyzed from the Communication Politics Economy point of view, this research contributes to the reflexion about the multiprogramming which may create alternatives to new options in this country programming and content. Keywords: Multiprogramming, Public Television, Communication Politics Resumen: El proceso de implantación de la multiprogramación por la TV Cultura, estación bajo responsabilidad de la Fundación Padre Anchieta, partiendo de la regulación de la televisión digital en Brasil, por medio de lo Sistema Brasileño de Televisión Digital Terrestre (SBTVD-T), envuelve la creación y implantación de los canales de multiprogramación de la estación, el Univesp TV y el Multicultura, que están en funcionamiento por medio de autorización especial en carácter científico y experimental. Analizando de la visión de Economía Política de la Comunicación, esta pesquisa contribuí con la reflexión sobre la multiprogramación que puede crear alternativas para nuevas opciones de programación y contenido en la televisión del país. Palabras-llave: Multiprogramación, Televisión Publica, Políticas de Comunicación 1

Bacharel em Comunicação Social - Jornalismo (Puc-Campinas), Especialista em Docência no Ensino Superior (Unifeob), mestranda em Comunicação pela Unesp na linha de pesquisa – Gestão e Política da Informação e da Comunicação Midiática. Bolsista Fapesp. Membro do Grupo de Pesquisa Lecotec (Laboratório de Estudos em Comunicação, Tecnologia e Educação Cidadã) da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (FAAC/Unesp). E-mail: viviannelc@hotmail.com. 2 Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Televisão Digital: Informação e Conhecimento (mestrado profissional) [licenciado], docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Midiática (mestrado acadêmico) e do Curso de Jornalismo, líder do Lecotec (Laboratório de Estudos em Comunicação, Tecnologia e Educação Cidadã) da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (FAAC/Unesp). E-mail: juliano@faac.unesp.br .


Introdução

A implantação da multiprogramação pela emissora de televisão TV Cultura é um momento relevante na história da televisão pública no Brasil, em especial do estado de São Paulo – estado sede da emissora – e remete à reflexão de como está ocorrendo esse processo que engloba a criação e objetivos dos canais Univesp TV e Multicultura e da própria tecnologia. A multiprogramação pode provocar transformações no modo de pensar, fazer e ver a televisão brasileira. A TV Cultura, nesta perspectiva, pode se tornar um referencial na implantação da multiprogramação voltada para os interesses educativos, culturais e de capacitação social, contribuindo para o aperfeiçoamento da emissora pública e para a discussão sobre as políticas públicas reguladoras das televisões digital, pública e educativa vigentes. A multiprogramação, viabilizada por meio da tecnologia de televisão digital adotada no País, envolve mais do que a televisão em seu processo, mas também o computador e os dispositivos móveis, tornando-se de um instrumento de convergência, interatividade, compartilhamento de multiserviços e acessibilidade, podendo ser utilizada e desenvolvida por emissoras públicas ou privadas, dependendo apenas de uma regulação para seu livre funcionamento. Nesta perspectiva, a televisão pública pode assumir papel fundamental no processo de implantação do dispositivo no País diante de sua política de atuação voltada ao que determina sua recomenda de valorização aos direitos dos cidadãos, como define a Associação Brasileira das Emissoras Públicas, Educativas e Culturais – Abepec. Por ser uma concessão pública, a televisão tem como missão - conforme os preceitos básicos das emissoras associadas da Abepec – “educar, informar, entreter e divertir os telespectadores, observando os direitos das pessoas, principalmente das crianças, e os valores da solidariedade, fraternidade e igualdade” (ABEPEC, 2010). Desde 2005, as discussões sobre o tema culminaram nos eventos I e II Fórum Nacional de TVs Públicas, realizado em 2007 e 2009, respectivamente, onde foram apresentadas a Carta de Brasília e a II Carta de Brasília, documentos que reúnem os princípios norteadores das televisões com este caráter (ABEPEC, 2010). Barbosa e Castro (2008) propõem que o papel da televisão pública neste novo cenário pode se tornar a grande alavanca para a que a sociedade atinja objetivos relevantes em uma sociedade democrática como o cumprimento da regra constitucional, por meio da socialização dos bens culturais, democratização da informação, difusão do conhecimento e cidadania; oportunidades que poderão surgir no mercado audiovisual pelas novas maneiras


de acesso à informação, à cultura e ao entretenimento; atendimento à qualidade das relações sociais na medida em que rediscute a noção de espaço público, assim como a visibilidade das relações público-privadas, de seu agendamento, troca simbólica e modificação do eixo de poder resultante; diversidade de idéias, os espaços de relacionamento, as possibilidades de estabelecerem novos pactos sociais através da inclusão de novos atores e a conseqüente divisão do poder sobre a informação, sendo a multiprogramação importante instrumento para alcançar e viabilizar estas potencialidades. A TV Cultura é definida pela Fundação Padre Anchieta, responsável por gerir a emissora, como uma televisão pública como missão trabalhar com finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas, conforme determina os artigos 222 e 224 da Constituição Brasileira, buscando universalizar o direito à informação e à comunicação, em um trabalho contínuo de inovação e experimentação (FPA, 2010). Recentemente sua experimentação no ambiente tecnológico e educacional tem sido com a implantação de dois canais na multiprogramação, por meio de autorização especial para funcionamento em caráter científico e experimental (DOU, 2009): o Multicultura - que, em fase de implantação, está exibindo programas, séries, documentários e especiais do acervo da TV Cultura, em seus 40 anos de atividade (MULTICULTURA, 2010) - e o canal Univesp TV, iniciados em 26 de agosto de 2009; ambos sem geração de renda, conforme determinada o Ministério das Comunicações. O Univesp TV tem por objetivo criar novas possibilidades de acesso à educação agregando em seu processo de construção de conhecimento a televisão, o computador e aulas presenciais. A “Univesp - Universidade Virtual do Estado de São Paulo - é um programa do Governo do Estado de São Paulo criado pelo decreto nº 53.536, de 9 de outubro de 2008, para expandir o ensino superior público de qualidade”, visando criar oportunidade para que mais pessoas estudem gratuitamente nas universidades estaduais, integrando internet e televisão digital. O objetivo é criar pólos em todas as regiões de São Paulo, que servirão de sedes físicas da universidade virtual, integrando aulas presenciais, e atividades à distância utilizando a internet e o canal Univesp TV, por meio do sistema denominado ‘Aprendizado Eletrônico’, desenvolvido por pesquisadores da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). O Univesp TV desenvolve uma grade de programação com espaço para programas diretamente ligados aos cursos e vinculados as aulas (UNIVESP, 2010). Trata-se de uma ação cooperativa, articulada pela Secretaria de Ensino Superior do Estado de São Paulo com as universidades estaduais paulistas – Universidade de São Paulo (USP), Universidade Estadual Paulista ‘Júlio de Mesquita Filho’ (Unesp) e Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) - e com o Centro


Paula Souza, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (FAPESP), da Fundação do Desenvolvimento Administrativo Paulista (FUNDAP), da FPA (FPA) e da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Esta reflexão visa colaborar com as discussões referentes as políticas públicas quanto a concepção da regulação adotada para a multiprogramação no Brasil, o processo de digitalização da televisão pública, em particular da TV Cultura, analisando sobre o papel da televisão de acordo com os artigos 220, 221, 222, 223 e 224, capítulo V/1988 da Constituição Brasileira, os quais discutem as obrigações, intenções e funcionalidades da televisão brasileira. Partindo do pressuposto de que o artigo 220 determina que “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”; e o descrito no inciso 5º que “Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”, não estaria a própria regulamentação a partir do Decreto nº 5.820, por meio do artigo 12, que proíbe a multiprogramação no País - exceto para os canais da União Federal e a TV Cultura (com autorização especial). E mais, o artigo 221 determina entre alguns de seus itens que: “A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios: I - preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; II promoção da cultura nacional e regional e estimulo à produção independente que objetive sua divulgação”. Muito mais do que questões mercadológicas e de consumo, a televisão tem um papel fundamental educativo. E, apesar da limitação legal que proíbe a difusão da multiprogramação tanto em televisões públicas - exceto os canais do Governo Federal -, quanto privadas, ela possui relevante potencial de instrumento propagador e incentivador de educação, cultura, arte e informação ao ser usado efetivamente com tal finalidade e não simplesmente instrumento de consumo do sistema capitalista. A Economia Política da Comunicação permite uma análise crítica do assunto, voltando seu estudo a totalidade das relações sociais que formam os campos econômico, político, social e cultural, objetivando compreender a mudança social e a transformação histórica e como ela repercute e se imbrica com o mundo da comunicação em todos os sentidos” (BOLAÑO, 2007). As possibilidades de expansão da comunicação pela televisão, a partir da multiprogramação, dão início a uma nova perspectiva de reflexão exatamente quanto a novas formas de relações sociais que este veículo pode provocar e mediar. No entanto, as regulações determinadas pelas políticas públicas são fatores determinantes no processo de desenvolvimento da multiprogramação e sua devida utilização junto à


sociedade. Assim como vem propondo a TV Cultura, cabe a emissora pública o papel gerador de políticas alternativas, tendo uma função complementar às emissoras comerciais e ao sistema estatal oficial, que é justificada pela necessidade de preservar valores culturais e sociais. Em relação às políticas públicas voltadas à comunicação social, enfim, há uma resistência dos empresários de comunicação e do governo quanto à sua implantação, pois estes segmentos vêem nas emissoras públicas e comunitárias uma concorrência pelas receitas de publicidade e um espaço para a formação de um pensamento político independente. (LINS, 2002)

O Brasil vive um período de transição e adaptação em sua estrutura capitalista no modo de fazer televisão e cada dispositivo criado para abrir caminhos de mudança nesta estrutura merece ser considerado, registrado e estudado. Por considerar que a cultura de uma sociedade capitalista reflete as normas e valores da classe social, que possui propriedade dos meios de produção, Karl Marx teria observado no “mundo da Comunicação” a manifestação necessária do que chamou de forma da consciência social. “Estamos no domínio da economia. De um lado, dáse um nome a uma materialidade que, em si mesma e livre de toda significação, faz parte da história dos homens; do outro, são rotuláveis linguagens e os sistemas de sinais em curso e uso nas sociedades humanas.” (POLISTCHUK, 2003). Breve relato histórico

A tecnologia da televisão digital no País está regulamentada no Decreto nº 5.820, de 29 de junho de 2006, que cria o Sistema Brasileiro de Televisão Digital Terrestre (SBTVD-T) e o conjunto de padrões tecnológicos a serem adotados para transmissão e recepção de sinais digitais terrestres de radiodifusão de sons e imagens. O sistema é baseando no padrão japonês de sinais do Integrated Services Digital Broadcasting Terrestrial (ISDB-T) – serviço integrado de radiodifusão digital terrestre, sendo adaptado e desenvolvido tecnologicamente no País, usualmente chamado de sistema “nipo-brasileiro”, a tecnologia permite a transmissão digital em alta definição de imagem e som High Definition Television (HDTV), simultânea para a recepção fixa, móvel e portátil, a interatividade e a multiprogramação. Desde sua criação envolvendo as questões legais e de regulação, a implantação tem sido marcada pela constante preocupação com a questão da educação, acessibilidade e desenvolvimento social, iniciada a partir da instituição do Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD) pelo decreto nº 4.901, de 26 de novembro de 2003. Entre


seus objetivos, estão descritos a finalidade de promover a inclusão social, a diversidade cultural do País e a língua pátria por meio de acesso à tecnologia, visando à democratização da informação, propiciar a criação de rede universal de educação à distância e contribuir para a convergência tecnológica e empresarial dos serviços de comunicação. A partir desta tecnologia, um novo dispositivo de comunicação está sendo implantado e disponibilizado para o País: a multiprogramação que é definida como “a ocupação compartilhada de um canal (6MHz) por diversas emissoras, sendo que cada emissora possui um espaço próprio, autônomo, dentro desse canal, como se fossem subcanais”, conforme consta no Relatório do Grupo Temáticos de Trabalho ‘Migração Digital’, do I Forum Nacional de TVs Públicas (2007). O relatório aponta que a multiprogramação pode ser um “modelo estratégico para as televisões públicas por permitir maior representação da diversidade e por ser o meio de atender as necessidades de produção e veiculação de conteúdos que atendam todas as demandas da sociedade” com os seguintes benefícios: ampliação do número de canais – mais conteúdo, possibilidade de alternar alta definição (banda) e multiprogramação (divisão de banda em até quatro programações standar) – conteúdo diferenciado. Regulamentada pela Norma Geral para Execução dos Serviços de Televisão Pública Digital nº 01/2009, a multiprogramação é autorizada a ser utilizada pela União Federal, com o objetivo de transmitir assuntos ligados ao Poder Executivo, educação, cultura e programação ligada a interesses regionais. Entre os canais de multiprogramação da União estão: TV Brasil, TV Câmara, TV Justiça e TV Senado. Em paralelo, a televisão pública e educativa, desde sua implantação, por meio do Decreto-Lei nº 236, de 28 de fevereiro de 1967, tem como dever destinar a divulgação de programas educacionais, mediante a transmissão de aulas, conferências, palestras e debates. As emissoras de rádio e televisão, por sua vez, devem ter como princípio, conforme determina o artigo 222 da Constituição Federal, finalidades educativas, culturais e informativas. A TV Cultura foi a única emissora a ter a autorização especial para a implantação da multiprogramação (DOU, 2009). Mesmo sendo uma emissora educativa e pública, foi preciso ampla negociação entre o Ministério das Comunicações, por meio do então ministro Hélio Costa, e o ex-presidente da FPA, Paulo Markun, responsável por romper a própria legislação vigente por acreditar na potencialidade e inovação da multiprogramação e colocar no ar os dois canais da TV Cultura, o Multicultura e o Univesp TV. “A FPA está oferecendo um canal digital que, de fato, inaugura a televisão digital no País. Vamos apresentar o caminho para oferecer mais cultura, conhecimento e educação para que a televisão digital seja mais que um salto de tecnologia, seja um salto de conteúdo e oportunidades”, declarou


Paulo Markun durante a cerimônia de lançamento da multiprogramação pela emissora em 26 de agosto de 2009 (TV CULTURA, 2010). Após o lançamento dos canais, um intenso entrave público foi travado entre o então presidente da FPA e o ministro das Comunicações. O resultado da disputa foi o Despacho do Ministro Hélio Costa, em 7 de maio de 2009, publicado no Diário Oficial da União (DOU), no qual foi publicado: APROVO, com fundamento na Informação no 158/2009/CGEO/DEOC/SCEMC, o pedido formulado pela FUNDAÇÃO PADRE ANCHIETA - CENTRO PAULISTA DE RÁDIO E TV EDUCATIVAS para execução do Serviço Especial para Fins Científicos ou Experimentais com o objetivo de testar a transmissão de sinais de radiodifusão de sons e imagens, com multiprogramação exclusivamente educativa, na localidade de São Paulo/SP. A execução do serviço, nos termos do Decreto no 6.123, de 13 de junho de 2007, deverá obedecer plenamente aos procedimentos operacionais estabelecidos na Norma no 01/2007, aprovada pela Portaria no 465, de 22 de agosto de 2007, bem como, quanto à programação veiculada, às disposições contidas no art. 13 do Decreto-lei no 236, de 28 de fevereiro de 1967, que determinam: Art 13. A televisão educativa se destinará à divulgação de programas educacionais, mediante a transmissão de aulas, conferências, palestras e debates. Parágrafo único. A televisão educativa não tem caráter comercial, sendo vedada a transmissão de qualquer propaganda, direta ou indiretamente, bem como o patrocínio dos programas transmitidos, mesmo que nenhuma propaganda seja feita através dos mesmos. (DOU, 2009)

Para Markun, a ordem na TV Cultura é experimentar, acreditando que os novos meios de comunicação foram prioridades de sua gestão e a emissora viabiliza isso por não ser uma rede comercial, permitindo acertar e errar gastando pouco (TV CULTURA, 2010). A Economia Política da Comunicação e a Multiprogramação

As questões referentes a implantação da multiprogramação no País vão além dos interesses da TV Cultura, envolvem questões comerciais e de domínio de mercado. As emissoras Rede Globo, SBT (Sistema Brasileiro de Televisão) e Rede Record, por meio da Abert (Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão), são contrárias ao mecanismo. Já a Rede Band, a Rede TV! e o Grupo Abril são favoráveis. (EBC, 2010). Neste jogo de interesses comerciais e de poder, a TV Cultura é a única emissora não federal a ter a liberdade de experimentar a nova tecnologia. Poucas são as obras que relatam a conduta política e de gestão da TV Cultura. O livro de Lima, ‘Uma história da TV Cultura’, relata a relação intensa e conturbada que vive a emissora com o Estado, o poder e seus ideais e regulações envolvendo seus gestores a partir de sua criação em 1960. Desde 1961, o governo do estado de São Paulo trabalhava


para oferecer educação pela televisão e foi por meio da TV Cultura que a idéia ganhou força. Criada como uma emissora comercial por Assis Chateubriant passou a ser uma emissora pública, de caráter educativo, em 1967. A partir do Decreto-Lei nº 236, de 28 de fevereiro de 1967, que complementa e modifica a Lei número 4.117, de 27 de agosto de 1962. No mesmo ano, foi fundada a FPA, entidade de direito privado destinada a gerir as emissoras de rádio e televisão públicas do Estado. Desde então, a emissora tem contribuído como modelo de televisão pública, buscando garantir autonomia intelectual, administrativa e editorial, assim como vem fazendo ao assumir a implantação da multiprogramação. A perspectiva política deste artigo se dá com base na teoria a partir da análise e reflexão da aceleração do capitalismo de modo crítico, realista e inclusivista da Economia Política da Comunicação, buscando compreender o contexto que envolve a regulação concebida para a multiprogramação no Brasil - com suas potencialidades - e o que vem sendo efetivamente concedido e concretizado. As três linhas da teoria – a da América do Norte, a Européia e a de Terceiro Mundo / América Latina -, assim definidas por Mosco (1996, 2006), desde o surgimento das indústrias de mídia no século XX, buscam compreender os personagens que envolvem as indústrias culturais e suas relações com processos econômicos sociais mais amplos envolvendo poder, Estado, dinheiro, a sociedade e valores humanísticos. A Economia Política da Comunicação se destacou por sua ênfase em descobrir e examinar o significado das instituições, especialmente empresas e governos, responsáveis pela produção, distribuição e intercâmbio das mercadorias de comunicação e a regulação do mercado de comunicação (MOSCO, 2006).

Para Mosco (2006), a introdução de modernos meios de comunicação, assim como se dá a multiprogramação, exerce papel relevante para colaborar com a mudança nas estruturas sociais familiares e políticas que devem ser consideradas nas perspectivas de mercantilização, e estruturação. Para Mattelart (1999), na perspectiva desenvolvimentista, as mídias constituíam recursos que, aliados à urbanização, à educação e a outras forças sociais, poderiam estimular a modernização econômica, social e cultural dos países subdesenvolvidos. A mídia era vista como um índice de desenvolvimento, e o objetivo era construir uma economia de mercado, sendo os meios de comunicação instrumentos para isso. (FONSECA, 2007). Para Marx (2008), as relações de força e poder são reflexos de condições materiais de existência, formando a sociedade civil, produzindo uma existência no qual “os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; essas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas


forças materiais atendendo suas necessidades”. (MARX, 2008).

Assim, o “modo de

produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não há consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência” (MARX, 2008). Tornando assim, para Marx, o indivíduo na sociedade com um resultado histórico que cria poderes políticos para atender suas necessidades econômicas. O grande e talvez mais precioso diferencial da emissora pública em relação a televisão comercial seja justamente que ela deve se comprometer com a um conteúdo mais flexível e voltado aos temas menos explorados que atendam exatamente à educação, cultura, arte e informação e não simplesmente aos altos índices de audiência, atendendo aos anseios de seus anunciantes e patrocinadores, como acontece nas televisões comerciais.

Considerado por diversos pesquisadores como pioneiro dos estudos da

Economia Política da Comunicação3, o canadense Dallas Smythe já discutia, no final da década de 1940, as questões de audiência. De acordo com Janet Wasko (1993), Smythe apresentou os fundamentos da sua Economia Política da Comunicação em um artigo publicado na revista Journalism Quarterly, em 1960. Mas, já em 1951 ele argumentara que o principal produto dos meios de comunicação de massa comerciais era o poder da audiência. Esse argumento embasaria seu trabalho subsequente sobre a tese da audiência como mercadoria que influenciaria outros pesquisadores críticos. (SERRA, 2006).

Serra (2006) explica que a tese de Smythe provocaria um intenso debate entre os pesquisadores da linha da economia política marxista, no final dos anos 1970, ao afirmar então que havia um ponto cego na pesquisa crítica européia com relação à lógica econômica da televisão, e criticou duramente as teorias que viam a televisão apenas como uma esfera de produção de ideologia e estratégias discursivas, desconsiderando, em seu entender, que a televisão, acima de tudo, produzia comercialmente audiências para os anunciantes.

Nicholas

Garnham,

pesquisador

britânico

dessa

corrente,

reagiu

argumentando que essa colocação equivalia a negar as dimensões políticas e culturais da televisão, tão importantes quanto a sua lógica econômica (MATTELART e MATTELART, 1998). Para Armand e Michèle Mattelart (1998), a Economia Política da Comunicação resultou de uma ruptura com as teses de Marx sobre a historia do capitalismo, que associava o desenvolvimento de cada 3

A teoria surge com base na teoria da Economia Política, principalmente a partir das reflexões de Marx fundamentadas do livro ‘Contribuição à crítica da Economia Política’, desenvolvidas no século XIX. Marx é o referencial para a discussão aqui proposta ao buscar entender as relações envolvidas no capitalismo, ligadas tanto ao Estado, quanto ao próprio homem em suas relações sociais.


sociedade a sua passagem por um padrão de uma sucessão de estágios da evolução de suas estruturas internas. Essa visão foi contestada por autores como Paul Baran que defendeu a hipótese da integração global do capitalismo e seus mecanismos de exploração que levavam ao ‘desenvolvimento do sub-desenvolvimento’ de certas regiões do mundo. Mattelart e Mattelart (1998) associam a história dessa linha de pesquisa também aos trabalhos de autores latino-americanos que criticaram as teorias da modernização, como Paulo Freire e teóricos da dependência. Nessa história referem-se a pensadores americanos como Schiller que elaborou o conceito de ‘imperialismo cultural’, a seus próprios estudos e ainda a toda a denúncia do fluxo desigual da comunicação que levou ao Movimento por uma Nova Ordem Mundial da Informação e da Comunicação, no final dos anos 1970. (SERRA, 2006).

Ao longo dos anos a Economia Política da Comunicação ganhou força e adeptos, inclusive por meio de discussões referentes ao papel da comunicação e, em especial, da televisão. Na América Latina, segundo MOSCO (1998), com os estudos de Mattelart que se inspirou em uma série de tradições, incluindo a teoria da dependência, o marxismo ocidental e a experiência mundial dos movimentos nacionalistas de libertação para compreender a informação como uma dentre as principais fontes de resistência ao poder. Ele demonstrou como os povos do Terceiro Mundo, especialmente na América Latina, usaram os meios de comunicação de massas em oposição ao controle ocidental, para criar uma mídia local de notícias e entretenimento. No momento em que as políticas governamentais de democratização cultural e a idéia de serviço e monopólio públicos são confrontadas com a lógica comercial num mercado em vias de internacionalização, trata-se de penetrar na complexidade dessas diversas indústrias para tentar compreender o processo crescente de valorização das atividades culturais pelo capital. (MATTELART, 1999)

A Economia Política da Comunicação, ao estudar e analisar como a propriedade, formas de financiamento e as políticas governamentais pode influenciar o comportamento e o conteúdo da mídia, como nas visões de Bolaño e Brittos (2007), que discutem o modo de lidar e fazer comunicação em relação a estrutura de poder na sociedade capitalista tão característica no Brasil, relacionando as indústrias culturais e a própria regulação do mercado como peças relevantes do no sistema de consumo, assim como vem acontecendo com a regulação da multiprogramação. A reflexão das políticas públicas tanto na perspectiva regulatória, quanto de funcionalidade, envolve o jogo de interesses atrelados ao poder e lucro governamental, privado e público e os interesses e necessidades sociais. (FREY, 2000). Para Brittos, Bolaño e Rosa o posicionamento atual da Economia Política da Comunicação é o de “entender a comunicação social como bem público, ainda que, via de regra, seja apropriada privadamente, com vistas a dinâmicas de valorização”. Os autores


destacam que são explícitas as divergências entre a formação do mercado da cultura – onde o interesse vigente é o econômico – e o interesse público que “aponta para o caminho das produções alternativas, indicando que uma maior participação da sociedade na mídia potencializa a democratização da comunicação”. Outro ângulo de estudos da teoria está vinculado às questões da política, “enquanto representatividade, abrangendo as regulamentações do setor da comunicação e ações da sociedade como um todo, incluída aí não somente como quem está sob as conseqüências dessas duas grandes esferas, mas também como quem é partícipe e envolve-se nas decisões” (BRITTOS, BOLAÑO e ROSA, 2010). ...hoje a perguntas, que a EPC procura responder, sobre como, por exemplo, a televisão digital impactará nos modelos econômicos e sociais das indústrias culturais e da comunicação no século XXI; ou como será efetivamente conformado o modelo de negócios da internet, dividida entre várias soluções de financiamento que, ao fim e ao cabo, não têm proporcionado resultados diretos ótimos para certos empreendimentos. (BRITTOS, BOLAÑO e ROSA, 2010).

A discussão sobre a regulação da multiprogramação e sua implantação pela TV Cultura se dá diante da necessidade e importância da democratização da comunicação, viabilizando a organização e as regulações dos meios de comunicação para que incentivem a produção e o acesso de seus conteúdos, exercendo no âmbito da sociedade o exercício pleno dos direitos a cidadania e, principalmente, não vislumbrando a sociedade com simples mercadoria de audiência apropriada pelo capital como instrumento de poder e lucro. (BOLAÑO e BRITTOS, 2007). A tecnologia da multiplicidade de canais abre caminho para uma produção de comunicação social como bem público, conflitando e divergindo, inclusive, quanto a formação do mercado cultural atual, colocando em conflito os interesses econômicos e os interesses públicos. O interesse público, principalmente associado às questões educativas, culturais e sociais, vislumbra na multiprogramação uma possibilidade de maior participação da sociedade na mídia - potencializando precisamente a democratização da comunicação - e as emissoras públicas podem ser importantes personagens neste processo. Esta possibilidade pode e deve impactar nos modelos econômicos e sociais das indústrias culturais e da comunicação no século XXI, principalmente na televisão privada e hegemônica atual. Neste cenário controverso, um dos grandes desafios da pesquisa e estudos referentes ao tema multiprogramação no Brasil se deve a escassa bibliografia sobre no


País. Novo e em implantação, poucos são os teóricos que estão discutindo o assunto na área da comunicação no País4.

Considerações finais

A multiprogramação pode ser, entre as possibilidades do sistema “nipobrasileiro” desenvolvido e adotado, uma das mais controversas e perturbadoras propostas de comunicação midiática para os detentores de poder ligados a televisão brasileira ao que se refere a implantação da televisão digital no País, já que ela pode desencadear ramificações segmentadas de comunicação, alcançando e criando nichos de público, mercado e até mesmo geradores de conteúdo e programação, contrariando a estrutura arraigada e consolidada que, a partir da proposta de criação de um padrão nacional de TV Digital, para Bolaño e Brittos (2009), permite ampliar o debate sobre a organização do sistema brasileiro de televisão, “atacando problemas crônicos, como a concentração dos meios de comunicação, entre outros. Essa era a esperança dos movimentos pela democratização da comunicação que se engajaram no debate em torno do SBTVD”. (BRITTOS; BOLAÑO, 2009). Pensando nesta perspectiva, a utilização da multiprogramação - por televisões públicas, educativas e não comerciais - seja uma importante contribuição como nova tecnologia, ampliando o leque de ofertas de conteúdos segmentais, regionalizados e temáticos independentes de uma cadeia comercial ou hegemônica arraigada e consolidada no País. Mesmo diante de tamanha potencialidade, a multiprogramação no Brasil vive um entrave regulatório para seu efetivo desenvolvimento. A partir do Decreto nº 5.820, por meio do artigo 12, que proíbe a multiprogramação no País – como já citado - exceto para os canais da União Federal e a TV Cultura (com autorização especial), a tecnologia está truncada, gerando discussões, controvérsias e até mesmo enfrentamentos diante da regulamentação, como aconteceu com o início das transmissões dos canais da TV Cultura antes de receber autorização especial e, transmissões sem autorização, como a realizada

4

Ao realizar pesquisa em junho de 2011, nos acervos de produções científicas e teóricas de dissertações, teses e livros com a palavra ‘multiprogramação’ na CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), Revcom (Revista Eletrônica de Ciências da Comunicação) e bibliotecas das universidades USP, Unicamp e Unesp, apenas cinco teses estão ligadas ao tema e a televisão digital, sendo três ligadas a engenharia e tecnologia, uma a educação e apenas uma tese na USP diretamente ligada a comunicação: DONATO, Maurício. Estratégias de Posicionamento e disputas na Implantação da TV Digital no Brasil. 01/12/2007. 1v. 196p. Mestrado. FACULDADE CÁSPER LÍBERO – COMUNICAÇÃO. Orientador(es): Sérgio Amadeu da Silveira. Biblioteca Depositaria: Faculdade Cásper Líbero.


pela Rede TV5 que transmitiu dois canais ao mesmo tempo em julho de 2010. Algumas emissoras lutam por seu direito a multiprogramação, enquanto outras simplesmente ‘engavetaram’ o assunto, em um jogo de poder e garantias de manutenção de lucro que está apenas começando e promete novos entraves. O Univesp TV tem buscado experimentação tecnológica e proposto se dedicar a uma programação que atenda a legislação voltada à educação, cultura, arte e informação. Divulgado como “o canal para quem quer saber mais e aprender sempre!”, se auto define com “uma das ferramentas de tecnologia de informação e comunicação da Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp), e visa a formação integral do cidadão”. Declara ter sido o primeiro canal digital do País a apresentar programação própria, diversa da transmitida pelo correspondente canal analógico; “o que representa um pioneirismo da Fundação Padre Anchieta e da TV Cultura”. Atualmente, a Univesp TV produz os programas de apoio dos cursos da Univesp, como as licenciaturas em Pedagogia e Ciências e o curso de especialização Ética Valores e Saúde. O canal conta ainda com séries de sucesso produzidas pela BBC, Channel 4, Open University, PBS e Europes Images, entre outras. (Univesp TV, 2010). Desde o dia 4 de outubro de 2010, o Univesp TV vem transmitindo simultaneamente a programação do canal de multiprogramação 2.2 também na internet por meio site www.univesp.tb.br , viabilizando o acesso de seu conteúdo para todo o País, além da grande São Paulo - região territorial a qual o canal digital está limitado legalmente. Esta é mais uma iniciativa ousada da Fundação Padre Anchieta, viabilizando flexibilidade de acesso ao conteúdo produzido pelo canal, seja ele voltado para os alunos dos cursos em andamento vinculados ao Programa Univesp ou para espectadores e internautas interessados em programas educativos e culturais. Sem subsídio publicitário e amarras contratuais vinculadas a audiência e retorno de venda, tem liberdade de experimentação, exceto pela limitação quanto às questões financeiras, regulatórias e políticas. Mesmo assim, tem caminhado em sentido inverso aos interesses mercadológicos e hegemônicos das emissoras privadas. Ultrapassando as barreiras de divergências políticas existentes entre o Governo Federal e o Governo do Estado de São Paulo, o canal tem conseguido dar grande contribuição à história da implantação da televisão digital no País com a iniciativa de experimentação, rompendo barreiras legais, mercadológicas, hegemônicas e de poder,

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REDE TV! dribla lei e faz multiprogramação. Disponível em: http://noticias.uol.com.br/ooops/ultimasnoticias/2010/07/05/rede-tv-dribla-lei-e-faz-multiprogramacao.jhtm . Acesso em 05/07/2010.


unindo forças em uma ação cooperativa com diversas instituições públicas na busca por oferecer - de modo acessível - um canal essencialmente educativo e público. A tecnologia da televisão digital, com ou sem multiprogramação, percorre o mundo há anos e vem transformando profundamente o modo de ver e fazer comunicação. No Brasil, de acordo com o Decreto nº 5.820/2006, até dezembro de 2013, é obrigatório que haja disponibilidade técnica de cobertura de sinal de televisão digital terrestre em todo território nacional, data limite para a concessão de canais de televisão analógicos. Até 2016, dez anos após a publicação do decreto, ele determina ainda a devolução dos canais analógicos à União e a transição total a para o sistema digital. Até lá, espera-se que não só a transição seja concluída, mas a multiprogramação seja efetivamente regulamentada, autorizada e viabilizada. Diante de tantas incertezas e perspectivas, a multiprogramação no Brasil é, certamente, um assunto que merece ser acompanhado, discutido e analisado, pois está apenas no início de sua jornada.

Referências ABEPEC - Associação Brasileira das Emissoras Públicas, Educativas e Culturais. Disponível em: http://www.abepec.com.br/. Acesso em 13/06/2010. ALVES, Mirian. F. I Fórum Nacional de TV´s Públicas: Relatórios dos grupos temáticos de trabalho – Brasília: Ministério da Cultura, 2007. 116 p. (Caderno de debates.) BARBOSA Filho, André e CASTRO, Cosette. Apontamentos para implantação da TV Pública Digital no Brasil, em Televisão digital: desafios para a comunicação. Livro da Compós - 2009, orgs. Sebastião Squirra e Yvanna Fechine – Porto Alegre: Sulina, 2009, p.68-83. BOLAÑO, C. R. S. e BRITTOS, V. A televisão brasileira na era digital. São Paulo, Paulus, 2007; __________Qual a lógica das políticas de comunicação no Brasil? São Paulo: Paulus, 2007. __________Economia Política da Comunicação e da Cultura: uma apresentação. Revista Telos, n.º 47, FUNDESCO, Madrid, set/dez/96. __________ Enciclopédia INTERCOM de Comunicação. – São Paulo: Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, 2010. BRITTOS, Valério Cruz; BOLAÑO, César Ricardo Siqueira; ROSA, Ana Maria Oliveira. O GT “Economia Política e Políticas de Comunicação” da COMPÓS e a construção de uma epistemologia crítica da Comunicação. In: ENCONTRO ANUAL DA COMPÓS, 19., 2010, Rio de Janeiro. Anais ... Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2010. 1 CD. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05/10/1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br. Acesso em 13/06/2010.


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"A produção do espaço em época de valorização financeira do capital": entrevista com Vera Pallamin Ruy Sardinha Lopes* Universidade de São Paulo – São Carlos A presente seção objetiva fomentar o debate sobre a necessária conformação de um campo de reflexão e investigação ainda incipiente, a Economia Política da Arte. Cada vez mais subordinadas aos ditames do capital e a um discurso que insiste em ver a produção simbólica como “desmaterializada”, isto é, alijada dos influxos provenientes da base material, a produção e reflexão artísticas contemporâneas carecem de um marco teórico capaz de ultrapassar a leitura reificadora, inserindo-as como elementos constitutivos da totalidade social. Se, como o leitor poderá perceber, vários são os aspectos e questões alocados por essa produção e pelo trabalho que lhe dá origem, a arquitetura vem ocupando nos últimos anos papel fulcral nos processos de valorização do valor, servindo, desta forma, de ponto de observação exemplar das injunções entre a forma mercadoria e a artística. A REVISTA EPTIC abre pois essa seção entrevistando arquiteta e graduada em Filosofia VERA PALLAMIN, professora doutora da Faculdade de Arquitetura da USP e pesquisadora dos seguintes temas: cidade, cultura e arquitetura contemporâneas, cultura urbana e espaço público, arte e esfera pública. Vera Pallamin apresenta-nos suas reflexões sobre o papel da produção arquitetônica e da cidade na contemporaneidade, marcadas pelo processo da valorização financeira do capital, bem como a necessidade de um pensamento crítico, sobretudo no ensino dessas práticas profissionalizantes. Suas reflexões, embora detidas no âmbito da arquitetura e do urbanismo, oferecem inúmeras pistas para se pensar e investigar o lugar que as artes e a cultura vêm ocupando em tempos de instabilidades sistêmicas. EPTIC - QUE BALANÇO VOCÊ FAZ SOBRE A PRESENÇA DE MARCOS TEÓRICOS CRÍTICOS NO CAMPO DA ARQUITETURA CONTEMPORÂNEA? VP - Inicio este balanço tomando a arquitetura sob a perspectiva da cultura, e reafirmando a acepção de que esta localiza-se na matriz social e histórica em que é plasmada, o que significa que na vida social contemporânea, a cultura se modula nas condições econômicas de produção, distribuição e consumo de mercadorias. Esta modulação se dá sob mediações *

Professor e pesquisador do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP de São Carlos e presidente da ULEPICC-Br.


que seguem o compasso de uma dada situação histórica, com seus limites, mas que também se modifica em função de suas leis internas. Entendo a arquitetura, como materializando e sendo materializada por estas relações sociais, por seus valores, conflitos e contradições. Nesse sentido, retomo alguns aspectos que julgo essenciais na pontuação destes marcos críticos. Evidentemente não se trata de um mapeamento, mas de apenas tracejar um eixo teórico cuja construção é resultante de trabalho em amplo espectro. Reporto-me inicialmente a um comentário sobre Arquitetura feito por Adorno e Horkheimer, no início do texto sobre ´A industria cultural’, em Dialética do Esclarecimento. Neste trecho os autores comentam sobre a relação entre arquitetura, projetos de urbanização e cultura de massa, salientando como a cultura contemporânea – então em 1947 – dá a tudo um ar de semelhança: prédios administrativos e centros expositivos são muito parecidos, sequer denotando se foram erigidos em países autoritários, ou não; prédios antigos em centros urbanos parecem cortiços; construções novas e frágeis perfazem um elogio do progresso técnico e convidam ao breve uso; projetos de urbanização reforçam a subjugação de amplas zonas urbanas ao poder do capital. Este modelo da cultura, afirmam, é o da falta de identidade do universal e do particular. Mobilizando a crítica à fetichização da técnica e dos meios de comunicação, à homogeneização e ao caráter descartável da cultura na sociedade de mercadorias, a noção de indústria cultural nomeava, dentre outros aspectos, a produção de produtos culturais comercializados tendo em vista seu valor de troca e de consumo. De um ponto de vista interno, cabe lembrar, ainda vigoravam, naquele momento, distinções entre ‘alta cultura’ e a cultura popular, e a idéia de que determinados campos da produção simbólica tinham espaço e força de resistência à lógica da mercadoria, não se misturando com esta. No andamento da história e caminhando para os anos sessenta, as mudanças a partir de então processadas no plano econômico, político, cultural e filosófico – alvos da análise do crítico marxista Fredric Jameson em ´Periodizando os anos 60’ – marcaram um movimento de reestruturação sistêmica do capitalismo que, incorporando as respostas engendradas pela crise do petróleo e recessão dos anos setenta, resultaram em mudanças estruturais no papel da cultura. Jameson analisou esta transformação num artigo seminal publicado em 1984 e intitulado ‘Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio’. Esse título se repetiu em seu conhecido livro publicado em 1991 (e traduzido em 1996 para o português). Cinco anos depois, o geógrafo David Harvey publicou ‘A condição da pós-modernidade – uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural’ (1989, traduzido


para o português em 1992), livro de ampla repercussão e com detidas análises de natureza materialista sobre arte, arquitetura e cidade, em que propõe a noção de compressão espaço-tempo como característica da reorganização sistêmica produtiva. Naquele artigo de Jameson destaco três aspectos importantes: 1) sua análise de uma ‘dominante cultural` pautada por um `enfraquecimento da historicidade` (então evidente de modo emblemático no campo da Arquitetura); 2) sua hipótese de que estava em curso uma mutação fundamental no papel da cultura e em sua função social no mundo do capitalismo tardio: a cultura deixara de desfrutar de uma autonomia relativa (quando ainda, de certo modo, se colocava acima do mundo prático do existente) expandindo-se para outros domínios; 3) seu exame sobre as sérias implicações destas mudanças para a acepção de crítica enquanto oposição / negatividade, e seu pressuposto de distância crítica: ambos não podiam prescindir da noção do que Jameson chamou de uma ‘distância estética mínima’, que era justamente o que tinha sido eliminado no novo campo da cultura. Em meio ao movimento de expansão do capital e de colonização de setores pré-capitalistas ou resistentes à lógica e ao fetiche da mercadoria, absorvendo-os no sistema, a própria noção de cooptação já não se mostrava como suficiente para dar conta, teoricamente, daquela condição. Nesta linha, nos anos oitenta e noventa, tratava-se de se explicitar os termos dessa ‘Virada Cultural`, como Jameson a nomeou, e das relações entre cultura e capital financeiro, que reinam até o presente. Naquele momento, já de plena consolidação da produção cultural de massa associada à mundialização do capital e às novas tecnologias de informação, ele chamava a atenção para o modo como expressões culturais se articulavam a novos graus de abstração operados no atual estágio econômico, em que o dinheiro atingiu alto grau de desmaterialização e autonomização, transmutando-se em formas cada vez mais complexas de papéis, títulos e derivativos (contratos), que operam como instrumentos de negociação e especulação financeira. No plano estético, modulando-se a esse processo de enorme fragmentação, o que em registro cultural anterior (grosso modo, no Moderno) era tido

como

ruidoso,

chocante

tornara-se

assimilado,

normalizado

e

vulgarizado,

transformando-se em formas e meios de consumo. E, nota Jameson, assim como neste estágio o dinheiro vive de seu próprio metabolismo (como ilustram as atuais bolhas de especulação), também fragmentos e imagens se comportam autonomamente: “tudo é mediado pelo cultural”, exponenciando-se sua mercadificação. Além disso, na presente relação entre economia e cultura, a produção cultural tem ainda ido mais longe. Retomando aqui os termos do filósofo Anselm Jappe, nela se tem


aprofundado a cultura do fácil, assim como a relação entre a indústria do entretenimento e o impulso em direção ao narcisismo e à infantilização dos sujeitos: a televisão, a publicidade, os esportes de massa, assim como as novas técnicas de marketing contribuem para criar um consumidor dócil, infantilizado e narcisista, convergindo, sob novas potências, para as tendências regressivas já apontadas nos anos quarenta, por Horkheimer e Adorno. Olhando-se a partir daí para o campo interno da arquitetura, e tendo-se em vista as mudanças ocorridas nestas últimas décadas, muitas estratégias têm sido desenvolvidas na disciplina para enfrentar a ‘heteronomia’ da prática arquitetônica. Dentre elas houve o pós-modernismo, o estruturalismo, a semiótica, as análises tipológicas, a fenomenologia, a desconstrução e o regionalismo crítico, para citar apenas algumas das mais significativas, sincrônicas a um notável elogio e investimento na dimensão formalista e estetizada da arquitetura. Cabe apontar, contudo, que um traço comum a esta pluralidade é a insistência em fazer uma crítica da arquitetura que deixa o sistema capitalista intacto, que separa a esfera de produção econômica do valor daquela da vida, que não confronta as reais relações que se dão entre a produção material e a produção cultural, simbólica. Contrapondo-se a este distanciamento, saliento algumas linhagens críticas, sem querer totalizá-las, mas inter-relacionando-as aos marcos teóricos inicialmente mencionados: os trabalhos em torno da vertente da historiografia crítica elaborada na tradição do Instituto de História da Arquitetura de Veneza e de Manfredo Tafuri; as análises de Henri Lefèbvre repensando o estatuto da produção do espaço; a crítica da arquitetura e urbanismo entabulada pelos Situacionistas; as análises das relações entre economia urbana, paisagem edificada e mudança social. No plano nacional, as reflexões elaboradas por nomes como Sérgio Ferro sobre projeto, canteiro e trabalho, Roberto Schwarz sobre cultura e política, Francisco de Oliveira sobre a razão dualista, Otilia Arantes sobre o urbanismo em fim de linha, Ermínia Maricato sobre a metrópole na periferia, e Carlos Vainer sobre planejamento estratégico circunscrevem um núcleo (que congrega ainda uma série de outros autores não menos importantes), de crítica à produção da arquitetura e da cidade e da cultura que me parece incontornável. Cabe observar que a vida social urbana na qual se assenta a arquitetura, com destaque ao que se refere às nossas cidades, traz em seu âmago a relação entre cultura e ilegalismos, que se espalha, contemporaneamente, em múltiplos circuitos urbanos, incidindo de modo vigoroso não apenas no âmbito da produção dos espaços, mas também no modo como são (ou não) praticados. Na compreensão destas redes e de suas lógicas e mercados ilícitos - tanto em suas conotações locais como em suas conexões com fluxos globalizados,


o trabalho crítico não pode tomar corpo a não ser em sintonia com as pesquisas que têm sido realizadas pela sociologia do trabalho e sociologia urbana, que subsidiam a compreensão dos modos e dispositivos envolvidos na cultura do medo e na acumulação social da violência, que são dominantes na cidade contemporânea. EPTIC - QUAL O PAPEL DA ARQUITETURA NOS PROCESSOS CONTEMPORÂNEOS DE VALORIZAÇÃO E REPRODUÇÃO AMPLIADA DO CAPITAL, DOMINADOS PELA FINANCEIRIZAÇÃO? VP - Na explicitação deste papel é essencial tratar a arquitetura em sua relação com as estratégias dos projetos urbanos que a contextualizam, nas quais se configuram as recentes paisagens do capital excedente. A própria noção de projeto urbano já carrega uma mudança conceitual em relação à cidade, pois veio substituir, por meio de intervenções pontuais, localizadas e desconectadas entre si, o que anteriormente era tratado sobre a ótica sistêmica e englobante dos planos urbanos. Projeto urbano, zoneamento de mercado e gentrificação (enobrecimento de áreas, concomitante à expulsão dos pobres que nelas habitam) caminham `pari passu` nesse processo. E em sintonia com o louvor à diversidade associada a esta fragmentação do tecido urbano, a configuração dos projetos de arquitetura se diversificou em jogos de linguagem cada vez mais estetizados, buscando multiplicar a rentabilidade entre capital simbólico e valorização imobiliária. A partir dos anos setenta estas formas de intervenção urbana têm sido encabeçadas pela ideologia do empreendedorismo urbano (como analisa o geógrafo David Harvey), voltando-se para a economia política do lugar enquanto foco da concorrência intra e interurbana. Nessa disputa feroz, a arquitetura tem sido mobilizada como agente e suporte na exploração de recursos ou vantagens espaciais que fomentam e ampliam o consumo e as rendas associadas ao espaço. O espetáculo urbano (no sentido de Debord) foi canalizado para esta finalidade, sob distintas formas, a exemplo dos projetos de requalificação de determinadas áreas nos centros das cidades, projetos de museus, shopping centers, estádios, etc. Mesmo a arte pública, tanto a efêmera como a permanente, foi incluída na animação cultural destes cenários, frequentemente associados aos vários ramos da industria do turismo. Neste quadro é preciso , também considerar com atenção fenômenos que têm ocorrido em solo chinês, a exemplo da Zona Econômica Especial de Shenzhen: referem-se à produção de novas áreas urbanas numa intensidade sem precedentes, mobilizando o que tem sido chamado de ´arquitetura veloz’, pautada em receitas de


desenhos para plantas e catálogos de implantação de conjuntos. Nessa dinâmica de urbanização, não conta tanto as piruetas formais dos edifícios, embora utilizadas em várias cidades para construção de ícones e iscas do consumo, mas sim a construção de núcleos replicantes. Trata-se de uma arquitetura que vem sendo feita sob enorme pressão quanto a tempo, velocidade e quantidade, num ritmo que prioriza o volume de construção, custos baixos de mão de obra, rapidez e lucro. Nesta situação, conforme documentado no livro ´The Great Leap Forward’, têm sido postas em ação fórmulas como: 3 arquitetos + 3 computadores + 3 noites = um plano urbano. Vê-se como esta ´arquitetura veloz´ verte-se para a erosão de uma noção de projeto assentada em todo um legado da história da arquitetura. Cabe notar ainda que estas operações não são práticas isoladas, pois como chama a atenção David Harvey, o processo urbano, no presente, se faz ‘global’: a China, neste seu ritmo de construção, consumiu, desde os anos 2000, quase metade da produção mundial de cimento. E países como o Brasil, por exemplo, beneficiaram-se disto exportandolhe essa matéria-prima. Uma segunda via asiática também significativa na relação entre a produção do espaço urbano e os processos contemporâneos de valorização e reprodução do capital pode ser encontrada na Coréia do Sul, com seus projetos de construção de novos núcleos urbanos, a exemplo de Incheon e Song-Do. São espaços projetados sob a ordem da alta tecnologia associada à estética das torres espelhadas, que se vendem como emblemas do otimismo máximo do presente; são imagens dos novos modos de efetivação da fórmula DM-D’ (Marx), suportes das operações de ficção financeira e dos graus de abstração agora operados sistemicamente. Várias formas de valorização do valor têm sido acionadas conjuntamente nestes empreendimentos, tais como ganhos no mercado de ações voltado para o investimento e especulação imobiliários, renda absoluta (ligada à esfera da produção), rendas diferenciais (associadas às qualidades diferenciadas dos lugares e regiões ou derivadas de investimentos direcionados para determinados espaços), rendas fundiárias, rendas associadas ao capital simbólico, dentre outras. Nessa malha, o edifício enquanto valor assume a dianteira, empurrando para trás aspectos uma vez relevantes, como aqueles histórico-culturais; interessa o edifício como valor que se valoriza, tanto do ponto de vista urbano como no âmbito da circulação do capital, gerando rendas derivadas de aluguel ou venda desta imensa extensão de solo criado explorando as localizações urbanas. Na concreção da fórmula D–Arquitetura–D’, diferenciações entre as arquiteturas tendem, em


muitos aspectos, a ser minimizadas ou codificadas, uma vez que o alvo prioritário é o excedente de capital (D’). Em 2008, a produção da arquitetura associada à financeirização sofreu, em países centrais, fortes abalos em função da crise iniciada nos Estados Unidos, associada à inadimplência no pagamento de créditos de hipotecas. O mercado imobiliário despencou não só ali, mas também em outros países, inclusive europeus, provocando enorme perda de valor. Nos países centrais alguns projetos foram suspensos e outros tiveram seu ritmo realinhado diante do novo quadro, cuja real dimensão e os efeitos estão ainda sob avaliação, dado seu caráter estrutural. No Brasil, a dinâmica de construção tem se acelerado marcadamente na última década, tendo dentre seus maiores impulsionadores a política federal de financiamento de habitação do Programa Minha Casa Minha Vida (espalhando-se pelo território nacional) e da Copa do Mundo (em algumas das principais cidades). A partir de ambos, contudo, tem se erigido unidades mercantis, sem ‘construir cidade’ (e em muitos casos das moradias, sua natureza se assemelha à mencionada arquitetura rápida). Por outro lado, a partir de 2005, houve a abertura de capital de grandes incorporadoras e construtoras, permitindo-lhes financiar seus empreendimentos a partir de montantes consideravelmente ampliados (publicou-se, recentemente, que cerca de 60% dos atuais acionistas da Cyrela, uma das maiores construtoras deste país, são norte-americanos...). Somam-se a estas mudanças a aprovação de instrumentos de intervenção urbana que favorecem a privatização e a concentração de capital na mão de fortes grupos financeiros. Em São Paulo, um dos mais recentes instrumentos deste tipo concretizou-se na lei de Concessão Urbanística, aprovada em 2009: via licitação, permite-se que obras urbanísticas aprovadas pela política municipal sejam realizadas por consórcio de empresas, sob a conta deste, de modo que a amortização de seus investimentos, assim como seus lucros advenham da exploração dos imóveis resultantes, destinados a usos privados, por um período determinado (de vários anos, definidos conforme o contrato). Para esta exploração comercial a concessionária terá direito à desapropriação (até então exclusiva do poder público), construção, venda, aluguel e toda forma de rentabilidade imobiliária disponível financeiramente nas carteiras do mercado. Este é o modelo que, apesar da luta em contrário da população local, foi aprovado por esta gestão municipal e a Câmara Municipal que lhe dá sustentação, para a Região da Luz (Projeto Nova Luz) e Rua Santa Efigênia, tendo como entidade concessionária um grupo formado pela AECOM Technology


Corporation (responsável pelo plano diretor das Olimpíadas em Londres em 2012), FGV – Fundação Getúlio Vargas, Companhia City e Concremat Engenharia. Como se vê, as alianças entre políticas estatais e este urbanismo mercadológico, nesse conjunto aqui apenas esboçado, são variadas e imperativas no período contemporâneo, e têm sido consensuais quanto ao papel dominante que nelas cabe à arquitetura: o de criação de valor e de novos espaços de acumulação. EPTIC - É possível se pensar, ainda, em fricções e resistências, interpostas pela produção arquitetônica contemporânea aos processos assinalados acima? Poderia nos dar alguns exemplos? VP - A despeito da hegemonia desta forma de produção da arquitetura, é sempre preciso lembrar que ela se reporta a uma dominância em meio a um campo poroso e conflituoso, que seus modos materiais de efetivação são permeados de contradições, lacunas e imprevistos. Com isso, se as atuais condições históricas têm colocado enormes dificuldades para se pensar uma resistência ´em bloco´, elas têm exigido a necessária construção de outros modos de vascularização dos fluxos de vontades sociais que se contrapõem aos danos maciçamente causados por esta matriz produtiva. Esses fluxos, embora hoje sejam proporcionalmente escassos e alvos constantes de desfiguração, abrem-se em algumas frentes. E embora apresentem potências não similares entre si, sua força reside na possibilidade de sua confluência. No campo da arquitetura, um dos possíveis espaços de fricção é o do ensino, quando voltado para a formação crítica. Sabemos, contudo, que a maioria de nossas escolas de arquitetura tem propositadamente se afastado deste nas últimas décadas, graduando seus alunos prioritariamente sob os restritos ditames do mercado. Para isso não é preciso muito, sobretudo diante do desadensamento de conteúdo histórico e cultural que tem formatado os projetos de arquitetura. No entanto, é na formação crítica que se dá a explicitação dos termos históricos e políticos da concreção material, da (in)justiça social, das determinantes econômicas e das formas de subjugação e luta atuantes na produção social do espaço. E esta não se realiza sem estar alimentada pela pesquisa desenvolvida sob esta perspectiva, conformando uma vertente conjunta. Na esfera da prática profissional arquitetônica, no país, iniciativas que se contrapõem à lógica dominante têm se mostrado no trabalho de assessorias técnicas voltadas para a construção de habitação social, com envolvimento com a população mais pobre. Estamos falando de um pequeno conjunto, e heterogêneo quanto às suas premissas


políticas, que trabalha com mutirões, urbanização de favelas e assentamentos precários, e com montantes de verbas estatais inversamente proporcionais à gravidade e extensão dos problemas enfrentados. Este trabalho, contudo, que é de indiscutível importância e que inclui ganhos sociais, também se faz em meio a contradições, uma delas residindo no fato de que estas unidades construídas acabam como mercadoria, repondo os pressupostos desta e realimentando o processo, só que por outra ponta. Pela própria natureza da construção coletiva da arquitetura, e pelo fato de estar assentada em pilares sistêmicos como a terra e a propriedade, a ampliação das práticas que nela venham a ocorrer com caráter de resistência associa-se diretamente à organização de movimentos sociais efetivos, cuja força dissensual em relação ao estado tenha fôlego capaz de redistribuir os recursos espaciais existentes, ainda que em jurisdições específicas. O acesso ao saber-fazer arquitetônico, enquanto recurso, foi alijado da maioria de nossa população e acantonado em grande parte na produção de nossas cidades e metrópoles. Motivos não nos faltam para resistir a esta insana racionalidade. Por isso importa oxigenar todos os intervalos possíveis. EPTIC - Em que sentido uma economia política da cultura pode contribuir para o bom entendimento destas inter-relações e para a construção destes marcos teóricos críticos? VP - No presente, estamos no âmago de uma grave crise sistêmica, que veio à tona há três anos, e que tem sido considerada por alguns economistas, devido à sua profundidade, como a sucessora daquela que ocorrera em 1929, porém em proporções incomparavelmente maiores e mais complexas. Embora não exista quem se arrisque a fazer previsões, o que é certo é que serão operadas grandes transformações na dinâmica capitalista visando o seu rearranjo. As turbulências econômicas que marcaram os anos sessenta, setenta e que desembocaram no neoliberalismo provocaram mudanças significativas no comportamento estatal, na forma de atuação das empresas e no desenvolvimento de novas forças produtivas. Tratou-se de fomentar o ´livre-mercado´ reduzindo-se fortemente a ação do estado no âmbito da assistência social (educação, saúde, etc) e fortalecendo-a nas atividades que estimulassem a acumulação do capital. Agora, tem-se o oposto: diante da quebra no mercado, estamos vendo como o capitalismo está recorrendo maciçamente ao estado, para aportes gigantescos, para tentar estabilizar a crise financeira.


Para nossos termos em pauta, a questão que se coloca é compreender como isso já tem afetado e afetará as esferas da cultura e da arquitetura. A economia política da cultura, que trabalha no sentido da explicitação, nesta área, da dinâmica contraditória dos processos do capital, é central e insubstituível na compreensão crítica deste andamento, assim como na (re)configuração de seus marcos teóricos. As referências anteriormente citadas convergem neste sentido, elucidando os modos como no último meio século têm se dado as inter-relações da cultura com a mercadoria, com o valor, o fetichismo e o trabalho (concreto e abstrato), assim como as estratégias sistêmicas empregadas na articulação entre poder, propriedade e rentabilidade, visando concentração e acumulação de lucro. No caso da arquitetura, sua coordenação com as transformações históricas e produtivas contemporâneas implicou, por um lado, incisivas alterações no modo de se produzir desenhos (via computação), na reorganização de escritórios (reformatando equipes profissionais e hierarquias internas), nas dinâmicas dos canteiros de obras, nas reconduções do projeto à funcionalidade do capital, ora afirmando os modos da ascendência simbólica da arquitetura sobre a cidade, ora reduzindo-a à replicação de espaços, ambas objetivando produzir a maior quantidade possível de valor. O fato de estarmos, historicamente, presenciando um ponto de inflexão torna a tarefa da crítica ainda mais premente, tanto na demarcação de deslocamentos processados em relação aos registros atuais, como na proposição de acepções, hipóteses e instrumentos teóricos capazes de elucidar as flexões internas dos subsistemas, assim como suas articulações com as lógicas globalizantes. A crítica cultural materialista, tomada em ampla abrangência, inclui o exame crítico dos papeis a que a produção cultural tem sido submetida sob a matriz do valor como modo predominante de socialização. Nesse sentido, os desafios atuais interpostos à economia política da cultura são de monta e patentes, indicando à frente um vasto e necessário trabalho a ser aprofundado e detalhado, neste domínio epistemológico.


Elementos para una Crítica de la Economía Política del Arte Dr. José María Durán* Hochschule für Musik Resumen: Se propone una estructura conceptual para el análisis de la economía política de las obras de arte tanto en su particularidad económica como en su especificidad histórica. Esta estructura conceptual gira en torno al modo de producción, determinado por las relaciones de propiedad, posesión y uso de la fuerza de trabajo y los medios de producción. La conclusión sirve para discutir el método utilizado y señalar tanto sus ventajas como sus inconvenientes. Palabras clave: arte, mercancía, modo de producción, valor, lucha de clases. Abstract: A conceptual structure is proposed for analyzing the political economy of art works, not only about its economical particulaity, but also about its historial specificities. This conceptual structure is focused on the mode of production, determined for the properties relations, position and the use of worforce and means of production. The construction aims to begin a discussion about the method used and to point its advantages and disadventages. Keywords: art, market, means of production, worthness, class struggle Resumo: Propõe-se uma estrutura conceitual para as análises da economía política das obras de arte, tanto em sua particularidade económica como em sua especificidade histórica. Esta estrutura conceitual gira em torno do modo de produção, determinado pelas relações de propriedade, posição e uso da força de trabalho e dos meios de produção. A construção serve para discutir o método utilizado e sinalar tanto suas vantagens como suas inconveniencias. Palavras-chave: arte, mercado, modo de produção, valor, luta de clases.

1. Sobre la producción de arte en relación al modo capitalista de producción El siguiente cuadro, que ilustra dos diferentes sistemas del arte en relación a dos períodos históricos diferentes, me va a servir para problematizar de inicio la relación que existe entre la producción de arte y el modo de producción dominante en un periodo histórico determinado.

Cuadro 1 “De la “Obra” al “Producto”: Los dos sistemas de producción y recepción del arte” (Shiner, 2001, p. 128) aspecto *

Antiguo sistema del arte (patronazgo/encargo)

Nuevo sistema de las “bellas artes”

Doctor en Historia del Arte. Profesor de Historia de la Cultura en la Hochschule für Musik “Hannes Eisler” de Berlín. Autor de Iconoclasia, historia del arte y lucha de clases (2009), Hacia una crítica de la economía política del arte (2008) y editor de Aínda, O Capital. Novas perspectivas acerca de Marx e O Capital en Alemaña (2009). Comisario en Berlín de la exposición “World is Work” (Kwadrat, 2010/11). E-mail: jmduran@web.de. URL: www.critical-aesthetics.com.


Producción Resultado Representación Recepción

trabajo concreto obra imitación uso; disfrute

(libre mercado) trabajo abstracto producto creación cambio; contemplación

En The Invention of Art (2001) el teórico norteamericano Larry Shiner introduce este cuadro para subrayar la transición que se habría dado en el sistema del arte europeo del patronzazo al mercado. Me interesa del cuadro lo que Shiner tiene que decir con respecto a la producción de arte en la que diferencia entre “trabajo concreto” y “trabajo abstracto”, una distinción que, como sabemos, Marx consideraba clave para la teoría del valor. Shiner no nos dice si toma esta distinción directamente de Marx, aunque no puede ser de otro modo. Shiner explica la diferencia entre trabajo concreto y abstracto como sigue: “En el antiguo sistema del arte, el trabajo del productor era concreto en el sentido de que la facilidad, la inteligencia y la inventiva eran empleados para ejecutar un encargo que a menudo tenía un uso específico y un asunto que era acordado. En el sistema de mercado emergente, el trabajo se convierte en abstracto en el sentido de que no está atado a un lugar o propósito específicos, no tiene un asunto predeterminado y, por tanto, tampoco tareas específicas de ejecución sino sólo una generalizada creatividad” (ibid, pp. 127-128). Se deduce que el trabajo concreto es para Shiner aquel que tiene una finalidad específica para un consumidor determinado, mientras que el trabajo abstracto sería aquel que se expresa en una mercancía sin una finalidad predeterminada. La distinción entre trabajo concreto y abstracto se muestra, por tanto, como una relación mercantil específica entre productores y consumidores. Con la transformación del viejo sistema del arte, impulsado por el patronazgo, en el nuevo sistema de las bellas artes lo que Larry Shiner constata es el papel cada vez más relevante que asume el mercado. En el sentido de que pasamos de una relación directa entre el productor de la mercancía arte y su comprador, a una relación mediada por el mercado lo que también da origen a nuevos dispositivos de exhibición con el fin de satisfacer el intercambio entre productores y consumidores. Shiner asume una relación social que Arnold Hauser ya había puesto de relieve. La transformación del artista “de productor de encargo” en productor de mercancías surge para Hauser de forma paralela a una nueva “conciencia creadora”, más independiente y, si cabe, formalista, es decir, libre de finalidades inmediatamente utilitarias, que el cliente presupone y demanda. De esta manera, el cliente se transforma de mero consumidor de aquello que necesita en un aficionado, conocedor o coleccionista que busca entre lo que se le ofrece (Hauser, 1953, p. 320). No obstante, siguiendo el esquema propuesto por Shiner, si vamos a considerar el trabajo de


los artistas en la sociedad capitalista como trabajo abstracto deberíamos ser consecuentes con las implicaciones de este supuesto de acuerdo al examen más completo del trabajo abstracto que es el que uno se encuentra en Marx. Esto es, que para un determinado momento histórico, aquel coincidente con el desarrollo y la consolidación del modo capitalista de producción, deberíamos poder demostrar que el trabajo de los artistas habría empezado a ser tratado como cantidades intercambiables de tiempo de trabajo socialmente necesario bajo el mando de un capitalista. Hauser cita factorías literarias (ibid, p. 567), y en la Holanda del siglo XVII también se pueden constatar factorías de retratos como la de Michael van Miereveld (Durán, 2008, pp. 118-119), lo que podría suponer un comienzo de subsunción del trabajo artístico en el capital. Sin embargo, lo decisivo a este respecto es examinar si en organizaciones semejantes se constata el uso del trabajo en un sentido plenamente capitalista (es decir, trabajo asalariado como trabajo abstracto) o, más bien, una organización laboral en la que los principios capitalistas de división del trabajo y valorización del capital, junto a un desarrollo determinado de las fuerzas productivas, aún no estarían suficientemente avanzados. Lo importante en este sentido es determinar si el excedente obtenido por el maestro del taller o el comerciante de cuadros o libros era reinvertido productivamente en la producción de estas mercancías, es decir, si era utilizado como capital. Si un artista era solicitado por su habilidad específica como pintor de flores o insectos, caso de la especialización laboral frecuente en la Holanda del siglo de oro, su relación con el maestro del taller supone una relación mercantil que sólo de una manera muy vaga podemos denominar capitalista. Hay que tener en cuenta que el artista es solicitado por el resultado de su habilidad específica como artista (trabajo concreto) y no por su fuerza de trabajo (trabajo abstracto) que el maestro, en cuanto capitalista, pondría a funcionar. Marx lo había visto muy bien. En el cuaderno XXI de los manuscritos económicos de 1861-63 Marx da cuenta de las relaciones gremiales como una forma inadecuada de capital y trabajo asalariado. En el proceso de producción el maestro aparece ante sus asistentes y aprendices como maestro artesano, y no como capitalista. El valor de uso se manifiesta como el auténtico objetivo del trabajo, y no el valor de cambio (Marx, 1982, pp. 2131-2132). En la Holanda del siglo de oro el precio de las obras de arte estaba en relación directa con la reputación del artista. Un original de un maestro reconocido era sensiblemente más caro que el trabajo de un asistente. A este respecto, el valor de la fuerza de trabajo contenido en la mercancía estaba socialmente determinado por la reglamentación gremial (De Marchi y Van Miegroet, 1994, pp. 451-464). Del significativo valor de uso social que adquirían estas mercancías prestigiosas que eran las obras de arte se aprovechaban también los comerciantes para especular con el precio de las obras, sobre todo de aquellas por las que existía una gran demanda. Lo que le interesaba a estos comerciantes era


mantener al artista como hábil artesano productor de valores de uso para maximizar sus beneficios monetarios. El importante marchante flamenco Mathijs Musson proveía a los artistas de los materiales necesarios y les dejaba ejecutar los encargos libremente habiendo acordado previamente el precio (Montias, 2004, p. 77). Aunque la fuerza de trabajo no se le enfrentaba a Musson como mercancía es posible ver aquí un sistema de semiproletarización en el que, como Carlos Astarita señala con respecto al Verlagssystem, “el beneficio pasó a basarse en la diferencia entre el valor de los bienes producidos para el mercado y el valor de la fuerza de trabajo más materiales necesarios para la producción” (Astarita, 2005, p. 206). No obstante, aunque este sistema pusiera las bases para una apropiación productiva de la fuerza de trabajo no cuajó como modo de producción capitalista de obras de arte sino que se disolvió en la nada. Una razón para ello fueron sin duda las restricciones gremiales que aún estaban en funcionamiento. A este respecto, el problema de Shiner es su utilización imprecisa de las categorías económicas a la hora de analizar la naturaleza del trabajo en diferentes épocas históricas. Al presentar el trabajo de los artistas como trabajo concreto o abstracto no se han definido las relaciones sociales específicas o el modo de producción dominante que constituye el trabajo en su forma más general, para así poder dar constancia también de las excepciones a la regla. Así pues, para poder analizar estas relaciones en el contexto histórico del modo de producción dominante, la cuestión fundamental que hemos de afrontar es el examen de las relaciones sociales de posesión y propiedad en las que se encuentran los medios de producción, la fuerza de trabajo y el resultado del trabajo. De acuerdo al esquema propuesto por Economakis (2002, p. 161) la propiedad en cuanto relación económica presupone la posesión de los medios de producción (su gestión y control) y la apropiación de los resultados del proceso productivo. Si nos hemos de referir a la fuerza de trabajo la differentia specifica del modo capitalista de producción es que el trabajador ha sido separado de los medios de producción, por tanto, de toda posibilidad de producir sus propios medios de subsistencia, constituyéndose de esta manera como fuerza de trabajo libre en el mercado. El resultado de este proceso es que el trabajador se ve obligado a vender (durante un cierto tiempo) su propia fuerza de trabajo para subsistir y con el fin de reproducirla pues es el único bien que posee para ofrecer en el mercado. He aquí el esquema básico de las relaciones de producción en el capitalismo. Veamos ahora lo que ocurre con el productor de arte.

2. El modo de producir arte


2.1 Sobre la posesión de los resultados del proceso productivo en relación a la posesión de la fuerza de trabajo

Como premisa inicial planteo que a diferencia de lo que ocurre con el asalariado moderno el artista no vende su fuerza de trabajo. Posee los resultados de su trabajo hasta el momento en que pone éstos a la venta, ya sea bajo la forma del régimen de relación contractual con una galería de arte, como venta directa al cliente, o como contrato de producción para un museo o centro de arte. Advirtamos que este hecho se origina en el propio desarrollo del modo capitalista de producción en el que todos los sujetos se constituyen necesariamente como sujetos propietarios de su capacidad productiva o fuerza de trabajo. Al cederla por un cierto tiempo el obrero cede también los derechos sobre su realización en un producto o servicio determinado. En el caso del artista, al no tener lugar esta cesión, de la propiedad de la fuerza de trabajo emana la apropiación del resultado de su aplicación que asume su forma privada gracias a los derechos de propiedad intelectual y derechos de autor. Edelman postula que la obra de arte puede ser definida legalmente como propiedad al ser la expresión creativa de lo que el artista ya posee, su yo o personalidad, pues, según Edelman, lo que constituye al sujeto como sujeto de derecho es la noción de la libre propiedad de sí mismo (Edelman, 1979). Con respecto a esto habría que precisar que la propiedad de la propia fuerza de trabajo es condición de la explotación obrera y el trabajo abstracto de acuerdo a las necesidades que el régimen capitalista de producción impone como modo de producción de valor, mientras que el derecho a extraer beneficios derivados del fruto del trabajo se relaciona tanto con los postulados del llamado „socialismo ricardiano‟ como con los de la filosofía moderna pre-burguesa, por ejemplo en Locke, quien soñaba con una sociedad de pequeños propietarios autónomos dueños de „su‟ trabajo y de los frutos de „su‟ trabajo. Los derechos de propiedad intelectual (que no sólo abarca obras de arte sino también patentes y marcas registradas), como forma jurídica que protege la producción de sentido o significado presente en estos productos frente a copias, falsificaciones y apropiaciones indebidas, tiene su origen en la intrínseca unión que se le supone a la existencia separada de autor y obra. Lo que de forma muy inteligente Johann Gottlieb Fichte planteaba como la dificultad que existe en apropiarse de las ideas de otra persona sin cambiar

su

forma

[Form]

que

permanece

así

como

la

“propiedad

exclusiva”

[ausschlieβendes Eigentum] de su autor. En su contribución al debate sobre los derechos de los escritores frente a las libertades de los editores Fichte mantenía que existe una forma que le pertenece al autor como persona capaz de dar forma a pensamientos característicos [Denkart]. Esta forma, de acuerdo con Fichte, es inalienable (Fichte, 1964, pp. 410-412;


Durán, 2008, pp. 173-197). De esta propiedad inalienable surge dentro del campo de los derechos de autor los „derechos morales‟ que protegen la integridad de la obra frente a modificaciones y usos indebidos. Los derechos de autor otorgan forma legal, es decir, un marco jurídico-ideológico que se muestra como una forma de propiedad privada, a una categoría que es históricamente anterior a la propia constitución del derecho: la de autoría. Si bien, de una forma aproximada, autores han existido desde la antigüedad, sólo con el desarrollo del modo capitalista de producción la autoría se ha protegido con un marco legal que regula la circulación de sus productos en el mercado. Ya lo he señalado en otro lugar: el hecho de que durante la modernidad el artista se tenga que enfrentar a un mercado anónimo pone de manifiesto la importancia crucial que tiene el reconocimiento de la función „autor‟ para reivindicar el derecho al beneficio por la comercialización del producto. Un clásico ejemplo fueron los esfuerzos de Goethe por adquirir derechos exclusivos de reproducción de su obra frente a las reimpresiones y copias por las que Goethe no veía un céntimo (Unseld, 1991). La autoría pasa así a legitimar una labor que le pertenece al artista como trabajador de arte en el mercado (Durán, 2008, p. 176). De esta manera, la propiedad privada sobre el resultado del proceso productivo, o del proceso de creación, queda normalizada gracias a los derechos de autor. El tema sobre los derechos de propiedad intelectual y autoría abarca, por supuesto, un campo de problemas mucho más amplio y controvertido. Lo que me interesa ahora subrayar es esa relación intrínseca que el derecho pone de manifiesto entre obra y autor, una relación que posee una dimensión económica evidente cuya consecuencia más inmediata es la constitución de los productores artísticos como productores independientes de mercancías. 2.2 Sobre la relación compleja que el artista tiene con ‘sus’ medios de producción en cuanto productor de valor

Hemos visto que lo que define la posición social de los artistas como productores de mercancías en un determinado momento histórico está contenido en las relaciones sociales de posesión y propiedad de su fuerza de trabajo así como de los productos de su trabajo. Las relaciones de propiedad y posesión determinan que las relaciones sociales que se derivan de la actividad del artista tomen principalmente la forma de relaciones entre poseedores privados de mercancías. El hecho de que el artista gestione el proceso productivo en ese eje que discurre entre la propiedad de la capacidad de trabajo y la posesión de los resultados del trabajo revela también unas relaciones específicas con los medios de producción que, además, nos están mostrando la manera cómo el artista contemporáneo reflexiona su posición social en relación a otros trabajadores. Me parece


importante analizar el uso o gestión de los medios de producción desde esta perspectiva porque así salen a relucir determinadas relaciones sociales de producción en las que el artista se encuentra inmerso (ver punto 3). La propiedad de instrumentos de producción junto a la habilidad de operar con cierta tecnología no son vistos hoy como determinantes para la creación artística. Según una anécdota bien conocida Walter Gropius se habría quedado impresionado después de que László Moholy-Nagy le contara que había „producido‟ cinco pinturas esmaltadas por teléfono en 1922. Este es el proceso que ha llegado a conocerse como deskilling, es decir, la progresiva pérdida de „destreza‟ que se constata en el artista contemporáneo (Roberts, 2007). Esto no es únicamente debido a que ciertas funciones necesarias para la producción del objeto artístico hayan sido disociadas del trabajo concreto (tal y como estas funciones aparecían bajo el control del maestro en el taller artesano) pasando a ser hoy producidas por trabajadores asalariados que no tienen por que tener ninguna relación directa con el proceso artístico. En el proceso de „deskilling‟ se observa también una actitud muy crítica hacia el virtuosismo artístico tradicional sustentado en la destreza, la excelencia o el genio creativo tal y como este se sintetizaba en el „toque‟ maestro realizado en la „obra maestra‟ y, por consiguiente, también hacia las ideas de „originalidad‟ y „singularidad‟ de la obra de arte. El proceso de „deskilling‟ se encuentra en estrecha relación con la división del trabajo en el capitalismo y la progresiva transformación de todas las capacidades subjetivas en trabajo abstracto. En su clásico Labor and Monopoly Capital (1974) Harry Braverman ha vinculado este hecho al progresivo control por parte de la dirección (management) del conocimiento obrero adquirido y la separación entre el cerebro que concibe y la mano que ejecuta. “El proceso de trabajo –escribe Braverman– se vuelve independiente del oficio, la tradición y el conocimiento obrero. Por consiguiente, pasa a depender por entero no de las habilidades de los trabajadores sino de las prácticas de la dirección” (Braverman, 1998, p. 78). Las implicaciones de ello, señala Braverman, son bien conocidas: el capitalismo crea destrezas y ocupaciones que se corresponden únicamente con sus necesidades. A este respecto, el proceso de „deskilling‟ debe ser siempre examinado en relación a la forma cómo se organiza socialmente el trabajo. Para John Roberts, sin embargo, el proceso de pérdida de „destreza‟ en el mundo del arte implica características muy diferentes. La obra de arte a traves de la “transformación de objetos encontrados y materiales prefabricados representa por parte del artista un reajuste técnico y cognitivo de la creciente socialización del trabajo” (Roberts, 2007, p. 23). La aportación fundamental del readymade consiste, según Roberts, en haberse abierto a las transformaciones tecnológicas del capitalismo y su división del trabajo. El artista del readymade abraza la division del trabajo y los procesos técnicos de producción al situar determinados procesos artísticos en las manos no artísticas de


trabajadores productivos (ibid, pp. 52, 144). En este sentido, lo que el readymade hace evidente es un discurso acerca del trabajo. “Pues el readymade no sólo cuestiona lo que constituye el trabajo del artista, sino que hace visible el trabajo de otros –al menos idealmente–” (ibid, p. 24). Para Roberts lo que aquí tiene lugar es una dialéctica entre trabajo „alienado‟ y „no-alienado‟. Con el readymade nos enfrentamos: 1) a una mercancía alienada; 2) a una mercancía alienada en una forma no-alienada; y 3) a una mercancía alienada en una forma alienada (ibid, p. 25). Podríamos decir que el readymade es, en un primer momento, materialización del trabajo obrero como producción de valor representando así una fracción del trabajo social total realizado. Éste es apropiado por un trabajador (el artista) que no está sujeto a las leyes de valoración del capital, al menos en su esfera productiva que se constituye fundamentalmente como trabajo concreto. Pero lo fundamental en este sentido es que el readymade no oculta el trabajo pasado: “este proceso de revelación [del artista del readymade] se atreve a exponer el trabajo necesario que hace el trabajo artístico posible” (ibid). Además, al “incorporar la evidencia del trabajo productivo de otros en la obra de arte el trabajo de la obra de arte es despojado de su mística autoautentificadora, dejando al artista des-autonomizado y falto de su tradicional autocompostura como el poseedor de una fuerza trascendente” (ibid). Es evidente que a Roberts no le interesa examinar si este intercambio está sujeto a relaciones de producción propiamente capitalistas. Esto se deriva de la importancia que tiene para Roberts la dialéctica entre trabajo „alienado‟ y „no-alienado‟ pues es el poder del trabajo „no-alienado‟ de transformar la materia inerte y alienada de la mercancía lo que representa su “contenido liberador” (ibid, p. 26). Aquí existe un problema de transformaciones de la mercancía que la transformación del trabajo concreto en abstracto y viceversa opera por obra y gracia de la conciencia autónoma del artista. Roberts llega a afirmar que la “inmaterialidad del gesto artístico de Duchamp… revela la capacidad de las mercancías para cambiar su identidad gracias al proceso de cambio” (ibid, p. 35). Roberts confunde los valores de uso que el artista emplea, es decir, el contenido material de las mercancías, con el valor de las mismas; y ello porque Roberts ha asumido una forma fetichista para analizar la realidad. Las relaciones sociales son expresadas aquí como relaciones entre cosas. Pienso que es necesario distinguir entre el contenido material del trabajo y la forma social en la que el trabajo se expresa. Esta forma es la que he tratado de exponer como la relación que existe entre la propiedad de la fuerza de trabajo y la posesión de los resultados del trabajo. Esto me lleva a considerar, de una manera laxa y (necesariamente) provisional, a los artistas como productores independientes de mercancías. Siguiendo a Jacques Gouverneur (2007) podríamos referirnos al trabajo de los artistas como “trabajo indirectamente social, o sea, trabajo reconocido como socialmente útil a través de la venta


del producto”. Esto tiene indudables ventajas porque no nos obliga a tener que tratar, necesariamente, el trabajo de los artistas como directamente productivo o creador de plusvalía. “En un sentido amplio –escribe Gouverneur–, el trabajo productivo es el que crea valor e ingreso” (ibid). No obstante, si hemos de definir el valor como el trabajo abstracto común a todas las mercancías, el trabajo del artista seguirá planteando el problema de su concreción, que aparece como el impulso principal para el reconocimiento social del artista y el precio que alcanzan sus obras en el mercado, sin que aparentemente importe el número de horas que haya invertido en el trabajo. David Harvey señala correctamente que el tiempo de trabajo socialmente necesario con el que se define el trabajo abstracto “se convierte en la medida del valor sólo en el momento en que un tipo específico de trabajo humano se ha vuelto general, el trabajo asalariado” (Harvey, 2006, p. 15). Por tanto, si hemos de partir del hecho de la identificación que se observa entre el artista y el resultado de su trabajo y, además, si consideramos a los artistas como productores independientes de mercancías, no nos estamos enfrentando al típico caso del asalariado moderno que ha vendido su fuerza de trabajo. El artista extrae sus ingresos de la explotación mercantil directa de su producto. Y, no obstante, a partir de la definición de Gouverneur aún nos podríamos plantear la cuestión de si el trabajo de los artistas es únicamente social a través de la venta de sus productos en el mercado. Al fin y al cabo, cuando entro en un museo de arte gratuito mi „consumo‟ de la obra de arte no asume ninguna forma mercantil. En este punto concreto es necesario diferenciar mi posición social como consumidor privado de la forma cómo se organiza el trabajo de los artistas. A continuación me gustaría mencionar, apenas brevemente, algunos ejemplos acerca de la organización del trabajo en el museo o centro de arte contemporáneo porque en estos se manifiesta de una manera palpable las contradicciones, violencias y luchas a las que está sometido hoy el artista contemporáneo.

3. Arte y lucha de clases

Una de las luchas que en el contexto de la expansión capitalista a escala mundial, sobre todo a partir de la Segunda Guerra Mundial, surge una y otra vez en el mundo del arte, es la relativa a la cuestión de los ingresos por el uso del resultado de la fuerza de trabajo de los artistas. Esta es una lucha que no deberíamos desligar de la lucha más general de los trabajadores por el salario. Hay que tener en cuenta que durante el proceso productivo el artista ha de considerar tanto los costes de producción como los de su propia reproducción. Es decir, ha de tener muy en cuenta costes y ganancias. Ambos aspectos se hacen necesariamente presentes en el precio final de la obra. Debido a la identificación inmediata que existe entre productor y producto, lo que el mercado le exige esencialmente al


artista, en cuanto productor independiente de mercancías, es que su trabajo se exteriorice o exprese en la forma de un objeto o servicio vendible. Lo que caracteriza al artista en el mercado es su capacidad de „producir‟ esa mercancía excepcional que es la obra de arte. Esto lleva a que la fuerza de trabajo que se consigue reproducir como fuerza de trabajo artística es aquella cuyas obras de arte tienen un mercado, en el sentido de que la fuerza de trabajo artística es extremadamente dependiente del éxito social de su producción por lo que siempre va a necesitar de agentes externos o „gatekeepers‟ que contribuyan al mantenimiento de la capacidad mercantil, esto es, social, de la obra. Así pues, cuando el precio de la fuerza de trabajo artística, esto es, los costes de su reproducción como tal fuerza de trabajo artística, aparece en el precio final de la mercancía formando parte intrínseca de éste, como si de un todo se tratase en el que el trabajo concreto, el uso de los medios de producción y el valor añadido se vuelven indistinguibles, este hecho conduce al completo escamoteo de la fuerza de trabajo como tal fuerza de trabajo. La fijación extrema que se observa en el mercado del arte por la mercancía artística deviene desprecio de la fuerza de trabajo. Esto no quiere decir que desaparezca el artista en cuanto productor excepcional del objeto, o que no se celebren sus enormes ingresos si fuese el caso. Lo que quiere decir es que desaparece o se escamotea su dimensión económica y, por tanto, política en este sentido. El museo se ha convertido hoy en una institución clave (junto a la galería privada, por supuesto) a la hora de organizar el trabajo y, por consiguiente, los ingresos de los artistas. Los museos y otros dispositivos adyacentes como bienales han pasado de estar simplemente implicados en la „exhibición‟ de arte, a comprometerse en la organización, promoción y desarrollo de la infraestructura que las artes necesitan para salir a la luz. Esto significa que estas instituciones se han estado implicando cada vez más en la producción del arte que exhiben, buscando para ello formas de financiamiento público y privado (Harris, 2004). Entre el 14 y el 16 de mayo de 2010 se organizó en la Tate Modern el festival “No Soul For Sale”. “No Soul For Sale” se presentó como un encuentro dedicado a celebrar los esfuerzos por igual de individuos y colectivos “de entre los más interesantes del mundo… desde Shanghai a Rio de Janeiro” que, según cómo lo entendía el festival, viven fuera del mercado del arte pero animan el arte de tal manera que lo mantienen con vida. Además, este festival formó parte de la serie de eventos con los que la Tate Modern celebró su décimo aniversario. El vínculo ideológico que la Tate buscaba es evidente. La Tate pretendía situarse, a imagen y semejanza de sus invitados, como una institución fuera de, si no contra, el mercado. A partir del 16 de mayo una „carta abierta‟ firmada por MAL, acrónimo de „Making A Living‟, comenzó a circular por la red. Los firmantes manifestaban su repulsión


por la hipocresía que la Tate demostraba al titular el festival “No Soul For Sale”. Los argumentos de MAL son consistentes. Me permito reproducir alguno de sus párrafos: El título No Soul For Sale refuerza estereotipos claramente reduccionistas acerca del artista y la producción artística. Con sus connotaciones románticas acerca del artista entusiasmado, el que realiza su arte por una necesidad interna sin pensar en recompensa alguna, No Soul For Sale da a entender que como artistas debemos esperar trabajar gratis y que es aceptable no considerar el derecho a ser pagados por nuestro trabajo. Hemos sabido que muchos participantes no han recibido de la Tate Modern ningún honorario por sus esfuerzos. De hecho, muchos han autofinanciado sus actividades a lo largo del fin de semana. La Tate describe esta situación como un “espíritu de generosidad recíproca entre la Tate y los colaboradores”. Pero, ¿en qué momento se vuelve la esperada generosidad una forma de explotación institucional? ¿Una vez que se ha vuelto endémica en la mayoría de los espacios de arte financiados con fondos públicos? Resulta extraordinario en la convocatoria de la Tate que no se considere al artista como un factor de producción con valor, o no se considere que produciendo consume fuerza de trabajo que necesita reponer, sobre todo cuando gracias al trabajo de los artistas la institución está logrando una gran repercusión pública. Los autores de la carta son plenamente conscientes de ello, de las ganancias que en términos de publicidad, merchandising, etc., la Tate está obteniendo. La atención que el museo recibe en la esfera pública ha devenido uno de los factores decisivos por los que se mide su éxito. Pero no hay manera más fácil de situarse contra o fuera del mercado que ignorando sus coerciones. Esta actitud de la Tate, lejos de ser la excepción, parece ser la regla de comportamiento que se observa en este tipo de instituciones expositivas. En un texto ya clásico Lucy Lippard, escribiendo en el contexto de la „Art Workers‟ Coalition‟, denunciaba una situación parecida: “También descubrimos que algo que los gestores de los museos parecen no entender es que la mayoría de los trabajadores del arte llevan una triple (en el caso de las mujeres, a menudo cuádruple) vida: crear arte, ganarse la vida, activismo político o social y quizás incluso llevar un hogar. Cuando el director del museo se irrita por nuestra desconfianza respecto

a

las

largas

conversaciones

o

por

nuestra

ineficacia

generalizada

(irresponsabilidad, según la llaman), olvida que recibe un salario por “cuidar” de una obra y un mundo que el que está frente a él en la línea del piquete produce a cambio de ninguna seguridad financiera” (Lippard, 2010, p.47). Así pues, la protesta de „Making A Living‟ no es un hecho aislado, siendo su precedente más conocido la mencionada „Art Workers‟ Coalition‟ de 1969. Mi planteamiento es que en las reivindicaciones por los derechos de los artistas a recibir un ingreso derivado del uso del resultado de su trabajo se observa un conflicto con el


modo cómo se organiza su trabajo que toma el cariz de lucha de clases. Pero si nos empeñamos en ocultar esta dimensión económica, las luchas que resultan de las contradicciones y antagonismos inherentes al régimen productivo aparecerán siempre como conflictos exteriores al trabajo mismo y, en consecuencia, dará la impresión que los artistas se encuentran situados ajenos al trabajo social. Conclusión. Acerca del método y el materialismo histórico Tratar de explicar las relaciones sociales del arte de acuerdo al esquema del „modo de producción‟ dominante que se presenta como totalidad teórica, puede parecer una broma de mal gusto que reformula, sin modificarla, la ortodoxia estalinista de la supremacía de la esfera económica sobre el resto de la vida social. A este respecto, se reconocerá también cierta deuda con el paradigma epistemológico que Louis Althusser y Étienne Balibar desplegaron en su clásico Lire le capital (1968). Si los resultados teóricos presentados por Althusser y Balibar son una forma „solapada‟ de estalisnismo teórico o no, es parte de un conocido y viejo debate que no se trata ahora de desenterrar (Thompson, 1978; Anderson, 1980). No obstante, al hilo de esta controversia sí que me gustaría apuntar la crítica que Ellen Wood le hace al presupuesto teórico althusseriano de „modo de producción‟ y „formación social‟. En Democracy against Capitalism (1995) Ellen Wood sostiene que con la formulación teórica „modo de producción‟ es como “si las formaciones sociales históricas „reales, concretas‟ estuviesen compuestas de elementos cuya lógica estructural interna fuese determinada teóricamente, mientras que los procesos históricos simplemente disuelven y reúnen estos elementos de formas diferentes” (Wood, 2000, p. 55). Pienso que la crítica de Ellen Wood es acertada siempre que mantengamos que lo que la elucubración de Althusser y Balibar trataba de poner de relieve es una lógica estructural que se impone a los hechos. Es decir, la estructura teórica propuesta por Althusser y Balibar parecería querer constatar que las relaciones entre los diversos ámbitos sociales son de naturaleza „abstracta-formal‟ en vez de „real-concreta‟ o “que los componentes de un modo de producción se pueden relacionar „estructuralmente‟ pero no necesariamente de una forma histórica” (ibid). Más allá del reproche concreto a Althusser hay algo que considero de extrema importancia en la crítica de Wood, y es que a la hora de examinar si un determinado ámbito de la vida social (en el caso aquí analizado, el arte) es capitalista son las relaciones „reales-concretas‟ con el modo capitalista de producción el objeto de análisis. Ahora bien, esto no impide que lo que en la superficie aparece como una relación social (vendedor y comprador de fuerza de trabajo) pueda ser categorizado en una estructura (trabajo asalariado y capital).


Cuando Marx se refiere al método de la economía política en los Grundrisse (1976, pp. 20-30) afirma que lo que en el pensamiento aparece como un proceso de síntesis, como el resultado, no es sino el punto de partida para apropiarse de lo concreto. Marx describe un viaje de ida y vuelta yendo del análisis de lo concreto (por ejemplo, población, dinero, precios) a la deducción de un cierto número de relaciones abstractas (clases, trabajo asalariado, capital) para volver de nuevo a lo concreto que “esta vez no tendría una representación caótica de un conjunto, sino una rica totalidad con múltiples determinaciones y relaciones” (ibid, p. 21). Por ejemplo, continua Marx, si tomamos el valor, esta categoría presupone una población que produce en determinadas condiciones, pero este valor sólo existe en cuanto categoría abstracta en el pensamiento pues es su producto. “Hasta ahora ningún químico ha descubierto el valor de cambio en la perla o el diamante”, escribía Marx en otro contexto (MEW 23, p. 98). En cambio, con lo que sí nos vamos a encontrar al examinar el valor es con relaciones sociales concretas que, en el interior de procesos históricos específicos, determinan la validez teórica de la categoría. En mi opinión, es precisamente este movimiento del pensamiento el auténtico objeto teórico de Althusser (1997, pp. 86-88). Es decir, determinar de forma clara cuáles son las categorías abstractas que nos permiten analizar la realidad como un conjunto de relaciones social e históricamente determinadas. Cuando Althusser se refiere a la “inmensa revolución teórica de Marx” como la producción del concepto del objeto real, propone un ejemplo bien simple: “de igual forma que los cuerpos „caían‟ antes de Newton, la „explotación‟ de la mayoría de los hombres por una minoría „existía‟ antes de Marx. Pero el concepto de las „formas‟ económicas de esa explotación, el concepto de la existencia económica de las relaciones de producción, de la dominación y determinación de toda la esfera de la economía política por esa estructura no tenía existencia teórica” (ibid, p. 181). Es decir, el „modo de producción‟ capitalista no existe en cuanto tal, sino sólo como las relaciones concretas de los individuos que utilizan su capital productivamente, para lo cual necesitan explotar fuerza de trabajo. Y esto no lo demuestra la categoría por sí misma sino el movimiento de regreso del pensamiento a lo concreto. Si convenimos, es decir, si llevamos a cabo cierto grado de abstracción, que lo común a todas las épocas humanas es el uso de fuerza de trabajo, de ciertos medios de producción y de trabajo pasado, objetivado (Marx, 1976, p. 5), también para la actividad denominada artística, cuando regresamos a lo concreto nos damos cuenta de que es diferente el trabajo del que hacía uso un maestro como Rubens cuando al vender uno de sus cuadros afirmaba “Original de mi mano, y el águila hecha por Snyders”, lo que sin duda tenía una consecuencia fundamental a la hora de determinar el precio de la mercancía, del consumo de la actividad productiva de trabajadores asalariados para la realización del producto artístico. No sólo estamos ante épocas históricas diferentes sino


que la actividad misma no es indiferente a estos desarrollos. A este respecto, quizás podamos pensar una forma en la que la „lógica‟ del proceso capitalista se hace real en la actividad artística. Según lo expuesto aquí, la forma capitalista del arte sería aquella que surge del análisis de la confrontación de la actividad concreta con las relaciones generales determinantes del modo de producción. No obstante, muchos teóricos e historiadores del arte, al modo de aquellos economistas “que cancelan todas las diferencias históricas y ven la forma burguesa en todas las formas de sociedad” (ibid, p. 26; Wood, 2000, p. 56), quieren ver también la forma burguesa, capitalista del arte surgiendo como totalidad en todas las formas de sociedad. ¿Y cuál es esta „forma‟ capitalista del arte? Se podría concluir, con todos los riesgos teóricos que una conclusión de este tipo conlleva, que el arte es capitalista, en el sentido de que se muestra socialmente relacionado con el modo de producción capitalista dominante en su forma básica y general, cuando el trabajo concreto del artista asume una relación de propiedad económica intrínseca con el resultado de su actividad que es sancionada por una forma jurídica específica que determina la actividad como una actividad productora de mercancías. Ahora bien, esta relación básica así descrita podría parecer que sugiere que las relaciones capitalistas de producción actúan en el ámbito artístico de una manera que es exterior a su esencia como „arte‟. Pero una interpretación de este tipo sólo puede ser el resultado de un análisis que antepone la categoría arte (a través de las formas históricas en las que la categoría se haría real) a las relaciones históricas concretas que la hacen posible. Este tipo de análisis sólo puede conducir a la mayor de las confusiones, como las de aquellos autores que han examinado las obras de arte concretas como la materialización de la categoría, a su vez expresión de un ser humano ideal y ahistórico conocido como homo aestheticus.

Agradecimientos

Quisiera agradecer al profesor Felip Martí-Jufresa quien en abril de 2010 me invitó a dar una conferencia sobre la economía política del arte en la Escuela Superior de Bellas Artes de Toulouse, conferencia que ha servido como punto de partida para este ensayo. También al filósofo Frieder Otto Wolf cuyas charlas en torno a la obra de Marx y Althusser siempre me han servido de fuente de inspiración, incluso a la hora de radicalizar mi discurso. Finalmente, quisiera agradecer a Ruy Lopes su amable invitación para participar en este número de la revista Eptic, cuyo trabajo no conocía pero del que estoy seguro me beneficiaré a partir de ahora tanto humana como intelectualmente. Referências


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A Arte do avesso: a função da denegação econômica no mercado Artístico e as novas formas de recomendação e mediação cultural na internet Rose Marie Santini1 Resumo: Este artigo discute o processo de “produção de valor simbólico” de obras e artistas através da recomendação. São consideradas as contradições do mercado artístico, instauradas nos limites da relação entre a “economia” e o público, para uma análise comparativa sobre a função social dos meios de comunicação tradicionais e dos atuais Sistemas de Recomendação na Internet, que apontam para novas formas de lidar com a arte e a cultura. Palavras-chave: Mediação cultural. Recomendação de bens simbólicos. Sistemas de Recomendação. Resumen: Este artículo discute el proceso de “producción de valor simbólico” de obras y artistas a través de la recomendación. Son consideradas las contradicciones del mercado artístico, instauradas en los límites de la relación entre la “economía” y el público, para un análisis comparativo sobre la función social desempeñada por los medios de comunicación tradicionales y por los actuales Sistemas de Recomendación (SR) en Internet, que apuntan para nuevas formas de tratar y comprender el arte y la cultura. Palabras-clave: Mediación cultural. Recomendación de bienes simbólicos. Sistemas de Recomendación. Abstract: This article discusses the process of “production of symbolic value” of works and artists through the recommendation. The contradictions of the artistic market are considered, established in the limits of the relationship between the “economy” and the public, to make a comparative analysis on the social function carried out by the traditional media and for the current Recommender Systems (RS) on the Internet, that points out for new forms of treating and understanding the art and the culture. Keywords: Cultural mediation. Recommendation of symbolic goods. Recommender Systems. 1. Introdução

Se a arte enquanto expressão cultural é um instrumento produtor de realidade social, sua história é justamente a perspectiva de seus intermediários. Portanto, a história da arte e da cultura está subordinada à história da mediação cultural. A mediação funciona como um vetor de interpretação social dos bens simbólicos. Nas ciências sociais, o conceito de “mediação cultural” remete a um terceiro elemento social que estabelece, configura e condiciona a relação entre a informação cultural e seus públicos/usuários. Portanto, privilegiamos neste artigo o conceito de mediação em detrimento do termo “intermediário”. 1

Doutora em Ciência da Informação pelo IBICT-UFF. Pesquisadora visitante e pós-doutoranda no Departament d’Economia de l'empresa i Centre d'Estudis i de Recerca d'Humanitats, na Universitat Autònoma de Barcelona – Espanha.

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A noção de mediação efetua uma superação semântica do conceito anterior ao retirá-lo o prefixo “inte” que o converte em um processo secundário em relação às realidades entre as quais se situa. E ao acrescentar o sufixo “ção” (de “ação”), a mediação insiste no caráter primeiro daquilo que faz aparecer enquanto processo. A mediação é uma palavra que designa uma operação, e não os operadores. Definido o conceito de mediação cultural do qual se parte, as questões que tratamos ao longo deste trabalho podem ser apresentadas: em que medida a mediação sugere modos de ver e sentir a própria experiência artístico-cultural? Como suas diferentes modalidades influenciam os comportamentos dos indivíduos e grupos? De que maneira mudanças na estrutura econômica e tecnológica transformam ou pode transformar as formas de lidar com a cultura? Na tentativa de desenvolver tais reflexões, o artigo começa com a análise das lógicas sociais de “produção de valor simbólico” em determinadas obras e artistas através do processo de recomendação - especificamente aqueles operados e difundidos pelos meios de comunicação tradicionais em uma sociedade de massa. Em seguida apontamos algumas contradições implicadas no mercado artístico, instauradas nos limites da relação entre a “economia” e o público. A oposição entre “recomendação desinteressada” e “recomendação comercial” produz distinções que, ao serem socialmente reconhecidas, podem causar alterações nas lógicas vigentes no campo. Por fim, discutimos como o contínuo desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação coloca questionamentos sobre os novos processos de mediação cultural e suas implicações sociais. Através de seus dispositivos sócio-técnicos, as lógicas de mediação cultural que surgem no mundo contemporâneo instauram indagações relacionadas com os processos sociais de “sugestão”, “influência” e “modos de subjetivação” sob o ângulo de sua produção. A amplitude do tema nos faz realizar uma reflexão assumidamente em perspectiva, que parte da problematização de resultados encontrados em trabalho anterior (SANTINI, 2010), e que articula um diagnóstico de transformações culturais que apontam para o surgimento de novas lógicas sociais de “produção da crença” nos bens simbólicos. Esse diagnóstico foi elaborado especialmente através da observação dos usos sociais da música que se configuram entre os usuários dos atuais Sistemas de Recomendação (SR) na Internet, modelo de mediação cultural emergente, porém que pode indicar tendências similares com relação a outros tipos de bens culturais e a outros contextos de uso, desde que ponderadas as especificidades correspondentes. Para desenvolver a discussão sobre o tema, retomamos o pensamento sociológico de Gabriel Tarde e Pierre Bourdieu para analisar comparativamente o papel desempenhado

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pelos meios de comunicação tradicionais e pelos atuais Sistemas de Recomendação na Internet – seus critérios de funcionamento e lógicas de uso – que contribuem para uma nova forma de produção da crença social no valor dos bens simbólicos e uma nova forma de lidar com a arte e a cultura. 2. Crença artística e produção social do gosto através dos meios de comunicação de massa.

Embora

idealizemos

a

diferença

no

âmbito

do

pensamento

filosófico

contemporâneo, a perspectiva da Sociologia da Cultura considera que a formação de séries imitativas no campo social (especificamente relacionadas com a produção de crenças e desejos amplamente difundidos) é constitutiva das comunidades humanas e ocorrem principalmente através de processos de “sugestão”. Segundo Gabriel Tarde - um dos fundadores da sociologia francesa e concorrente de Durkheim - toda a vida social e, por conseguinte, toda opinião e gosto reduzem-se em última instância a uma sugestão que em algum

momento

foi

dada

e

absorvida:

“tê-las

apenas

sugeridas

e

julgá-las

espontaneamente, tal é a ilusão do homem social” (TARDE, [1890] 1976, p. 83). Os gostos culturais são fluxos de crenças e desejos em contínuo processo de imitação, diferenciação e adaptação que tendem a propagar-se no campo social. Entretanto, faz-se necessário compreender como as crenças e desejos se propagam e como determinada semelhança entre milhões de pessoas é produzida. No âmbito das práticas e preferências culturais, além do contágio no nível dos micro-relacionamentos, das múltiplas relações difusas e infinitesimais que se produzem entre e nos indivíduos, há diferentes instâncias que funcionam como dispositivos de amplificação social e de produção de séries imitativas. Até o século XIX estas instâncias estavam fortemente atreladas às instituições sociais como família, escola e condicionadas pela divisão social do trabalho. As possibilidades de contágio imitativo neste momento histórico foram intensamente trabalhadas por Pierre Bourdieu ([1979] 2007) - que ao invés de usar o termo “imitação” de Gabriel Tarde ([1890] 1976), dizia “reprodução”. Com a penetração dos meios de comunicação de massa na vida social cotidiana fenômeno que amadurece no século XX – estes passaram a concorrer na disputa pelo controle dos dispositivos de propagação dos processos imitativos que atuam na conformação dos gostos, dos usos sociais da cultura e dos estilos de vida. A partir da organização de informações, sugestões e recomendações, a mediação cultural operada através da mídia tende a desencadear um contínuo contágio coletivo de crenças e valores que produzem comportamentos amplamente difundidos no campo social.

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No contexto do capitalismo industrial, onde a produção e difusão de produtos culturais operam dentro da lógica de uma economia de escala, os Meios de Comunicação de Massa (MCM) são peças fundamentais para a engrenagem e o amadurecimento dos mercados culturais através dos processos de sugestão massiva de bens simbólicos. O direcionamento da circulação e da troca destes bens passa a ser crucial para ampliar as bases da acumulação sócio-econômica deste período. De acordo com o principal argumento dos teóricos e críticos da comunicação de massa e das Indústrias Culturais – desde os precursores do campo, como Adorno & Horkheimer ([1944] 1972) e Benjamin ([1936] 1987) até autores mais recentes como Flichy (1982), Zallo (1988), Baudrillard (1990), Garnham (1990, 2000), Lacroix & Tremblay (1997), Miège (2000), entre muitos outros - os processos de subjetivação nas sociedades capitalistas passam a estar subordinados às forças de homogeneização generalizada sob o impacto do que atualmente chamamos de “marketing”, e assim a mídia de massa passa a funcionar como o mais importante dispositivo de propagação dos processos imitativos e nivelamento das subjetividades entre os indivíduos e grupos. Portanto há um nexo histórico entre a produção cultural com a formação e/ou a mudança dos hábitos e gostos. “A produção contribui para produzir o consumo” (BOURDIEU, [1984] 2008, p. 159). Para explicar esta relação de interdependência entre produção e consumo é preciso considerar que há uma busca consciente de adequação social e econômica, de operação conjetural no âmbito da mediação cultural. Em certa medida, as Indústrias Culturais tentam adaptar a demanda às suas condições de produção e vice-versa, e enquanto mediadores atuam para “produzir seus consumidores”. Em um sistema baseado na produção em série e na transformação dos bens simbólicos em commodities faz-se necessário aprimorar as técnicas de ajuste entre a oferta e a procura para garantir a acumulação de poder e riqueza. Esta correspondência estrutural é imperativa dada à especial imprevisibilidade e risco do mercado cultural, tanto da perspectiva dos produtores como dos consumidores. “A incerteza e as vicissitudes caracterizam a produção de bens simbólicos” (BOURDIEU, [1977] 2006, p. 60), e por isso “os produtos das Indústrias Culturais de massa tendem a ser concebidos segundo receitas seguras e confirmadas” (BOURDIEU, [1977] 2006, p. 34). A dificuldade das empresas envolvidas neste mercado se deve ao fato de que, em matéria de produtos culturais, a produção depende da criação dos consumidores - isto é, da criação do gosto, da necessidade e da crença nesses bens. Sob pena de escapar da celebração mística para cair em um “economicismo” redutor, é necessário analisar os processos de mediação através das quais as Indústrias Culturais conseguem impor artistas,

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obras, gêneros e estilos, contribuindo assim para fixar definições particulares de gostos em uma determinada época e em um dado mercado (BOURDIEU, [1984] 2008, p. 159). Uma das estratégias predominantes neste processo de “produção da demanda” é a recomendação de produtos culturais que passa a ser onipresente em todos os MCM (jornal, revistas, rádios, cinema, televisão) apresentando-se tanto de forma explicitamente comercial (espaço publicitário) como implícita (espaço editorial ou de programação). O processo de recomendação de bens culturais é regido primeiramente pela “produção da crença em um determinado sistema de classificação artístico que estrutura a percepção e a apreciação dos produtos” (BOURDIEU, [1977] 2006, p. 56). Significa dizer que os esquemas classificatórios agem sobre as estruturas sociais e psicológicas dos agentes implicados em situações historicamente contextualizadas. Como instrumentos práticos de classificação, estes “rótulos” estabelecem as semelhanças e as diferenças entre os autores, obras e seus usuários. Estes nomes são produzidos na luta pelo reconhecimento dos próprios artistas ou de seus recomendadores titulares. Os esquemas classificatórios desempenham a função de sinais de reconhecimento que distinguem os locais de circulação das obras, os grupos consumidores, assim como os produtores e os produtos que eles fabricam ou propõem (BOURDIEU, [1977] 2006, p. 88). A crença produzida no sistema de classificação artístico determina os processos de criação, de circulação e a lógica de consagração dos bens culturais. Portanto, há uma disputa constante no campo social pela conquista da “autoridade” que classifica e legitima esses bens que, através de sugestões explícitas ou tácitas, cria normas de gosto. Desmistificando o caráter sagrado da arte, a produção da crença é resultado de um amplo empreendimento de “alquimia social” na qual colabora o conjunto dos agentes envolvidos no campo da produção e circulação - ou seja, artistas, escolas de pensamento, críticos, jornalistas etc. Convém contar por último com os “clientes” que contribuem para a produção da crença no valor dos bens culturais apropriando-se deles materialmente (através da compra) ou simbolicamente (como audiência/espectadores/usuários), além de identificarem subjetiva ou objetivamente uma parcela de seu próprio valor com tais apropriações (BOURDIEU, [1977] 2006, p. 24). Esse imenso trabalho de promoção, divulgação, replicação e/ou publicidade produzido e consumido por todos é o único capaz de “anunciar o criador” e consagrar a “autoridade” dos críticos, dos artistas e das obras em si. Ao utilizar palavras como “anunciar”, “criar”, “consagrar”, Bourdieu chama atenção para o caráter “mágico” e arbitrário da crença com os quais podem se revestir os discursos das “autoridades” culturais e suas representações coletivas.

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Portanto, há uma relação simbiótica entre o espaço editorial e o espaço publicitário dos meios de comunicação que prescrevem os processos de recomendação dos produtos culturais. Esta conjunção de diferentes discursos midiáticos se produz dentro de uma dupla lógica de acumulação de “capital simbólico” e de “capital econômico”. Segundo Bourdieu ([1977] 2006), diante do processo de produção da crença social que viabiliza a economia dos bens culturais, o único capital útil e eficiente corresponde ao que o autor chama de “prestígio”. Enquanto “autoridade cultural”, o prestígio somente pode garantir ganhos específicos produzidos pelo campo se vier a converter-se em capital simbólico. Portanto, a única acumulação legítima - tanto para o artista, para o crítico, quanto para o meio de comunicação que os veicula - consiste em adquirir um nome conhecido e reconhecido socialmente. Ou seja, trata-se de acumular um “capital de consagração” que implica em um poder de legitimar produções ou pessoas através de julgamentos e classificações – e, portanto, de dar valor e obter benefícios desta operação em um dado campo ou mercado. Os críticos colaboram (pelo menos a prazo) com os produtores e comerciantes de bens culturais no trabalho de consagração que faz a reputação e o valor social ou monetário das obras. Ao “descobrirem” os novos talentos ou revelar as obras a serem valorizadas, estes agentes orientam a escolha dos vendedores e compradores por seus conselhos que, apesar de pretenderem ser puramente estéticos, são acompanhados por consideráveis efeitos econômicos. Entretanto, o veredicto desinteressado ou a “sinceridade” - que é uma das condições da eficácia simbólica para aqueles que recomendam - só é possível e somente realiza-se através de jogo de adaptação mútua, no qual os recomendadores culturais estão distribuídos no espaço da mídia segundo a estrutura que se encontra na origem do objeto classificado e do sistema de classificação que eles aplicam. Essa lógica de produção da crença nos bens simbólicos através de uma recomendação “ajustada” se converte em um espaço de acumulação de capital simbólico não somente para as “autoridades” em questão, mas para quem as autoriza. Significa dizer que os meios de comunicação passaram a outorgar não somente um valor social e comercial às obras e artistas, colocando-os em relação a certo mercado, mas também a exercer o poder de eleger e proclamar a autoridade dos críticos que os julgam. Ao selecionar e anunciar o valor dos recomendadores disseminando suas opiniões, as mídias de massa atuam como “banqueiros simbólicos” - conceito cunhado por Bourdieu ([1977] 2006, p. 22) - que oferecem a seu público, como garantia das informações e sugestões veiculadas, todo o capital simbólico que acumulou. Essa garantia corresponde ao

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principal investimento que direciona o mercado e leva os bens culturais a penetrarem no ciclo da consagração e dos grandes retornos econômicos. Portanto, a mídia funciona como “fiador de qualidade das obras” e também como “fiador de seus defensores”2. Entretanto, a luta pela apropriação do “capital de consagração” no campo cultural não é suficiente para manter a sobrevivência e a força de atuação dos meios de comunicação. A disputa pelo poder simbólico ocorre em paralelo à necessidade inerente a estas empresas de acumular capital econômico. Esse duplo imperativo, que muitas vezes é contraditório no campo artístico e cultural, vem desencadeando uma profunda alteração dos espaços de recomendação.

3. As contradições da “economia dos bens simbólicos” e os processos sociais de recomendação.

Ao longo das últimas décadas, os modos de divulgação, promoção, legitimação e consagração dos bens simbólicos através dos MCM se transformam em paralelo ao aumento da concorrência comercial entre as mídias. A intensificação da dependência econômica de seus modelos de negócio e a pressão pelo contínuo aumento da acumulação de riqueza por parte de seus acionistas anuncia o ambíguo estatuto da publicidade no seio das indústrias culturais e midiáticas. Neste contexto, os grandes grupos multimídia visam reforçar seu poder através do controle das recomendações ajustadas aos seus interesses econômicos, que inclui a pretensão de monopolizar as redes de distribuição, circulação e divulgação comerciais dos produtos culturais. Esse poder está afiançado na substituição gradativa do tipo de recomendação produzida e na subordinação cada vez maior dos espaços editoriais e de programação à publicidade comercial. A necessidade de crescimento dos retornos publicitários implica em uma deterioração do papel tradicional dos críticos independentes. Os recomendadores passam a ser funcionários destes veículos e submetidos aos filtros dos editores. Essa situação também desloca gradualmente a autoridade do crítico autônomo em direção ao acúmulo de “capital de consagração” por parte das próprias mídias de massa. Em muitos casos a

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Essa expressão é inspirada na frase de MOULIN (1967, p. 329 apud BOURDIEU, [1977] 2006, p. 99 – nota nº7) que diz que o marchand é para os amadores o “fiador da qualidade das obras”. O motivo da citação é a analogia que fazemos aqui – no âmbito do argumento deste artigo e baseando-nos na teoria de Pierre Bourdieu entre o papel dos marchands no mundo das artes plásticas com a função dos meios de comunicação no mercado de produtos culturais industrializados.

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“autoridade cultural” passa a estar vinculada à própria marca institucional dos veículos de comunicação3. No entanto, essa conversão comercial generalizada dos espaços de divulgação, legitimação e consagração dos bens simbólicos nos MCM possui implicações sociais importantes, intimamente relacionadas com as condições de surgimento dos fluxos de crenças que interceptam o mercado cultural. De acordo com Bourdieu ([1977] 2006), os campos da produção de bens culturais são universos de crença que só podem funcionar na medida em que conseguem produzir, inseparavelmente, os produtos e a necessidade desses produtos por meio de práticas que são a denegação dos critérios habituais da “economia”. As lutas que se desenrolam no círculo da crença cultural são conflitos decisivos que comprometem completamente as relações “econômicas”. Aqueles que acreditam no valor atribuído às obras e artistas, e se respaldam nessa fé para conduzir seus hábitos culturais, condenam as práticas e interesses comerciais explícitos e também o uso calculado do capital de consagração acumulado que atua mediante a submissão às exigências do mercado (BOURDIEU, [1977] 2006, p. 30). Essa mesma ideia é também defendida por Kelley (1967; 1973) através da “teoria da atribuição” no qual um comunicador será percebido como tendencioso se seu receptor puder inferir que sua mensagem é atribuída a motivações situacionais ou de benefício próprio. Segundo a “lei do universo dos bens culturais”, o retorno de um investimento será tanto mais produtivo do ponto de vista simbólico quanto menos for declarado. Isso faz com que as ações de valorização que, no mundo dos negócios assumem a forma aberta de publicidade, devam eufemizar-se para produzir crenças no campo cultural. Significa dizer que a recomendação somente pode contribuir para a produção do valor de uma determinada obra ou artista se colocar a seu serviço toda a convicção que exclui as manobras “vilmente comerciais”, as manipulações e as pressões, em detrimento das formas mais brandas e discretas de divulgação e sugestão (BOURDIEU, [1977] 2006, p. 23). 3

Essa situação é claramente visível no âmbito do mercado cultural, principalmente pela atuação da mídia impressa (jornais e revistas). Concertos, peças de teatro, discos, livros e filmes são cada vez mais legitimados e recomendados pelos próprios meios de comunicação como garantia de qualidade das obras. Por exemplo, os rótulos vinculados aos produtos como “Revista Veja recomenda”, “O Globo recomenda”, “Recomendado pela Revista Time”, “Recomendado pelo New York Times” etc. estão presentes nos espaços editoriais, nos materiais de divulgação e inclusive na própria embalagem de alguns tipos de produtos culturais (como na contracapa de livros e DVDs). Entretanto, segundo Bourdieu ([1977] 2006, p. 99, nota nº8), “é evidente que, de acordo com a posição ocupada no campo da produção, as ações de valorização podem variar desde o recurso abertos às técnicas publicitárias (publicidade na imprensa, catálogos etc.) e às pressões econômicas e simbólicas (por exemplo, sobre os júris que distribuem os prêmios ou sobre os críticos) até a recusa altaneira e um tanto ostensiva de qualquer concessão em uma época que pode ser, afinal de contas, marcada por formas supremas de imposição de valor”.

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A oposição entre a “recomendação desinteressada” e a “recomendação comercial” abrange a distinção entre os “empreendimentos comerciais”, cujos bastidores são ocupados por

empresários

que

procuram

o

lucro

econômico

imediato,

e

os

chamados

“empreendimentos culturais”, remetidos àqueles que lutam para acumular um capital propriamente cultural, nem que seja mediante a renúncia provisória do lucro econômico. Portanto, se a denegação econômica é a condição de possibilidade para a produção da crença no valor dos bens simbólicos, o poder de consagrar artistas e obras por parte das indústrias culturais e midiáticas tende a diminuir na medida em que a lógica das recomendações explicita uma busca calculada por benefícios econômicos. Esse argumento não indica que as pessoas deixem de comprar e/ou consumir os produtos veiculados e distribuídos por essas empresas. O consumo cultural massivo corresponde, na maioria das vezes, a um comportamento social regido por uma lógica de contágio imitativo e por suas condições facilitadas de uso. O que se aponta aqui é que o circuito de consagração destes bens tende a passar cada vez menos por esse tipo de mediação quando se sabe ou se assume como claramente comercial. Em parte isso explica, por exemplo, porque os consumidores tendem a atribuir cada vez menos valor monetário aos produtos culturais industriais amplamente veiculados pela mídia. Na medida em que a Internet ampliou as possibilidades de consumo gratuito, estas empresas atualmente possuem dificuldade de capitalizar simbolicamente suas mercadorias a ponto de atribuir-lhes um valor social, vinculado a uma ordem de preço que garanta as vendas e uma margem de lucro satisfatória. Isto é, as sugestões desvendadas como interessadas ou mercantis, tanto no espaço editorial como publicitário, tendem a gerar uma desconfiança parcial dos consumidores em relação a sua relevância e autenticidade. No âmbito da comunicação midiática, as mensagens declaradas como comerciais colocam em cheque tanto os esquemas classificatórios que impõem como as recomendações que sugerem. Ratificamos que esse argumento não sugere que as pessoas deixem de consumir os produtos culturais de massa, mas que nestas condições, estes produtos tendem a perder seu valor social.

4. A emergência dos Sistemas de Recomendação: os novos tastemakers dos usuários de Internet.

Esse processo de lenta degradação do poder dos MCM para produzir a crença no valor dos bens simbólicos se revela claramente no campo da música, que tem se mostrado como vanguarda no setor cultural. No âmbito das Indústrias Culturais, o setor musical tem funcionado como laboratório de experimentação tanto de inovações tecnológicas e

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comerciais – devido à rápida decadência dos modelos de negócio tradicionais com a popularização da Internet - como para a identificação dos usos sociais da cultura que aparecem e desaparecem no campo social. As mudanças estruturais que vem ocorrendo no mercado musical se inserem em um momento histórico marcado pelo desenvolvimento de tecnologias que transformam profundamente a lógica dos processos de produção, mediação e circulação dos bens simbólicos. E conforme afirma Bourdieu ([1977] 2006), qualquer mudança na estrutura do campo cultural conduz a uma transmutação das preferências e usos sociais. Nos últimos anos os Sistemas de Recomendação (SR) vem se estabelecendo como os principais mediadores e orientadores do consumo cultural na Rede, e atualmente constituem a tecnologia dos mais importantes websites de acesso a produtos culturais através da Internet, tais como Youtube, Last.Fm, Amazon, Pandora, NetFlix, Google Books, Google News, Yahoo Music, MovieLens, ChoiceStream etc. Estes sistemas são grandes plataformas interativas onde se exibem e se recomendam produtos culturais aos usuários de acordo com seus interesses e preferências individuais - tais como música, filmes, vídeos, livros, textos, notícias, etc. (SANTINI, 2010). Os Sistemas de Recomendação - também chamados de “agentes inteligentes” - são softwares de classificação, organização e recomendação colaborativas de produtos culturais que pretende dar suporte ao usuário quando este interage com espaços que oferecem grande quantidade de informação. Por exemplo, os SR de música recomendam artistas e obras baseando-se no interesse e no gosto que o usuário expressa implícita ou explicitamente em sua navegação na web, em seus hábitos de escuta registrados pelo computador ou pelo uso do próprio sistema. A emergência e a popularização dos Sistemas de Recomendação de música baseados na filtragem colaborativa, como é o caso da Last.fm, Pandora, Spotify, iLike entre outros, apontam para o desenvolvimento de novas instâncias de mediação através da Internet que passam a concorrer nos processos de legitimação e recomendação de produtos musicais e na orientação de tal mercado. O uso dos Sistemas de Recomendação (SR) para ouvir, pesquisar e descobrir música modifica tanto a experiência musical como o modo de concebê-la. O consumo de canções através desses softwares na Internet transforma o estatuto da mediação que passa a atuar enquanto “processamento de informação”. Em relação ao poder de sugestão das recomendações a partir desse novo modelo de mediação, o mais importante atributo dos SR repousa em seu caráter colaborativo. A recomendação pretende ser personalizada, relevante e adaptativa, funcionando segundo um princípio de comando indireto: os sistemas não definem a classificação e organização das

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informações. Os SR apenas agenciam as ações aleatórias de uso e a filtragem de informação realizada pelo coletivo de usuários. Devido ao risco inerente ao consumo cultural e às condições de escolha em um ambiente caracterizado pelo excesso de informação - como acontece no caso da música na Internet - a personalização da informação e a simulação da experiência passam a ser determinantes na orientação das decisões e na conformação de práticas e preferências musicais. O uso destes sistemas atende a uma necessidade social latente de delimitação dos cenários de escolha pela seleção de informações relevantes, que variam de pessoa a pessoa e de acordo com cada contexto de uso. Entretanto, esse novo modelo de mediação através dos SR tem se popularizado especialmente entre os usuários de música na Internet não somente por reduzir as dificuldades de busca, recuperação e uso de informação em um ambiente de caos informacional. As possibilidades de personalização tendem a aumentar a crença social na relevância das informações emitidas pelo sistema e seu caráter colaborativo contribui para a atribuição de valor e credibilidade às recomendações. A tecnologia de filtragem colaborativa - que permite tanto a personalização da informação como a participação dos indivíduos na definição do funcionamento do sistema opera de modo a capturar, organizar e principalmente simular a emissão de sugestões “boca-a-boca” e sua difusão dentro de pequenos grupos. Portanto, a lógica de atuação destes sistemas aponta para profundos efeitos subjetivos no processo de propagação de práticas e preferências culturais. A simulação dos mecanismos de transmissão de informação “boca-a-boca” constitui-se como o fator social mais importante que desloca o valor das instâncias tradicionais de recomendação para posicionar os SR como os novos mediadores na “formação do gosto” dos usuários da Internet. Ou seja, suas estratégias de mediação tendem a transformá-los nos principais “tastemakers” na Rede. Esse argumento é inspirado na perspectiva teórica inaugurada por Gabriel Tarde (1969; [1901] 2005) - posteriormente seguida por Paul Lazarsfeld (1948; [1955] 2009) e em parte retomada, entre outros autores, por Pierre Bourdieu ([1979] 2007) – sobre a lógica social implicada nos processos de contágio de opiniões, preferências e comportamentos culturais. Ambos os autores consideram as influências pessoais transmitidas “boca-a-boca” entre pequenos grupos como o mais poderoso mecanismo de sugestão e de desencadeamento de séries imitativas no campo social. Essa abordagem sociológica considera que as operações de “transferência de gosto” ocorrem efetivamente em nível micro-social.

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Diferentes pesquisadores4 acrescentam a essa perspectiva sociológica a ideia de que a natureza das fontes de informação (pessoal ou impessoal)5 e os tipos de recomendação (personalizadas ou não-personalizadas) correspondem a variáveis que modificam o processo de influência na tomada de decisão e nas escolhas dos indivíduos. Kelman (1961) sugere que essas diferenças de modalidade afetam a percepção da mensagem pelos receptores e define diferentes graus de credibilidade e valor da informação. Significa dizer que a eficácia das recomendações varia segundo uma taxonomia que considera o entrecruzamento dessas variáveis e apresenta diferentes tipologias, conforme mostra a Tabela 1 a seguir: Tabela 1: Tipologias dos processos sociais de recomendação Tipologia A B C D E F

Fonte de Informação Pessoal Pessoal Pessoal Impessoal Impessoal Impessoal

Tipo de Recomendação Personalizada Não-personalizada Não-personalizada Não-personalizada Não-personalizada Personalizada

Tipo de Comunicação Um-para-um Um-para-um Um-para-muitos Um-para-muitos Muitos-para-muitos Muitos-para-muitos

Exemplo Sugestão de amigos Vendedores Sugestão de expertos e críticos Mídias de massa Relatórios de outros consumidores Sistemas de Recomendação

Fonte: SANTINI, 2010. Da mesma maneira, para Brown & Reingen (1987) os tipos de fontes de informação e de recomendação apresentam distintos graus de influência na tomada de decisão pelos consumidores. A partir de investigações empíricas, os autores demonstram que o “tipo de recomendação” é o primeiro indicador que determina a relevância da mensagem. A informação recebida por fontes que agregam algum conhecimento pessoal sobre o receptor (recomendação personalizada) possui um poder de influência maior nos comportamentos dos indivíduos do que as não-personalizadas. Subordinada a primeira variável, as fontes de informação pessoais tendem a ser parcialmente mais influentes do que aquelas caracterizadas como impessoais, porém não correspondem a um fator determinante em todos os casos, sendo apenas complementar (BROWN & REINGEN, 1987). Considerando os argumentos acima, se poderia pensar em uma provável hierarquia entre as tipologias de recomendação mencionadas na Tabela 1, de acordo com a variação do potencial de influência. Os resultados encontrados por Brown & Reingen (1987)

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Ver, por exemplo: Ardnt (1967); Olshavsky & Granbois (1979); Price & Feick (1984); Duhan et al., (1997); Gilly et al. (1998). 5 As fontes são consideradas pessoais quando se conhece e reconhece a pessoa que emite uma determinada informação, e impessoal quando não se pode identificar de forma precisa o emissor da mensagem.

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demonstram que o processo de sugestão interpessoal tende a ser o mais influente na determinação das práticas culturais, seguido pela recomendação mediada pelos Sistemas de Recomendação baseados na filtragem colaborativa. Esta afirmação corresponde a uma proposição arriscada, entretanto plausível em alguns casos, e suas condições de possibilidade devem ser investigadas. Muito teóricos e pesquisadores no âmbito das ciências sociais se dedicaram ao longo das últimas décadas às comparações e análises sobre a influência das recomendações do tipo A, B, C, D e E (indicadas na Tabela 1) nos processos de formação de opinião e gosto, e os modos de subjetivação implicados em cada uma delas. Entretanto, pouco se sabe sobre a influência das sugestões do tipo F - que surgem recentemente com a Internet - e como essa nova tipologia de recomendação através dos Sistemas de Recomendação impacta nas percepções, decisões, práticas e preferências culturais de seus usuários/receptores. O argumento principal que defendemos neste artigo é que as estratégias de sugestão que influenciam na formação dos gostos estão sendo atualizadas e modificadas a partir dos novos modos de mediação e usos sociais da cultura que aparecem com o desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação e sua crescente penetração na vida social. As indagações suscitadas por este novo fato social devem evitar o determinismo tecnológico, que tem como princípio fundamental extrair a qualidade da mudança cultural da natureza da tecnologia. Faz-se necessário considerar e observar as mutações ocorridas no âmbito das lógicas sociais – ou seja, em que medida as novas instâncias de mediação cultural determinam a construção de sentido e valor, ou de que maneira implicam em transformações dos fluxos de crenças e desejos no campo social. Na tentativa de incorporar os “ambientes de recomendação mediados por computador”, especialmente através dos Sistemas de Recomendação, nas agendas de investigação sobre os processos sociais de sugestão e influência dos comportamentos sociais, muitos pesquisadores dedicam-se a desenvolver esses sistemas e a analisar suas lógicas de funcionamento. O primeiro estudo sobre a influência concreta das sugestões emitidas pelos SR na tomada de decisão dos consumidores é inaugurado por Sylvain Senecal e Jaques Nantel em 2004. O resultado encontrado pelos autores indica que a recomendação através destes sistemas é mais eficaz na determinação das escolhas dos indivíduos quando comparada com outras tipologias, com exceção das sugestões transmitidas em nível interpessoal. Senecal & Nantel (2004) analisam o processo de recomendação de dois tipos diferentes de produtos classificados segundo suas qualidades de “busca” e de

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“experiência”6. Segundo Nelson (1974, p. 730), as “qualidades de busca” são identificadas quando “o consumidor pode determinar os atributos do produto através de uma inspeção antes da compra”. E as “qualidades de experiência” se referem aos bens que “não podem ser determinados antes da experimentação”, porém ao experimentar uma parte pode-se conhecer o todo. Pesquisas anteriores mostram que o tipo de produto afeta a relação dos consumidores com as fontes de recomendação. Essa diferença nos modos de percepção da informação modifica a possibilidade de influência nos processos de escolhas (BEARDEN & ETZEL, 1982; CHILDERS & RAO, 1992; KING & BALASUBRAMANIAN, 1994). Ao comparar o impacto das sugestões dos SR nas decisões dos usuários, Senecal & Nantel (2004) confirmam pesquisas anteriores e afirmam que os indivíduos são mais dependentes das recomendações quando se trata de decisões em relação aos “produtos de experiência”. Porém, conforme os próprios autores reconhecem, os resultados desta investigação são limitados a esses dois tipos de bens de consumo e somente trata dos processos de escolhas, mas não investiga seus impactos diretos nas decisões efetivas de compra e/ou aquisição. A recomendação na Internet a partir dos algoritmos dos Sistemas de Recomendação demonstra maior potencialidade de uso em situações onde a decisão do usuário é uma questão de gosto (RESNICK, 1999) e está diretamente relacionada com a recomendação de produtos culturais, que correspondem a uma terceira classe de produtos. Peltier (2007) defende que há um tipo de bem de consumo que pode ser classificado como possuindo qualidades baseadas na “crença”. Este são identificados como bens simbólicos e culturais (ex: livros, filmes, músicas etc.) cujos atributos “somente podem ser apreendidos após seu consumo integral”. Portanto, os critérios que condicionam as tomadas de decisão dos consumidores e definem as escolhas prévias ao uso são baseados na crença de seu valor. O argumento sobre a existência de uma “demanda social” por sistemas de recomendação que cumpram a função de direcionar e orientar o consumo de bens culturais enquanto “produtos de crença” é fundamentado nos dados coletados e análises realizadas em trabalho antererior (SANTINI, 2010)7 sobre o SR de música Last.fm. O número de 6

Os autores analisam diferentes fontes de informação e seu impacto na tomada de decisão dos consumidores em relação à escolha de calculadoras (“produto de busca”) e vinhos (“produto de experiência”). 7 O trabalho citado se refere à minha tese de doutorado, defendida em março de 2010 no Programa de PósGraduação em Ciência da Informação do convênio IBICT-UFF, que analisa as formas de classificação e usos sociais da música a partir dos Sistemas de Recomendação (SR). Os SR inauguram um novo modelo de mediação cultural com capacidade de identificar, de forma inédita, os hábitos individuais de escuta musical de seus participantes dentro e fora da Internet através do registro das atividades dos usuários em seus computadores e em dispositivos móveis, como MP3 Player e celular. Portanto, foram recuperadas as estatísticas reveladas pelo SR

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usuários da Last.fm (que chega a mais de 38 milhões de internautas no mundo) e sua popularidade crescente na Internet aponta para sua relevância social. O estudo mencionado acima demonstra que as práticas e preferências musicais dos usuários tendem a ser modificadas pelo uso das recomendações deste sistema. Em relação à influência dos sistemas de recomendação nas decisões de compra de música por parte de seus usuários, os números são reveladores. O relatório oficial da empresa CBS Corporation (atual controladora da Last.fm) divulgado em 2008 indica que as recomendações através da Last.fm aumentaram em 119% as vendas de CDs e downloads de canções na Amazon após ser firmada uma parceria entre as duas empresas, o que desencadeou a criação de parcerias posteriores com as duas maiores lojas de música na Internet, iTunes e 7Digital, que se afiliaram a Last.fm no mesmo ano8. A mesma tendência é verifica em relação a outros tipos de produtos culturais no âmbito da recomendação mediada por sistemas online9. Segundo Lamere & Celma (2007, pp. 12-13), 2/3 dos alugueis de filmes no site da Netflix é determinado pelo seu sistema de recomendação; no Google News a recomendação é responsável por 38% dos clicks em notícias através de seu site; e 35% dos livros vendidos na Amazon resultam de recomendações de seu sistema. Esses números reforçam a idéia de que, na medida em que é impossível avaliar uma obra ou bem simbólico antes de seu consumo integral, os usuários dependem ainda mais das recomendações para escolher e consumir “produtos de crença” - se comparados às necessidades de informação sobre os outros dois tipos de produto (de “busca” e de “experiência”). A principal implicação teórica do trabalho de Senecal & Nantel (2004) repousa na apresentação de resultados comparativos entre tipos de recomendação e seu poder de influência. Os dados da pesquisa destes autores apontam que as recomendações emitidas pelos SR são as que mais influenciam o comportamento dos usuários da Internet. Segundo este estudo, quando recomendados por estes sistemas, os produtos apresentam uma probabilidade duas vezes maior de serem selecionados do que em outras situações de

de música da Last.fm, o mais popular na Rede, cujos dados foram produzidos com ajuda de softwares que extraem dados de tal sistema. A recuperação das informações estatísticas sobre os hábitos de consumo musical dos usuários da Last.fm foi possível graças às características de seu sistema de recomendação, que disponibiliza abertamente seus metadados, licenciados para uso não-comercial, e que podem ser extraídos através de softwares de datamining criados e adaptados por terceiros - o que permitiu o desenvolvimento de um método de observação não obstrutiva sobre os rituais de classificação e as práticas musicais de seus usuários. 8 Ver: CBS CORPORATION. Press Realease CBS Corporation 1st Quarter 2008: Key Developments & Initiatives. Vol. 4, Number 7, Tuesday, April 29, 2008, p. 8. 9 Neste aspecto, deve-se considerar que os sistemas de recomendação de música atualmente possuem tecnologia mais avançada e testada do que sistemas de recomendação de outros tipos de produtos culturais, o que reforça o argumento da música como vanguarda na Internet.

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escolha e/ou compra. Essa probabilidade se mantém inclusive quando os indivíduos percebem que tais recomendações possuem menos expertise que os “especialistas humanos”. A credibilidade social das recomendações emitidas através dos SR se deve ao seu caráter colaborativo, atributo percebido por seus usuários como tão imparcial quanto as informações originadas por “relatos” de outros consumidores. Mesmo quando estes sistemas estão inseridos em um entorno comercial - ou seja, quando o modelo de negócio implicado supõe alguma forma de lucro pela venda direta ou indireta de produtos10 - esse fato não altera a propensão dos consumidores em seguir suas recomendações (SENECAL & NANTEL, 2004). A mesma tendência foi verificada em pesquisa anterior (SANTINI, 2010), em relação ao consumo de música através do Sistema de Recomendação da Last.fm11. Entretanto, conforme sugere Urban et al. (1999), a credibilidade das fontes de informação não é instantânea. A confiança dos usuários no sistema cresce a partir de múltiplas interações bem sucedidas - ou seja, depende de séries prévias de recomendações consideradas satisfatórias e relevantes por parte de seus receptores. Em um campo tão dinâmico e abundante como o consumo cultural na Internet onde ninguém pode conhecer tudo - todos os tipos de conteúdo, gêneros, artistas e obras disponíveis– vê-se operar uma crença social (que se pretende racional) que privilegia o poder das máquinas no processamento de informação em detrimento da capacidade humana de absorção e conhecimento. Essa crença é baseada na habilidade dos sistemas de “aprender” de acordo com seus usos e de gerar resultados a partir da mineração e cruzamento de todos os dados disponíveis em seu entorno. Deve-se considerar também o valor social conferido às informações sobre os outros usuários. As articulações possíveis através da base de dados dos SR prometem aglomerar os indivíduos em pequenos grupos (clusters), de acordo com as semelhanças de uso, mas sem menosprezar suas prováveis diferenças e múltiplas conexões subjetivas. Devido a essa capacidade, os SR apresentam tendências contraditórias. Por um lado estes sistemas caracterizam-se como um tipo de mediação que questiona o modelo clássico das Indústrias Culturais: são os usuários que constroem os padrões e critérios de mediação através da classificação colaborativa e a recomendação entre pares. Por outro, os Sistemas de Recomendação tendem a ser absorvidos imediatamente pelos grandes grupos

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Por exemplo, como é o caso do modelo de venda indireta encontrado no SR da Last.fm, que oferece possibilidades de compra através de terceiros, e do sistema da Amazon, modelo de negócio baseado na venda direta de livros, filmes e música aos usuários em seu próprio site. 11 Ver comentários da nota número 7.

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multimídia que atuam no mercado cultural, como de fato tem ocorrido. Grande parte dos sistemas bem sucedidos começaram como pequenas empresas de tecnologia, produtores de hardware ou start-ups. Ao obterem uma quantidade de usuários relevante e uma popularidade considerável na Internet, as empresas desenvolvedoras dos SR mais exitosas foram absorvidas, vendidas ou tornaram-se sócias de grandes conglomerados multimídia (SANTINI, 2010)12. Ao apresentar-se como um modelo emergente de mediação, disseminação e comercialização de produtos culturais na Internet, a tecnologia de recomendação constituise atualmente como o principal foco estratégico das Indústrias Culturais para orientar e administrar a demanda de conteúdos digitais e talvez como uma das saídas para resolver a contradição entre “gratuidade-pagamento” que propõe a lógica particular da Rede. Estes sistemas prometem organizar o encontro entre a oferta e a demanda segundo os padrões de consumo individuais e os gostos singulares. Assim, grandes empresas de tecnologia e conglomerados multimídia competem no processo de captação de usuários com o objetivo de encontrar a forma mais eficaz para utilizar comercialmente as técnicas de filtragem colaborativa em suas plataformas online. Dessa forma, pretendem continuar a orientar o consumo através da “produção de valor simbólico” dos produtos culturais que fabricam, recomendam, difundem e/ou comercializam.

5. Conclusão Com a penetração dos meios de comunicação de massa na vida social cotidiana, as indústrias culturais e midiáticas ganharam cada vez mais espaço no campo cultural e começaram a cumprir o papel de mediação e legitimação dos bens simbólicos e a outorgar não somente um valor social e comercial às obras e artistas, colocando-os em relação a determinado mercado, mas também a exercer o poder de eleger e proclamar a autoridade daqueles que os classificam e os julgam. Entretanto, a luta pela apropriação do “capital de consagração” no campo artísticocultural não é suficiente para manter a força de atuação dos meios de comunicação de massa. Há de se considerar sempre as lógicas sociais implicadas na produção das crenças e valores e as condições de possibilidade para o desencadeamento de processos subjetivos que criam as normas de valor e gosto. A denegação dos interesses comerciais é um requisito para a produção da crença no valor dos bens simbólicos e para a acumulação de prestígio pelos recomendadores, 12

Para mais detalhes sobre a estrutura de mercado dos sistemas de recomendação na Internet, ver: SANTINI, 2010, pp. 131-139.

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artistas e obras no circuito cultural. Isto é, as sugestões desvendadas como interessadas ou mercantis tendem a gerar uma desconfiança parcial dos receptores em relação a sua relevância e autenticidade. As mensagens declaradas como comerciais colocam em cheque tanto os esquemas classificatórios que impõem como as recomendações que sugerem. O aumento da concorrência entre as diversas empresas de comunicação e a disputa pela acumulação de capital econômico fizeram com que as fronteiras entre a “recomendação desinteressada” e a “recomendação comercial” se tornassem cada vez mais tênues e difíceis de distinguir pelos receptores. Portanto, o poder de atuação das indústrias culturais e midiáticas no processo de “produção da crença” em determinados produtos tende a diminuir na medida em que a lógica de suas sugestões-recomendações expressa uma busca calculada por benefícios econômicos. A intensificação das disputas no mercado da comunicação de massa aumenta com o surgimento e popularização das tecnologias digitais de comunicação e informação que demarcam a aurora de uma nova “virada cultural”. A Internet e os sistemas de recomendação que com ela surgem são partes cruciais neste conjunto de inovações tecnológicas. Ao mesmo tempo em que a Rede e suas plataformas de consumo cultural intensificam algumas tendências desencadeadas pelas Indústrias Culturais clássicas, modificam profundamente alguns aspectos dos processos de propagação das crenças e desejos nos bens simbólicos e de produção dos gostos culturais. A Internet cria a possibilidade de surgimento de novos padrões sociais de interação favorecendo a emergência de relações ancoradas às comunidades virtuais que viabilizam conexões fluidas baseadas em necessidades, gostos, interesses e utilidades pontuais. Este aspecto é especialmente relevante para entender os usos sociais dos sistemas de recomendação colaborativos que funcionam como uma rede social online. O compartilhamento de informações através da filtragem colaborativa intensifica e diversifica as possibilidades de influências relacionais entre seus usuários. A emergência e a popularização dos Sistemas de Recomendação apontam para o desenvolvimento de novas instâncias de mediação através da Rede que passam a concorrer nos processos de legitimação e recomendação de bens culturais e na orientação de tais mercados. As possibilidades de personalização dos fluxos de conteúdo através dos SR tendem a aumentar a crença social na relevância das informações emitidas pelo sistema e seu caráter colaborativo contribui para a atribuição de valor e credibilidade às recomendações. Com o uso dos sistemas de recomendação, é provável que a imitação generalizada de muitos-para-muitos favoreça a diferenciação dos gostos dos usuários da Internet se

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compararmos com as condições de surgimento desta variedade em uma sociedade de massa com seus meios de comunicação e propagação unilaterais. Em consonância com a “sociologia das redes” de Gabriel Tarde, é possível pensar que, em um contexto como o da Internet, a semelhança mútua e progressiva dos indivíduos não iniba sua originalidade – ao contrário, ela a favoreça e a alimente. Segundo Tarde ([1890] 1976, p. 15), “uma coisa é imitar um único homem sobre o qual se modela em tudo. Mas quando se recebe influências de cem, de mil, estes elementos se combinam em seguida e acentuam a diferença pessoal. Esse é o benefício mais nítido do funcionamento prolongado da imitação”. Disto decorre o fato de que a tecnologia de filtragem colaborativa de conteúdos opera de modo a capturar, organizar e principalmente simular a emissão de sugestões “boca-a-boca” e sua difusão dentro de pequenos grupos inseridos em uma rede global interconectada. Ou seja, mais do que amplificadores de crenças e valores - como são os meios de comunicação de massa - os SR capilarizam os fluxos de imitação-sugestão em um nível micro-social. Os Sistemas de Recomendação transformam em “agente de software” o processo social de contaminação múltipla e mútua. Portanto, a lógica de atuação destes sistemas aponta para profundos efeitos intersubjetivos nos processos de propagação social de práticas e preferências culturais. A simulação dos mecanismos de transmissão de informação “boca-a-boca” constitui-se como o fator social mais importante que posiciona os SR como os novos mediadores na “formação do gosto” dos usuários da Internet. Estes sistemas tentam articular os agenciamentos microrelacionais que se produzem intra e inter-individualmente para a orientação das práticas e gostos culturais. O importante no processo de recomendação através destes sistemas é justamente produzir diferentes usos e preferências que possam agir em conjunto no mercado. Os SR funcionam como máquinas de atuação sub-molecular que asseguram as conexões entre os diferentes fluxos de crença e desejo que colaboram simultaneamente para dinamizar o campo cultural. Através da aquisição e controle dos principais sistemas de recomendação na Internet, as indústrias culturais e midiáticas tradicionais estão tentando apropriar-se do saber dos usuários para comercializar seus produtos dentro dos novos padrões de produção de desejos, valores e crenças nos bens simbólicos que se propagam no campo social. Nesse caso, percebe-se que a diversidade de recomendadores também pode ser comercializada através de novos players que entram no mercado, e a indústria tem demonstrado capacidade para absorvê-los e transformá-los em grandes oportunidades de negócio. Uma das contribuições deste artigo repousa na apresentação de argumentos que indicam que a recomendação através destes sistemas é mais eficaz na determinação das

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escolhas dos indivíduos quando comparada com outras tipologias - com exceção das sugestões disseminadas no nível interpessoal por pessoas próximas e conhecidas, sem qualquer tipo de mediação. Entretanto, faz-se necessário o desenvolvimento de investigações futuras que, baseadas em novos dados comparativos, confirmem se as recomendações de produtos culturais através dos SR são mais influentes na formação e na modificação dos valores e gostos culturais do que aquelas emitidas pelos meios de comunicação tradicionais. Portanto, este trabalho aponta para uma agenda de pesquisa nas Ciências Sociais que analise os novos modelos de mediação cultural que se configuram na Internet e que compare as diferentes tipologias de recomendação de bens simbólicos, considerando as implicações sociais dos novos contextos de produção, mediação, disseminação e uso da informação e da cultura.

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Entre o reconhecimento e a reificação: o dilema da diversidade nas atuais Políticas Culturais Recifenses Michely Peres de Andrade1 Universidade Federal de Pernambuco

Resumo: A valorização da diversidade cultural e o reconhecimento de povos e grupos historicamente discriminados são as principais diretrizes divulgadas nas atuais políticas culturais brasileiras, articuladas pelos chamados Pontos de Cultura. Partindo da ação destes últimos na cidade do Recife, o exercício aqui proposto consiste em identificar a contradição entre essencialismo e construtivismo no ideário de diversidade cultural que orienta as políticas públicas destinadas à cultura no Brasil. Palavras-chave: Política cultural, identidade, diversidade, reconhecimento. Resumen: La valorización de la diversidad cultural y el reconocimiento de pueblos y grupos históricamente discriminados son las principales directrices presentadas en las actuales políticas culturales brasileñas, articuladas por los llamados Puntos del Cultura. A partir de la acción de estos últimos en la ciudad del Recife, el ejercicio que aquí se propone es identificar la contradicción entre essencialismo y constructivismo en el ideal de diversidad cultural que orienta las políticas públicas destinadas a la cultura en Brasil. Palabras-clave: Política cultural, identidad, diversidad, reconocimiento. Abstract: Cultural difference valuation and recognition of historically discriminated people and groups are the main guidelines disseminated in current Brazilian Cultural Policies, articulated by the called Culture Points. Starting from the action of Culture Points in the city of Recife, we intend identify the contradiction among essentialism and constructivism in the ideal of cultural difference that guides the public policies for the culture in Brazil. Keywords: Cultural policy, identity, diversity, recognition.

As políticas públicas destinadas à cultura no Brasil (1930-2000)

Em linhas gerais, as políticas públicas destinadas à cultura abarcam desde a preservação de monumentos históricos até o fomento da cinematografia, passando por diversas linguagens artísticas como as artes plásticas, o teatro, a música etc. Mas como afirma Enrique Saravia (2001), as ações públicas destinadas à cultura estão quase sempre sujeitas a linhas políticas e ideológicas, que englobam desde a antiga distinção entre cultura erudita, cultura popular e cultura de massas, até a tensão do 1

Graduada em Ciências Sociais e mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco. É professora substituta do Departamento de Ciências Sociais da mesma instituição e desenvolve sua pesquisa de doutorado sobre o papel das experiências populares em audiovisual na consolidação de espaços democráticos alternativos no Brasil.


nacional versus o cosmopolita e a ação das indústrias culturais. Frequentemente, esses são alguns dos temas que integram o conjunto de problemas a partir de cujas respostas serão feitos os investimentos e alocados os recursos. No Brasil, as primeiras tentativas de políticas culturais estiveram orientadas por uma linha ideológica bastante presente na formação dos Estados modernos, a saber, a necessidade em forjar uma identidade nacional. Mas a concepção de identidade, orientada pelo ideal de “unidade nacional”, não foi capaz de abarcar toda a pluralidade social brasileira e o Estado precisou elaborar políticas inclusivistas direcionadas às manifestações e práticas que permaneciam fora do seu projeto civilizatório e europeizante. Como nos mostra Durval Muniz de Albuquerque (2007), à medida que a sociedade brasileira se complexifica, mais diferenciadas passam a ser as demandas que o Estado recebe em relação ao apoio e reconhecimento de determinadas manifestações culturais. Somente na década de 1930 o Brasil conheceu um desenvolvimento institucional sistemático na área da cultura, com forte investimento político, simbólico e financeiro no setor. Nesse período, o debate público sobre aquilo que seria compreendido como identidade nacional possuiu fortes implicações políticas. A intervenção sistemática do Estado brasileiro na cultura desse período ocorre a partir do ideário de integração nacional, centralizando os poderes regionais e locais. Para isso, o sentimento de brasilidade se transformou em um recurso extremamente importante, cujo objetivo era reunir a pluralidade social brasileira em torno do poder central, que contou com uma intensa articulação entre o Estado, a elite e os intelectuais. A valorização da nacionalidade, na busca da construção do “homem brasileiro”, orientou as ações do governo de Getulio Vargas na área cultural, que utilizou de noções como mestiçagem e sincretismo cultural para forjar as marcas da nossa suposta identidade nacional. As políticas culturais, nesse sentido, tinham como objetivo central forjar um sentimento de brasilidade, de unidade, no lugar da celebração da diversidade de culturas, etnias e crenças. O debate sobre identidade nacional e diversidade cultural, portanto, ganha um caráter conservador na era getulista e suas políticas culturais ajudarão a fomentar o discurso de neutralização das diferenças. Essa é uma das características que estará presente também nas políticas culturais do governo militar. Durante os anos de chumbo, é desenvolvido o Conselho Federal de Cultura (CFC), que reunia diversos intelectuais com o objetivo de elaborar


uma política cultural em nível nacional. A cultura popular, nesse contexto, passa a ser concebida como um elemento central da mitologia nacionalista verde-amarelo (Barbalho, 2007). Mais uma vez, o lema da miscigenação servirá de formação discursiva na construção de um ideal de identidade nacional, pautada pelo encontro harmônico de culturas, de um Brasil unificado, sem contradições. Nas políticas culturais administradas pelo governo militar havia uma tendência em essencializar as noções de “identidade cultural” e “cultura popular”, que deveriam preservar, segundo os seus mentores, as seguintes características: originalidade, genuinidade, tradição, enraizamento, vocação, perenidade, e, sobretudo, “consciência nacional” (Idem). Outro elemento importante a ser enfatizado diz respeito ao processo de “modernização da cultura” operacionalizada pelo governo militar nos anos de 1970. Como nos informa Rubim (2007), se até 1968, mais ou menos, a produção cultural predominante vinha do circuito escolar-universitário, após esse período, a produção cultural será intensamente midiatizada e o governo possuía motivos políticos e econômicos para isso. Segundo o autor, a partir desse período, a diversidade cultural brasileira passa a ser administrada pela indústria cultural e pelos meios de comunicação, setor privilegiado na agenda das políticas culturais da época. Curiosamente, os mesmos meios conduzirão, logo em seguida, o processo de redemocratização do país, mas serão pouco atuantes nas exigências de uma política pública direcionada à produção e ao consumo cultural. Essa falta de iniciativas públicas será reforçada durante os governos de Fernando Collor e de Fernando Henrique Cardoso, que marcados pela euforia neoliberal, tornarão as políticas culturais sujeitas às leis do mercado e de incentivo fiscal. Embora os temas da brasilidade e da segurança nacional não fossem questões centrais na agenda política do governo FHC, jargões como “identidade nacional” “diversidade cultural” estiveram presentes nas medidas de incentivo e formação de um mercado nacional e internacional, que fossem capazes de consumir a “diversidade de bens culturais” produzidos no Brasil. Nesse período, a parceria entre Estado e mercado reforça o papel da cultura como mais um setor de investimento para o país, geração de empregos e oportunidades de lucro. Em contraposição a essa orientação política, no inicio do século XXI percebese uma renovada valorização da diversidade cultural, resultante de uma série de inquietações surgidas na esteira da globalização da economia. A maior, entre elas, diz respeito ao argumento de entidades internacionais sobre a suposta homogeneização


da cultura, ocasionada pela hegemonia econômica norte-americana. Aos poucos, esse debate ganhará repercussão mundial e em 2005 será reforçado pela Convenção Internacional sobre a Proteção e Promoção da Diversidade Cultural, promovida pela UNESCO, na cidade de Paris, que revisará os rumos do trabalho iniciado em 1982, com a Conferência Mundial sobre Políticas Culturais. O evento trará uma série de implicações para as políticas públicas destinadas à cultura no governo Lula, que conduzirão a criação do Sistema Nacional de Cultura e a elaboração do Plano Nacional de Cultura. O objetivo do Sistema Nacional de Cultura é definir junto aos estados e municípios, representados pelos respectivos secretários de cultura, uma agenda para coordenar planos e ações públicas para a cultura em todo o país. A primeira iniciativa do Ministério da Cultura, nesse sentido, foi possibilitar uma discussão ampla com diversos setores da sociedade civil, ocorrida na ocasião de seminários abertos ao público em todo o país. Com essa medida, a intenção foi conhecer as demandas sociais e consolidar, a partir dessas demandas, o Plano Nacional de Cultura, que terá validade por dez anos, fator que o consolida como um plano de Estado e não um plano de governo. É importante enfatizar que as emendas que constituem o Plano Nacional de Cultura são resultantes do compromisso que o anterior ministro da cultura, Gilberto Gil, assumiu com a UNESCO na já mencionada Convenção sobre a proteção e a promoção da diversidade das expressões culturais. Elegendo a cultura como um dos principais indicadores de desenvolvimento social e econômico, a UNESCO tem promovido uma campanha de valorização da “diversidade cultural” em todo o mundo. Dentre os diversos temas debatidos no evento, relativos à “valorização da diversidade cultural”, um aspecto se destaca: a importância da cultura como locus de reconhecimento e empoderamento de comunidades e grupos em situação de vulnerabilidade e de exclusão social.

As atuais políticas públicas destinadas à cultura no Brasil e na capital pernambucana Convergindo com os valores que permeiam o debate internacional sobre a questão da diversidade cultural, percebe-se que a noção de identidade nacional nas atuais políticas culturais brasileiras se pluralizou. Nas diretrizes do Plano Nacional de Cultura, as antigas referências a uma “identidade nacional” são substituídas por jargões que exaltam a idéia de “diversos brasis”. Além disso, as políticas culturais


atuais ressaltam a preocupação em revelar a pluralidade cultural brasileira, apontando para a incorporação de manifestações culturais historicamente excluídas. Sob esse aspecto, desde os primeiros meses da elaboração e do processo de tramitação do PNC, os recifenses se mostraram bastantes receptivos às suas diretrizes. As práticas discursivas que tem publicizado o Recife como a “capital multicultural do Brasil”, em processo de sedimentação já nos primeiros anos de mandato do ex-prefeito João Paulo (PT), a partir de 2001, contou com uma forte atuação da sua secretaria de cultura, produtores e artistas atentos ao papel central que a produção cultural assumia nas sociedades contemporâneas. Porém, somente no período de 2004-2008, as políticas públicas destinadas à cultura ganharam maior sistematicidade, com a efetivação do Programa Recife Multicultural e a elaboração do Plano Municipal de Cultura, que assim como o PNC, passou a entrar em vigor em 2009, com validade prevista até 2019. Nesse contexto, governo municipal e governo federal passaram a atuar conjuntamente na aplicação de projetos em comum na cidade e na própria elaboração daquilo que viria a ser uma política cultural em nível nacional. As ações voltadas ao cumprimento dos objetivos do Plano Nacional de Cultura em nível local são articuladas através dos chamados Pontos de cultura, que consistem em ação prioritária e o maior ponto de articulações das demais atividades do Programa Cultura Viva. Segundo o Ministério da Cultura: “Os Pontos de Cultura São entidades reconhecidas e apoiadas financeira e institucionalmente pelo Ministro da Cultura que desenvolvem ações de impacto sócio-cultural em suas comunidades. Somam, em abril de 2010, 2,5 mil em 1122 cidades brasileiras, atuando em redes sociais, estéticas e políticas. O Ponto de Cultura não tem um modelo único, nem de instalações físicas, nem de programação ou atividade. Um aspecto comum a todos é a transversalidade da cultura e a gestão compartilhada entre poder público e comunidade. Pode ser instalado em uma casa, ou em um grande centro cultural. A partir desse Ponto, desencadeia-se um processo orgânico agregando novos agentes e parceiros e identificando novos pontos de apoio: a escola mais próxima, o salão da igreja, a sede da sociedade amigos do bairro, ou mesmo a garagem de algum voluntário. Quando firmado o convênio com o MinC, o Ponto de Cultura recebe a quantia de R$ 185 mil, em cinco parcelas semestrais, para investir conforme projeto apresentado. Parte do incentivo recebido na primeira parcela, no valor mínimo de R$ 20 mil, para aquisição de equipamento multimídia em software livre (os programas serão oferecidos pela coordenação), composto por microcomputador, mini-estúdio para gravar CD, câmera digital, ilha de edição e o que mais for importante para o Ponto de Cultura” (Minc, 2010).


Os Pontos de cultura são responsáveis por “ampliar a produção e circulação de produtos culturais alternativos, visando públicos que dificilmente teriam acesso a meios formais de produção e difusão, formação específica e oportunidades de atuação nos campos da comunicação e das artes” (Minc, 2008). Há aproximadamente 2.000 Pontos de Cultura espalhados pelo país; dentre estes, 118 estão localizados no estado de Pernambuco, após o processo de estadualização do programa. Todos eles já atuavam como coletivos artísticos, produtoras, organizações não governamentais ou eram simplesmente manifestações populares locais. Em linhas gerais, são entidades que mantinham atividades na área da produção cultural e foram implementados como Pontos de cultura pelo Minc e pela Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (FUNDARPE), nos últimos seis anos. De acordo com as áreas de atuação apresentadas pelas entidades proponentes e divulgadas pela FUNDARPE, há sete matrizes gerais que encabeçam a atuação dos pontos de cultura e os trabalhos desenvolvidos pelos mesmos nas diversas comunidades. São elas: a indígena; a africana; a quilombola (como desdobramento da africana); a sociocultural com ênfase nas questões de gênero; a sociocultural com ênfase na inclusão social de jovens e crianças; a matriz da cultura popular e a matriz estética. De acordo com um dos textos oferecidos pela Secretaria de Cultura, as políticas culturais recifenses devem: “Reconhecer, valorizar, dar visibilidade e apoiar as múltiplas expressões culturais, contemplando as diversas manifestações: eruditas e populares; profissionais e experimentais; consagradas e emergentes; e, reconhecendo as dinâmicas inovadoras, também aquelas gestadas nos diferentes movimentos sociais – comunitários, religiosos, étnicos, de gênero, entre outros” (Recife, 2008).

Embora haja certa pluralidade das matrizes trabalhadas em Pernambuco e, especificamente, em Recife, a maioria dos Pontos de Cultura desenvolve trabalhos na área da educação e da inclusão de jovens que vivem em situação de vulnerabilidade, confirmando o principal papel que a cultura tem adquirido no interior das políticas culturais brasileiras. Como sugere outro documento: “Devemos estimular, através da cultura, o exercício da cidadania e da auto-estima dos recifenses, especialmente dando aos jovens uma perspectiva de futuro com dignidade. Os esforços em direção a uma “valorização da diversidade cultural”, por sua vez, deve estar relacionada umbilicalmente à noção de “multiculturalidade” (Recife, 2008)”.


Um dos aspectos recorrentes nos diversos discursos proferidos por representantes locais, artistas e membros de Pontos de cultura diz respeito ao caráter privilegiado que as políticas de reconhecimento têm assumido no combate à desigualdade social. Em contrapartida, diversos autores têm chamado a atenção para o perigo da reificação que as políticas de identidade podem gerar. Entre o reconhecimento e a reificação: quem precisa de identidade?

Segundo Andrea Semprini (1999), mundialmente, o multiculturalismo tem se constituído numa das matrizes mais definidoras das políticas públicas destinadas à cultura. Na sua perspectiva, essa matriz possui duas orientações gerais. A primeira delas é política, limitada às reivindicações das minorias com o objetivo de conquistar direitos sociais e / ou políticos específicos dentro de um Estado nacional. A segunda orientação, por sua vez, é cultural, concentrada nas reivindicações de grupos que não têm necessariamente uma base objetivamente étnica, política ou nacional. São grupos ou movimentos sociais, estruturados em torno de um sistema de valores comuns, de um sentimento de identidade ou pertença coletiva, ou mesmo de uma experiência de marginalização (Idem). No caso das políticas culturais recifenses, a segunda dimensão parece ser a mais privilegiada. Essa distinção, porém, demonstra uma polaridade entre cultura e política, numa época em que os dois campos sociais estão cada vez mais imbricados, transformando-se em dimensões híbridas nas sociedades complexas. Esse argumento é contraposto à teoria política clássica, que afirmou, durante longo tempo, que os movimentos sociais, as práticas cotidianas e as expressões culturais e artísticas, de maneira geral, desempenhavam um papel secundário nos processos de negociação e participação política. A teoria política clássica restringiu suas análises, portanto, às instituições reconhecidas como espaços “eminentemente políticos”, tais como partidos e sindicados. Por outro lado, muitos dos autores que têm se dedicado ao estudo dos movimentos sociais na contemporaneidade afirmam que nem a cultura, nem a política devem ser analisadas como esferas autônomas e separadas, observando o potencial das políticas culturais para a promoção da mudança social.2 As políticas culturais

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Ver os trabalhos de MELUCCI, Alberto. A invenção do presente: movimentos sociais nas sociedades complexas, Petrópolis, Editora Vozes, 2001; ALVAREZ, Sonia, DAGNINO, Evelina e ESCOBAR, Arturo (Orgs.) Cultura e Política nos Movimentos Sociais Latino-Americanos: Novas Leituras, Belo


observadas por esses autores são aquelas que emergem do interior dos movimentos sociais e não do Estado, o que redefine o próprio conceito de política cultural. As políticas culturais, segundo autores como Ernesto Laclau (1983; 2006), Chantal Mouffe (2003), Alberto Melucci (2001; 2005) e Evelina Dagnino (2000), devem ser definidas como articulações discursivas híbridas que mostram contrastes significativos em relação às culturas dominantes. Num sentido amplo, referem-se à política cultural quando o cultural torna-se fato político. Tal processo fez ruir a visão do “fazer política” como um espaço fechado e homogêneo. Na esteira dessas re-significações, vimos emergir a noção de “redes” e “teias”, ou seja, redes interpessoais da vida cotidiana que sustentam os movimentos sociais ao longo dos fluxos e refluxos de mobilização. Muitas vezes são bases afetivas, laços familiares, comunitários, étnicos, entre outros, que dão força para determinados movimentos sociais contemporâneos; a exemplo dos Pontos de cultura. Alguns dos autores citados traduzem locais aparentemente “apolíticos”, tais como, bancas de mercado público, bares, pátios e manifestações culturais, como espaços que contribuem para a reelaboração das crenças e práticas culturais locais; além de serem lugares importantes para a discussão e mobilização. Esses lugares são terrenos férteis para repensar a política, para proliferar espaços públicos alternativos, levando as pessoas para as ruas. Tal argumento sugere que a proliferação de públicos alternativos dos movimentos sociais, configurados a partir de redes e teias políticocomunicacionais, é positiva para a democracia e para a luta por reconhecimento político de grupos marginalizados. Em contrapartida, no texto do Plano Municipal de Cultura do Recife, lamenta-se o fato das manifestações culturais ainda serem concebidas como secundárias na vida social. No lugar do apelo político, a economia é o elemento chave da argumentação: “A maior barreira para o desenvolvimento da economia da cultura na cidade do Recife continua sendo a visão limitada que grande parte dos atores da política e da economia local tem da cultura, vendo apenas o seu papel simbólico, dando, ainda, pouca importância à sua dimensão econômica”. (Recife, 2008, p. 42)

Embora o discurso demonstre uma crescente instrumentalização da cultura na sua forma neoliberal, os Pontos de Cultura e as políticas públicas atuais têm dado novos significados às interpretações culturais dominantes, desafiando práticas

Horizonte, Editora UFMG, 2000 e LACLAU, Ernesto. Os Novos Movimentos Sociais e a Pluralidade do Social, CEDLA (Centro de Documentação Latino-Americano), Amsterdã, Outubro de 1983.


estabelecidas e re-significando noções predominantes de cidadania e democracia. No entanto, precisamos analisar os discursos da diversidade e da multiculturalidade que orientam os Pontos de cultura, questionando-nos se além de exigirem inclusão, tais programas realizam contestações culturais e uma real política da diferença. Afirmo isto porque em contraposição ao discurso da diversidade, que muitas vezes corrobora com uma visão essencialista de identidade cultural, a política da diferença é marcada pela necessidade de reconhecimento do Outro, do caráter antagônico que marca as relações entre as diferenças e a elaboração de práticas que levem em consideração o conflito. De acordo com Bhabha (2005), Costa (2006) e Hall (2006), enquanto a diversidade é dada, a diferença é construída no processo mesmo de sua manifestação. Ela não seria uma entidade ou expressão de um estoque cultural acumulado e sim um fluxo de representações, articuladas ad hoc, em contraposição à idéia de identidades totalizantes, puras e essencialistas. Enquanto as noções de “diversidade cultural” e “identidade”, como foram expostas no primeiro tópico deste trabalho, podem estar a serviço de políticas integralistas, cuja referência a um centro continue existindo, a análise da diferença cultural e da identificação propõe uma idéia de sujeito dialógico e transferencial à maneira da psicanálise. “Ele é constituído através do Outro, o que sugere que a agencia da identificação nunca é pura ou holística. As designações da diferença cultural interpelam formas de identificação que são sempre incompletas” (Bhabha, 2005, p. 228). O eu dialógico é empregado para mostrar como a identidade de um indivíduo ou grupo vai se constituindo pelo contato com o Outro, através de uma troca contínua que permite ao self estruturar-se e definir-se pela comparação e pela diferença (Hall, 2006, p.101). Nesse sentido, a valorização da diferença é importante porque permite ao individuo ou grupo “distanciar-se” de sua identidade, colocá-la em jogo. Retomando as análises sobre a atuação dos Pontos de cultura em Recife, observa-se que os projetos que trabalham com a inclusão e a formação cultural de jovens possuem maior representatividade numérica em relação àquelas que trabalham com a problemática do reconhecimento étnico e do “resgate das raízes populares”. Entrementes, sob o ponto de vista qualitativo, jargões como “resgate da cultura popular” e “valorização das origens étnicas” são os mais recorrentes nas práticas discursivas das políticas culturais pernambucanas, em especial, na capital.


Um dos conflitos mais comuns que encontramos no projeto Recife Multicultural, por exemplo, diz respeito ao dilema essencialismo versus construtivismo, isto é, a contradição entre o discurso que reforça o ideário de busca dos traços culturais “perdidos” pela urbanização e modernização e a base epistemológica construtivista, que percebe as identidades como construídas e negociadas num processo contínuo. Com a finalidade de unificar a “comunidade pernambucana” e forjar uma identidade baseada, sobretudo, na idéia de tradição das manifestações populares, noções como “raiz cultural” e “resgate cultural” são freqüentemente utilizados em prol da legitimação de um comportamento “tipicamente pernambucano” ou “tipicamente popular”, características que se contrapõem à lógica da política da diferença. Nesse suposto processo de negociação identitária, onde elementos como originalidade, tradição e enraizamento são os aspectos mais privilegiados, tal discurso pode gerar efeitos contrários, contribuindo para a reprodução de estereótipos e reificações identitárias. Autores como Nancy Fraser (2002) percebem que a proeminência da cultura sobre a política pode gerar efeitos negativos sobre as perspectivas de justiça social. Ela identifica dois problemas importantes nas políticas culturais atuais: o problema da “substituição” e o da “reificação”. Na perspectiva de Fraser, a justiça social deve ser resultante de um processo bi-focal, ou seja, que privilegie concomitantemente a política do reconhecimento e uma política de redistribuição. Segundo o seu diagnóstico, parece que o centro de gravidade foi transferido da redistribuição para o reconhecimento, devido à supervalorização da cultura em detrimento da economia e da política. Sob esse ponto de vista, as atuais lutas por reconhecimento não contribuem necessariamente para complementar e aprofundar as lutas por redistribuição igualitária. Ao contrário, tais ações podem produzir um efeito inverso no contexto de um neoliberalismo em ascensão, ou seja, pode contribuir para deslocar ou ofuscar as necessidades por redistribuição. Para Fraser, estaríamos trocando um paradigma truncado por outro, quer dizer, um economicismo por um culturalismo e a esse fenômeno ela denomina de problema da substituição (Idem). O outro problema identificado por Fraser corresponde à reificação3, que emerge da intensa “revalorização identitária”, trabalhada por diversos grupos que

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Essa problemática foi denominada por Hobsbawn de “a invenção das tradições” enquanto Freud a diagnosticou como “o narcisismo das pequenas diferenças”, In: HALL, Stuart, “A questão multicultural”, já citado anteriormente.


lutam por reconhecimento. A autora considera que a centralidade das políticas culturais pode contribuir para a reificação de identidades sociais e fomentar um comunitarismo repressivo. Nestes casos, as lutas por reconhecimento não fomentam a interação e o respeito entre as diferenças em contextos cada vez mais pluralistas, mas tendem antes a encorajar o separatismo e a formação de enclaves grupais (2002). As políticas de identidade, na perspectiva da autora, colaboram para um falso reconhecimento. Em primeiro lugar, porque tende a “reificar as identidades de grupo e a ocultar eixos entrecruzados de subordinação”. Conseqüentemente, pode ajudar a “reciclar estereótipos relativos a grupos, ao mesmo tempo em que fomenta o separatismo e o comunitarismo repressivo”. Além disso, “o modelo identitário trata o falso reconhecimento como um mal cultural independente e, como conseqüência, oculta as suas ligações com a má distribuição, impedindo assim os esforços para combater simultaneamente ambos os aspectos da injustiça” (FRASER, 2001, p. 253). Portanto, ela conclui afirmando que na medida em que a ênfase no reconhecimento está levando a uma substituição das políticas de redistribuição, ele pode colaborar efetivamente para a perpetuação da desigualdade econômica. Cautela ou paranóia? Somente uma análise que possa mensurar os efeitos das políticas de reconhecimento sobre as condições materiais dos indivíduos pode responder. Mas como uma pesquisa pode mensurar os efeitos positivos ou negativos das políticas de reconhecimento colocadas em prática pelas atuais políticas culturais? Fraser propõe examinar a relação entre reconhecimento e redistribuição, teorizando sobre o modo pelo qual desigualdade econômica e desrespeito cultural estão muitas vezes entrelaçados e apoiados um ao outro. Segundo a autora, injustiça econômica e desrespeito simbólico estão imbricados dialeticamente. A sua sugestão é extremamente pertinente para pensarmos os limites das políticas de reconhecimento e as imbricações entre cultura e política, cultura e economia nas sociedades periféricas. Se, como afirmamos anteriormente, não podemos mais conceber cultura e política como esferas separadas e autônomas, devido às imbricações que ambas têm sofrido na contemporaneidade, elas também não podem ser desvinculadas, quando a problemática diz respeito à redistribuição econômica. E isso não significa utilizar a cultura como mero recurso orientado para o desenvolvimento do mercado de trabalho, criando novas profissões e postos de trabalho a partir das políticas culturais. Refletindo

sobre

essas

questões,

Fraser

distingue

as

políticas

de

transformação em contraposição às políticas de afirmação. Enquanto estas são


remédios voltados para a correção de resultados indesejáveis de arranjos sociais, sem perturbar o arcabouço que os gera, as primeiras são orientadas para a correção de resultados indesejáveis precisamente pela reestruturação do arcabouço genérico que os produz. Segundo Fraser, remédios afirmativos para injustiças culturais são altamente associados ao que ela chama de “multiculturalismo dominante”: “Esse tipo de multiculturalismo propõe reparar o desrespeito por meio da reavaliação das identidades injustamente desvalorizadas de grupos, enquanto deixa intacto tanto o conteúdo dessas identidades quanto as diferenciações de grupo que as embasam. Remédios transformativos, em contraste, são associados à desconstrução. Eles reparariam o desrespeito por meio da transformação da estrutura cultural-valorativa subjacente. Pela desestabilização das identidades e diferenciações de grupos existentes, esses remédios não iriam apenas elevar a auto-estima dos integrantes dos grupos atualmente desrespeitados, mas mudariam a percepção de todos sobre a individualidade” (2001, p. 266)

A desconstrução se opõe ao tipo de cristalização de diferenças, normalmente, presentes nos discursos do “resgate cultural”. Estes discursos podem contribuir para o problema da reificação, identificado pela autora.

Os remédios transformativos, ao

contrário, reduzem a desigualdade social sem criar classes ou grupos estigmatizados de pessoas vulneráveis, percebidas como beneficiárias de vantagens especiais; uma crítica bastante comum entre grupos e artistas não beneficiados pelos recursos públicos destinados à cultura na capital pernambucana. Finalizando, gostaria de sugerir que a atuação dos Pontos de cultura e das políticas culturais, de uma maneira geral, precisa ser analisada com maior sistematicidade. Para isso, deixaremos as considerações de Fraser como uma das pistas possíveis para o questionamento acerca dos discursos da diversidade cultural em circulação na sociedade civil, que ao invés de desestabilizar e desconstruir identidades reificadas, pode contribuir para a sua estigmatização em períodos de intolerância ou indiferença.

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DOCUMENTOS CONSULTADOS NA INTERNET: “Dez chaves para entender a Convenção Internacional sobre a Proteção e Promoção da Diversidade Cultural”. Disponível em http://www.cultura.gov.br/pnc. “Caderno de diretrizes gerais para o Plano Nacional de Cultura”. Disponível em http://www.cultura.gov.br/pnc. “Programa Mais Cultura”. Disponível em http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/crianca-eadolescente/politicas-publicas-1/Programamaiscultura. “Plano Municipal de Cultura”. Secretaria de Cultura e Conselho Municipal de Política Cultural da cidade do Recife. Disponível em http://www.recife.pe.gov.br.


As influências da Política Nacional de Cultura na criação do Núcleo de Arte Contemporânea da Universidade Federal da Paraíba no final dos anos 701

Fabricia Cabral de Lira Jordão2 Universidade de São Paulo (ECA-USP)

Resumo: este artigo demonstra a influência da Política Nacional de Cultura na criação do Núcleo de Arte Contemporânea da Universidade Federal da Paraíba em 1978. Também evidência a importância das universidades federais, num momento em que o país se prepara para a abertura política, na implementação das políticas públicas de cultura durante o governo militar de Ernesto Geisel. Palavras-chave: NAC/UFPB, Política Nacional de Cultura, FUNARTE, Universidade Federal da Paraíba. Resumen: el artículo demostra la influencia de la Politica Nacional de Cultura en la creación del Centro de Arte Contemporáneo de la Universidad Federal de Paraiba en 1978. También destaca la importancia de las universidades federales en un momento en el país se prepara para la apertura politica, para la aplicación de las políticas públicas de cultura durante el gobierno militar de Ernesto Geisel. Palabras-clave: NAC/UFPB, Politica Nacional de Cultura, FUNARTE, Universidad Federal de Paraiba. Abstract: this article demonstrate the influence of the National Policy of Culture in the creation of the Center for Contemporary Art at the Federal University of Paraiba in 1978. It also highlights the importance of federal universities on implementation of public policies on culture during the military government of Ernesto Geisel. Key words: NAC/UFPB, National Policy of Culture, FUNARTE, Federal University of Paraiba. Introdução

O Núcleo de Arte Contemporânea foi fundado pela Universidade Federal da Paraíba a partir de convênio estabelecido com a Fundação Nacional de Arte no final da década de 1970. Podemos inserir sua criação num processo maior de transformações que vinha ocorrendo em diversos setores no Brasil durante a gestão do governo Geisel em decorrência do processo de abertura política do país após 14 anos de ditadura militar e num 1

Este texto é um excerto do estudo "O Núcleo de Arte Contemporânea da Universidade Federal da Paraíba: considerações iniciais" que em novembro de 2010 foi premiado na primeira edição do prêmio “Estudos e Pesquisas sobre arte e economia da arte no Brasil” do Programa Brasil Arte Contemporânea da Fundação Bienal de São Paulo. 2 Atualmente, como aluna de pós-graduação da ECA-USP, desenvolve pesquisa em torno da atuação do NAC/UFPB no período de 1978 a 1985. Paralelo às atividades acadêmicas, desenvolve trabalhos relacionados com a formação continuada de professores de artes visuais, coordenação em projetos educativos, elaboração de materiais didáticos e produção de projetos culturais. Possui artigos publicados em revistas e anais de eventos da área de Artes Visuais


contexto em que a Cultura, de um modo geral, passou a representava um campo estratégico para o governo militar, que desenvolve uma política específica para esse setor, a Política Nacional de Cultura, e cria, dentre outros órgãos, a Funarte. Portanto, para compreendermos a criação do NAC devemos realizar uma reflexão de ordem ontológica que nos remeta ao momento de sua fundação e ao contexto histórico e político do qual emerge. Para tanto, é de fundamental importância refletir sobre as questões que motivaram a criação de uma instituição dessa natureza pela Universidade Federal da Paraíba na cidade de João Pessoa em 1978, bem como refletir sobre possíveis causas para o sistemático declínio de suas atividades a partir de 1982. Nesse sentido, defende-se que o NAC/UFPB foi criado para atender uma demanda do governo militar, uma vez que sua criação estava em completa consonância com as orientações desenvolvidas pelo Ministério da Educação e Cultura para as Universidades brasileiras, sendo inclusive subsidiado financeiramente por um órgão federal, a Funarte. Política Nacional de Cultura, FUNARTE e a Universidade Federal da Paraíba

Embora a questão da cultura estivesse presente nos discursos e pronunciamentos oficiais desde meados da década de 19303, foi apenas no governo de Ernesto Geisel (19741978) que passou a ocupar um lugar de destaque entre as ações governamentais (MICELI, 1984). Em meados da década de 1970, através do ministério da Educação e Cultura (MEC) – a cargo do então ministro Ney Braga – foi desenvolvida uma política específica para a área cultural: a Política Nacional de Cultura (PNC). O lançamento da PNC representou a primeira ação sistemática para a criação de uma política cultural que legitima a intervenção estatal nessa área. Nessa direção o documento contendo as diretrizes da PNC deixa claro que o Estado, através de sua política de cultura, apenas “responde a uma exigência prevista na constituição4” e com isso além de fornecer ao governo “instrumentos de controle e promoção dos organismos culturais” (SILVA, 2001, p. 109), procura adequar a ação cultural aos objetivos políticos do regime militar, que buscava “promover uma reorganização da sociedade baseada na construção de um consenso em torno de valores e visões de mundo compatíveis com os ideais do regime” (SILVA, 2001, p. 12).

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Em 1938, durante o Governo Vargas foi lançado o Conselho Nacional de Cultura – CNC. No entanto, este conselho limitou-se a um tímido papel supletivo, não correspondendo na prática, inclusive em suas instalações físicas, a sua ambiciosa denominação. Para questão da política cultural no Estado Novo ver Skidmore, Thomas E. Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco, 1930-1964. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. 4 Constituição Federal de 1969 (outorgada em 17/10/69): Artigo 180, Artigo 39 do Decreto Lei nº 200 de 25/02/1967 e Decreto Lei nº74 de 21/11/1966.


Nesse contexto, a intervenção do Estado no setor cultural, tinha “um caráter pedagógico: visava educar o povo” (SILVA, 2001, p. 133) através da promoção de um consenso em torno dos valores e ideais propostos pelo regime. Conseqüentemente, nesse processo, os órgãos educacionais, sobretudo as universidades, como um dos principais agentes na formação da intelectualidade de esquerda, tinham um papel fundamental. Desse modo, a fim de viabilizar a execução de tal objetivo, foi estabelecido um sistema de cooperação entre as Universidades e os demais órgãos e instituições que compunham o MEC5, assim como outros ministérios, órgãos e instituições federais. Essa ação integradora, segundo Sérgio Miceli, foi a única vez na história republicana que o governo formalizou um conjunto de diretrizes para orientar suas atividades na área cultural, prevendo ainda modalidades de colaboração entre órgãos federais e de outros ministérios [...], com secretarias estaduais e municipais de cultura, universidades, fundações culturais e instituições privadas (MICELI, 1984, p. 54).

Nesse sistema de cooperação cabia às Universidades, promover estudos e pesquisas para levantamento de acervos e documentações artísticas; construir centros de documentação iconográfica e de reprografia dos acervos e manifestações culturais de suas áreas; criar cursos e núcleos de extensão nas diversas áreas da cultura; promover cursos de formação universitária especializada para a profissionalização de produtores e equipes técnicas (BRASIL, 1975, p. 40-42). No caso da UFPB foram criados o Núcleo de Arte Contemporânea, o Núcleo de Produção e Pesquisa da Cultura Popular, o Núcleo de Teatro Universitário e o Núcleo de Documentação Cinematográfica. Desse modo, podemos perceber como a criação do Núcleo de Arte Contemporânea estava em completa consonância com as orientações do MEC e da Política Nacional de Cultura para as universidades. Para viabilizar o estabelecimento desses núcleos voltados para arte e cultura nas universidades federais, entra em cena um importante agente: a Fundação Nacional de Arte. Criada em dezembro de 1975, a Funarte seria o “instrumento da política cultural da gestão Ney Braga” (SILVA, 2001, p. 110). Como braço executivo da Política Nacional de Cultura, deveria atuar em duas frentes: na viabilização de projetos próprios e dos projetos culturais e artísticos vindos de todo país (BOTELHO, 2000, p. 71). Deste modo deveria, simultaneamente, democratizar o acesso a cultura e ampliar o raio de atuação e influência do Estado nas diversas regiões do país através de parcerias com órgãos públicos, instituições municipais, estaduais e federais (BOTELHO, 2000). 5

Até 1953 tínhamos o Ministério da Educação e Saúde. Com a autonomia dada à área da Saúde, surge em 1953 o Ministério da Educação e Cultura que assim permanece até 1985, quando se desvincula da Educação e passa a compor um Ministério independente.


A forma encontrada pela Funarte para organizar a relação com as universidades foi o “Projeto Universidade”, que segundo Botelho trabalhava basicamente com a área de extensão cultural das universidades, com o objetivo de auxiliá-las a se tornarem pólos irradiadores de cultura para a comunidade, através da promoção de atividades artísticas não eventuais, estimulando a participação do corpo discente, de forma a constituir um calendário anual e permanente (BOTELHO, 2000, p.139-140).

O PU foi uma tentativa da Funarte de assumir o gerenciamento de uma linha de apoio a projetos integrados, atendendo a uma demanda que envolvia mais de uma forma de manifestação artística. Foi através desse projeto que o NAC/UFPB foi viabilizado e que a Funarte financiou programas de incentivo e preservação às manifestações artísticas propostos por universidades em todo país, principalmente em áreas distantes do raio de ação do governo como Nordeste, Centro-Oeste e Norte6. (BOTELHO, 2000). Com relação à parceria UFPB/Funarte, Lynaldo Albuquerque, reitor da UFPB na ocasião, aponta A Funarte, na ausência do Ministério da Cultura, era a instituição que planejava e executava as ações culturais do Governo Federal, coordenando, inclusive, institutos importantes como o do Folclore, Música e Artes Plásticas. As universidades eram identificadas pela Funarte como parceiras naturais dessas ações nos Estados. A Secretaria de Estado da Educação e da Cultura, como as das fundações culturais, completavam o quadro de parceiros da Funarte. A UFPB, com sede e vontade de fazer, encontrou nos dirigentes da Funarte uma boa receptividade para seus projetos, principalmente contou o com o apoio do Dr. Roberto Parreira, Presidente do Órgão, e do professor Bráulio Nascimento, paraibano dirigindo o Instituto Nacional de Folclore [...] (ALBUQUERQUE, 2010).

Quando perguntado se as políticas e orientações do MEC/PNC influenciaram sua decisão de criar núcleos de extensão voltados para a área cultural na UFPB, Lynaldo Cavalcanti afirma: Quanto as ações, sim; quanto ao modelo institucional, não. O MEC estava empenhado em desenvolver melhor seu papel no braço cultural [...], privilegiou as universidades com elos de pesquisa e ensino na área cultural. Isso, evidentemente, que influenciou o Reitorado a adotar uma política mais aguerrida na área cultural, valorizando a pesquisa, a promoção dos produtores e dos produtos, bem como evidenciando a cultura popular com a cara nordestina que ela, aqui, naturalmente tinha (ALBUQUERQUE, 2010).

É justamente no modelo institucional que reside todo o diferencial do NAC/UFPB. Modelo esse que foi favorecido tanto por uma conjuntura macro política – com o afrouxamento da repressão, o subsídio financeiro da Funarte, o fato das artes plásticas não 6

Conforme Botelho (2000, p. 168) um dos maiores desafios da Funarte era incorporar as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste definidas como prioritárias pelo MEC, já que “conseguir aumentar a presença de projetos das regiões mais carentes significa, aqui, ampliar a presença nacional da Funarte para além de critérios geográficos, dando-lhe uma dimensão sócio-cultural”.


ter a mesma popularidade da música ou do teatro e conseqüentemente não estar no foco dos agentes da repressão – como pelos interesses pessoais do então reitor Lynaldo Albuquerque e pelas presenças do crítico de arte Paulo Sérgio Duarte e do artista Antonio Dias. Nessa direção, se por um lado o NAC/UFPB surge a partir de uma demanda do governo militar, por outro a presença de Lynaldo a frente do reitorado da UFPB apresenta uma série de questões importantes e decisivas para o surgimento e o modelo institucional adotado pelo NAC/UFPB. Nesse sentido, é importante destacar que Cavalcanti havia passado os quatro anos que antecederam o seu reitorado trabalhando como diretor adjunto do Departamento de Assuntos Universitários (DAU), no MEC, onde coordenou a implantação do Programa de Nacional de Pós-Graduação (PNPG) – sendo, inclusive, a rede de relacionamentos constituída nesse período que lhe garantiram a indicação para concorrer e ocupar o cargo de Reitor na Universidade Federal da Paraíba (MUNIZ, 2008) – portanto, é provável que ele além de conhecer bem a função que cabia às universidades na política cultural do governo Geisel, também gozasse de certo poder de influência, como percebemos no depoimento que Cavalcanti concedeu a Muniz [...] Eu consultei minha família e havia muito interesse...e então eu fui nomeado reitor da Universidade da Paraíba e deixei o Ministério da Educação em dezembro de 75, tendo sido nomeado reitor um pouco antes![...] Como reitor eu tinha toda uma experiência, conexões e relacionamentos que eu tinha no próprio MEC, no planejamento, um pouco no CNPq com alguns diretores, principalmente com Ferrari, Amilcar Ferrari, [...] que era vice presidente do CNPq na gestão do Geisel. Então ... muitos reitores foram a minha posse porque eu era vice-presidente do Conselho de Reitores e, na época, ser do Conselho de Reitores era muito mais importante do que é hoje (ALBUQUERQUE, 2007, p. 143).

Desse modo, Lynaldo, ciente de sua influência, inclusive com o ministro Ney Braga, e conhecendo bem as diretrizes da PNC, pode dinamizar sua gestão a frente da UFPB. [...] E, ao longo do ano minha gestão já estava bastante conhecida, porque a Veja já tinha feito uma matéria sobre a minha gestão, e eu tinha recrutado muitas pessoas de fora, até pessoas que eu trouxe de volta do exterior, já estavamos em 79. De 76 a 80 a abertura foi andando e inclusive em 79 foi a Lei da Anistia e eu trouxe muita gente que tava na Europa estudando, porque tinham saído do Brasil, uns por razões políticas outros não. Então, eu fui trazendo para lá, além de trazer muitos estrangeiros: indianos, argentinos [...] O fato é que minha gestão chamou a atenção. Muita gente do Rio, de São Paulo, de Brasilia foi para lá e fizemos muitos cursos. A pósgraduação expandiu, a interiorização que eu fiz – e que o Lula só está fazendo hoje, uma decisão do presidente da República, e naquele tempo foi uma decisão minha apoiada na amizade que eu tinha com o ministro Ney Braga [...] Então minha gestão ganhou certa repercussão e acredito que aquele grupo do Exército continuou na esperança de uma hora emplacar


numa outra função no governo, de preferência nessa área de ciência e tecnologia porque era o meu campo (ALBUQUERQUE, 2007, p. 144)

Aqui mais uma vez fica evidenciada a articulação de Albuquerque no MEC, com os militares e com o ministro Ney Braga – sendo o apoio de Braga fundamental para o desenvolvimento e implantação de importantes projetos na UFPB, dentre os quais o NAC/UFPB – bem como o conhecimento das diretrizes da PNC, o que reforça a hipótese proposta neste artigo. Outro dado importante é que Albuquerque estava sendo cotado pela Escola Superior de Guerra como possível indicação para ocupar o Ministério da Educação e Cultura7, como afirma Lynaldo Naquele tempo a comitiva da Escola Superior de Guerra fazia viagens e esteve lá na Paraíba. [...] E eles acharam que eu era um candidato bastante plausível e que poderiam levar junto ao governo que ia assumir, que era do Figueiredo. Então, no final de 78 e começo de 79 estive várias vezes sendo lembrado e sendo até citado em colunas de jornais, em notícias, como sendo a possível solução técnica para o Ministério da Educação [...] Depois de ter sido Secretário de Ensino Superior adjunto e ter tido uma atuação muito forte, porque havia muitos programas, muitos recursos, houve uma época áurea, né?! O governo Geisel foi uma época áurea e eu fui justamente Secretário de Ensino Superior dois anos com o Médici e dois anos com o Geisel e foi quando nós lançamos o primeiro Plano Nacional de Pós-Graduação, que inclusive, eu que coordenei a elaboração [...] Depois eu fui chamado ao Rio, por esse grupo da ESG, para conversar com eles e estavam me comunicando que estavam trabalhando para que eu fosse o Ministro da Educação [...] (ALBUQUERQUE, 2007, p. 143).

Diante desse quadro era de suma importância o desenvolvimento na UFPB de ações e projetos, nas mais diversas áreas, com caráter inovador – e que ao mesmo tempo atendesse os objetivos do governo – para dar visibilidade e projeção nacional ao reitorado do possível ministro da Educação e Cultura. Estrategista nato e conhecedor profundo do funcionamento de órgãos públicos provavelmente Cavalcanti sabia que teria de obter nos setores voltados para a área cultural o mesmo avanço, reconhecimento e projeção nacional que havia estabelecido nas áreas científicas e tecnológicas da UFPB. Nessa direção, certamente Cavalcanti sabia que para conseguir a projeção nacional de um núcleo de extensão voltado para as “artes plásticas”, este não poderia ser gerido ou concebido por funcionário públicos distantes do universo artístico, ao contrário deveria contar com ‘líderes’ adequados. Desse modo, para o sucesso do projeto seria fundamental a presença de pessoas ligadas diretamente ao meio artístico.

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Pouco tempo antes da posse de Cavalcanti ocorreu um problema com a indicação de Antonio Carlos Magalhães para o Ministério da Saúde e como alternativa Antonio Carlos Magalhães indicou Eduardo Portela para o ministério da Educação e Cultura, que assumiu o cargo no lugar de Lynaldo Cavalcanti.


Para tanto foram convidados o crítico de arte Paulo Sérgio Duarte e o artista Antonio Dias8. Nesse sentido explica Lynaldo: A sugestão de convidarmos Paulo Sérgio Duarte [...] foi dos professores Raul Córdula e Francisco (Chico) Pereira. Paulo Sérgio [...] reunia as condições para a elaboração do Projeto do Núcleo (NAC) e detinha condições importantes para assegurar os contatos necessários ao funcionamento exitoso do NAC. De início Paulo Sérgio recomendou - e foi acatado - convidarmos o artista plástico Antônio Dias, então residente na Alemanha e em férias no Brasil, para formar a equipe de implantação. [...] As presenças de Antônio Dias e Paulo Sérgio, coordenados e apoiados pela PRAC, garantiram que o Núcleo se estruturasse para desempenhar importante papel na continuação das coordenações de Raul Córdula e Chico Pereira (ALBUQUERQUE, 2010).

Definido os responsáveis pela concepção do projeto, o NAC/UFPB foi criado no final de 1978. Nesse mesmo ano temos, no âmbito institucional, dois importantes acontecimentos: o incêndio no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (que fica fechado de 1978 até 1982) e a saída de Walter Zanini do Museu de Arte Contemporânea da USP. Nesse sentido, Antonio Dias afirma “o MAM do Rio havia incendiado, não havia um lugar, digamos, experimental. Paulo Sérgio Duarte e eu começamos a trabalhar para criar o Núcleo de Arte Contemporânea na UFPB” (DIAS, 2010, p. 29). Diante desse contexto, com os recursos vindos da Funarte, com o apoio do Reitor da UFPB e com uma equipe9 consistente percebemos o surgimento de um novo espaço para a arte contemporânea e para o experimentalismo numa região que tradicionalmente permanecia à margem do eixo Rio - São Paulo e que naquele momento de transições institucionais e política oferecia aos artistas toda uma infra-estrutura para o desenvolvimento de propostas e pesquisas artísticas. Em sua sede, a partir de 1979, o Núcleo possuía suítes para artistas convidados (quando ainda não se falava de residências artísticas); ateliê de litografia (único existente no Nordeste); ateliês para práticas artísticas diversas; sala para cursos, palestras e conferências; uma pequena biblioteca e a partir de um laboratório completo desenvolveu “todo um programa de apoio à fotografia, desde o estágio de produção em laboratório até a apresentação final ao público” (PONTUAL, 1980). Agora com a estrutura que a nova sede oferecia – e com o apoio e interesse do Reitor Lynaldo Cavalcanti em promover as ações do Núcleo e conseqüentemente dar visibilidade ao seu reitorado – era de suma importância que a inauguração contasse com

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Antonio Dias permanece no NAC/UFPB por cerca de seis meses e Paulo Sérgio Duarte cerca de um ano. Ver CORDULA, Raul. A experiência renovadora do NAC no campo da extensão universitária. In: Gomes, Dyógenes Chaves. Núcleo de Arte Contemporânea da Paraíba – NAC, Rio de Janeiro: FUNARTE, 2004. p. 13 a 20. [p. 1819]. 9 A equipe principal do NAC foi constituída por Antonio Dias, Francisco Pereira Júnior, Paulo Sérgio Duarte, Raul Córdula (Coordenador) e Sílvino Espínola (Vice-Coordenador).


uma mostra de impacto e com a presença de pessoas estratégicas para divulgação do Núcleo e do reitorado da UFPB nos centros hegemônicos. Nesse sentido, em 13 de fevereiro de 1979 o NAC/UFPB foi inaugurado com uma exposição de Antonio Dias que contou “com a presença de grande número de autoridades, convidados especiais, intelectuais, jornalistas, artistas do Nordeste e do Sul do País (entre eles Mário Pedrosa, Ziraldo, Roberto Pontual e Aluísio Beupenmueller, para citar somente quatro) [...]” (O NORTE, 1979). A estratégia funcionou e em 20 de fevereiro, sete dias após a abertura, Roberto Pontual escreve no Rio de Janeiro uma extensa matéria no Jornal do Brasil, um dos mais importantes do período, a respeito do Núcleo. Com relação a criação do NAC/UFPB e a atuação de Cavalcanti a frente da UFPB, Pontual afirmou primeiramente, desloca o eixo de ativação de novas atitudes e linguagens artísticas até uma região ainda mais refratária do que propícia a elas. Assim, já não se deixa intacto com o Rio e São Paulo [...] o privilégio de uma velha e compacta hegemonia do sentido da experimentação, entre nós. Em segundo lugar, a célula emergente compromete o mecanismo universitário que a recebe na prática de um projeto alternativo, cuja vontade maior é suprir lacunas armadas por outros circuitos de arte [...] nesse país. [...] Em três anos, o jovem reitorado informal de Lynaldo Cavalcanti de Albuquerque conseguiu minimizar bastante o ranço de alheamento e retórica que ainda tipifica o geral da nossa estrutura universitária, inclusive nas unidades maiores (PONTUAL, 1979).

Assim como a exposição de Antonio Dias muitas outras foram fomentadas pelo Núcleo, que promoveu entre 1979 e 1985 exposições de artistas como Tunga, Cildo Meireles, Anna Maria Maiolino, Paulo Klein, Hudnilson Júnior, Paulo Bruscky, 3NÓS3, Jota Medeiros, Marcelo Nietsche, Paulo Roberto Leal, Falves Silva, Artur Barrio, Leonhard Franch Duch, Vera Chaves Barcellos, Rubens Gerchman, Miguel Rio Branco, dentre muitos outros. A autonomia e apoio concedidos ao NAC pela UFPB possibilitaram que o Núcleo desenvolvesse uma concepção museológica pioneira que enfocava não apenas a divulgação, mas principalmente a pesquisa, produção e mediação em arte contemporânea. Nesse sentido o Núcleo procurou se consolidar, enquanto entidade museológica, a partir da tríade – pesquisa – produção – e ensino em arte contemporânea. A partir dessa concepção inovadora no Nordeste e no Brasil, o Núcleo passou a atuar simultaneamente na promoção de novas mídias nas ‘artes plásticas’ (arte postal, arte xérox, livro de artista, filme de artista, vídeoarte, instalações, intervenções, exibição de fotografia como arte), na inserção da arte contemporânea na Paraíba e na mediação junto ao grande público. Desse modo, o NAC/UFPB foi palco, não apenas de discussões sobre os caminhos da arte experimental no Brasil, como propiciou, em João Pessoa, um ambiente favorável à investigação de novos


materiais e linguagens, experiências práticas e convivência em ateliê para jovens artistas, chegando a ser considerado pelo crítico de arte Roberto Pontual (1979, p. 26) como “um dos raros organismos de fato operativos fora do eixo Rio-São Paulo”. O declínio do NAC/UFPB

Em 1980 Lynaldo Albuquerque finaliza seu reitorado na UFPB e assume a presidência do CNPq em Brasília, nesse mesmo ano Paulo Sérgio Duarte assume o Instituto Nacional de Artes Plásticas da FUNARTE. Com a saída de Duarte o NAC perde o seu mentor intelectual e juntamente com Antonio Dias seu maior divulgador junto a artistas e instituições nacionais. Já com a saída de Albuquerque da Reitoria sistematicamente o Núcleo vai perdendo o apoio “dos reitorados que sucederam ao de Dr. Lynaldo Cavalcanti” (CORDULA, 2004, p. 20). Nesse momento o país estava sob a gestão de João Figueiredo, último militar à frente da presidência. Como reflexo da crise do petróleo (em 1979) e do fim do II Plano Nacional de Desenvolvimento as possibilidades de expansão econômica ficaram restritas. Nesse sentido, o período compreendido entre 1980-1985 é “apontado como sendo o início da crise de planejamento no Brasil” (MUNIZ, 2008, p. 136), com o Estado apresentando “sinais de endividamento colocando o planejamento econômico em descrédito” (MUNIZ, 2008, p. 142). A crise econômica produziu efeitos negativos também no orçamento das universidades. Em 1981 são abundantes os Ofícios e Portarias com restrições orçamentárias e/ou limitações de recursos financeiros dirigidos aos núcleos de extensão subordinados a PRAC10. Nesse sentido, a UFPB, já em 1980, passa a exercer “maior controle nos projetos e convênios” no intuito de “facilitar melhor o fluxo de informações entre a PRAC e os diversos setores que a compõe, bem como os órgãos financiadores”, passando a ser obrigatório que “todos os projetos e convênios” fossem “examinados pela Assessoria de Planejamento” da Pró-Reitoria para Assuntos Comunitários11. A partir de 1982 com as primeiras eleições diretas para governos estaduais depois do golpe de 1964 se por um lado ocorreu o fortalecimento da área cultural devido à criação de secretaria de culturas nos Estados desligadas das de Educação, por outro, temos com Aloísio Magalhães na direção da Secretaria da Cultura, a ênfase na vertente patrimonial. Ocorre então a valorização da cultura popular como a verdadeira arte representativa da 10

Ver, por exemplo, PORTARIA R/GR Nº 025/81, de 20 Ago. 1981, sobre suspensão de concessão de passagens aéreas e diárias para professores e servidores. Ou ainda o Oficio PRAC/OF. Nº 403/81, de 22 Set. 1981, sobre a suspensão de concessão de diárias. 11 OFICIO DA PRÓ-REITORIA PARA ASSUNTOS COMUNITÁRIOS Nº 16/80. Do Pró-Reitor para Assuntos Comunitários ao Prof. Raul Córdula. Assunto: Comunicação da implantação da Assessoria de Planejamento da PRAC. João Pessoa, 12 de maio de 1980.


identidade nacional (BOTELHO, 2000). Assim sendo, “a questão da produção cultural contemporânea e os inúmeros problemas que vão se associando à cadeia ‘produção, circulação e consumo’ pouca atenção tiveram [...]” (BOTELHO, 2000, p. 107), sendo relegadas a um espaço secundário na política de Aloísio Magalhães. Como conseqüência dessa nova política pública de cultura o aumento da demanda por apoio a projetos externos na Funarte foi acompanhado de uma progressiva diminuição de verbas, provocando o estabelecimento de critérios e prioridades mais rigorosos para a aprovação dos projetos. Com relação às universidades foi percebido que a autonomia da área de extensão com relação às demais áreas favorecia a execução de ações que muitas vezes já estavam sendo desenvolvidas em outros setores da universidade, e que podiam ser oferecidas, independente dos recursos da Funarte (BOTELHO, 2000). Desse modo, a Funarte, abandonando o velho estilo de “balcão” de demandas, passou a exigir das universidades candidatas a financiamento um Plano Diretor de Cultura, com o objetivo de fazê-las refletir sobre suas propostas, evitando duplicações, iniciativas de pouca conseqüência, explicitando metas a alcançar e integrando efetivamente ensino e extensão (BOTELHO, 2000, p. 140).

Na UFPB, como reflexo do contexto exposto, é constituído um grupo de trabalho a fim de “realizar um estudo minucioso da atual estrutura da Pró-reitoria para Assuntos Comunitários, analisando a funcionalidade de cada Setor, inclusive Núcleos [...]12”. A partir desse momento percebemos uma diminuição e atraso sistemáticos dos recursos enviados pela Funarte Como podemos constatar no Relatório de Atividades do NAC enviado à Funarte em 1982: O Núcleo de Arte Contemporânea da UFPB-NAC, cumpriu em 1982 parte da sua programação nas áreas da Pesquisa, do Ensino e da Extensão. Foram realizados vários eventos referentes às diversas atividades propostas para o ano, não tendo sido possível, no entanto o cumprimento do PU haja visto (sic) que os recursos não chegaram a tempo de serem aplicados como estavam programados [...] (PEREIRA JÚNIOR, 1982)

E o comprometimento das atividades realizadas no Núcleo, que cai de vinte exposições em 1979 para aproximadamente seis já em 1981 e menos de cinco em 198513. A própria Universidade a partir de 1982 passa a receber do MEC recomendações especiais para a contenção de despesas:

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PORTARIA INTERNA Nº 16/83. Emitida pela Pró-Reitoria para Assuntos Comunitários da UFPB. Constitui e delega poderes ao Grupo de Trabalho que estudará a estrutura da PRAC. João Pessoa, 11 de Abr 1983. 13 Informações obtidas a partir da análise dos Relatórios de Atividades do NAC no período de 1979-1985, disponíveis no acervo do NAC/UFPB.


[...] 2. É do seu conhecimento a situação difícil que vem atravessando, sobretudo nos últimos dois anos, a vida econômica do país, [...] e, como natural decorrência, a rigorosa política de contenção das despesas públicas destinadas a compor a reversão do processo. [...] 8. As dotações orçamentárias consignadas a esse órgão ou entidade devem – a despeito de hábito anterior decorrente de freqüentes suplementações orçamentárias – tornar-se o referencial básico do planejamento e da sua gestão, como todas as conseqüências que essa mudança indispensável acarreta. 9. É necessário reverter, de imediato, expectativas talvez já presentes, de novos créditos suplementares. A propósito, cabe transcrever o que diz sobre matéria o Decreto Nº 86.794, de 28 de dezembro p.p., cujo reexame recomendamos:“Os órgãos integrantes do Sistema Orçamentário deverão abster-se da solicitação de créditos adicionais para realização de despesas 14 diversas daquelas com Pessoal e Encargos Sociais” (Art. 23, § 1º). [...]

Como conseqüência da falta de recursos e o completo descaso da UFPB, em 1985 houve o fechamento provisório do NAC/UFPB por conta do precário estado de suas instalações e da falta de recursos para a sua manutenção. A ligação com o Departamento de Artes foi se tornando cada vez mais tênue e a própria Universidade não demonstrou interesses em estipular uma dotação orçamentária que permitisse a manutenção do Núcleo como um espaço permanente de pesquisa e produção em arte, além do completo descaso com o um acervo que apesar de ter sofrido grandes desfalques ao longo dos anos se mantém como rica fonte de pesquisa da arte conceitual e do experimentalismo na arte brasileira no final da década de 70. À luz do exposto podemos afirmar que os dados empíricos trabalhados referentes à criação do NAC apontam na direção de corroborar a hipótese formulada na introdução deste estudo. Não há dúvidas que a criação do NAC ocorre a partir de uma demanda da política cultural do governo Geisel e como tal, a partir do momento em que essa política se modifica, e passa a assumir outros interesses, a manutenção do Núcleo como vinha acontecendo deixa de fazer sentido. Soma-se a essa questão a ausência de lideranças capazes de viabilizar o Núcleo por outras vias, como bem notou Antonio Dias, “depois que o Paulo Sérgio Duarte saiu, esse Núcleo de Arte Contemporânea ficou praticamente morto durante sete ou oito anos. Ultimamente, eles voltaram a reabrir [...] mas tudo depende de vontade política, não há dinheiro nem liderança15”. Também fica evidenciada como a criação do NAC/UFPB estava em completa consonância com as diretrizes da Política Nacional de Cultura e surge a partir de uma demanda do Ministério da Cultura e Educação, que tinha nas universidades federais

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OFÍCIO DO SECRETARIO GERAL DO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA Nº 018/82. De Sérgio Mário Pasquali, Secretário Geral do MEC, ao Prof. Berilo Ramos Borba, Reitor da UFPB. Assunto: recomendações especiais para contenção de despesas à Conta de recursos do Tesouro. Brasília, 31 de maio de 1982. 3f. 15 DIAS, 2010, p. 30.


brasileiras um importante aliado para implementação de sua política pública de cultura nos anos 70. Por fim, resta dizer que sem o respaldo e legitimação das políticas públicas de cultura e, conseqüentemente, sem o apoio financeiro da Funarte e da própria universidade, o NAC a partir de 1985 embora nunca tenha deixado de funcionar se modificou em relação ao projeto inicial, limitando suas atividades a eventuais exposições de arte. A partir de meados de 2007, o NAC/UFPB foi oxigenado com uma nova coordenação que vem paulatinamente retomando sua a proposta inicial. Nesse sentido, mesmo sem o apoio da universidade e do departamento de artes visais da UFPB, o Núcleo tem conseguido aprovar projetos em editais públicos de fomento à produção cultural e tem conseguido oferecer dinâmicas de fomento à pesquisa, produção e atividades crítico-reflexivas voltadas às artes visuais, demonstrando que “a cultura [arte] pertence a um desses setores que necessitam de estímulo governamental para [não só] conseguir seu impulso” (CESNIK, 2003, p. 99), mas também para se consolidar.

Referências

ALBUQUERQUE, Lynaldo Cavalcanti. (lynaldocavalcanti@gmail.com). Entrevista concedida a Fabricia Cabral de Lira Jordão [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por fcljordao@yahoo.com.br em 30 jun. 2010. ALBUQUERQUE, Lynaldo Cavalcanti.. Entrevista concedida a Nancy Muniz. IN: MUNIZ, Nancy A. Campos. O CNPq e sua trajetória de planejamento e gestão em C&T: histórias para não dormir, contadas pelos seus técnicos (1975-1995). 370 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade de Brasília, Brasília, 2008, p. 136-149. BOTELHO, Isaura. Romance de Formação: FUNARTE e política cultural (1976-1990). Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa, 2000. BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Política Nacional de Cultura. Brasília: MEC, 1975. CESNIK, 2003, p. 99 CESNIK, F. S. “Incentivo público à cultura” In: BRANT, Leonardo (Org.). Políticas Culturais. São Paulo: Manole, Vol. 1, 2003. CÓRDULA, Raul. A experiência renovadora do NAC no campo da extensão universitária. In: GOMES, Dyógenes Chaves (Org.). Núcleo de Arte Contemporânea da Paraíba/NAC. Rio de Janeiro: Funarte, 2004. p. 13-20. DIAS, Antonio. Depoimento concedido a Roberto Conduru. In: CONDURU, Roberto; RIBEIRO, Marília André (Orgs.). Antonio Dias: depoimentos. Belo Horizonte: C/Arte, 2010. MICELI, Sergio. O Processo de “construção institucional” na área cultural federal (anos 70). In: MICELI, Sergio (Org.). Estado e Cultura no Brasil. São Paulo: DIFEL, 1984. p. 53-84. MUNIZ, Nancy A. Campos. O CNPq e sua trajetória de planejamento e gestão em C&T: histórias para não dormir, contadas pelos seus técnicos (1975-1995). 370 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade de Brasília, Brasília, 2008.


SILVA, Vanderli Maria. A construção da política cultural no regime militar: concepções, diretrizes e programas (1974-1978). 2001. 211 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001. O NORTE. Inaugurado o Núcleo de Arte Contemporânea. Jornal O Norte. João Pessoa, 14 fev. 1979. PEREIRA JUNIOR, Francisco. Atividades Realizadas em 1982. João Pessoa: Núcleo de Arte Contemporânea da Universidade Federal da Paraíba, 1982. 3 p. Relatório. PONTUAL, Roberto. Tempo de fotografia. Revista Ele e Ela. Rio de Janeiro, Jun. 1980. PONTUAL, Roberto. Um Núcleo fora do núcleo (ou como ativar longe do eixo). Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 20 fev. 1979. Caderno B, p. 25-26.


Milionários nada por acaso Capital rentista e apropriação do trabalho artístico nas redes do espetáculo 1

Marcos Dantas Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Resumo: O texto discute o processo de valorização e realização de um produto artístico nas condições da indústria cultural. Sustenta que, no processo de valorização e realização, a redução dos tempos de produção, transporte ou transmissão é essencial para a realização do capital. Na busca dessa redução, o capital evoluiu da produção de mercadorias concretas, com valor de troca, para a de produção de informação sígnica, com valor de uso mas esvaziada do valor de troca. A realização desse valor depende da afirmação de direitos de propriedade intelectual (DPI), os quais geram rendas de monopólio que se distribuem, entre os agentes, conforme o poder de barganha dado pelo capital simbólico acumulado de cada um. Palavras-chaves: valor de uso, espetáculo, rendas informacionais, propriedade intelectual, trabalho artístico Abstract: This text discusses how capital can to expand and growth exploring artistic products. In this process, the reduction of production, transportation or transmission times is essential for the realization of capital. In pursuit of this reduction, capital invests in the production of semiotic information, rather than concrete commodities, with contains use-value but not exchange-value. The realization of this value depends on the assertion of intellectual property rights (IPR), which generate monopoly rents that are distributed among agents, as the bargaining power given by the accumulated symbolic capital of each. Key-words: use-value, spectacle, informational rents, intelectual property, artistic labour. Resumen: El texto analiza el proceso de recuperación y realización de un producto artístico bajo las condiciones de la industria cultural. Se argumenta que, en el proceso de acumulación de capital, la reducción de los tiempos de producción, transporte o transmisión es esencial para la realización del capital. En la búsqueda de esta reducción, el capital evolucionó de la producción de mercancías concretas, con valor de cambio, para la producción de información significativa, con valor de uso pero despojada de valor de cambio. La realización de este valor depende de la afirmación de los derechos de propiedad intelectual (DPI), que generan rentas de monopolio que se distribuyen entre los agentes, como el poder de negociación dado por el capital acumulado simbólico de cada uno. Palabras Clave: valor de uso, espectáculo, renta informacional, propiedad intelectual, trabajo artistico

De uns tempos para cá, vem ganhando crescente importância entre formuladores políticos, sob influência de agências internacionais tais como OCDE ou UNESCO, daí também em meios acadêmicos, estudos e proposições em torno do que se está chamando “economia cria-

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É professor do Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da UFRJ, doutor em Engenharia de Produção pela COPPE-UFRJ, ex-secretário de Educação a Distância do MEC. É autor de A lógica do capital-informação (Ed. Contraponto, Rio de Janeiro) e outros textos sobre Economia Política da Comunicação e Cultura. URL http://www.marcosdantas.pro.br. 1


tiva” ou “economia da cultura”. Essas preocupações, as investigações que suscitam, as propostas que geram, expressam o fato de ter o capital, na sua evolução histórica, atingido uma etapa que fez da cultura ela mesma, objeto de um processo de trabalho e valorização destinado à acumulação. A tese deste artigo é que a acumulação nessas “indústrias criativas” se baseia na apropriação de rendas de monopólio, extraídas da propriedade intelectual. Em essência, tratase de uma nova e mais avançada etapa da indústria cultural, na sua função precípua de reprodução (simbólica) do trabalho e de produção do consumo. A determinação que comanda o processo, determinação aliás de toda a acumulação capitalista, é a compressão do tempo. Como já se podia ler em Marx e evidencia-se na radiodifusão e, mais ainda, na atual internet, o capital vem buscando reduzir os tempos de rotação aos limites de zero mas, nisto, esvazia a mercadoria do seu valor de troca, elevando-a a puro valor de uso estético, seja o tênis de marca, seja a novela de TV, valor este apenas realizável se a renda gerada puder ser açambarcada por algum direito à propriedade intelectual (DPI). A questão da propriedade intelectual vem assim para o centro do debate político, como, no momento em que essas linhas são escritas, revela-se na inesperada polêmica criada, no Ministério da Cultura, pelas primeiras medidas do novo governo Dilma Rousseff relativas ao tema.

1. Revisitando conceitos elementares

Comecemos com uma preliminar, em Marx: [...] o preço das coisas que não têm por si nenhum valor, ou seja, que não são produto de trabalho, como a terra, ou que ao menos não podem ser reproduzidas mediante trabalho, como antigüidades, obras de arte de determinados mestres etc., pode ser determinado por combinações casuais. Para vender uma coisa, é preciso apenas que seja monopolizável e alienável (MARX, 1983-1985: v. 3, t. 2, p. 137).

Valor não se confunde com preço, nem preço expressa necessariamente valor. Valor é a síntese realizável, transformável em dinheiro, do valor de uso e do valor de troca, aquele dado pela utilidade de um bem para alguém, este pelo tempo social médio de trabalho necessário à produção desse valor. Já o preço pode depender de fatores circunstanciais, inclusive da possibilidade de se monopolizar e, daí, alienar algo. Para os objetivos da nossa discussão, precisaremos revisitar o conceito de valor de uso. Marx logo no início d’O Capital, dirá que a mercadoria é um “objeto externo, uma coisa”, a qual, pelas suas propriedades, 2


satisfaz necessidades humanas de qualquer espécie. A natureza dessas necessidades, se elas se originam do estômago ou da fantasia, não altera a natureza da coisa. [...] A utilidade de uma coisa faz dela um valor de uso (idem: v. 1, t. 1, p. 45 passim).

Assim, por exemplo, um diamante pode ter uma “finalidade estética”, no “colo de uma dama”, ou uma “função técnica”, nas mãos de um “cortador de vidro”, dirá Marx em Para a crítica (Marx, 1974: 141-142 passim). Num caso ou noutro, não passa de “base material” para uma “relação econômica determinada – o valor de troca”. É esta relação que interessa ao economista, não aquela. Aqui, será possível estabelecer uma função quantitativa de equivalência, o tempo social médio de trabalho, no caso da Economia Política, ou os custos marginais, para a neo-clássica. Na conceituação marxiana portanto, valores de uso tanto podem ser estéticos quanto instrumentais. Tanto podem atender às necessidades materiais da vida humana, quanto às suas necessidades simbólicas. Em qualquer caso, porém, um valor de uso sempre dependerá da matéria cujas formas e outros atributos físico-químicos lhe servem de suporte. Porque é matéria, porque é uma “coisa”, as propriedades físicas necessárias da mercadoria particular, na qual o ser dinheiro de todas as mercadorias deve se cristalizar, na medida em que se depreendem diretamente da natureza do valor de troca, são as seguintes: livre divisibilidade, uniformidade das partes e indiferenciação de todos os exemplares dessa mercadoria (idem, p. 158).

A mercadoria, pois, por sua definição, não pode ser uma única peça: ela há de ser exatamente a reprodução de um modelo original típico, em centenas ou milhares de unidades iguais ou similares. O modelo expressa o valor de uso. As milhares de peças idênticas, de uma dada forma material, com suas propriedades físico-químicas, contêm o valor de troca, não importa se a utilidade seja estética ou instrumental. Consideremos, por exemplo, uma |cadeira|. Qualquer pessoa sabe o que é e para que serve uma |cadeira|, independentemente das infinitas formas reais que possam ter as cadeiras concretamente existentes. Todos temos uma idéia-tipo do que seja uma |cadeira|. Se a um marceneiro for encomendado um conjunto de seis cadeiras, ele reproduzirá na realidade objetiva, essa idéia-tipo, com variações idiossincráticas. E consumirá, digamos, uma semana de trabalho nessa atividade. Esse trabalho de reprodução fornecerá o valor de troca da cadeira. Mas o valor de uso desse trabalho sintetizou um conjunto de elementos culturais, históricos, sociais gerais, psicológicos, estéticos, outros tantos simbólicos ou semânticos, que dão ao marceneiro e ao seu cliente uma identidade básica, mútua, na qual ambos estão imersos e

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permite ao cliente comunicar, e ao marceneiro compreender qual o trabalho a ser executado, de fabricar |cadeiras|. A Economia, seja Política, seja “pura”, ignora as condições culturais que fundam o valor de uso, por conseguinte, o valor de troca. Por isto, a Cultura não será objeto da Economia – ou não o era, até agora... A Economia somente se interessa pelo trabalho efetivamente realizado na (re)produção do modelo mental do valor de uso. Isto, a Economia Política que examinará esse trabalho como condição necessária à produção do valor de troca, logo do valor da mercadoria. A Economia neo-clássica, nem do trabalho se ocupará, mas apenas das condições de mercado que supostamente definem os preços finais das utilidades mercantis. Se avançarmos da mera produção artesanal para a produção industrial contemporânea, haverá uma enorme diferença de escala na fabricação de cadeiras e, por isto, será necessário introduzir um novo elo de trabalho entre a idéia-tipo e sua materialização na “coisa”: o desenho. Certamente, ainda aqui, haverá um conceito cultural de |cadeira| determinando a (re)produção, mas este conceito, antes de chegar na fábrica e ser trabalhado por homens e máquinas, terá passado por toda uma etapa de objetivação em textos escritos, desenhos, fotografias, protótipos, maquetes, moldes industriais, etapa essa que demandará trabalho de engenheiros, estilistas, marqueteiros, técnicos dos mais diversos e também operários (DANTAS, 2007a). Ou seja, entre a idéia-tipo mental e a “coisa” interpõe-se outra coisa: o conjunto de materiais no qual estará registrada aquela idéia. A produção desses materiais é também um processo de trabalho e, inclusive nas suas dimensões econômicas e técnicas, integra a totalidade do processo de trabalho e valorização, exatamente como esse processo é definido, descrito e discutido por Marx. Ocorre que, geralmente, nos estudos marxistas, este elo especial de trabalho e seu lugar na valorização costumam ser ignorados, privilegiando-se apenas aquele realizado no chão-de-fábrica pelos operários junto às máquinas. Não será lugar aqui de discutir esse sério problema teórico e, daí, político, já tratado em outros estudos (DANTAS, 2007a; 2006; 2003). Mas ele será o nosso ponto de partida para compreender as questões suscitadas por essa recém-descoberta “economia criativa”.

2. Tempo e valor

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Na economia industrial, qualquer valor de uso será, primeiramente, expresso através de desenhos, fórmulas, textos descritivos, isto é, enquanto signo2. Logo, a mercadoria é, antes de mais nada, um signo, porque podemos entender |valor de uso| como a expressão adotada por Marx para definir culturalmente a mercadoria. O processo de produção será pois, todo ele, um trabalho material sígnico. A mercadoria, no entanto, para que seja realizada, trocada, será também “tempo de trabalho coagulado” (MARX, 1974: 143, grifo no original). Ou seja, todo aquele processo social, combinado e coletivo de produção sígnica, pode ser reduzido a mercadoria porque o tempo de trabalho nele consumido, desde as fases de concepção, desenho, modelagem, até às de fabricação e montagem, foi congelado, ou “coagulado”, nas formas físico-químicas que dão suporte ao valor de uso final. Nestas formas, a mercadoria poderá ser deslocada do local de produção para o comércio, venda e consumo; poderá ser estocada; poderá, em suma, ser conservada, durante algum tempo maior ou menor, dependendo dos seus atributos físico-químicos e da sua utilidade, até a completa efetivação da sua troca pelo dinheiro que expressará o seu valor. Esse tempo total3 está bem explicado por Marx na Seção I do Livro II d'O Capital (MARX, 1983/1985, v. 2), sintetizando-se na fórmula

D – M... P... M’ – D’

O capital busca incessantemente reduzir tantos os tempos de circulação (D – M e M’ – D’), quanto os tempos de produção P, pois enquanto esses tempos estão correndo, o investimento inicial D não retornou, acrescido (D’), para o bolso do investidor. Uma das barreiras à realização é o espaço. Para superá-la, o capital investe nos meios de comunicação, tanto de

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O signo é uma unidade de algum conceito mental exteriorizado em algum veículo material adequado. Em Saussure (1969), esta unidade será expressa na célebre relação “significado (conceito)/significante (veículo)”. Em Hjelmslev, retomado por Eco (1980), recebe os nomes “formas de conteúdo/formas de expressão”. Nas tricotomias mais complexas de Peirce (1977), podem ser identificadas, quanto à materialidade, nos conceitos de “índice”, “ícone”, “dicissigno”, “qualissigno”, e nos de “argumento” ou “legissigno”, quanto ao conceito mental. Para os objetivos deste texto, não será necessário aprofundar essa discussão ou optar por esta ou aquela taxonomia que, claro, expressam importantes diferenças epistemológicas e metodológicas. Adotemos o termo “signo”, por ser mais usual, ou “aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém”, na definição canônica de Charles S. Peirce (1977: 46); e, ao longo do texto, onde couber, “significado” e “significante”, não implicando esta opção, meramente de ordem prática, maiores compromissos com o objetivismo positivista saussuriano. 3 Em Marx, está claro: “O processo de circulação do capital ocorre em três estágios que [...] constituem a seguinte seqüência. Primeiro estágio: o capitalista aparece como comprador no mercado [é o ciclo D – M] Segundo estágio: consumo produtivo de mercadorias [ é o ciclo P] Terceiro estágio: o capitalista retorna ao mercado [é o ciclo M’ – D’]. [...] O processo de circulação do capital é, portanto, unidade de produção e de circulação, incluindo ambas” (MARX, 1983-1985: v. 2, p. 25-45 passim, grifos meus – MD). 5


transporte de mercadorias, quanto de informação. No transporte de mercadoria, observou Marx, o ciclo assume a seguinte fórmula particular:

D – M... P – D’

Aqui, o produto do processo “não é um novo produto material, não é uma mercadoria” (MARX, 1983-1985: v. 2, p. 42), mas algo cujo “efeito útil” é a “existência espacial modificada” da mercadoria, é a locomoção. O efeito útil “não existe como coisa útil distinta do processo” (idem, ibidem). O investidor D adquire mercadorias M e seu produto P é a própria locomoção, durante a qual empregará trabalho de cujo valor extrairá D’. Deduz-se dessa passagem que não será estranha à teoria de Marx, a produção de valor sem produção de nova mercadoria, sem transformação material. Está aí a chave para compreendermos o processo de trabalho e acumulação em todo o circuito da comunicação, no qual será absorvida a cultura. Para reduzir todos os tempos envolvidos no seu processo de rotação, o capital investe em ciência e tecnologia, daí no desenvolvimento das máquinas de produção, de transporte ou de comunicação, bem como no aprimoramento dos métodos de gestão e organização do trabalho. Após mais de 150 anos e ao longo de sucessivas “revoluções tecnológicas”, o capital praticamente logrou reduzir a instantes desprezíveis, o tempo de trabalho necessário à produção de uma unidade de uma mercadoria qualquer, assim como também o empregado nas muitas atividades de processamento e comunicação da informação, isto é, de produção e transporte de material sígnico. Como será o tempo de trabalho vivo congelado no produto que expressará o valor adicionado à mercadoria, não, o trabalho morto adjudicado, quanto mais aquele tempo é reduzido ao limite de zero, mais o valor é anulado. Daí, como aliás antecipou Marx, sobretudo em conhecidas passagens dos Grundrisse (MARX, 1973: v. 2, p. 228-229 passim), o tempo de trabalho imediato deixa de ser fator decisivo de produção de riqueza: esta agora depende cada vez mais de um tempo de trabalho mediatizado, aquele que será empregado na “aplicação da ciência à produção”: a pesquisa, a engenharia, o desenho, a gestão, inclusive a programação e controle, pelos operários, de sistemas automatizados de maquinaria. O trabalho já não efetua uma relação corpórea sensível direta com o seu objeto, mas uma relação intermediada por textos significativos (textos escritos, desenhos, gráficos, números em instrumentos de medição, cores de manivelas etc.) que transmitem a cada elo de trabalho ou ao trabalho total, o conhecimento social geral necessário à produção ou comercialização da mercadoria. Para definir esse conhecimento incorporado à produção de riqueza, Marx cunhou a expressão, hoje bem conhecida, general intellect. 6


3. Cultura: mercantilização da não-mercadoria

Numa primeira abordagem, a lógica da mercadoria parece funcionar tal e qual também na indústria cultural. Um disco, por exemplo, ou um exemplar de livro não passariam de unidades uniformes e idênticas, de algum valor de uso, no caso estético, destinado a usufruto cultural nas horas de lazer ou em atividades de cunho educativo e similares. Um rolo de película de um mesmo filme poderia também caber no mesmo conceito. Programas de rádio ou de televisão, porém, talvez já nos criassem muita dificuldade: onde está a divisibilidade? De fato, como veremos, discos ou livros são mercadorias apenas na aparência. Na essência, estes segmentos “editoriais” da indústria cultural ou aqueles de “onda”, apóiam-se numa mesma lógica não-mercantil, mas rentista, de acumulação4. O processo de produção do disco ou do livro, aparentemente, não será diferente daquele da mercadoria cadeira. Haverá uma idéia-tipo (os sons musicais, o conteúdo ficcional ou técnico do livro) a ser reproduzida em milhares de unidades iguais, para fins de realização. No entanto, conforme vimos, o valor de uso da cadeira será produto do trabalho combinado, coletivo e social de trabalhadores heteróclitos, embora com distintas qualificações necessárias à criação e reprodução de algum modelo: engenheiros, desenhistas, outros técnicos, operários etc. Desde o primeiro momento, o coletivo de trabalho envolvido na produção da cadeira preocupa-se com as suas condições de reprodução e realização mercantil e, nisto, está produzindo diretamente mais-valia, na sua dimensão intensificada. O valor de uso do livro, não: ele resulta do trabalho solitário, embora social, do escritor. Este busca se comunicar com um certo público, pôr em comum suas idéias com as desse público, expressar sentimentos, imaginar situações, mobilizar, de algum modo, também o trabalho desse público, nas reações ou emoções que nele provoca. O trabalho do escritor conclui-se no original que ele escreveu e seu objetivo é diretamente o leitor para quem escreveu. Se o autor quiser, com mimeógrafo ou impressora domésticos (esqueçamos, por enquanto, a internet), reproduzirá umas tantas cópias de sua obra e as venderá em bares, restaurantes, outros pontos de encontro. Sabemos que há quem faça exatamente isso. Mas, em

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A Escola francesa da EPICC consagrou uma tipologia de modelos de indústria cultural, dividida em três processos: editorial, onda e imprensa (Bolaño, 2000). O primeiro abarca a produção e distribuição de livros, discos, filmes. O segundo, rádio e TV. O terceiro, a imprensa jornalística. Essa tipologia fenomênica pode ser operacional para a descrição de várias características específicas de cada um desses mercados (tipo de produto, cadeia produtiva, perfis profissionais, organização empresarial etc.) mas todas vêm sendo abduzidas, hoje em dia, pela cadeia produtiva verticalizada do entretenimento mediatizado digitalizado. 7


geral, o autor preferirá negociar o seu original com uma editora, pois esta terá condições de colocar a sua obra em muitas livrarias espalhadas por um vasto território, divulgá-la, alcançar leitores que seriam inatingíveis pela cópia artesanal. A lei e os costumes dão ao autor a propriedade intelectual da sua obra. Ele não é proprietário das folhas de papel onde a obra está impressa. Ele é proprietário (se é possível usar-se esta palavra) das idéias e das formas literárias pelas quais se expressou. Ele é proprietário do signo. Ninguém pode reproduzir suas idéias, nas suas formas, sem o seu consentimento. Ele detém um monopólio e é do seu direito alienálo, ou não. Por isto, só por isto, a obra pode ser vendida. A que preço? “Combinações casuais”. Aqui, em princípio, não estará incorporado algum custo de reprodução da força de trabalho, algum valor de troca do trabalho abstrato. Não se trata de trabalho abstrato. O autor é um autor. Ele “vende” o resultado do seu trabalho concreto que só existe, enquanto resultado, na forma objetivada desse trabalho concreto mesmo. Não é um trabalho “sem mais nem mais”, não é trabalho “igual”. É trabalho artístico, trabalho cujo valor de uso se encontra na exclusiva originalidade do seu resultado, na sua qualidade inigualável. Porém para que o autor se realize enquanto autor (realização subjetiva, ética, psicológica, distinta de realização econômica, acumulação), isto é, para que o trabalho se realize enquanto trabalho, ele, autor, precisa se associar ao capital para que este reproduza e comercialize a sua obra. O autor então combina um preço pelo qual o seu direito de cópia (copyright) é transferido para o capitalista editorial ou, como acontece na grande maioria das vezes, aceita o preço “imposto pelo mercado”. O empresário passa a deter o monopólio, antes detido pelo autor. A editora fará com o original da obra, aquilo que uma fábrica de móveis faria com algum modelo de cadeira: transformará o original em mil, 2 mil, 5 mil, 100 mil unidades idênticas de uma mercadoria chamada |livro|. Seguindo o raciocínio clássico, se o lucro do editor deriva de alguma mais-valia, esta terá sido extraída do trabalho coletivo e combinado dos seus empregados diretamente produtivos, não do trabalho do escritor. Aliás, este também se remuneraria da mesma mais-valia, já que o seu rendimento, conforme contratou com a editora, deverá ser extraído de alguma cota da mais-valia obtida do trabalho de produção da mercadoria-livro. No entanto, não é bem assim: Cada editor, protegido pela compra dos direitos autorais, desfruta de barreiras à entrada intransponíveis que o transformam num monopolista capaz de fixar o preço sobre cada um de seus títulos. Esse é o princípio básico da precificação: o editor fixa o preço de capa e o revende com desconto para distribuidoras e livrarias (EARP e KORNIS, 2005: 24).

O preço, revelam Earp e Kornis após entrevistar editores, é definido conforme uma fórmula que 8


consiste em somar os custos de papel, gráfica, diagramação, composição, revisão, tradução e capa, dividi-los pelo número de exemplares da tiragem pretendida e assim obter o custo do livro sem os direitos autorais. Esse valor é multiplicado por cinco ou seis para se chegar ao preço de capa. Sempre que aplicada essa fórmula, basta vender 40% da edição para pagar os custos da editora (idem, ibidem).

Ou seja, mesmo que no preço esteja embutida a mais-valia dos trabalhos de gráfica, diagramação, composição etc., sua fixação será função, determinantemente, da condição monopolista adquirida pelo editor. É sintomática a ressalva de que no cálculo inicial dos custos, não são somados os direitos autorais pagos ao autor. Estes incluem-se na cabalística multiplicação por 5 ou 6. O preço de venda por unidade será, percebemos, a renda diferencial dada pelas condições de mercado, incluídas as partes que caberão aos distribuidores e livreiros, os quais abocanham cerca de metade do preço de capa (idem, ibidem) e, principalmente, a disponibilidade de renda dos leitores desejados (público-alvo). Ou seja, já estava em evolução no mercado editorial, desde que este se forma, conforme o conhecemos atualmente, ao longo do século XIX, já estava em evolução a negação do valor de troca e sua substituição por uma lógica rentista de acumulação, baseada no monopólio garantido pela propriedade intelectual. O preço de capa de um livro não expressaria equivalência de valor, antes seria renda de monopólio. Por outro lado, essa renda não deriva, como a renda da terra, de algo que pode ser vendido apenas porque pode ser monopolizável e alienável. Sua fonte ainda é trabalho, o tempo e o esforço, inclusive cansaço natural, do escritor em transformar umas tantas vagas idéias iniciais, em um texto coerente, normalizado e, sobretudo, atraente aos leitores. “Produzir signo implica um trabalho, quer estes signos sejam palavras ou mercadorias” (Eco, 1981: 170). Mas ao contrário do tempo de trabalho fabril, este particular tempo de trabalho sígnico não é mensurável, nem muito menos cambiável: um livro de João não equivale a dois livros de Maria, porque João levou um ano para escrever o seu, e Maria, seis meses... É um tempo essencialmente de trabalho vivo, com apoio de algumas ferramentas, como caneta, máquina de escrever ou computador, ao contrário do tempo fabril, determinado pelo ritmo do trabalho morto. O preço desta “coisa” chamada |livro| contém, portanto, valor, resulta de trabalho, mas pode não conter valor de troca, produto do trabalho abstrato. Aliás, este último componente do valor – a equivalência – será quase completamente anulado se o livro for substituído... pelo tablet. Voltaremos a este ponto. Esta será a contradição principal da qual deve partir a Economia Política (crítica) da indústria cultural, vale dizer, da Informação, da Comunicação, do Conhecimento: como remunerar trabalho sem valor de troca? Como remunerar convenientemente o trabalho artístico, cri9


ticando a lógica da apropriação privada, logo assegurando, também, o acesso ao seu resultado pela sociedade, sem a qual, sem a sua cultura, sem os seus mecanismos de formação e socialização dos indivíduos, sem as suas experiências e conflitos que constituem a matériaprima das obras artísticas, o trabalho individual do escritor ou escritora seria impossível? Para esta pergunta, não temos, por enquanto respostas adequadas. Mas para que alguma resposta possa ser dada, a pergunta precisa ser, primeiro, formulada.

4. Renda informacional A lógica acima exposta, exibindo como exemplo, principalmente, a indústria do livro, não será muito diferente, guardadas as especificidades, nos outros segmentos da indústria cultural. O livro, seja ficcional, seja técnico, é (quase sempre) de autoria individual ou identificada. Já um filme ou uma novela de TV, embora tenham “autoria” ou “direção” muito bem identificadas e reconhecidas, não podem prescindir de um coletivo de atores desempenhando diversos papéis, mais importantes ou menos importantes, bem como de toda uma equipe de apoio técnico e logístico. Toda essa equipe, porém, estará essencialmente envolvida, assim como o autor ou autora de livros, numa trabalho de produção material sígnica: a gravação final de sons e imagens, expressando incomensuráveis significados culturais, numa película, fita de vídeo, memória digital de computador. Assim como o livro, a gravação do filme, da novela, também de música, resulta em um original que servirá de modelo para a replicação industrial. O capitalista que detém os recursos industriais necessários a essa replicação e sua distribuição – o estúdio cinematográfico, a emissora de televisão –, se comportará de modo não muito diferente do editor de livros, na sua relação com o trabalho vivo produtor da cena: adquire-lhe os direitos de cópia, base das relações econômicas monopolistas que estabelecerá com os demais agentes do mercado, proprietários de salas de cinema, de videolocadoras, sobretudo com os espectadores finais, aos quais caberá pagar o “preço”. Em síntese, na produção industrial artística, estão envolvidos dois tempos distintos. Primeiro, o tempo do trabalho vivo concreto (do escritor, dos artistas gravando suas cenas, também dos músicos compondo ou gravando), do qual resultará um modelo registrado para fins de replicação. Este tempo é aleatório, está submetido às incertezas dos testes, dos rascunhos, das experiências, dos ensaios, de buscas que vão indicando, não raro por tentativas e erros, qual o melhor resultado afinal pretendido e atingido. O segundo tempo é o da replicação industrial: este tempo pode ser altamente controlado, tende à redundância, embora ainda afe10


tado aleatoriamente por tarefas como ajuste de máquina (em gráficas) ou erros de processo (sempre possíveis)5 – é o tempo tipicamente fabril. Mas a realização não se consuma sem que se efetive todo o ciclo do capital, sem a circulação, sem a transformação do original monopolizado e replicado, em mais-dinheiro (D’). A indústria cultural não teria nascido e se desenvolvido não fosse esta determinação incontornável do processo de acumulação. Enquanto artistas eram criadores mais ou menos externos à lógica produtiva, como ainda o eram os românticos oitocentistas, a replicação era tarefa de pequenas editoras de livros ou de partituras musicais, ou da própria apresentação ao vivo do artista – na música, no teatro. Mas quando o capital passou a investir em cultura como fronteira de acumulação, ele iria desenvolver exatamente as tecnologias e indústrias apropriadas ao seu modo de ser, ou seja aquelas voltadas para a replicação e distribuição: o cinema, a música fonográfica, a radiodifusão, além da própria imprensa em elevadas tiragens. Na realização, o capital defronta-se com uma barreira natural incontornável: o tempo de conservação do valor de uso artístico independe do de seu suporte material. A mercadoria é entrópica, sua conservação obedece às leis da termodinâmica, daí o princípio da escassez sobre o qual se assenta toda a teoria Econômica – Política, ou não. Mas o signo enquanto tal, é neguentrópico, é expressão cultural da informação, isto é, de trabalho vivo que busca recuperar e sustentar um certo grau de fornecimento de trabalho em oposição, até certo limite, ao avanço espontâneo da entropia (DANTAS, 2006; 2008). Daí, se o valor de uso da mercadoria está contido nas propriedades físico-químicas do seu suporte material e é destruído com a destruição dessas propriedades, o valor de uso informacional, sígnico, artístico, objetiva-se na comunicação, na relação que estabelece entre os agentes em interação neguentrópica, na qual o valor de uso não será função indissociável das propriedades físico-químicas do seu suporte: Aristóteles será sempre Aristóteles, seja em pergaminho, em papel ou numa tela de iPad. Se o valor de uso da mercadoria precisa ser alienado para que se consuma como valor de uso e, assim, realize o seu valor de troca, o da informação, ao contrário, nem precisa e nem pode ser alienado para que se conserve como valor de uso, logo não tem como se realizar como valor de troca. Isto é óbvio em qualquer situação corriqueira: se eu empresto um livro

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Por tempo aleatório entendemos aquele tempo de trabalho ocupado principalmente em tarefas de busca, pesquisa, ensaio, comum tanto em indústrias fabris, quanto indústrias culturais, durante o qual a duração das tarefas será um tanto incerta, até que um resultado satisfatório seja obtido. Por tempo redundante entendemos o tempo de trabalho cujo resultado já está antecipadamente definido, as tarefas estão altamente rotinizadas, logo os tempos de duração podem ser definidos e medidos, ainda que possam vir a ocorrer problemas (erros, falhas) que lhes introduzam alguma taxa de incerteza. (DANTAS, 2006) 11


(objeto material) para alguém, enquanto o livro estiver emprestado, o seu lugar na minha estante estará vazio, ou eu não poderei consultá-lo, se necessitar. Mas se eu narro a alguém o conteúdo do livro, essa transferência de informação sígnica não arrancou pedaços do meu cérebro, enquanto enchia, por assim dizer, o do meu interlocutor. Eu permaneço “proprietário” da informação que, agora, é de propriedade também do interlocutor. Aliás, se o livro emprestado for devolvido (algo, sabemos, difícil de acontecer...), o seu conteúdo também passa a ser de “propriedade” de duas pessoas, embora siga existindo apenas um livro. Informação é um recurso de rendimento crescente. Ora, quando o tempo de conservação do valor de uso tende ao infinito, a condição elementar de “precificação” – que seja monopolizável e alienável – torna-se praticamente inviável. Harold Demsetz, em resposta a Kenneth Arrow que, já nos anos 1960, sugeria que a informação deveria ser tratada como “bem público” (ARROW, 1977), sustentou justamente que a condição de realização exigiria elevar-se os “castigos pelas violações de patentes e o incremento dos recursos destinados à vigilância de tais violações” (DEMSETZ, 1977: 164). Não podia ser mais claro. Desde então, todo o esforço do capital voltou-se para pôr em prática tal recomendação que, no entanto, equivaleria à revogação da lei da gravidade para a construção de uma caixa d'água abaixo da linha das casas, conforme conhecida piada6... Se uma obra não pode ser reproduzida além do seu primeiro e único exemplar, vimos logo no início deste artigo, ela pode ter preço, mas não terá valor, nos termos da Economia Política. As esculturas, pinturas e outras obras ainda definidas pela unicidade e destinadas a um público usuário muito restrito, com finalidades suntuárias, podem permanecer fora do circuito do capital, ou na categoria econômica dos “gastos improdutivos”. Mas toda obra, cuja realização, como valor de uso estético, não pode prescindir de replicação, tenderá a ser incorporada ao circuito do capital, no entanto subordinada ao princípio dos rendimentos crescentes, logo à contradição, quanto às condições de apropriação, entre o modo de ser capitalista do processo produtivo e social, e o próprio modo de ser da informação, natural e socialmente inapropriável. Por isto, a realização somente poderá se dar como renda de monopólio – a renda informacional (DANTAS, 2008)

5. Produção de consumo

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Para quem não conhece: o prefeito de uma cidadezinha de interior pôs na cabeça construir uma caixa d'água para abastecer a cidade, num lugar que, entretanto, ficava em altitude inferior à da própria cidade. Algum assessor lhe observou a impropriedade, argumentando que o sistema não funcionaria devido à lei da gravidade. O prefeito, irritado, respondeu: “Vou enviar para a Câmara dos Vereadores, projeto propondo a revogação dessa lei”... 12


O tempo afeta a realização da obra de arte industrializada em duas dimensões diametralmente opostas, como se, numa reta, dividida em um ponto 0 (zero) qualquer, simultaneamente ocorresse um movimento positivo à direita do ponto e outro, negativo, à esquerda. Na direção positiva, a duração do valor de uso no tempo tende ao infinito, na medida em que independe das qualidades físico-químicas do suporte material. Desde que haja algum suporte replicável adequado, a realização pode ser comunicada e consumada: até hoje lemos Aristóteles ou Virgílio, em pergaminho num passado remoto, numa tabuleta digital desde muito recentemente. Na direção negativa, a duração temporal da produção material do suporte, devido à intensificação capitalista do trabalho, tende, hoje em dia, ao limite de zero por unidade de produto, ou seja o “tempo de trabalho coagulado” definidor da mercadoria, foi, aí, quando não anulado, reduzido a um infinitésimo desprezível. Um amplo conjunto de condições políticas, culturais, econômicas e tecnológicas que não poderemos detalhar aqui mas podem ser facilmente inferidas do conhecimento histórico que temos da evolução da indústria cultural no século passado (FLICHY, 1991; BRIGGS e BURKE, 2006; GIOVANNINI, 1987), permitiu que uma parte dela pudesse evoluir conforme a lógica aparente da mercadoria, na medida em que algum investidor detivesse as condições para monopolizar os processos industriais de replicação. O alto investimento inicial (D) em trabalho vivo e morto necessário para reproduzir analogicamente livros ou discos estabelecia uma barreira física à entrada que funcionava como reforço e, principalmente, como camuflagem à lógica rentista subjacente ao processo. De fato, aplicar-se-ia aí os mecanismos de produção de rendas diferenciais (DANTAS, 2008), na medida em que o controle dos meios de reprodução e distribuição desse às unidades de capital condições de arbitrar os seus preços de monopólio. A indústria de “onda”, isto é, a radiodifusão, também podia se beneficiar de barreira à entrada, face à escassez de espectro. Não esquecendo que essa barreira foi criada politicamente por práticas regulatórias impostas pelo capital mas culturalmente aceita pela sociedade “fordista”, ou seja, não deriva de uma condição por assim dizer “natural” da radiodifusão, ela, entretanto, não resolvia ainda o problema da realização, já que a “onda”, evidentemente, não pode ser segmentada em unidades idênticas e indiferenciadas. Na Europa, este impasse, aliado às condições políticas e sociais próprias do Velho Continente no Entre-Guerras, acarretaria a solução estatizante monopolista que atrasaria, até os anos 1970-1980 (mas ainda não de todo resolvida até hoje), a plena organização capitalista da radiodifusão européia. Nos Estados Unidos, outras condições políticas e sociais viabilizariam a introdução e consolidação da radio13


difusão comercial, sustentada pela publicidade, ou seja, a completa subsunção da radiodifusão à lógica do capital. Na disputa pelas verbas publicitárias das empresas anunciantes, sabidamente as emissoras buscam conquistar e reter audiências. É com base nessa experiência que a Economia Política da Comunicação e da Cultura tem sugerido, já com Dallas Smythe, que a audiência seria a mercadoria trocada entre a emissora e o anunciante (BOLAÑO, 2000). Propomonos à crítica dessa tese com base no próprio conceito discutido acima, de mercadoria. Audiência não é “objeto externo”, não é divisível em unidades idênticas, não contém “tempo de trabalho coagulado”, nem muito menos é alienável. Ao contrário, a emissora necessita reter a audiência para que possa negociar algum “preço” pelo tempo de transporte e veiculação de anúncios. Audiência, como informação, somente teria valor de uso (se é que teria valor de uso) se gerar rendimentos crescentes. Por outro lado, a indústria de “onda” facilita a compreensão do papel do tempo na realização, mais do que as indústrias “editoriais”. O que é “vendido” ao anunciante, por óbvio, é tempo: 30 segundos, 1 minuto, 1 hora. O “preço” atribuído a esse tempo é função da audiência atingida: 10 milhões, ou 20 milhões, ou 40 milhões de pessoas, números esses que não expressam apenas uma população, mas uma população em um dado território, com suas condições econômicas e culturais. Ou seja, pelo tempo, abarca-se um espaço que pode ser o de uma cidade, o de um país, até o do mundo inteiro como hoje conseguem as grandes corporações mediáticas “globais” que veiculam seus programas por televisão a cabo ou satélite. A informação sobre a mercadoria, o estímulo a consumi-la, pode chegar a milhões de pessoas, em lugares muito diferentes, num lapso de tempo. Como o disse Marx, o capital busca “anular o espaço pelo tempo” (Marx, 1973: v. 2, p. 13). A radiodifusão não terá, na acumulação, papel diferente do da telegrafia, da telefonia ou da ferrovia, nessa anulação do espaço pelo tempo. O capitalista da radiodifusão negocia o preço desse tempo (T) em função da população (P) que consegue atingir durante um determinado horário de programação. Ou seja:

T = f(P) sendo P, o produto desse quantitativo de ouvintes ou espectadores (e) pelo tempo (t) de exposição à programação veiculada:

P = et

Para melhor barganhar o preço cobrado pelo tempo, a indústria de “onda” terá que produzir populações espectadoras, ou audiências. Entender o processo de produção dessas 14


populações passa necessariamente pela compreensão do processo de produção material sígnica, já esclarecido por Umberto Eco (1980). Será necessário superar noções, ainda muito em voga, mesmo inconscientemente, sobretudo à Esquerda política, identificadas à “teoria da agulha hipodérmica”, segundo a qual “a audiência é visada como um alvo amorfo que obedece cegamente ao esquema estímulo-resposta” (MATTELART e MATTELART, 2003: 37). Ao contrário, algum segmento maior ou menor de população não perceberia a mensagem a ele dirigida se não tivesse, ele mesmo, predisposto a escutá-la e, de algum modo, à mensagem responder e se adequar. Nem a mensagem seria produzida, na forma e no conteúdo, se já não pressupusesse uma dada população capaz de aceitá-la e a ela responder e se adequar. Já o escreveu Marx:

[...] a produção é imediatamente consumo, o consumo é imediatamente produção. Cada um é imediatamente o seu oposto. Porém, ao mesmo tempo, tem lugar um movimento mediador entre os dois. A produção é mediadora do consumo, cujos materiais cria e sem os quais a este lhe faltaria o seu objeto. Mas o consumo é também mediador da produção, já que cria para os produtos o sujeito para o qual eles são produtos. O produto alcança o seu finish somente no consumo (MARX, 1973: v. 1, p. 11).

A chamada audiência somente pode ser produzida se já existe ou, pelo menos, está em formação, existe em estado latente, uma sociedade que se move na direção de perceber as mensagens a ela dirigidas, compreendê-las, aceitá-las, responder-lhes, reagir-lhes conforme, ajustar-se a elas, às vezes até contestá-las, mas para isto também precisando antes entendê-las7. É nessa sociedade que serão selecionados os fatos ou fenômenos que servirão de matéria-prima, por assim dizer, para as notícias, novelas, músicas, programas de auditório, transmissões esportivas veiculadas pelos média. Principalmente, é nesta mesma sociedade, com sua cultura, seus valores, seus conceitos e preconceitos, que serão recrutados os trabalhadores nessa indústria: os jornalistas, os publicitários, os artistas, os técnicos.

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“Qualquer tipo genuíno de compreensão deve ser ativo, deve conter já o germe de uma resposta. Só a compreensão ativa nos permite apreender o tema [...] Compreender a enunciação de outrem significa orientar-se em relação a ela, encontrar o seu lugar adequado no contexto correspondente. A cada palavra da enunciação que estamos em processo de compreender, fazemos corresponder uma série de palavras nossas, formando um réplica [...] A compreensão é uma forma de diálogo [...] Compreender é opor à palavra do locutor uma contrapalavra. [...] É por isso que não tem sentido dizer que a significação pertence a uma palavra enquanto tal. Na verdade, a significação pertence a uma palavra enquanto traço de união entre os interlocutores, isto é, ela só se realiza no processo de compreensão ativa e responsiva. A significação não está na palavra nem na alma do falante, assim como também não está na alma do interlocutor. Ela é o efeito da interação do locutor e do receptor produzido através do material de um determinado complexo sonoro” (BAKHTIN, 1986: 131-132 passim, grifos no original). 15


O artista na indústria cultural pode ter sido aquele jovenzinho que já apoquentava seus pais e vizinhos porque gostava de tocar guitarra na banda de rock adolescente, ou ganhava suas primeiras palmas ao se apresentar no teatrinho amador da escola, enquanto seus outros coleguinhas exibiam mais pendores para a matemática, para a química, para filosofar ou... para nada. Ele é criação e produto de uma mesma cultura básica, de uma mesma socialização na escola e na rua, embora com as diferenças “naturais” de personalidade, ambiente familiar, padrão de renda e consumo etc. Adulto, vai expressar profissionalmente essa cultura no cinema, na música, na literatura, assim como outros vão expressá-la em corretoras de valores, em escritórios de advocacia, em agências de publicidade, também em linhas de montagem fabril ou por trás de um balcão de loja. Essa cultura básica, em uma palavra, é a cultura do consumo. O consumo, no capitalismo avançado, não visa atender apenas a necessidades essenciais. Sua produção – pois o consumo é ele mesmo produzido – não se destina àqueles, antes ignora, que não podem, por indisponibilidade de renda ou preconceitos culturais, consumir muito além do que seria considerado essencial para as necessidades humanas, numa definição franciscana. O consumo, recuperando a formulação de Tugán-Baranovski (apud Mazzucchelli, 1985) é consumo capitalista de capital: trata-se de produzir necessidades, materiais e simbólicas, que permitam renovar investimentos e realimentar o circuito da acumulação. É por isso que, se todos os que podem consumir, já possuem as cadeiras necessárias em suas casas, será necessário “convencê-los” da dimensão distintiva, suntuária, estatuária da cadeira, do valor de uso estético que também pode ter uma cadeira, valor de uso este a ser dado por “modas”, “estilos”, “grifes”. Então, já não se compra mais uma reles cadeira, mas uma “Barcelona” ou “Van der Rohe”, uma “Thonet”, uma “Wassily”... Desde Thorstein Veblen (1983) até Pierre Bourdieu (1982; 2006; 2010) ou Jean Baudrillard (s/d), entre outros, são muitos os estudos, em diferentes matrizes teóricas, sobre esse consumo conspícuo, destacando sua importância simbólica, distintiva, não raro deixando trair certo preconceito moralista, aquele do “consumo improdutivo”, “supérfluo”, “ostentatório”, nisto ignorando a sua dimensão produtiva, produtiva enquanto é produtivo aquilo que produz valor e acumulação para o capital. A Economia costuma relacionar as flutuações do consumo às condições de renda. A renda é necessária mas não suficiente para produzir consumo. Excesso de renda sobre algum padrão de necessidade, poderia gerar apenas entesouramento ou mesmo redução do tempo de trabalho, se a renda, dado um certo tempo trabalhado, já permite atender às necessidades,

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dado um grau de expectativas8. A produção do consumo visará orientar o excedente de renda para o consumo que seja produtivo para o capital, para o consumo que, fazendo blague, leve as pessoas a dizerem, diante de um novo gadget, “como eu podia ter vivido sem isso, até hoje?”. No entanto, viveu... Produzir consumo, este é o lugar da indústria cultural no circuito da acumulação. Adorno e Horkheimer (1985) já o haviam identificado em seu estudo clássico e fundador: a indústria cultural fornece a homens e mulheres, nos tempos de lazer, um tipo de produto que os equaliza psicologicamente com as condições mentais que devem enfrentar nos tempos de trabalho. Numa sociedade “fordista”, na qual os processos de trabalho são altamente rotinizados e padronizados, todos os demais aspectos culturais ou simbólicos do mundo da vida também o serão, não apenas para atender à lei econômica da redução de custos pela produção e consumo de “massa”, mas para evitar alguma dissonância psicológica que levaria o trabalhador a não se ajustar às condições rotineiras de trabalho. A indústria cultural surge como componente necessária do próprio processo de reprodução da força de trabalho: nela o trabalhador despenderá parte do seu salário, assim como também despende em alimentação, moradia, transporte etc. Ela atende a uma demanda simbólica típica da sociedade capitalista avançada, tanto quanto um quilo de arroz pode atender a uma demanda energética do corpo humano, ou o sistema coletivo de transporte urbano, à necessidade de locomoção numa grande cidade. A produção de consumo não é efeito direto da mensagem publicitária. Esta busca essencialmente atrair o consumidor para um específico bem. A produção de consumo resulta da construção de comportamentos coletivos, de estruturas identitárias, de noções de pertencimentos, identificados ao consumo capitalista de capital. O homem é um animal simbólico, já disse Cassirer (1994). Se a evolução capitalista logrou esfumaçar as antigas mediações simbólicas pelas quais os indivíduos em sociedade regulavam as suas relações, fê-lo para colocar outras em seu lugar, a serviço da acumulação. Num processo que ficou mais claro ao longo do século XX e desenvolveu-se, em toda a sua intensidade, nos Estados Unidos, sendo muito

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Este foi um debate travado no século XVIII, registrado por Marx no Livro I, Cap. 8 d”O Capital e, também, por Landes (1994). Então, a tendência do trabalhador-artesão era trabalhar apenas o tempo necessário para o atendimento às suas necessidades básicas, dedicando o restante ao descanso ou lazer. Na média, trabalhava-se quatro dias por semana. Ideólogos da época começaram a defender medidas que obrigasse o artesão a trabalhar de segunda a sábado, já que somente o domingo fora reservado por Deus para o descanso. Outros escritores defendiam o contrário, lembrando que o lazer era necessário para estimular a criatividade do trabalho. Desse debate nascerão as “leis contra a vagabundagem” que deram lastro legal à extensão extorsiva do tempo de trabalho na fase inicial da primeira revolução industrial. No final do século XIX, Paul Lafargue escreverá o seu famoso manifesto pelo Direito à Preguiça (LAFARGUE, 1983), no qual, na verdade, denuncia terem os trabalhadores aderido plenamente à “religião do trabalho” e renunciado ao ócio. Já então, a cultura era outra, era a cultura do capital. 17


pouco percebido pelos teóricos europeus e europocêntricos do socialismo, as marcas, as grifes, as identidades consumistas começaram a ocupar o lugar deixado vago pelas antigas simbologias pré-modernas e pré-industriais9. Os sacerdotes dessa nova religião consumista seriam os artistas e demais profissionais da indústria cultural. Seus templos, os média. A narrativa industrial cultural cria idéias-tipos (muito mais eficazes se ou quando podem operar subconscientemente) que poderão ou deverão ser replicadas nas práticas sociais cotidianas. Desde a sandália que é usada por um personagem de novela, ou o cigarro que está sempre entre os lábios de qualquer que seja o personagem representado por um ator famo10

so , até o mobiliário da sala de jantar ou da cozinha sempre que a cena exige mostrar esses espaços, ou o deslocamento prioritário por automóvel, o conjunto da obra cultural industrial busca exibir uma idéia padrão de vida que a grande maioria da sociedade estará pronta para reproduzir, na medida das possibilidades monetárias e mesmo culturais de cada indivíduo, no seu cotidiano doméstico e social. O processo de produção de audiência consome tempo, o tempo de trabalho dos artistas e demais técnicos, mas também o tempo de trabalho dos próprios indivíduos que compõem a audiência. Como eles devem concentrar a atenção numa dada obra por um certo tempo; como eles devem transmitir suas emoções ao artista (num espetáculo ao vivo, isto é por demais evidente); como, aprendemos com Bakhtin11, eles deverão se mover na direção do tema da mensagem para dela se apropriarem; ou, nos termos de Eco, a eles caberão (re)produzir os significados a replicar; o processo de trabalho, embora em diferentes níveis e elos, será o próprio conhecimento social geral em ação. Desde o diretor conduzindo ensaios e gravação da

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O estudo sobre a construção da marca McDonald, de Isloneide FONTENELLE (2002), nos fornece um brilhante exemplo da construção simbólica da sociedade capitalista em que vivemos. A empresa, liderada por Ray Croc (1902-1984), um estadunidense típico, profundamente crente nos valores “individualistas”, “liberais”, “competitivos”, “pragmáticos” de sua sociedade, buscava conscientemente fornecer não apenas alimento às pessoas, em seus horários de refeição, mas sobretudo um estilo de vida, estilo este a ser simbolizado, no sentido semiótico mesmo deste termo, na marca McDonald, tanto em seu nome quanto em seu chamativo desenho. Então, já não se consome mais um sanduíche de carne, mas um “McDonald”, assim como não se bebe um refrigerante, mas uma “CocaCola”, ou não se calça um sapato mas um “Nike”... É o fetiche do fetiche da mercadoria. Fontenelle não chega a estabelecer diretamente a relação da marca com o espetáculo, mas basta assistirmos a um jogo de futebol pela televisão, para ela se mostrar evidente. 10 Ficou famosa, por exemplo, por sua influência em comportamentos e hábitos de consumo brasileiro, a novela “Dancin’ Days” de Gilberto Braga, veiculada pela Rede Globo entre 1978-1979. Em todo o Brasil, as adolescentes e nem tanto, passaram a usar um determinado tipo e marca de sandália, porque era usada pela personagem principal, com a qual desejavam se identificar. Esse tipo de fenômeno, até então, não era muito notado na sociedade brasileira, na qual a televisão só então começava a penetrar maciçamente. Outro, entre tantos exemplos, é o ator Humphrey Bogart (1889-1957): raramente, em cena, ele não exibia um cigarro no canto da boca ou nas mãos. O cigarro tornava-se assim um símbolo de glamour, elegância, masculinidade. Aceito o símbolo, cada um poderia escolher a sua marca preferida, aí sim por influência mais direta da publicidade. 11 Ver nota 7, acima. 18


cena já antevendo as reações da platéia, passando pelas interações dos artistas entre si, pela arte do fotógrafo comandando a câmara de filmar, pelos demais técnicos, até às pessoas concretas que, como audiência, sentam-se no sofá da sala diante da televisão ou deslocam-se até uma sala de cinema para preencher de sentidos as mensagens recebidas, trata-se de trabalho vivo produzindo atividade viva, na expressão de Boutang (1998). Se, nas condições do “fordismo”, esse processo parecia ser unidirecional ou vertical, tal se devia às próprias condições políticas da época, quando, conforme percebeu acuradamente Gramsci, estava em curso o maior esforço coletivo até agora realizado para criar, com rapidez inaudita e com uma consciência do objetivo jamais vista na história, um novo tipo de trabalhador e de homem (GRAMSCI, 2007: 266).

Não seria muito diferente na União Soviética de Stálin. Mas não é o nosso caso discutílo aqui... A adesão e incorporação de uma enorme população amorfa, em boa parte migrante do campo para a cidade, ou da Europa para os Estados Unidos, ao capitalismo consumista avançado exigiria um processo educacional latu sensu que caberia às “vanguardas”, às elites esclarecidas (empresariais, políticas, intelectuais, artísticas) comandar. Mas que, insistamos, não comandariam se já não encontrassem uma “massa” disposta a segui-las, a elas aderir, a com elas aprender. Ultrapassada esta etapa histórica, já plenamente incorporado o consumismo capitalista à consciência e prática cotidianas de todos nós, o avanço seguinte seria para a… rede interativa. A radiodifusão, ou indústria de “onda”, já quase anulava o tempo de reprodução. Uma vez registrado o original, bastava, para fazê-lo chegar ao público, colocar a fita matriz no sistema automatizado de emissão e pôr a mensagem significativa, ou conteúdo, no ar. Uma vez os significantes a serem significados tenham saído da torre da emissora, eles estarão, em nanossegundos indiferentes à distância, nos alto-falantes do aparelho de rádio ou na telinha da televisão. O tempo de transporte tende a zero. Em compensação, será obrigatório reter o tempo do “espectador”. A relação, necessariamente interativa, pois que cultural, ideológica, identitária, entre a obra artística e seu público deve produzir esse tempo de conexão, geralmente identificado à “audiência”. É a este tempo, como vimos, que a unidade de capital poderá atribuir um “preço” a ser negociado com os anunciantes. Este “preço”, já deve estar claro por tudo o discutido até aqui, resultará do monopólio exercido sobre os “direitos intelectuais” bastante reforçado pelo exercido sobre as vias de transmissão (freqüências). O que podia distinguir, pois, as indústrias de “onda” das “editoriais” seria o meio sobre o qual conquistavam algum monopólio sobre o tempo total de realização: enquanto a produção de livros ou discos ainda exigia a replicação material dos suportes e, em seguida, sua distribui19


ção espacial, através de um processo e tempos similares ao de qualquer outra indústria fabril, a radiodifusão já podia se servir da base técnica ideal para a indústria cultural, aquela que, ao fazer os tempos de reprodução e transporte tenderem ao limite de zero, elimina os tempos de processamento industrial material direto e põe em relação imediata os dois pólos básicos do trabalho material sígnico, o trabalho concreto do artista produzindo o seu consumo e o consumo concreto do seu público produzindo o seu produto.

6. Tempo espetacular

O filme, a novela, o show musical ao vivo ou pela TV, o jogo de futebol ao vivo ou pela TV, o programa de auditório, até mesmo o noticiário jornalístico nos dias correntes, são todos, axiomaticamente, espetáculos. O espetáculo é o produto que media a relação entre o artista e o seu público. O espetáculo é objeto da propriedade intelectual açambarcada pelo capital. O espetáculo é o veículo da publicidade. Se, por um lado, é por ele que são criadas as expectativas comportamentais da sociedade capitalista de consumo, por outro, é através dele que a publicidade pode chegar ao público, sugerindo-lhe escolhas entre distintas marcas. O consumidor não teria porque escolher, ou talvez considerasse apenas o fator preço ou a distância a percorrer entre ele e o fornecedor, caso tivesse que comprar um simples sapato sem mais nem mais. Mas será levado a escolher, caso tenha que decidir por um “Nike” ou um “Adidas”, descartados, porque “fora de moda”, os sapatos de couro (ou relegados estes a situações mais “formais”). Os seus critérios serão completamente subjetivos pois somente o valor de uso estético, despojado de algum valor de troca, orientará essa escolha. O espetáculo substituiu as antigas relações simbólicas, pré-industriais e pré-modernas, na identificação e recorte dos contextos e circunstâncias nos quais os indivíduos se situam nas suas relações em sociedade. É o que já sabia Débord, num texto publicado quando, nem de longe, a presença avassaladora do espetáculo em nosso cotidiano alcançara as dimensões atuais:

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente, tornou-se uma representação […] O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens […] Sob todas as suas formas particulares – informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto de divertimentos – o espetáculo constitui o modelo atual da vida dominante na sociedade […] O espetáculo é a reconstrução material da ilusão religiosa […] O espetáculo é o capital em tal grau de acumulação que se torna imagem (DÉBORD, 2000: 13-25 passim). 20


Se cumpre essa função geral econômico-cultural, o espetáculo também atende a uma específica determinação econômica. Explicou Harvey: Pode ser […] que a necessidade de acelerar o tempo de giro no consumo tenha provocado mudança de ênfase da produção de bens (muitos dos quais, como facas e garfos, têm um tempo de vida substancial) para a produção de eventos (como espetáculos que têm um tempo de giro quase instantâneo) (Harvey, 1996: 149).

É a diferença, já discutida, entre o valor de uso entrópico (tempo de trabalho coagulado ou congelado) e o valor de uso neguentrópico (trabalho em atividade, comunicação, interação). Não somente a razão de ser do espetáculo é essa relação imediata entre o artista e o seu público, como ela, por isto mesmo, para o capital, apresentar-se-á como etapa superior na sua busca permanente por reduzir os seus tempos de rotação. O espetáculo cria os hábitos para o consumo e já oferece os produtos para esse consumo, não mais enquanto valores de uso quaisquer, utilitários, instrumentais, mas enquanto valores de uso significados pelo espetáculo mesmo, portadores de identidades, de pertencimentos, de símbolos socialmente segmentados que, através desses símbolos – as marcas, as grifes –, mantém permanentemente girando a roda da produção material. O espetáculo vende tênis, vende camisas, vende aparelhos de televisão, vende bebidas, vende investimentos financeiros, vende imóveis, vende pizzas, mas não vende as “coisas” enquanto “coisas”, mas as “coisas” enquanto estilos de vida, comportamentos, modas, as “coisas” enquanto fetiches do fetiche (FONTENELLE, 2002), as “coisas” enquanto expressões materiais significantes dos signos da cultura capitalista avançada. Quanto mais as metamorfoses de circulação do capital forem apenas ideais, isto é, quanto mais o tempo de circulação for = zero ou se aproximar de zero, tanto mais funciona o capital, tanto maior se torna a sua produtividade e autovalorização (MARX, 1983-1985: v. 2, p. 91) Para o capital, seria ideal prescindir dos tempos de replicação material. A radiodifusão já fora um primeiro passo nesse sentido. A partir da Segunda Grande Guerra, um amplo conjunto de forças econômicas, políticas e, também, culturais, comandadas pelo capital e seu Estado, impulsionará o desenvolvimento das chamadas novas tecnologias de informação e comunicação (NTICs), baseadas na enumeração de qualquer signo que fosse possível enumerar ou, como se diz na nossa linguagem corrente, “digitalizar”12. Detalhar aqui esse processo his-

12

O som e as cores constituem diferentes dimensões de um contínuo de freqüências eletromagnéticas, mensuráveis quanto à altura, comprimento e intensidade. Dadas essas medidas físicas, é possível recortar amostras de suas formas ondulares, cada ponto o mais próximo possível de outro ponto, e reproduzi-las, assim, numa seqüência numérica. Por razões técnicas, essa seqüência é convertida para a 21


tórico, não será possível. A literatura não nos permite ilusões quanto ao papel decisivo que, para a criação, evolução e amadurecimento dessas tecnologias, desempenharam o Estado militarista estadunidense, as grandes corporações industriais e financeiras do centro capitalista e seus outros Estados em competição econômica, política e militar com os Estados Unidos (HANSON, 1983; NOBLE 1984; MIZRAHI, 1986; BRETTON, 1991; MATTELART, 2002; MOUNIER, 2006). Basicamente, a informatização dos processos produtivos, das comunicações e até do cotidiano, veio eliminando aquela enorme parcela de tempo de trabalho vivo redundante que o capital precisava empregar em sua etapa “fordista”. O montador industrial pode dar lugar ao robô; o bancário, ao terminal bancário de auto-atendimento; a datilógrafa, ao processador de texto; o carteiro, ao e-mail... O quê, por barreiras tecnológicas ou mesmo pelos custos relativos, a exemplo da confecção têxtil, ainda resta desse trabalho é remetido para regiões onde possa ser recrutado a baixíssimos preços, em condições quase escravistas de sobreexploração, ou gerenciado, em condições similares, por meio de subcontratações ou “terceirizações”. O capital não pode abrir mão é daquela parcela do trabalho que, desde a primeira revolução industrial, sempre lhe foi essencial: a criativa. A energia, a força física, o capital pode transferir para máquinas. Mas não pode abrir mão da mente humana que inventa as máquinas. Logo, também, do corpo que precisa ser (muito bem) alimentado para que essa mente criativa possa funcionar... Na indústria cultural, a informatização e toda a pletora tecnológica que ela viabilizou estão destruindo as barreiras físicas de tempo de replicação que lhe permitiam gerar rendas diferenciais. Ao, impulsionado por suas contradições, desenvolver a base técnica que reduziu ao limite de zero os tempos de replicação e transporte nas indústrias “editoriais” ou multiplicar, parece que ao infinito, a oferta de espectro na indústria de “onda”, o capital promoveu uma completa reestruturação nessas indústrias, destruindo seus sedimentados modelos de organização e negócios, consolidados nos anos 20 do século passado, e fazendo nascer, neste alvorecer do século XXI, novos modelos e, nisto, novos “jogadores” (players) e “vencedores” (winners). Não sendo mais possível ou necessário congelar o trabalho artístico em cópias de disco ou em freqüências hertzianas escassas, o capital vem embutindo todo o espetáculo numa no-

base binária, podendo ser processada por circuitos elétricos de baixa voltagem que entenderão cada algarismo 1 como ordem para dar passagem á energia, e cada algarismo 0 (zero) como ordem para bloquear essa passagem. Os sistemas digitais são pois tão materiais quanto quaisquer outros sistemas automáticos de maquinaria. 22


va organização total da cadeia de produção, replicação e entrega, sempre visando garantir a captura e remuneração das rendas informacionais: os jardins murados (“walled garden”) (DANTAS, 2010 e 2011; MARSDEN et alii, 2006). Trata-se de um modelo de negócios que acorrenta o desfrute do valor de uso estético (nas suas formas de espetáculos, videojogos, notícias etc.) a um terminal de acesso conectado a um canal criptografado de comunicação. Exemplo paradigmático é o sistema iPod/iTunes da Apple, através do qual o “consumidor” paga pela licença para baixar músicas e vídeos. A TV por assinatura e seus pay-per-views, os smartphones das operadoras de comunicações móveis, o blu-ray conectado à loja virtual da Sony são outras variações de “jardins murados”. Essencialmente, essas tecnologias são desenvolvidas para eliminar os tempos de replicação e distribuição mas, ao mesmo tempo, para condicionar culturalmente a sociedade a pagar, seja alguma assinatura mensal, seja para baixar, por peça unitária ou por tempo delimitado, filmes, músicas, jogos de futebol, livros etc.

7. O capital financeiro Nos últimos 15 anos, tem ocorrido em todo o mundo, maciça migração da audiência, dos canais abertos, ou “terrestres”, de televisão, para os canais pagos, para a internet e para o entretenimento via “celular”. Em todo o mundo, quase metade das residências dotadas de aparelhos de televisão já são assinantes de algum serviço pago, a cabo ou satélite (DANTAS, 2010; IDATE, 2009). A expansão, não apenas numérica, mas sobretudo qualitativa, em termos de recursos computacionais, das comunicações móveis, reforça essa tendência. Os indivíduos que vivem na sociedade capitalista, desde que dotados de algum nível mínimo de renda e já completamente aculturados à signagem do consumo, demandam o espetáculo e produzem eles mesmos o espetáculo, seja participando do processo geral de interação comunicativa artistapúblico, seja pretendendo-se também artistas ou jornalistas, ao veicularem vídeos amadores no YouTube, ao escreverem blogs, ao publicarem fotologs etc. Grandes conglomerados mediáticos globais, com muito forte presença em todos os elos da cadeia produtiva, da produção e programação ao transporte e entrega, assumiram a liderança do processo. Os maiores e mais conhecidos são Time-Warner, Disney, NewsCorp, Vivendi, Apple, Google, entre outros. Por trás encontra-se o capital financeiro, o capital rentista por natureza, cujos bancos, fundos ou clubes de investimento possuem expressivas cotas de ações, numa rede de associações entrelaçadas, em todos esses grupos. Conforme Arsenault e Castells (2008), o Fidelity está presente no Disney (5,5%), TimeWarner (4,13%), News Corp (0,96%), Google (11,49%), Yahoo! (1,6%), Apple (6,4%). O AXA, francês, aparece no Time23


Warner (5,79%), CBS (12,2%), Disney (2,9%), Microsoft (1,26%), Apple (3,86%). O Vanguard, no Disney (2,9%), TimeWarner (2,95%) e na Microsoft (2,5%). O Kingdom Holding, de origem árabe, aparece no NewsCorp (5,7%). O State Street está no Disney (3,64%), Viacom (3,46%), CBS (4,12%), Apple (2,96%). Goldman Sachs é sócio da Time Warner (3,25%), CBS (6,8%), Microsoft (1,2%), Yahoo! (2,02%). O Barclay’s, da Viacom (3,5%), CBS (3,24%), Microsoft (4,05%), Apple (3,69%). O Capital Research, na CBS (5,95%), Google (8,3%), Yahoo! (11,6%). O Dodge City possui 7,1% do capital da Time Warner e 10,1% do da News Corp. A lista prossegue... A expansão desses conglomerados e a adesão a eles da população consumidora está resultando na transferência, para o completo controle do capital financeiro privado, isento de qualquer controle público, das decisões sobre os conteúdos a serem ou não veiculados. Antes, considerando que o espectro de freqüências, por ser escasso, tornara-se um “bem público”, a sociedade ainda podia ter a pretensão de participar do debate e construção de políticas democráticas sobre o que poderia ser por ele veiculado, e como. Já os canais privados e pagos diretamente pelo “consumidor” são entendidos naturalmente como externos a esse controle. Qualquer intervenção democrática aí será considerada uma indevida intromissão no “direito do consumidor”, como se pôde constatar ao longo do debate ainda em curso no legislativo brasileiro sobre a regulamentação da TV por assinatura. O preço do “bilhete” não deve se constituir em barreira à entrada de novos “consumidores”. Interessa oferecer serviços acessíveis à renda marginal da maioria da população porque interessa atrair a população para a rede. Nesta, o público já não é mais aquele “generalista”, indiferenciado, mas um público segmentado por “gostos”, “estilos”, “preferências”, “identidades”, inclusive, nisto, “geracionais”, “raciais”, “sexuais” e outras. A classe social desaparece até das representações. O capital fragmenta a audiência, assim como fragmenta o próprio processo produtivo (HARVEY, 1996). Quanto mais as corporações – agora, cada vez mais, através de infra-estruturas de banda-larga e conteúdos na internet – expandem a audiência bruta, mas o capital será indiferente a essa fragmentação aparente, cuja unidade poderá ser reposta, e será reposta, no consumo total de valores de uso estéticos e permanente realimentação, assim, do circuito total, no fundo ainda material, da acumulação. No limite, o modelo parece beneficiar até mesmo os nichos da “cauda longa” (ANDERSON, 2006), origem de mais um dos muitos mitos que alimentam a ideologia do capital, nesta sua nova etapa. Num tal modelo, cobra mais caro quem pode, via capital simbólico, gerar rendas diferenciais mais elevadas, numa cadeia progressiva: do artista para o produtor, deste para o programador, deste para o transportador. Nos Estados Unidos, a ESPN, controlada pelo Grupo Disney, por que detém os direitos de transmissão dos mais atraentes espetáculos esportivos, 24


cobra, das operadoras estadunidenses de TV por assinatura, para ser incluída em algum “pacote” (line up), USD 4,08 por assinante. Outros canais cobram em média de 5 a 20 centavos de dólar por mês, por assinante (http://en.wikipedia.org/wiki/ Cable_television_in_the _United_States, acessado em 05/07/2010). E o indivíduo que quer não apenas assistir mas quer ser também parte do espetáculo (basta ouvir quaisquer transmissões da ESPN), este indivíduo paga. E ainda trabalha de graça...

8. Conclusões

O capital, via marcas, estilos de vida, espetáculos, consumou o processo histórico de tornar ideais as suas metamorfoses ao longo do processo de acumulação, mas nisto, porque produz e se apropria de trabalho “criativo”, de trabalho concreto, praticamente anulou o valor de troca das mercadorias, logo a própria economia baseada na equivalência mercantil, no tempo de trabalho abstrato. O princípio de igualdade que poderia estar na base material da sociedade capitalista liberal, deu lugar a um princípio rentista, onde a não-equivalência das trocas obriga os agentes econômicos a buscar impor seus preços conforme as condições de barganha, logo de força, de cada um. Inclusive, sempre que possível, com a ajuda da força do Estado. Nessa economia informacional, a propriedade intelectual torna-se um direito absolutamente essencial, quase exclusivo, à obtenção de rendas diferenciais, inclusive no interior dos “jardins murados”. Estes visam assegurar a remuneração a montante dos produtores e demais agentes envolvidos na cadeia, na medida em que, pelo controle das cópias e do próprio comportamento dos usuários (inclusive incutindo-lhes, já que estão pagando, uma mentalidade favorável à proteção daqueles direitos), assegure a cobrança e redistribuição das rendas contratadas. Será talvez, para o capital, a melhor alternativa depois que o derretimento do valor de troca permitiu a replicação a custos mínimos dos suportes materiais de marcas e espetáculos, dando origem aos fenômenos social e econômico da “pirataria”, afetando todo o tipo de produto “criativo”, sejam cadeiras, tênis ou bolsas de grife, sejam músicas e filmes. Outra alternativa será seguir a recomendação de Demsetz, e enfrentar essa tamanha ameaça aos seus monopólios, através da repressão policial, de leis cada vez mais duras, dentre estas, no momento em que estas linhas são escritas, a elaboração de um grande pacto internacional, envolvendo Estados nacionais dominantes e as maiores corporações capitalistas “globais”, denominado Anti-Counterfeiting Trade Agreement (ACTA), ou acordo de combate ao comércio “ilegal”. 25


Os problemas econômicos que afetam a economia da cultura pouco dependem do desenvolvimento recente da internet, conforme o discurso tecnologicamente determinista tenta fazer crer. Aliás, se algo há notável no artigo pioneiro de Arrow (1977) sobre a economia da informação e inovação, é a completa ausência de considerações tecnológicas. Não seriam necessários computadores (à época ainda restritos e caros), nem muito menos redes telemáticas (à época desconhecidas) para se perceber que informação, daí arte, cultura, conhecimento, são determinados por leis materiais do mundo vivo e do mundo social-histórico que impedem sua subordinação às exigências da apropriação capitalista. Por isto Marx não poderia conceber como o capitalismo sobreviveria ao general intellect. E daí as contradições com as quais o capital se defronta hoje, diante da enorme dificuldade em controlar a lógica socialista inerente à produção e apropriação da informação. No entanto, a maior garantia que o capital vem encontrando para seguir empurrando a crise para a frente, é a própria sociedade fragmentada e consumista que logrou produzir e subsumir – a sociedade do espetáculo que agora querem, como parte do espetáculo, mascarar de “criativa”. O capital se apresenta diante dos indivíduos como uma totalidade indecifrável, como se fosse a própria atmosfera exclusiva do mundo, da qual necessitamos vitalmente para a nossa sobrevivência. Não dá para viver sem ela, a atmosfera, e sem ele, o capital... Já os indivíduos aceitam reduzirem-se a mônadas sociais, como já denunciara Lukács (1989) numa época quando, nem de longe, o processo atingira o desenvolvimento que atingiu hoje. Fragmentados nas suas “identidades”, parecendo às vezes até orgulhosos das “diferenças”, disputando migalhas privativas de melhorias aqui e acolá, ausente qualquer proposta coletiva, radical e total de transformação, o movimento social assumiu exatamente a “diferença”, outrora apanágio do pensamento conservador, como fundamento teórico e bandeira política de algum projeto (pseudo) crítico (PIERUCCI, 1999). O capital, na sua totalidade, pode, facilmente, abrigar cada uma dessas “diferenças” num extremo de “cauda” das suas redes. O capital é a rede. Nos últimos 10 a 15 anos, expandiu-se pelo mundo a internet. Nascida dos laboratórios militares do Pentágono, foi deliberadamente entregue à experimentação social, como componente das pesquisas que desenvolveriam seus modos de uso e, claro, de “monetização”. Durante alguns anos, a internet pareceu ter uma evolução anárquica e, para muitos, democrática. Na verdade, inseria-se num projeto ideológico claro de afirmação da superioridade do “livre mercado” e das “livres idéias” sobre o planejamento e o autoritarismo socialista, projeto explicitamente formulado por uma elite intelectual, política e técnica estadunidense, hegemônica nos Estados Unidos durante os anos 1960-1970, apelidada “esquerda da guerra fria” por Richard Barbrooke (2009). 26


Assim como aconteceu nos primeiros tempos da radiodifusão, nos anos 1910-1920, a internet permitiu um grande número de experiências livres, deu e ainda dá a muitos a sensação de estarem testemunhando o nascimento de uma rede aberta e democrática de comunicação. Enquanto isso, o capital extraía dessas experiências as melhores soluções para “precificar” os bits e acumular renda. Vão nascendo os Yahoo!, os Google, os Facebook, os novos líderes desta nova etapa. É comum, quando nasce uma nova tecnologia, a sociedade aceitar submetê-la a diferentes experimentos que revelarão o seu melhor desenho para os indivíduos e o seu melhor emprego pelo capital (BIJKER et alii, 1989). Num exemplo entre outros, todos nós já vimos imagens de bicicletas hoje em dia consideradas bizarras, da época em que estava nascendo este veículo. Em algum momento, uma convergência de fatores econômicos e culturais, às vezes até circunstanciais, selecionará uma solução entre outras, ou a síntese de várias delas, como aquela “preferível” por todos. Estabelecido o padrão, tanto cultural quanto econômico, inicia-se o que os neo-schumpeterianos denominam trajetória tecnológica: durante muitas e muitas décadas, meio século ou mais, uma certa indústria e o modo como a sociedade se organiza em torno dela vão evoluir esse padrão, esquecendo as outras possibilidades alguma vez experimentadas. Na radiodifusão, por exemplo, as potencialidades do radioamadorismo interativo nunca evoluiu, nas mesmas dimensões, que as do rádio unilateral controlado por grandes corporações empresariais ou estatais. Aquela tecnologia permaneceu mais ou menos estagnada durante todo o século XX e seguiu sendo do interesse apenas de uns tantos abnegados. Esta, com a adesão entusiasmada da sociedade “fordista” e permanente investimento em inovação por parte das empresas industriais e de radiodifusão, evoluiu como sabemos, do grande rádio de mesa ao pequeno portátil transistorizado, das faixas AM, OM à FM, dos formatos estáticos de transmissão a espetáculos cada vez mais dinâmicos, com cores, câmaras em várias direções, estereofonia etc. Será diferente com a internet? As lições do passado não autorizam resposta positiva. Não há porque imaginar, ao menos até agora, que das otimistas idéias e práticas do “ciberativismo”, nas quais está escassamente presente a negação do mercado e do capital, poderá nascer algo diferente no futuro. O mais discernível é o Google ou o Facebook nos dizendo qual trajetória tecnológica dominará a evolução capitalista do “ciberespaço”, conforme a lógica do consumo, da produção do espetáculo e dos interesses dos “jardins murados”. Os criadores desta suposta nova era – Bill Gates, Steve Jobs, Sergey Brin, Mark Zuckerberg, para ficarmos só nestes – tornaram-se milionários. E não foi por acaso.

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TV digital aberta: conflitos na implantação de uma nova mídia no Brasil Patrícia Maurício1 Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC – RJ) Resumo: Relato de pesquisa de doutorado para tese defendida em março de 2011 na Escola de Comunicação Social da UFRJ, sob a orientação da professora Janice Caiafa. Este trabalho analisa a implantação da televisão digital no Brasil e os conflitos políticos travados naquele momento, concluindo que os interesses das emissoras comerciais prevaleceram sobre o interesse público. Palavras-Chave: TV digital. Modelo de negócios. Interesse público. Abstract: Researsh report of thesis defended in March, 2011, at Escola de Comunicação Social da UFRJ, under the guidance of Professor Janice Caiafa. This thesis analyses the deployment of digital television in Brazil and the political struggles at that time, concluding that the interests of commercial broadcasters prevailed upon the public interest. Key words: Digital TV. Business model. Public interest. Resumen: Relato de investigación de tesis doctoral defendida en marzo de 2011 en la Escuela de Comunicación Social de la UFRJ, bajo la dirección de profesora Janice Caiafa. Este documento analiza el despliegue de la televisión digital en Brasil y los conflictos políticos encerrados en el momento, la conclusión es que los intereses de los radiodifusores comerciales prevalecen sobre el interés público. Palabras clave: TV digital. El modelo de negocio. Interés público.

Introdução

Para esta tese de doutorado busquei investigar como foi o processo de implantação da TV digital no Brasil no contexto de outros meios digitais concorrentes e dos conflitos que a precederam e sucederam, basicamente entre radiodifusores, que queriam manter seu mercado, e movimentos sociais interessados na democratização das comunicações. O interesse público e o interesse privado eram questões que estavam em jogo desde as discussões iniciais sobre o tema, ora prevalecendo um, ora o outro, nos debates e em decisões governamentais. Em 29 de junho de 2006 o presidente Lula assinou decreto instituindo o modelo tecnológico para a nova TV: seria o modelo japonês, com algumas inovações brasileiras. As transmissões do sinal começaram para São Paulo (dezembro de 2007), Rio de Janeiro e Belo 1

Professora do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio, mestre e doutora em Comunicação pela UFRJ. Trabalhou como jornalista nos jornais O Globo e O Dia, TV Bandeirantes e Rádio Jornal do Brasil AM, entre outras redações do Rio de Janeiro.


Horizonte (abril de 2008), Goiânia (agosto de 2008) e foram se espalhando pelo Brasil. De acordo com o Ministério das Comunicações, todos os municípios terão sinal digital no final de 2013 e em meados de 2016 serão desligados os sinais analógicos. O mesmo decreto que instituiu o modelo concedeu aos atuais detentores de canais de TV aberta, como as TVs Globo e Bandeirantes, o uso da frequência por mais dez anos. Antes da assinatura houve muita polêmica envolvendo diferentes grupos de interesse, debate este que pouco chegou à mídia – as emissoras de TV e jornais e revistas a elas ligados defendiam o modelo japonês e não queriam o debate sobre o tema. Mas o decreto, embora definindo alguns pontos que beneficiam as emissoras, não encerrou o assunto, pois ainda faltava a regulamentação, o que levou a uma disputa de interesses. Naquele momento, os atores envolvidos eram representantes da sociedade civil organizada; cidadãos interessados em democratizar os meios de comunicação, em especial profissionais e acadêmicos de informática, engenharia de telecomunicações e, mais tarde, de comunicação; e as emissoras de TV comerciais. Companhias telefônicas e fabricantes de equipamentos também atuavam na questão. A TV digital traz uma série de vantagens para o espectador, como parar o programa, sair e recomeçar do ponto em que parou quando voltar (inclusive pulando os comerciais, o que promete dar uma reviravolta na publicidade); parar o programa e comprar um item que aparece na tela pelo controle remoto; assistir ao jogo de futebol do ponto de vista da sua torcida, com o áudio dela, além de abrir janelas para ver o jogo por outros ângulos e enviar mensagens de texto aos amigos comentando as jogadas. No início das discussões sobre o novo meio, as emissoras logo pensaram nas vendas. Já o governo pensou em usar o novo meio para educação à distância e serviços, como marcações de consultas no SUS. Tecnicamente, no espaço em que no sistema analógico é enviado um único canal (seis megahertz), com a compressão digital dos dados pode-se optar pela multiprogramação. De acordo com o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPqD)2, com a compressão em Mpeg3 2 é possível enviar quatro programas diferentes na banda de frequências de 6 megahertz, e com Mpeg 4 (H.264), oito programas, em definição padrão

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Modelo de referência: sistema brasileiro de televisão digital terrestre. Funttel – Projeto Sistema Brasileiro de Televisão Digital, OS 40539, Campinas, p. 13. Consultado em: http://www.fndc.org.br/arquivos/Modelo_referencia.pdf. 3 Mpeg (Moving Pictures Expert Group) define padrões para a compressão e transmissão de áudio e vídeo. Mpeg 2 equivale a imagens em movimento e áudio a uma taxa de 10 Mbps.


(Standard Definition, SD), que equivale à qualidade do DVD. A alta definição (High Definition, HD) ocupa mais espaço. O áudio também pode ser estéreo ou surround, com seis canais. Cada país pode fazer a opção que quiser dentro destas possibilidades, transmitindo, por exemplo, só em HD, só em SD ou os dois tipos. Se o país decidisse ter quatro canais na banda de seis megahertz e cada um deles fosse entregue a um concessionário diferente, poderíamos ter na TV aberta e gratuita VHF 28 canais em vez dos atuais sete, com mais vozes falando ao telespectador. Isso poderia ser um problema para as atuais emissoras, que temem dividir o bolo publicitário com outras, e para as empresas de TV por assinatura, pois muita gente que hoje as assina para melhorar a imagem e ter um pouco mais de opção poderia cancelar o serviço. A interatividade através da televisão se divide em local e plena. A local permite que o telespectador interaja com conteúdos previamente armazenados pela emissora, como o acesso a um texto que dê mais informações sobre uma notícia veiculada e vídeos adicionais. A interatividade plena permite que o telespectador interfira na programação enviada para todos, votando, enviando informações, etc. No primeiro governo Lula havia a perspectiva de canais de serviços, para governos, bancos, etc. Para isso, é necessário um canal de retorno do televisor para as emissoras. Este canal de retorno pode ser pelo telefone fixo, celular, banda larga e até mesmo pela rede elétrica, opção mais recente e ainda não tão bem aceita por problemas técnicos não totalmente resolvidos. A portabilidade/mobilidade tornou possível assistir televisão em aparelhos portáteis e telefones celulares, inclusive dentro de veículos em alta velocidade. A digitalização também possibilitou a transmissão e recepção em alta alta definição (High Definition TV ou full hd). A imagem é formada por 1080 linhas (contra 520 linhas da analógica), cada uma com 1920 pixels, e 60 quadros por segundo. Além disso, é possível gravar programas no disco rígido do televisor (hard disk, outra sigla HD), um prenúncio do fim da grade de programação, já que o telespectador passa a acessar (usando uma nomenclatura já do campo da informática) o programa na hora que quiser. Ao mesmo tempo em que os processos de pesquisa, escolha e implantação relativos à TV digital aberta se desenrolam no Brasil, ocorre também o crescimento de outras mídias digitais que concorrem com a televisão por audiência: a internet, o celular (com internet e televisão) e a TV por assinatura, a qual se digitalizou antes mesmo da TV aberta. Muito se discutiu também, neste período, sobre convergência de mídias. No caso do Brasil, uma vez que mais de 90% das casas possuíam televisor, na época parecia lógico para muitos pesquisadores e integrantes do governo federal que o projeto de TV digital fosse usado para fazer a inclusão


do maior número possível de brasileiros ao mundo digital. Seria mais rápido que colocar computadores neste mesmo número de casas. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE de 2008 (divulgada em 2009), o número de domicílios com computador equivalia a 31,2% do total, sendo que apenas 23,8% com internet. Fomos acompanhando e analisando estes acontecimentos e a forma como os atores envolvidos na questão atuavam e reagiam a eles. Metodologia

Busquei ouvir as principais partes envolvidas e acompanhar seminários e congressos sobre o tema, boletins na internet e reportagens do jornal O Globo – diretamente interessado na questão por ser da mesma organização empresarial da TV Globo, emissora de TV aberta que defendeu seus interesses comerciais ao longo do processo de escolhas da TV digital brasileira. As análises feitas a partir da coleta dos dados levam também em conta que televisão é um serviço público outorgado pelo governo federal. Foi muito importante para esta pesquisa a análise dos documentos, entre os quais o decreto 4.901 de 26 de novembro de 2003, que determinou os objetivos do governo para a TV digital aberta brasileira, e a exposição de motivos do então ministro das Comunicações; o modelo de referência para a TV digital elaborado pelo Centro de Pesquisas e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPqD); o decreto 5.820, de 29 de junho de 2006, que implantou a TV digital alterando os objetivos do governo para o novo meio; a carta de lançamento da Frente Nacional por um Sistema Democrático de Rádio e TV; além das leis já existentes para o setor de comunicação, como a Lei das Telecomunicações e as legislações para a radiodifusão e para a TV por assinatura. Os documentos puderam apontar as posições do governo em momentos diferentes, as dos pesquisadores e as do movimento popular. A pesquisa analisa a luta entre interesse público e interesses comerciais na TV digital aberta, e vai buscar na história da radiodifusão brasileira, a partir de bibliografia, entrevista e uma revista da década de 20, alguns outros momentos cruciais em que estes interesses se chocaram. Estes momentos são importantes para entender por que a questão da TV pública teve um papel relevante durante o processo de digitalização da TV. Outra questão sobre a qual me debrucei foi a democratização das comunicações, expressão e tema que surge dos discursos do movimento popular e acadêmico – aos quais temos acesso através de entrevistas, publicações e bibliografia – e também nos discursos iniciais do governo.


O problema de pesquisa foi, portanto, mapear e analisar como foi se desenrolando o conflito de interesses na fase de implantação da TV digital; como era o contexto em termos de meios digitais que, ao mesmo tempo, faziam concorrência para a TV digital aberta em termos de audiência, e eram outra forma de trazer a inclusão digital e democratizar as comunicações; que ações foram empreendidas pelas emissoras de TV aberta para mobilizar seus interesses – basicamente evitar mais concorrência no espectro de frequências e manter o modelo de negócios; de que forma os movimentos sociais se posicionaram, como faziam a defesa do interesse público e como caracterizavam o interesse público. No início da pesquisa havia pouquíssima bibliografia sobre o tema do ponto de vista da comunicação. O assunto ainda era tratado prioritariamente por profissionais de engenharia de telecomunicações e de informática. Ao longo do trabalho isso foi mudando, embora as referências bibliográficas ainda sejam escassas. Tratando especificamente de TV digital, utilizo como referência principal os trabalhos dos pesquisadores Valério Brittos, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), e César Bolaño, da Universidade Federal de Sergipe. Porém, outros autores têm trabalhos relevantes nesta área e também foram utilizados na tese. Em seus livros e artigos, Bolaño e Brittos tratam do tema sob o ponto de vista da economia política da comunicação, a partir do qual esta tese também se coloca. Acredito que observando as questões econômicas e disputas políticas (que em muitos casos têm as questões econômicas como condicionantes) é possível compreender os rumos tomados nos debates e nas decisões de governo, empresariais e nas ações dos movimentos sociais. Cruz (2008), por sua vez, analisa do processo da TV digital partindo do seu trabalho como repórter do jornal Estado de São Paulo fazendo a cobertura do tema e chegando a uma tese de doutorado sobre o assunto, a qual englobava também o início da televisão brasileira. Estes autores muito contribuíram para o meu trabalho. Alguns autores que são referência bibliográfica para esta tese são, ao mesmo tempo, participantes do processo de implantação da TV digital no país como integrantes do movimento social, e/ou como militantes acadêmicos e/ou como integrantes ou contratados do governo federal para fazer pesquisas sobre TV digital e ajudar na definição do modelo. É o caso de Bolaño e Brittos, Adílson Cabral Filho, Regina Mota, Takashi Tome e vários outros. Procurei explicitar estes casos ao longo do trabalho. Em seus textos, invariavelmente, havia uma defesa dos objetivos do governo na fase inicial dos governos Lula, quando o ministro das Comunicações era Miro Teixeira. Martins e Holanda, por exemplo, afirmavam, quando analisavam para o governo federal uma definição para o modelo nacional, que “o governo dá


ênfase à utilização desse veículo de comunicação como plataforma para inclusão social e para a redução das desigualdades de informação, educação e renda experimentadas pelo país” (2005, p. 174). O governo mudou de curso no meio do caminho, enquanto os acadêmicos mantinham sua posição. Considero que meu trabalho tem inspiração etnográfica por este convívio com as fontes primárias no momento mesmo em que se desenrolava o processo que criava as feições da nova televisão, mas é também uma abordagem sócio-histórica do tema. O período de coleta de dados para esta tese foi do início de 2003 (antes do início da pesquisa, em 2006) a meados de 2010. A intenção inicial era encerrar a coleta de dados quando estivesse encerrado o processo de criação do marco regulatório ou, caso não houvesse terminado ainda, no final de 2009, para dar tempo de analisar os dados. No entanto, o marco regulatório jamais foi criado. Apesar do prazo estabelecido inicialmente, o acompanhamento do tema continuou sendo feito ao longo de 2010, e alguns dados considerados importantes para a pesquisa foram inseridos no texto e nas análises. Utilizei fontes primárias e secundárias. As fontes primárias, necessárias pelo fato de o processo estar ainda se desenrolando, foram entrevistas com pessoas envolvidas com a questão da TV digital e palestras e debates sobre o tema. As secundárias foram reportagens em jornais e na internet e boletins on line. No caso específico do acompanhamento das reportagens do jornal O Globo, trata-se de uma fonte secundária, que traz as notícias, mas também de objeto de estudo, pelo fato de ser uma empresa com interesses específicos no tema, e suas reportagens poderiam refletir estes interesses. O acompanhamento do jornal foi diário, a partir de janeiro de 2003, até o encerramento da escritura da tese, em novembro de 2010 – embora as reportagens dos últimos meses não tenham sido utilizadas, uma vez que não haveria tempo para analisá-las apropriadamente. Foi feito também o acompanhamento via internet de boletins on line de movimentos pela democratização das comunicações, como o Observatório do Direito à Comunicação, o 7 Pontos e o Boletim Prometheus. Outras reportagens de jornais, revistas e da internet foram utilizadas, mas sem que tivesse havido um acompanhamento sistemático da cobertura feita pelos órgãos de imprensa escrita ou eletrônica que as veicularam. As entrevistas foram feitas nos anos de 2008 e 2009, tanto pessoalmente quanto por email e telefone. A amostra de entrevistados foi escolhida tendo em vista serem eles personagens de destaque na construção de um modelo de TV digital. Foram feitas 15 entrevistas, com empresários, funcionários de empresas (como produtoras de vídeo),


funcionários do governo, integrantes do movimento popular e acadêmicos. As palestras e debates aos quais compareci ocorreram de março de 2006 a agosto de 2009. Por uma questão de limitação financeira, os eventos foram todos no Rio de Janeiro, mas isso não chegou a representar um problema, uma vez que a maior parte das organizações populares de defesa da TV digital democrática estava sediada ou tinha representantes no Rio; a maior emissora de TV tem sede na cidade e as demais têm filiais e sempre enviavam representantes de São Paulo para as palestras; a TV Brasil nunca participou dos debates, mas tem sede no Rio; e o Ginga, programa de computador que faz a interatividade, nasceu na cidade. Entrevistas em vídeo feitas por terceiros e gravação de palestras às quais não assisti também foram utilizadas, englobando o período de 2006 a 2009. O trabalho se estrutura em três capítulos. A partir de sugestão do professor João Freire Filho (ECO-UFRJ) no exame de qualificação a estrutura da tese, que a princípio começaria com o início do rádio para depois partir para a TV digital, foi reorganizada. O primeiro capítulo começa a cortar a história da televisão digital em ordem cronológica, até o fim do ano de 2005, no qual o ex-funcionário da TV Globo Hélio Costa tornou-se ministro das Comunicações. Neste capítulo, podemos acompanhar e analisar as movimentações do governo federal, chegando ao primeiro decreto sobre TV digital, que abria a possibilidade de criação de um padrão nacional, a mudança de rumo do governo em prol do padrão japonês, as estratégias das emissoras e dos lobistas internacionais, assim como as expectativas dos movimentos sociais e de acadêmicos engajados no processo. O capítulo busca também mapear as razões do poder político das Organizações Globo. No capítulo 2, a análise dos acontecimentos prossegue passando pelo segundo decreto do governo Lula para a TV digital, a reação dos movimentos sociais, as contradições entre discurso e ações das emissoras, a apatia das produtoras de vídeo, a movimentação das companhias telefônicas, da TV por assinatura e como a internet vinha ganhando terreno. A criação (ainda em curso) de uma legislação unificada para a TV por assinatura também é abordada. O capítulo 3 faz uma volta ao passado para mostrar que as disputas entre interesse público e interesse comercial remontam aos primórdios da radiodifusão, quando Roquette-Pinto e outros defensores do rádio público tentavam evitar que o veículo fosse financiado pela publicidade e, por consequência, beneficiasse o mercado e não um projeto de inclusão cultural e educacional do povo. O mesmo espírito de defesa dos interesses do cidadão presidiu as primeiras tentativas de criação de emissoras públicas de TV, e o capítulo chega ao momento da


criação da TV Brasil. Para analisar a situação atual da TV Brasil, fiz entrevistas com funcionários e uma visita a emissora.

Análise de resultados e conclusões

Neste trabalho defendo que interesse público é algo em benefício de toda a sociedade (no caso, a brasileira), em oposição ao interesse comercial, que coloca o lucro em primeiro lugar, mesmo que isso signifique evitar que benefícios cheguem à população. Ao mostrar o que ocorreu no início do rádio e no início da TV digital, observo que houve um embate entre interesse público e interesse comercial. No caso da década de 20, Roquette-Pinto defendia o interesse público a partir de um ponto de vista específico, de levar educação e cultura para o povo, enquanto hoje se fala em inclusão digital. No entanto, se reduzirmos as questões das duas épocas à sua origem, veremos que Roquette-Pinto queria, com seus objetivos, evitar que o povo fosse explorado pelos poderosos; queria, através de seu idealismo, a inclusão daquele povo excluído. A mesma inclusão que os movimentos sociais queriam na implantação da TV digital, cada qual dentro do contexto da sua época. Apesar dos muitos anos em que fui repórter de economia em grandes redações do Rio de Janeiro - quando pude observar as disputas de interesse, as manobras, os meios políticos para se atingir fins econômicos, e como era difícil prevalecer o interesse público sobre o interesse pelo lucro de alguns poucos poderosos – não escapei de uma certa ingenuidade ao começar a pesquisar o assunto TV digital, ainda antes de entrar no doutorado. Estava encantada com uma oportunidade de democratizar as comunicações e com as intenções do governo Lula nesta área. A interatividade plena poderia modificar a vida de muita gente para melhor, tornar a vida dos brasileiros mais fácil sob vários aspectos. Foi só com a pesquisa no doutorado, já com um acompanhamento mais metódico do assunto, é que eu tive que deixar aquele encantamento de lado e comecei a perceber que, mais uma vez, interesses privados pelo lucro usavam meios políticos para se sobrepor ao interesse público. Mas para evitar uma visão “mocinho e bandido” da situação eu tive que me debruçar sobre o que é interesse público, o que é democratização das comunicações, entre outros conceitos, porque, como diz o cientista Boaventura Santos, e trocando apenas a ordem em que ele fala, não é preciso ter uma neutralidade numa sociedade injusta, mas temos que ser


objetivos (SANTOS, 2007, p. 23)4. Essas questões da neutralidade e da objetividade foram constantes no meu pensamento ao longo do trabalho, porque eu temia correr o risco de transformar a tese em panfleto. Nessa questão que eu já mencionei dos mocinhos e bandidos, eu comecei também com uma certa ingenuidade achando que, no fim, eu conseguiria mesmo, cientificamente, desvendar quem era o mocinho e quem era o bandido. Mas, de novo, cheguei a algo mais multifacetado. As Organizações Globo usaram de fato de métodos antidemocráticos para garantir seu mercado e o seu lucro, sem preocupação maior com o interesse público. Por outro lado (e isso não justifica coisa alguma) ela está acossada pela internet e outras mídias. A internet ameaça a hegemonia das Organizações Globo nas comunicações brasileiras, e por conta disso ela já vem há anos entrando neste mercado, com portais de notícias, entretenimento, redes sociais, etc, mas isso não garante que ela vá dominar este novo mercado no Brasil e manter a posição que tem enquanto a TV ainda é o meio dominante no país. E quando comparamos o poder econômico da Globo com o das telefônicas, e lembramos que só uma das telefônicas é brasileira, pode ser motivo de preocupação pensar que a hegemonia de uma empresa nacional pode ser substituída pela de uma empresa estrangeira no campo das comunicações. E então, analisando um pouco mais, se vê que as telefônicas só estão querendo entrar no mercado ocupado pelas atuais emissoras de televisão porque o seu domínio está sendo ameaçado pela internet, através da transmissão de voz sobre protocolo de internet, como o Skype, que já está fazendo as telefônicas perderem receita, entre outras ameaças. Ao mesmo tempo, olhamos para a profunda democratização que a internet pode trazer e vem trazendo, com suas milhares possibilidades de blogs, comunidades, várias vozes podendo ser ouvidas, as redes sociais e seu poder coletivo – e de fato isso existe – e acabamos vendo também que grandes empresas, como a Google e a Apple, já dominam boa parte desse universo. Muita gente já tem a vida nas mãos da Google, com o g-mail, se guia pelo google maps, todos os seus arquivos na nuvem, etc, numa nova construção de hegemonia. Neste contexto a Globo aparece pequena, tentando defender seu espaço na comunicação do Brasil. Muita coisa está mudando, mas isso não faz com que o interesse público tenha conseguido mais poder no país. Ao mesmo tempo, nessa vida líquida em que estamos, o

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Vamos, portanto, discutir como podemos, no que diz respeito à ciência, ser objetivos mas não neutros; como devemos distinguir entre objetividade e neutralidade. Objetividade, porque possuímos metodologias próprias das ciências sociais para ter um conhecimento que queremos que seja rigoroso e que nos defenda de dogmatismos; e, ao mesmo tempo, vivemos em sociedades muito injustas, em relação às quais não podemos ser neutros. Devemos ser capazes de efetuar essa distinção, que é muito importante.


interesse público parece uma coisa fora de moda, o que realmente importa é o consumo. A pesquisa sobre o desenrolar da TV digital no Brasil desde o seu início esbarrou e se entrelaçou com todos esses acontecimentos, e como cada uma dessas coisas tem um impacto direto ou indireto sobre a televisão, achei que elas deveriam ser contempladas. Pareceu necessário ampliar o foco para entender o contexto e voltar a focalizar na TV digital, sabendo que ela estava sendo modelada na relação com estes acontecimentos e interesses econômicos. Ficou muito claro que a defesa da democratização das comunicações, com multiplicidade de “canais” de TV, esbarrou na recusa das emissoras em dividir o bolo publicitário – o montante que as empresas disponibilizam para investir em publicidade não aumentaria caso aumentasse o número de emissoras de TV. Outra conclusão é de que a interatividade esbarrou no apego das emissoras ao seu antigo modelo de negócios. Elas de fato não conseguiram visualizar um modelo que tornasse o negócio tão lucrativo quanto antes caso a interatividade fosse obrigatória. Se um telespectador começa a interagir com um programa, o tempo que esta interatividade vai tomar provavelmente vai fazer com que ele não assista os anúncios do próximo intervalo comercial. E mesmo um anúncio interativo vai concorrer com o próximo, e em pouco tempo os anunciantes perceberiam isso. As emissoras sabem que este modelo de negócios de intervalos comerciais não vai durar para sempre numa era de gravadores digitais nos televisores e de programação sob demanda nas TVs por assinatura, mas enquanto puderem manter um modelo que ainda é tão lucrativo, farão isso. A interatividade através do televisor, que elas chegam a elogiar e a contratar empresas para criar protótipos, vem sendo sempre adiada pelas emissoras comerciais. O que se desenvolveu em seu lugar foi a interatividade com programas via internet, não apenas com chats e envio de vídeos, mas também com sites de programas de TV que complementam a história, trazem dados que não estão nos programas e permitem até mesmo interagir com personagens de novelas. Isso, não custa lembrar, para quem tem acesso a internet. A TV Brasil foi criada como uma espécie de “válvula de escape” para alguns dos defensores da democratização das comunicações no governo Lula, que se sentiram frustrados com o rumo da TV digital. Cercada de muitas utopias, a TV Brasil está longe de cumprir o papel idealizado e não parece estar nesse caminho. Ao longo da construção da tese percebi também que a questão da TV digital não significava apenas a democratização do meio para o público. Era também uma questão de política industrial. Um padrão brasileiro equivaleria a centros de pesquisa e pesquisadores qualificados, o país como detentor de uma tecnologia, a produção feita aqui e não apenas a


montagem de kits importados e provavelmente exportação de produtos com alto valor agregado. Algo que me surpreendeu na coleta de dados para esse trabalho foi a queda de audiência das redes de TV aberta. Pesquisei alguns dados em relação a esse fenômeno, e pretendo ainda fazer uma pesquisa mais aprofundada sobre ele, mas naquele momento não era meu tema central. Uma das grandes expectativas dos defensores da democratização das comunicações para a TV digital era a inclusão digital do povo brasileiro via televisão. Com o atraso da interatividade na TV, e a internet, mídia interativa por excelência, começando a se espalhar (embora ainda muito distante da universalização da TV), muitos interessados no tema começaram a se fazer a seguinte pergunta: não vai acabar sendo irrelevante a interatividade na TV digital? Do ponto de vista da inclusão digital, a opção de a internet se disseminar pela população seria muito positiva, e de fato não haveria necessidade de TV digital interativa. Inclusive durante a pesquisa eu constatei que não há muito interesse por parte dos telespectadores de países desenvolvidos, que têm a internet disseminada, em interagir com a TV além do básico de menu e gravação de programas e, com esse desinteresse, as emissoras acham que é um custo desnecessário. Nesse caso a TV digital aberta interativa, com todo o seu potencial democrático, praticamente nasceria morta. Mas a rápida disseminação da internet no Brasil ainda é uma incógnita. O Plano Nacional de Banda Larga e outras iniciativas para levar internet à população, especialmente a de baixa renda, são bons indicativos de que isso pode acontecer, mas ainda estamos longe de chegar lá. Existe ainda a ameaça de a internet chegar a boa parte da população, mas não a maioria, deixando os mais pobres de fora. A TV digital seria a opção para estes, mas se a televisão perdesse verba publicitária, com a queda de audiência para outros meios, dificilmente decidiria investir na inclusão digital, uma vez que não há regulação que obrigue as emissoras a isso. Então a regulação – leis e regras para a TV digital e para a comunicação como um todo – é algo que considero muito importante. É dessa forma, política, que a sociedade pode dizer que tal tecnologia deve ser usada de tal maneira para benefício da própria sociedade, de seus cidadãos. No início da pesquisa, eu esperava a definição desse marco regulatório, inclusive no planejamento da pesquisa estava terminar de apurar informações no momento em que fosse criado o marco regulatório. Mas ele nunca existiu, tudo foi deixado às forças do mercado, e isso significou ficar à mercê da lei do mais forte.


Boa parte da questão que veio moldando a TV digital brasileira se resume ao modelo de negócios. Tem como rentabilizar isso? A minha lucratividade vai ser afetada? Essas são as perguntas das emissoras e também dos fabricantes de equipamentos, e são essas perguntas que norteiam o que o brasileiro vai ou não ter em sua TV digital. Em vez disso, poderia haver uma política pública que fosse a resposta a outras perguntas: em que a TV digital pode ser mais útil ao povo brasileiro? Que regras as emissoras e fabricantes de televisores e conversores devem seguir para que estes serviços cheguem à população? Mas o segundo decreto do governo Lula não partiu de perguntas como essas últimas. Os números de audiência mostram que a televisão ainda é um meio de comunicação central na sociedade brasileira, e por isso é um tema importantíssimo nos estudos da comunicação. E a televisão está se transformando. E essa transformação está se dando num contexto de luta política, e não por consenso. Entender o que está acontecendo, que interesses estão em jogo, como isso afeta a vida da população brasileira é algo que considero fundamental para nos, cidadãos. Referências BARBOSA FILHO, André, CASTRO, Cosette & TOME, Takashi (orgs). Mídias digitais: convergência tecnológica e inclusão social. São Paulo: Paulinas, 2005. BOLAÑO, César R & BRITTOS, Valério C. A televisão brasileira na era digital: exclusão, esfera pública e movimentos estruturantes. São Paulo, Paulus, 2007. _ (Orgs.) Rede Globo: 40 anos de poder e hegemonia. São Paulo: Paulus, 2005. _ “A economia política do mercado brasileiro de televisão”. In: BARBOSA FILHO, André, CASTRO, Cosette & TOME, Takashi (orgs). Mídias digitais: convergência tecnológica e inclusão social. São Paulo: Paulinas, 2005. _ “TV pública, políticas de comunicação e democratização: movimentos conjunturais e mudança estrutural”. Trabalho apresentado na 17ª Compós, na Universidade Paulista, São Paulo, SP, em 4 de junho de 2008. _ “Televisão digital, convergência e transição tecnológica no Brasil”. In: FECHINE, Yvana & SQUIRRA, Sebastião (orgs.). Televisão digital: desafios para a comunicação. Porto Alegre, Sulina, 2009. BRITTOS, Valério C. Tv digital, economia política e democracia. São Leopoldo, RS: Editora Unisinos, 2010. CABRAL FILHO, Adílson & TAVEIRA, Eula. “Começar de novo: sobre o controle público como perspectiva para o modelo brasileiro de televisão digital”. In: BARBOSA FILHO, André, CASTRO, Cosette & TOME, Takashi (orgs). Mídias digitais: convergência tecnológica e inclusão social. São Paulo: Paulinas, 2005. CRUZ, Renato. TV digital no Brasil: tecnologia versus política. São Paulo: Editora Senac, 2008.


FECHINE, Yvana & SQUIRRA, Sebastião (orgs.). Televisão digital: desafios para a comunicação. Porto Alegre, Sulina, 2009. JENKINS, Henry. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2009. MARTINS, R. B. & HOLANDA, Giovanni de M. “O projeto do Sistema Brasileiro de TV Digital Terrestre”. In: BARBOSA FILHO, André, CASTRO, Cosette & TOME, Takashi (orgs). Mídias digitais: convergência tecnológica e inclusão social. São Paulo: Paulinas, 2005. MOTA, Regina. “Os desafios da TV digital no Brasil”. In: BARBOSA FILHO, André, CASTRO, Cosette & TOME, Takashi (orgs). Mídias digitais: convergência tecnológica e inclusão social. São Paulo: Paulinas, 2005. _ “Novos formatos para a TV digital no Brasil”. In: FECHINE, Yvana & SQUIRRA, Sebastião (orgs.). Televisão digital: desafios para a comunicação. Porto Alegre, Sulina, 2009. ROQUETTE PINTO, Edgard. “O nosso anniversario”. In: Radio. Outubro-1. 1924. _ “Cinzas de uma fogueira (pelo rádio – 1923-1926)”. In: MEDITSCH, Eduardo & ZUCULOTO, Valci (org.). Teorias do rádio: textos e contextos. Florianópolis: Insular, Vol. II, 2008. SANTOS, Boaventura de S. Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social. São Paulo, Boitempo, 2007. _ & MENESES, Maria Paula. Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.


Mídia étnica em Portugal: a construção de representações identitárias na revista Afro Rosangela Ferreira de Carvalho Borges1

Universidade de Coimbra - Portugal Resumo: Este relato de pesquisa consiste na apresentação dos resultados de uma primeira parte da pesquisa de pós-doutoramento em andamento no Departamento de Filosofia, Comunicação e Informação da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (Portugal), financiada pela FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior de Portugal, que tem como objetivo identificar e analisar (pesquisa quali-quantitativa) quais as estratégias midiáticas utilizadas pela revista Afro - primeira publicação portuguesa e comercial, etnicamente segmentada, dirigida à comunidade africana em Portugal - na construção de representações identitárias dos negros africanos dos PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa, nomeadamente Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe) e seus descendentes em Portugal. Palavras-Chave: Análise de Conteúdo; Identidade Étnica; Comunidade Africana; Mídia Impressa.

Abstract: The present paper reports the quantitative results of an ongoing post-doctorate’s research, fostered by the University of Coimbra and it’s Philosophy, Communication and Information Department based on the Faculty of Letters, with the endorsement of Fundação para a Ciência e Tecnologia do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior de Portugal (Foundation for Science and Technology and Education) having as gold identify and analysis, under a qualitative-quantitative scope, what are the media’s strategies used, by the first commercial Portuguese mass media – Afro magazine – directed to the African Community in Portugal, in the building-up of identity representations of the black african

1

Pós-doutoranda na Universidade de Coimbra (Portugal), Doutorado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP – Universidade de Coimbra (Portugal), Professora Universitária e Jornalista.


from PALOP (Portuguese – speaking Countries Angola, Cape-Vert, Guine-Bissau, Mozambique and St. Tome y Prince) and their descendants. Keywords: Content Analysis; Ethnic Identity; African Community; Press Media.

Resumen: Esta comunicación es la presentación de los resultados científicos de la primera parte de una investigación post-doctoral en curso en el Departamento de Filosofía de la Información y la Comunicación, Facultad de Letras de la Universidad de Coimbra (Portugal), financiado por FCT - Fundación para la Ciencia y Tecnología del Ministerio de Ciencia, Tecnología y Enseñanza Superior de Portugal, que tiene como objetivo identificar y analizar (cualitativo / cuantitativo) que las estrategias de los medios de comunicación utilizados por la revista África - la publicación portugueses y comerciales destinadas étnica, dirigida a la comunidad africana en Portugal - la construcción de las representaciones de la identidad del negro africanos PALOP (Países Africanos de Lengua Oficial Portuguesa, a saber, Angola, Cabo Verde, Guinea-Bissau, Mozambique y Santo Tomé y Príncipe) y sus descendientes en Portugal. Palabras Clave: Análisis de Contenido; Identidad Étnica; Comunidad del África; Medios Impresos. Introdução

Apoiando-nos na análise de conteúdo computadorizada no Statiscal Package for Social Scienses – SPSS, responsável pela organização de categorias descritivas (variáveis), distribuídas nas modalidades forma, conteúdo e discurso, apresentamos alguns dos resultados extraídos dos dados estatísticos recolhidos a partir de um corpus de análise constituído por 142 peças (gêneros jornalísticos Nota, Notícia, Reportagem, Perfil, Entrevista, Comentário/Opinião/Crítica/Crônica e Publireportagem), durante os anos de 2008, 2009 e 2010. A utilização de tal método de análise é uma prática recorrente atualmente nos estudos sobre os media e o jornalismo, na medida em que tais variáveis auxiliam na sistematização, nomeadamente quantitativa e qualitativa, de um corpus de análise, reunindo as vantagens de emparelhar, comparar e interrogar grande quantidade de dados previamente recolhidos. O SPSS é uma ferramenta quantitativa, porém agrega um forte componente qualitativo em função dos próprios procedimentos teóricos que se encontram na base da criação de variáveis/indicadores desenvolvidas por cada pesquisador e


adaptadas sempre à realidade das necessidades apresentadas no decorrer da própria pesquisa. Contextualização sócio-histórica da revista Afro em Portugal

Durante longas décadas, conhecido por ser um país de emigração, somente nos últimos trinta anos Portugal assiste a entrada de número significativo de população estrangeira. O grande fluxo migratório para Portugal dá-se efetivamente após a independência das colônias africanas (Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, denominados Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa PALOP) entre os fins da década de 1970 e início da década de 1980. Assim, a independência das ex-colônias africanas na década de 1970, juntamente com a Revolução de 25 Abril de 1974 em Portugal que determinou o fim da ditadura salazarista, trouxeram cerca de meio milhão de pessoas para o país, entre ex-colonos, descendentes e aderentes de origem africana ou luso-africana. A partir de 1980, a imigração para Portugal proveniente dos PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa), constituída maioritariamente por mão-de-obra não qualificada, com fracos níveis de escolaridade, ocupou os setores da construção civil e obras públicas, no caso dos homens, e os serviços domésticos e de limpeza, no caso das mulheres. Já a década de 1990 foi marcada pelos resultados dos Acordos de Schengeni, que constituíram uma fronteira única na Europa entre os Estados-Membros de Schengen, desencadeando a vinda de imigrantes não só dos países do Leste Europeu devido a estes acordos, mas também do Brasil através de acordos luso-brasileiros. Diante de tal contexto, nos anos de 1980 e 1990 a imigração deixou de ser uma componente menor do movimento da população para Portugal. Estima-se que nesta primeira década do século XXI

a

sociedade

portuguesa

conta

com

400

mil

imigrantes,

aproximadamente 10% da população ativa e 5% da população total do país.

representando ii

Estatisticamente, os cidadãos africanos dos cinco países dos PALOP (Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe) configuram a segunda população imigrante mais representativa em Portugal, com cerca de 140 mil residentes, perdendo apenas para os provenientes dos treze países da Europa (Alemanha, Bélgica, Espanha, França, Holanda, Itália, Reino Unido, Bielorússia, Bulgária, Federação Russa, República Moldava, Romênia, Ucrânia) com 184 mil residentes. Tais números referem-se, todavia, a residentes legais (portadores de uma autorização de residência).


Nota-se, assim, que tanto é recente a imigração em Portugal como a construção de uma percepção da população portuguesa em relação à imigração. E, em grande parte, essa perspectiva decorre da posição social e do local de habitação desses imigrantes, enfatizada, em sua maioria, pelos noticiários nas mídias sobre temáticas que envolvem a imigração, nas quais os jornalistas persistem em relacionar imigrantes, pessoas negras, pessoas socialmente desfavorecidas com a temática da criminalidade, configurando-se tal procedimento como um ato de preconceito e discriminaçãoiii frente a esses indivíduos. Ao mesmo tempo, os jornais em Portugal parecem não ter, ainda, uma compreensão nítida das questões que perpassam a imigração e sequer a consciência das possíveis leituras preconceituosas e discriminatórias que determinados enquadramentos de matérias jornalísticas acabam por adquirir.iv Assim, somente após quatro décadas do início do grande fluxo migratório de africanos, descendentes e aderentes provenientes de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, em fevereiro de 2008 é lançada a primeira publicação de massa, etnicamente segmentada e dirigida especialmente à comunidade negra africana dos PALOP: a revista Afrov. A revista Afro dirigida, sobretudo, à comunidade negra africana feminina, de todas as idades, que vive em Portugal, também teve lançamento simultâneo em outros países em que a comunidade africana de língua portuguesa possui forte presença. A equipe de profissionais responsáveis pela produção da revista Afro foi assegurada pela redação de outra publicação feminina, a Mulher Moderna, do mesmo grupo editorial Impala, sendo reforçada por uma pequena equipe de jornalistas de origem africana, constituída por Paula Machava Seibert, editora, moçambicana que vive em Portugal há sete anos; Virgínia Esteves, diretora, Angolana, que veio para Portugal em 1975, com 9 anos de idade e Nuno Dias, jornalista, que nasceu em Portugal, mas que é proveniente de uma família africana. A equipe de jornalistas da revista Afro foi também constituída em sincronia com a própria linha editorial da revista com o objectivo de atingir como público-alvo, principalmente, a mulher africana. Valores da cultura africana, como gastronomia, artes plásticas, música; histórias de vida de africanos e seus descendentes mais especificamente histórias de vida de “personagens de sucesso pertencentes à comunidade africana” -, além dos temas relacionados às necessidades específicas do padrão estético-étnico da mulher negra africana, como moda, beleza são os temas mais abordados pela revista Afro. Do volume 1 ao 5 a revista circulou mensal. A partir dos volumes 6, 7, 8 a sua periodicidade passou a ser bimestral. Após a edição do volume 8 da revista,


correspondente aos meses de novembro e dezembro de 2008, a equipe de jornalistas da revista foi extinta, passando a contar apenas com colaboradores esporádicos e a circular também esporadicamente no mercado editorial. Posteriormente à publicação do volume 8 e com a extinção da equipe profissional, a revista passou a ser considerada pelo mercado editorial como fora de circulação, apesar da circulação esporádica de um ou outro número (volume 9, datado de maio/junho de 2009, e volumes 10 e 11, referentes ao ano de 2010). Nota-se que o processo percorrido pela publicação da revista Afro desde o seu lançamento em fevereiro de 2008 quando surge como um produto editorial impresso de massa inédito no mercado editorial português, passando por um curto período de fixação e estabilização neste mesmo mercado e junto ao seu público-alvo até a sua extinção, é de apenas um ano. Análise referente à Forma da Revista Afro

Do corpus de análise constituído por 142 peças da revista Afro, no que se refere ao ano de publicação, 96 peças (67%) foram recolhidas das publicações datadas do ano de 2008, 35 peças (25%) de 2010 e apenas 11 peças (8%) correspondente às publicações de 2009. Gráfico nº1 – Ano da Publicação

Ao considerar a classificação quanto à periodicidade da revista, os volumes mensais somaram 61 peças (43%), os bimestrais 46 (32%) e os semestrais 35 peças (25%). Gráfico nº2 – Tipo da Revista (N=142)


Os resultados dos dados apresentados sobre o ano de publicação e a oscilação da periodicidade da revista demonstram o curto tempo de permanência da mesma no mercado editorial português, uma vez que Afro foi lançada em fevereiro de 2008, quando surge como um produto editorial de massa inédito em Portugal, passando por um curto período de fixação e estabilização neste mesmo mercado e junto ao seu público-alvo (a circulação da revista permanece mensal apenas até junho de 2008) até a sua extinção. No que diz respeito ao gênero jornalístico, a reportagem é a mais recorrente (72 peças - 51%), seguida de entrevista (33 peças - 23%) e perfil (18 peças - 13%). Os gêneros notícia (10 peças - 7%), publireportagem (5 peças - 4%), nota (duas peças – 1%) e, por fim, comentário/opinião/crítica/crônica (duas peças - 1%).

Gráfico nº2 – Gênero Jornalístico (N=142)


Verifica-se, portanto, que os gêneros jornalísticos mais recorridos na produção da revista Afro estão estritamente vinculados aos agendamentos contextualizados com a concepção editorial da revista Afro, constituída como uma publicação comercial, de estilo de vida. Os gêneros notícia, publireportagem, nota e comentário/opinião/crítica/crônica não são espaços de grande relevância para este tipo e estilo de mídia impressa, bem como para a proposta editorial da mesma. As notícias e as notas são mais destinadas às pautas contextualizadas temporalmente e ao produto jornalístico com periodicidade diária. A publireportagem concorre com os anúncios publicitário que já possuem grande espaço reservado e bem explorado pela revista, enquanto que comentário/opinião/crítica/crônica não é, em geral, o gênero mais requisitado em publicações tipificadas como “estilo de vida”. Análise referente ao Conteúdo da Revista Afro

Na observação sobre a fonte de informação mais utilizada no conjunto das 142 peças jornalísticas, a fonte principal mais recorrente pertence à categoria profissional dos “artistas e outros criadores” (41 peças - 28,87%). É importante ressaltar que o indicador “artistas e outros criadores” contempla um conjunto de categorias profissionais pertencentes ao meio artístico, especificamente profissionais de TV, atores de TV e seus grupos produtores; profissionais de cinema, atores de cinema e seus grupos produtores; profissionais da música, músicos e seus grupos produtores; escritores; artistas plásticos/escultores/pintores. Nota-se, ainda, que a revista Afro tem como fonte de informação mais recorrente um grupo específico de “artistas e outros criadores” e esta fonte de informação não é acionada de maneira aleatória. Os profissionais da categoria “artistas e outros criadores” são escolhidos entre aqueles que, normalmente, já possuem um histórico reconhecido e estável neste campo de trabalho, além de possuírem uma visibilidade profissional legitimada há algum tempo pela mídia. Já os artistas que são apresentados pela revista Afro como personalidades midiáticas momentâneas, juntamente com as personalidades públicas surgidas também neste contexto, estão contemplados no indicador “figuras públicas e celebridades”.


Quadro nº 1 – Fonte Principal Fonte Principal Nº

%

Artistas e outros criadores

41

28,87%

Cidadãos comuns adultos

14

9,86%

Cidadãos comuns crianças

1

0,70%

Figuras Públicas e Celebridades

14

9,86%

Grandes Empresas/Empresários

6

4,23%

Pequenas e Médias Empresas/Empresários (Agências)

7

4,93%

Organismos Científicos/Investigação

5

3,52%

Organismos Culturais

1

0,70%

Organizações Internacionais

2

1,41%

Organizações Não Governamentais

1

0,70%

10

7,04%

Órgãos de Comunicação Social

10

7,04%

Órgãos e Profissionais de Saúde

4

2,82%

Profissionais da Moda /Modelos

14

9,86%

Representações diplomáticas

1

0,70%

Estado/Governo nacional e Estrangeiro

5

3,52%

Informação Não atribuída

6

4,23%

142

100,00%

Organizações/Federações/Clubes Desportivos/Profissionais de Desporto

Total

Em relação ao número de fontes de informação dentro do artigo, a utilização de uma fonte única aparece em 86 peças (61%), seguida de 47 peças (33%) para fonte múltipla e 9 peças (6%) para aquelas que não constam a fonte de informação utilizada no artigo. Gráfico nº3 – Número de Fontes (N=142)


A temática principal mais frequente na totalidade das 142 peças recolhidas da revista Afro, durante os anos de 2008, 2009 e 2010 é a profissional, destacada em 61 peças (42,96%). A temática beleza, segunda mais focada, aparece em 14 peças (9,86%) do total. Verifica-se que o resultado entre a primeira temática mais focada (61 peças, 42,96%) e a segunda mais focada (14 peças, 9,86%) tem uma margem quantitativa bastante distanciada, o que reafirma, para além do resultado por si apresentado na temática proeminente, a prevalência da abordagem profissional - temática mais recorrente - nos textos jornalísticos da revista Afro. Quadro nº 2 – Tema Principal Temática Principal Nº

%

Agenda/Eventos

8

5,63%

Beleza

14

9,86%

Comportamento Laboral

1

0,70%

Desporto

4

2,82%

Étnico-Racial

6

4,23%

Identidade

3

2,11%

Moda

1

0,70%

Namoro

1

0,70%

Saúde

5

3,52%

Sexualidade

6

4,23%

Profissional

61

42,96%

Turismo

1

0,70%


Preconceito Racial

1

0,70%

Casamento

9

6,34%

Maternidade

4

2,82%

Cultural

1

0,70%

Economia

1

0,70%

Ajuda Humanitária

2

1,41%

Poligamia

1

0,70%

Político

1

0,70%

Religião

1

0,70%

Homicídio/Suicídio

1

0,70%

Relações afectivas

1

0,70%

Género

1

0,70%

Artes

4

2,82%

Paternidade

3

2,11%

142

100,00%

Total

Ainda no que concerne à temática principal nas peças recolhidas, casamento consta em 9 peças (6,34%); agenda/eventos em 8 peças (5,63%); étnico-racial e sexualidade em 6 peças cada (4,23%); saúde em 5 (3,52%); desporto, artes e maternidade em 4 peças cada (2,82%); identidade e paternidade em 3 peças cada (2,11%); ajuda humanitária em duas (1,41%); comportamento laboral, moda, namoro, turismo, preconceito racial, cultural (especificamente relacionada com aspectos da arte africana), economia, poligamia, política, religião, homicídio/suicídio, relações afetivas e relações de gênero em uma peça cada (0,70%). Tais resultados demonstram a incipiência com que estes temas foram acolhidos individualmente pela revista. Porém, a incipiência do acolhimento de tais temas na revista Afro não chega a ser um fator de negação dos mesmos, na medida em que no decorrer da análise verifica-se que estes temas são abordados sempre para afirmarem à temática principal majoritária, ou seja, a profissional. O principal ator da peça (quem fala? ou de quem se fala?), considerado o protagonista do texto jornalístico, tem uma maior expressividade o cidadão comum adulto, que consta em 27 peças (19,01%), profissionais da música/grupos produtores/músicos em 23 (16,20%), figuras públicas/celebridades em 15 peças (10,56%) e profissionais da moda/modelos em 13 peças (9,15%). Os demais resultados variam entre 9 peças (6,34%) e uma peça (0,70%).


Quadro nº 3 – Principal Ator

Principal Ator

%

Cidadãos comuns adultos

27

19,01%

Cidadãos comuns crianças

2

1,41%

Cidadãos comuns jovens

1

0,70%

Figuras Públicas e Celebridades

15

10,56%

Grandes Empresas/Empresários

6

4,23%

Pequenas e Médias Empresas/Empresários (Agências)

6

4,23%

10

7,04%

Órgãos e Profissionais de Saúde

1

0,70%

Profissionais da Moda /Modelos

13

9,15%

Profissionais da TV, Actores de televisão, Grupos Produtores

9

6,34%

Profissionais de Cinema, Actor de Cinema, Grupos Produtores

4

2,82%

Profissionais de Música, Grupos Produtoras, Músicos

23

16,20%

Representantes da comunicação social

4

2,82%

Representantes de Organismos Culturais/ Organismos Culturais

1

0,70%

Representantes de Organizações não governamentais

1

0,70%

Representantes diplomáticos

1

0,70%

3

2,11%

Representantes Estado e Governo Nacionais e Estrangeiros

8

5,63%

Representantes de Organizações Internacionais

1

0,70%

Escritor

2

1,41%

Artistas Plásticos/Escultores/Pintores

4

2,82%

142

100%

Organizações/Federações/Clubes Desportivos/Modalidade/ Profissionais de Desporto

Representantes dos Organismos Científicos/Centros de Investigação

Total

Quanto ao gênero do principal ator, as mulheres aparecem individualmente em 77 peças (54%), os homens individualmente em 32 peças (23%) e homens e mulheres juntos também em 32 peças (23%).


Gráfico nº 4 – Gênero do Principal Ator Eixo Y= nº de peças; N=142

No que correspondente à pertença do ator social - protagonista dos textos jornalísticos - a grupos de origem, das 142 peças analisadas angolanos constam em 22 peças (15,49%), norte-americanos em 21 (14,79%), várias (pertença a vários grupos de origem) em 20 (14,08%), NA/ND (peças que não constam a pertença dos grupos de origem) em 15 (10,56%), moçambicanos em 13 (9,15%), segundas gerações (filhos de imigrantes já nascidos nos países em que os país imigraram) em 12 (8,45%), portugueses em 7 (4,93%), cabo-verdianos em 6 (4,23%), africanos (para todos aqueles originários de países africanos, exceto originários dos PALOP, do Senegal, da Guiné-Conacri, da Nigéria e do Quênia) em 4 (2,82%), guineenses em 3 (2,11%), ingleses em 3 (2,11%), terceiras gerações (netos de imigrantes nascidos nos países em que os avôs imigraram) em duas peças (1,41%), são tomenses, escoceses, senegaleses, guineanas, nigerianos e quenianos em uma peça cada um (0,70%). Quadro nº 4 – Pertença a Grupo do Principal Ator

%

Africanos

4

2,82%

Angolanos

22

15,49%

Cabo-Verdianos

6

4,23%

Guineenses

3

2,11%


São Tomenses

1

0,70%

Moçambicanos

13

9,15%

Brasileiros

8

5,63%

12

8,45%

2

1,41%

Várias

20

14,08%

Portugueses

7

4,93%

21

14,79%

Escocês

1

0,70%

Senegal

1

0,70%

Guineana

1

0,70%

Ingleses

3

2,11%

Nigeriano

1

0,70%

Quenianos

1

0,70%

NA / ND

15

10,56%

Total

142

100%

Segundas Gerações Terceiras Gerações

NorteAmericanos

Referente ao público-alvo que cada uma das peças jornalísticas pretende atingir, 133 peças (94%) foram direccionadas aos adultos e 9 peças (6%) aos jovens e adolescentes. É importante ressaltar que considerou-se, no âmbito desta pesquisa, pertencente ao grupo de adolescente o indivíduo entre 12 e 18 anos e ao grupo de jovem o indivíduo entre 19 e 30 anos. A definição legal de entrada na idade adulta varia entre os 16 e 21 anos, mas normalmente a idade é de 18 anos dependendo, além da região, dos aspectos culturais de cada grupo em específico e/ou de cada sociedade em geral. Assim, os resultados apontados, a partir dos indicadores jovens e adolescentes e adultos, esbarram na linha tênue das variações aproximativas entre as idades de um e de outro grupo especificado nos indicadores. Porém, o critério de análise das peças revela, para além da faixa etária, qual o público-alvo que revista Afro se destina: maioritariamente adultos.


Gráfico nº 5 – Público-Alvo (N=142)

Análise referente ao Discurso da Revista Afro

No que concerne aos títulos apresentados nos textos jornalísticos publicados no interior da revista Afro, os dados apontam uma proeminência para os títulos declarativos – caracterizados como aqueles que pretendem declarar de forma enfática algo ao leitor – numa somatória de 74 peças (52%). Os títulos expressivos – caracterizados como aqueles que contêm o menor grau informativo e que buscam atrair e impressionar o leitor rapidamente - constam em 59 peças (42%) e os informativos, cuja característica é conter o essencial da informação no sentido mais aproximativo do exato e do preciso, a partir de respostas às questões quem, quê, onde, quando, porquê e como – aparecem em apenas 9 peças (6%). Gráfico nº 6 – Categoria do Título do Artigo (N=142)


Verifica-se que os resultados apresentados na análise sobre a categoria dos títulos dos artigos no interior na revista, destacam os títulos declarativos como proeminentes, o que demonstra uma coerência com a própria constituição e linha editorial da revista Afro, na medida em que uma publicação comercial, de estilo de vida, etnicamente segmentada e dirigida especialmente a uma comunidade particular busca, em geral, uma forma discursiva mais enfática nos títulos, como forma de atrair o seu público-alvo para a abordagem dos temas elencados. Quanto ao estilo do discurso utilizado pelo jornalista no tratamento do texto, o interpretativo/explicativo consta em 92 peças (65%); o descritivo em 34 (24%) e o opinativo em 16 (11%). Gráfico nº 7 – Estilo Discursivo (N=142)

Na referência ao tom discursivo utilizado pelos jornalistas, o tom positivo é maioritariamente o mais presente, uma vez que consta em 121 peças (85%) do total das 142 peças analisadas. Gráfico nº 8 – Tom do Discurso (N=142)


Assim, depreende-se dos resultados apresentados quanto ao estilo discursivo e a valência do tom do discurso utilizados pelos jornalistas, que os textos jornalísticos da revista Afro contam em sua maioria com um discurso interpretativo/explicativo num tom claramente positivo No que compreende ao estilo narrativo dos textos jornalísticos, o épico, caracterizado como aquele que apresenta uma narrativa que exalta a trajetória de vida, se destaca em 74 peças (52%), o factual, aquele centrado na descrição de ações e fatos, em 38 peças (27%), o alegórico, cuja narrativa apresenta uma sequência de metáforas, em 24 peças (17%) e o dramático, configurado como aquele que exalta uma forte acentuação no emocional e no espetacular, em apenas 6 peças (4%). Gráfico nº 9 – Estilo Narrativo (N=142)

A prevalência do estilo narrativo épico em 74 (52%) peças revela que a revista Afro busca dar ênfase aos textos com destaque à trajetória de vida de seus atores sociais. Tais trajetórias de vida são ressaltadas com o intuito de construir uma identificação entre a trajetória de vida dos atores sociais protagonistas nos textos jornalísticos e o público-alvo que a revista quer alcançar. Quanto ao enfoque do artigo, em 104 peças (73%) o enfoque está orientado para um acontecimento e em 38 peças (26,8%) para uma problemática. O resultado de apenas 38 peças (27%) orientadas para possíveis problemáticas que possam envolver a comunidade negra africana dos PALOP em Portugal, demonstra que objectivo principal da revista Afro não é abordar problemáticas que envolvam a comunidade negra africana dos PALOP.


Gráfico nº 10 – Enfoque do Artigo (N=142)

Por fim, a argumentação, configurada como aquela que se caracterizada pelas estratégias de comentários ou de atitudes dos enunciadores do texto jornalístico, com a utilização de enunciados fundados na descrição da ação ou do acontecimento, aponta a argumentação do sucesso como a mais frequente nas peças analisadas (68 peças - 48%). Gráfico nº 11 – Argumentação (N=142)

De acordo com os resultados mais focados, provenientes da análise dos dados estatísticos, a partir das 142 peças – corpus de análise – recolhidas da revista Afro durante os anos de 2008, 2009 e 2010, que posteriormente foram distribuídos, de acordo com suas correspondências, às modalidades forma, conteúdo e discurso, mais uma vez foi possível


identificar alguns conteúdos discursivos utilizados pela revista no processo de estruturação de estratégias midiáticas na construção de representações identitárias dos negros africanos dos PALOP e seus descendentes em Portugal. Assim, a partir destes resultados preliminares, podemos inferir que a revista Afro utiliza, geralmente, uma única fonte de informação na composição de seus textos jornalístico e que esta fonte de informação situase com mais frequência no grupo de artistas e produtores artísticos. A utilização de uma única fonte de informação não afeta o princípio de equilíbrio do texto, uma vez que o gênero jornalístico mais proeminente na revista é a reportagem, no estilo narrativo épico com um discurso interpretativo/explicativo, em um tom positivo. Conclusões

Os resultados dos dados estatísticos levantados na análise de conteúdo no SPSS, referentes ao corpus constituído por 142 peças da revista Afro, durante os anos de 2008, 2009 e 2010, foram os condutores da organização das categorias descritivas de forma quantitativa, que posteriormente serão complementadas pela análise de discurso para uma abordagem mais qualitativa. Tais resultados proporcionaram a identificação dos conteúdos mais recorrentes utilizados pela revista no processo de construção de representações identitárias dos negros africanos dos PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa, nomeadamente Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe) e seus descendentes em Portugal. Com base nos resultados analisados, podemos considerar, já nesta primeira fase da pesquisa, correspondente à análise quantitativa, que a revista Afro ao elencar como temática o campo profissional, especialmente aquele inserido nas artes, na moda e no desporto, de atores sociais negros africanos e seus descendentes, consagrados celebridades mediáticas por outros veículos de comunicação e pela própria revista, escolhidos pela revista como “representante exemplares” aos demais membros da comunidade negra africana em Portugal, juntamente com a argumentação do sucesso, recorre a alguns estereótipos históricos em relação às aptidões profissionais dos negros demarcadas como “naturais”, principalmente as desportivas, que exigem vigor físico, como o atletismo e o futebol; as artes musicais, que remetem aos atributos culturais, mas muitas vezes também aos atributos “naturais” e a moda, cujo enfoque aparece bastante acentuado na visibilidade da diferença física dos negros – estetização – como um dos critérios importantes para o reconhecimento cultural, econômico e social dos negros no espaço público.


No entanto, se por um lado a revista portuguesa Afro coloca as celebridades midiáticas como exemplo de sucesso profissional para os demais membros da comunidade negra africana dos PALOP, por outro relega a uma maioria da população pertencente também a esta comunidade negra africana dos PALOP em Portugal, que estão distante do “mundo encantado e encantador” das celebridades midiáticas, ao patamar dos “invisíveis”, dos que “não existem”, dos “outros”. Os que “existem” como “celebridades”, negros de “sucesso”, apresentados na revista como exemplos de ascenção econômica e social são representativos somente para uma pequena classe média negra, invisível aos olhos dos nacionais portugueses. Referências

CARVALHEIRO, José Ricardo. Is the Discourse of Hybridity a Celebration of Mixing, or a Reformulation of Racial Division? – A Multimodal Analysis of the Portuguese Magazine Afro. CHAPARRO, Manuel Carlos. Sotaques d’aquém e d’além mar: travessias para uma nova teoria de gêneros jornalísticos. São Paulo: Summus, 2008. CUNHA, Isabel Ferin. Identidade e reconhecimento nos media. Matrizes. São Paulo: Programa de Pós Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade de São Paulo, nº 1, out. 2007. ____________________. Nós e os outros nos artigos de opinião da imprensa portuguesa. Lusotopie. France: Éditions de l’Aube, nº 1, 1997. ____________________. O SPSS e os estudos sobre os media e o jornalismo. Metodologia de pesquisa em jornalismo. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2007. PEREIRA, A. SPSS: guia prático de utilização. Lisboa: Silabo, 2003. SALIM, Isabela Câmara. Os meios de comunicação étnicos em Portugal – Dinâmica organizacional das comunidades de imigrantes. Observatório da Imigração. Lisboa, Portugal: Alto-Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural (ACIDI), nº 29, Outubro de 2008. SILVEIRINHA, Maria João e PEIXINHO, Ana Teresa. Análise Textual Assistida por Computador. Observatório da Imigração. Lisboa, Portugal: Alto-Comissariado para a Imigração e Minorias Étnicas (ACIME), nº 6, maio/2004. WIEVIORKA, Michel. A diferença. Lisboa, Portugal: Fenda Edições, 2002. ___________________. O racismo: uma introdução. São Paulo: Perspectiva, 2007. Revista Afro Revista Afro, nº 1, Fevereiro de 2008, mensal. Revista Afro, nº 2, Março de 2008, mensal. Revista Afro, nº 3, Abril de 2008, mensal. Revista Afro, nº 4, Maio de 2008, mensal. Revista Afro, nº 5, Junho de 2008, mensal. Revista Afro, nº 6, Julho/Agosto de 2008, bimestral. Revista Afro, nº 7, Setembro/Outubro de 2008, bimestral. Revista Afro, nº 8, Novembro/Dezembro de 2008, bimestral. Revista Afro, nº 9, Maio/Junho de 2009, bimestral. Revista Afro, nº 10, 2009/2010, semestral. Revista Afro, nº 11, 2009/2010, semestral.


Documentos eletrônicos ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA PARA O CONTROLO DE TIRAGEM E CIRCULAÇÃO. Disponível em: <http://www.apct.pt>. Acesso em: 21 Janeiro/2009. CPLP – Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Disponível em: <www.cplp.org/ >. Acesso em: 21 Abril/2009. DOCTV - CPLP – Disponível em: < www.cultura.gov.br/site/2009/04/07/doctv-cplp> . Acesso em: 15 abril/2009. SCHENGEN. Disponível em: <http://www.ec.europa.eu/yuoreurope/nov/pt/citizens/travelling/schengenarea/índex.html>. Acesso em: 10 Abril/ 2009. EDITORA IMPALA – Disponível em: < www.meiosepublicidade.pt/2007/.../impalapreparada-lancamento-da-revista-afro/- > Acesso em: 28 de agosto de 2010. i

As medidas relativas ao Espaço Schengen prevêem a abolição dos controles nas fronteiras internas dos Estados-Membros de Schengen, estabelecem regras comuns para os controles nas fronteiras externas, definem uma política comum em matéria de vistos e introduzem medidas de acompanhamento que permitem abolir os controles nas fronteiras externas (em especial no domínio da cooperação policial e judiciária em matéria penal). Estas regras têm implicações diretas para os cidadãos no que diz respeito à livre circulação de pessoas. Disponível em: <http://www.ec.europa.eu/yuoreurope/nov/pt/citizens/travelling/schengen-area/índex.html>. Acesso em: 10 abril/ 2009. ii Dados sobre a população estrangeira residente em Portugal. Fonte: Serviço de Estrangeiros e Fronteiras – SEF. iii Utilizamos o termo preconceito e discriminação a partir da obra O Racismo, uma introdução (2007), de Michel Wieviorka. Para Wiekiorka (2007, p.59-68), o preconceito é uma primeira forma elemntar do racismo, na qual repousa nas presentações do “outro”, o de “fora”, em detrimento do “nós”, o de “dentro”, amplificando, assim, as diferenças do “outro”, desembocando em estereótipos suscetíveis de alimentar atitudes discriminatórias que correspondem quase sempre à lógica da hiertarquização da “raça” para dispensar um tratamento diferenciado depreciativo. iv Sobre este assunto, ver a tese de doutorado, intitulada Imigrantes negros africanos dos PALOP e negros brasileiros: a identidade étnica construída na imprensa de Portugal e do Brasil, de Rosangela Ferreira de Carvalho Borges, Brasil/Portugal, 2008, 317 p. (Doutorado em Ciências Sociais) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)/ Universidade de Coimbra (Instituto de Estudos Jornalísticos da Faculdade de Letras). v A revista Afro é uma publicação do grupo editorial português Impala, cujo proprietário, de nacionalidade portuguesa, criou o grupo editorial inicialmente em Angola, antes da independência deste país, e pós-independência o transferiu para Portugal. O grupo Impala, além da revista Afro, é reconhecido no mercado editorial português pela publicação de uma série de revistas femininas e de estilo de vida. O lançamento da revista Afro veio adicionar ao portfólio de publicações da Impala mais uma revista feminina e de estilo de vida, porém com um destaque inovador no mercado editorial português: a abordagem étnica. De acordo com os próprios responsáveis pelo corpo editorial da revista, Afro foi inspirada na revista brasileira Raça Brasil e para homenageá-la o primeiro número da revista traz em sua capa a atriz brasileira Taís Araujo.


La comercialización intra e interregional del cine euroiberoamericano en la era digital Cristina Paz García* Resumo: O fluxo de trocas comérciais entre países dentro de uma mesma região estabelece a existência de um espaço comum e integrado. A União Europeia eo Mercosul são dois espaços audiovisuais analisados nesta pesquisa que tem como objetivo conhecer o volume, comportamento e as características dos filmes locais que transcendem as fronteiras nacionais, bem como valorizar as potencialidades que a digitalização da indústria cinematográfica fornece aos mercados menos maduros. Palavras-chave: Marketing; Digital cinema; América Latina; Europa; Online. Abstract: The flow of trade between countries belonging to the same region stablish a common and integrated area. The European Union and Mercosur are two audiovisual spaces analyzed in this research. His aim is to understand the volume, behavior and characteristics of the local films that cross national borders, as well as to evaluate the potential that digitization of the film industry provides to those less mature markets. Key-words: Marketing; Digital cinema; Latin America; Europe; Online. Resumen: El flujo de intercambios comerciales entre países pertenecientes a una misma región determinan la existencia de un espacio común e integrado. La Unión Europea y el Mercosur son los dos espacios audiovisuales objeto de análisis en esta investigación que tiene como objetivo conocer el volumen, comportamiento y características de las películas locales que traspasan las fronteras nacionales, así como valorar las potencialidades que la digitalización de la industria cinematográfica brinda a aquellos mercados menos maduros. Palabras clave: Comercialización; Cine digital; Iberoamérica; Europa; Online.

Contextualización: el espacio audiovisual europeo e iberoamericano Un marco audiovisual europeo con un volumen de producción cinematográfica nacional superior al millar de largometrajes anuales, más de 900 millones de espectadores por año y un parque de casi 30 mil pantallas de exhibición (MEDIA SALLES, 2010) sumados a los más de 400 largometrajes anuales que se producen en la región iberoamericanai, una cifra de espectadores superior a los 400 millones, un parque de más de 11.783 pantallas de exhibición (GETINO, 2005) y unas raíces histórico-culturales comunes establecen las bases idóneas para la exitencia de un espacio audiovisual con eficientes y reales intercambios comerciales en materia audiovisual. Dejando a un lado las cifras, históricamente el devenir de las industrias cinematográficas europeas e iberoamericanas guardan unos lazos comunes, a pesar del diferente grado de desarrollo de cada una. Mercados con débiles y fragmentadas industrias *

Doctora en Comunicación Audiovisual y Publicidad y Relaciones Públicas por la Universidad Complutense de Madrid. Máster en Animación 3D en la Universidad Pompeu Fabra de Barcelona y Realizadora de televisión. Para cualquier consulta sobre este artículo: cristina3tv@gmail.com 1


que ejercen una escasa y volátil actividad productivaii en un entorno local altamente concentrado y controlado por las multinacionales de Hollywood que ejercen un férreo control sobre los sectores clave de la industria, distribución (sus estrenos se realizan con un elevado tiraje de copias) y exhibición (copan las principales salas y circuitos de exhibición) relegando a una situación de práctica marginalidad todo producto nacional. Asimismo existe una alta dependencia de ayudas públicas para producir y el escaso presupuesto que se destina a la promoción y marketing hace que prácticamente resulte imposible recuperar la inversión en el mercado local en donde, de forma puntual, determinados éxitos nacionales encabezan el ranking de taquilla. Se trata de las superproducciones realizadas por alguna de las alianzas que poseen los grandes grupos audiovisuales con alguna de las majors, por ejemplo la Rede Globo con Columbia en Brasil o Patagonik/Clarín/Telefónica/Walt Disney en Argentina entre otras. Subsidios, planes de fomento, cuotas de pantalla e incentivos fiscales son el mecanismo de apoyo más extendido entre los países iberoamericanos a la industria cinematográfica. De hecho, son aquellos países que cuentan con una política audiovisual definida y Ministerios de Cultura activos los que presentan una mejor situación. Es el caso de los mercados con mayor volumen de producción audiovisual como España, México, Brasil y Argentina que superan el centenar de producciones y a través de sus Institutos de Cinematografía (ICAA, IMCINE, ANCINE e INCAA respectivamente) aportan más de diez millones de euros anuales (España más de 70 millones). Mercados más pequeños como Chile (CNCA), Colombia (Ministerio de Cultura) o Venezuela (CNAC) aportan cantidades más discretas que rondan el millón y los 5 millones de euros con un volumen productivo que apenas supera la veintena para el caso chileno y la decena para el colombiano y venezolano. Pero además de las ayudas que cada gobierno destina a las subvención de su industria audiovisual, a nivel internacional destacan dos programas considerados el pilar de las políticas de cooperación europea e iberoamericana, el programa MEDIA de la UE e IBERMEDIA, de la CAACI. Si bien ambos programas nacen con el mismo objetivo, impulsar la creación de un espacio audiovisual común fomentando la circulación de las obras audiovisuales europeas e iberoamericanas reforzando las estructuras de cooperación en las áreas de financiación, producción, distribución y exhibición, la única diferencia radica en los recursos que cada programa destina a las diferentes líneas de acción. El 92% del fondo Ibermedia se destina al proceso creativo, que incluye la modalidad de coproducción (81%) y desarrollo (10,3%), tan sólo un 4% a la fase de promoción, distribución y delivery, frente al 64% del fondo Media destinado a la distribución (55%) y promoción (9%) de las obras audiovisuales europeas. Sin duda un reparto que refleja las prioridades de las industrias

2


audiovisuales a uno y otro lado del Atlántico que, si bien eran primordiales en el escenario de su creación (a finales de los noventa) con una clara primacía hacia la actividad productiva -tan necesaria en el área iberoamericana, no tanto en la europea, cuyas industrias culturales gozan de mayores presupuestos-, en el actual escenario digital su revisión resulta inminente.

Presencia del cine iberoamericano en la Unión Europea

La presencia del cine iberoamericano en la UE sigue siendo minoritaria y poco significativa. Según datos publicados por la base de datos Lumiére del Observatorio Audiovisual Europeo, entre 1996-2008 se estrenaron un total de 516 títulos iberoamericanos que congregaron más de 52 millones de espectadores. El 86,5% (454) de estos largometrajes pertenecían a seis países: Argentina, con 222 películas (el 42% del total) y más de 30 millones de espectadores; México, 93 títulos; Brasil 88; Chile 37; y Colombia y Venezuela con 17 y 15 películas respectivamente. Mercados como Uruguay y Perú se sitúan en la docena y el resto, como Ecuador, Bolivia o Guatemala apenas lograron estrenar un título a lo largo de estos 13 años analizados (tabla 1).

Tabla 1. Películas iberoamericanas estrenadas en Europa según país de origen, 1996-2008 ‘96 ‘00 ‘01 ‘02 ‘03 ‘04 ‘05 ‘06 ‘07 ‘08 TOTAL Argentina 9 12 18 29 9 28 26 21 25 14 222 México 3 8 7 10 6 11 8 8 8 7 93 Brasil 3 8 6 7 3 8 13 9 10 8 88 Chile 0 4 4 2 4 10 5 0 3 3 37 Cuba 2 1 6 3 4 3 6 2 2 1 30 Colombia 1 3 0 0 0 5 2 1 1 0 17 Venezuela 1 3 1 0 1 3 2 0 0 1 14 Uruguay 1 2 2 3 0 2 1 1 12 Perú 1 2 0 1 0 3 1 2 0 0 12 Bolivia 0 0 0 0 0 0 0 1 1 0 3 Ecuador 0 0 0 1 0 1 0 1 0 0 3 Guatemala 0 0 1 0 0 0 0 1 0 0 2 TOTAL 20 42 45 53 27 75 63 49 51 35 516 Fuente: elaboración propia con datos extraídos de la base de datos Lumiére del OAE

Teniendo en cuenta el elevado volumen de producciones cinematográficas realizadas en la regióniii y el largo período que comprende este análisis, se trata de una cifra muy baja en donde se evidencian las enormes dificultades que atraviesa el cine de origen no estadounidense para comercializarse fuera de sus fronteras nacionales, así como una alta concentración geográfica con una mayor presencia del cine procedente de los tres

3


mercados mayores de la región -en cuanto a volumen de facturación audiovisual-, Argentina, Brasil y México. Entre 2004-2008 Argentina estrenó 114 largometrajes en Europa que reunieron 12,2 millones de espectadores, mientras que el cine mexicano con tan sólo 41 títulos congregó casi 15 millones y Brasil 1,4 con 48 títulos estrenados en este período (tabla 2). En esta clasificación puede apreciarse esta dicotomía con los mercados de menor tamaño como por ejemplo Colombia o Venezuela, los cuales apenas alcanzaron la decena de largometrajes y el millón de espectadores en este cuatrienio.

Tabla 2. Estrenos/ espectadores del cine iberoamericano en la UE según país de origen, 20042008 País de origen Estrenos Espectadores Media espectadores/estreno Argentina 114 (44%) 12.159.799 (36%) 106.665 Brasil 48 (20%) 1.413.696 (4,2%) 21.420 México 41 (16%) 14.970.134 (45%) 272.184 Chile 21 (8%) 3.950.989 (12%) 188.142 Colombia 9 (3%) 817.189 (2,4%) 90.799 Venezuela 6 (2%) 67.996 (0,2%) 11.332 TOTAL 239 33.379.803 583.877 Fuente: elaboración propia/ OAE

Si analizamos el comportamiento de los títulos iberoamericanos más taquilleros en la Unión, en la última década podemos apreciar una serie de características comunes (tabla 3): elevada concentración del éxito en unos pocos títulos, tan sólo uno superó los 5 millones de espectadores; 3 entre 2 y 4 millones; 4 entre 1,5 y 2 millones; 2 títulos entre 1 millón y 900 mil espectadores y la gran mayoría apenas alcanza los 100 mil. Diez títulos concentraron el 47% del total de los espectadores contabilizados en el período (54.098.963).

Tabla 3. Películas iberoamericanas de mayor éxito en Europa, 1996-2008 Título

Países

Babel (2006)

US/FR /MX

El Laberinto del Fauno (2006)

ES/MX

Diarios de Motocicleta (2004)

US/AL/ GB/AR /CL/PE /FR

Once Upon a Time in Mexico (2003) Central do Brasil (1998)

Empresas productoras Paramount Pictures, Anonymus Content, Zeta Films, Central Films, Media Rights Capital Tequila Gang, Esperanto Filmoj, Estudios Picasso, OMM, Sententia Entertainment, Telecinco FilmFour, South Fork Pictures, Tu Vas Voir Production, BD Cine, Inca Films S.A., Sahara Films, Senator Film Produktion, Sound for Film

Espect. UE-27

Espect. España

Distrib. en España

5.986.669

1.872.514

UPI

3.828.874

1.649.672

Warner Bros

3.427.319

318.521

Vértigo Films

US/MX

Columbia Pictures, Dimension Films, Troublemaker Studios

3.440.546

499.934

Columbia TriStar

BR/FR

Canal+, MACT Production, Riofilmes, Videofilmes

1.951.916

176.924

Columbia TriStar

4


El hijo de la novia (2001)

AR/ES

Cidade de Deus (2002)

BR/FR /US

Bandidas (2006)

FR/MX /US

Y tu mamá también (2001)

MX/US

Blueberry (2004)

FR/GB /MX

JEMPSA, Patagonik Film Group, Pol1.776.627 Ka Producciones, Tornasol Films O2 Filmes, VideoFilmes, Globo Filmes, Lereby Productions, Lumiere 1.653.039 Productions, Studio Canal, Wild Bunch Europa Corp., TF1 Films Productions, A.J.O.Z. Filmes, Ultra Filmes, Canal+, 1.550.029 TPS Star Alianza Films International, Anhelo Producciones, Bésame Mucho 985.539 Pictures, Producciones Anhelo A.J.O.Z. Films, La Petite Reine, UGC Images, TF1 Films Productions, 120 939.671 Films, Crystalcreek, Ultra Films, TPS Star Fuente: elaboración propia/ OAE/ IMDb

1.563.407

Alta Classics

220.794

Vértigo Films

665.114

Hispano Foxfilms

280.746

Warner Sogefilms

106.249

Barton Films

Se trata de éxitos realizados en coproducción con algún país europeo, una notable presencia de productoras vinculadas a los estudios de las grandes multinacionales estadounidenses (en concreto lo hicieron en seis de los diez éxitos más taquilleros, en dos de ellos participaron los sellos Columbia y Paramount y tan sólo dos largometrajes fueron producidos por productoras totalmente iberoamericanas, “El laberinto del Fauno” y “El hijo de la novia”), así como un elevado número de empresas productoras que participaron en la producción de dichos éxitos lo cual demuestra que se trata de superproducciones en donde el apoyo de las multinacionales estadounidenses y la participación de empresas de televisión o grandes grupos de comunicación nacional como, Patagonik en Argentina, Globo Films en Brasil o Video Filmes en México determinan la posibilidad de estrenar fuera de las fronteras nacionales y repercute en los resultados obtenidos en taquilla. No encontramos ningún éxito “cien por cien nacional” ni tampoco ninguna coproducción de éxito participada por mercados de menor facturación audiovisual como Ecuador, Bolivia, Paraguay, etc. Asimismo, son los mercados latinos de Europa los que más títulos iberoamericanos exhiben en sus pantallas, con España a la cabeza, aquellos que poseen acuerdos de cooperación

en

materia

audiovisual

con

las

cinematografías

de

la

otra

orilla,

fundamentalmente con aquellas que más títulos exportan, Argentina, el principal exportador, Brasil y México (tabla 4). El 66% de los títulos estrenados en Europa en dicho período fueron argentinos y en España congregaron el 58% del total de los espectadores europeos (7.026.230), seguido de Francia con un total de 88 largometrajes y más de 6 millones de espectadores.

5


Tabla 4. Relación películas/espectadores del cine iberoamericano estrenado en los mercados latinos de la Unión Europea según país de origen, 2004-2008 Nº películas/ espectadores

de Argentina

de Brasil

de México

de Chile

de Colombia

de Venezuela

89 (78%) 7.026.230 (58%) 37 (32%) 2.031.572 (17%) 13 (11%) 1.081.269 (9%) 10 (9%)

9 (18%) 148.261 (10,5%) 19 (40%) 371.021 (25%) 7 (15%) 146.318 (10,3%) 14 (29%)

35 (64%) 5.152.970 (35%) 19 (34%) 2.451.555 (17%) 7 (13%) 742.244 (5%) 8 (15%)

13 (62%) 536.880 (3,6%) 9 (43%) 1.029.378 (26%) 1 (4,8%) 10.781 (0,3%) 1 (4,8%)

7 (77%) 134.337 (16%) 4 (44%) 334.527 (41%) 2 (22%) 53.654 (6,5%) 1 (11%)

5 (83%) 59.161 (88%) -

168.305 (1,4%)

361.444 (25,6%)

368.045 (2%)

68.115 (1,7%)

2.874 (0,2%)

-

968.783 (2,4%)

Total espectadores en mercados latinos

10.307.376 (85%)

1.027.044 (73%)

3.383.573 (23%)

1.645.154 (42%)

525.392 (64%)

59.161 (88%)

15.252.711 (38%)

Pel. Espct.

114 12.159.799

48 1.413.696

41 14.970.134

21 3.950.989

9 817.189

6 67.996

239 33.379.803

en España en Francia en Italia en Portugal

TOTAL

Pel. Espct. Pel. Espct. Pel. Espct. Pel. Espct.

-

TOTAL 158 (66%) 13.057.839 (39%) 88 (37%) 6.218.053 (15%) 30 (12%) 2.034.266 (5%) 34 (14%)

Fuente: elaboración propia/ Observatorio Audiovisual Europeo–base de datos Lumiére

Presencia del cine iberoamericano en el mercado español Sin embargo, España no funciona como puerta de entrada del cine iberoamericano en la UE. Las películas que se estrenan en España no cuentan con un recorrido comercial satisfactorio por el conjunto de países que conforman la Unión. Es el caso de éxitos como el que obtuvieron “Perdita Durango”, “El espinazo del diablo” o “Manuelita” que en el mercado español superaron el medio millón de espectadores y que apenas han tenido representatividad en el resto de mercados europeos. Según su nacionalidad, las películas que se estrenan en España son fundamentalmente europeas (55%) y estadounidense (40%). El cine iberoamericano representa una media que ronda el 2% anual y una ridícula cuota de mercado, respecto a la recaudación total obtenida, del 0,5%. Como se puede apreciar en el gráfico 1, es el cine argentino el que más recauda, en torno al 0,26%, el brasileño el 0,1% y el mexicano el 0,05%.

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Gráfico 1. Cuota de mercado (% s/t recaudación) de las películas iberoamericanas, según país de origen, estrenadas en el mercado español, 1996-2008

Fuente: elaboración propia/ BONET y GONZÁLEZ (2006:54-60)/ ICAA (Boletín informativo de cine: producción, distribucion y exhibición de películas. Varios años)

El repunte de uno u otro mercado en un momento dado se debe al éxito puntual de algún largometraje de nacionalidad fundamentalmente argentina, brasileña o mexicana. De hecho, el mejor registro del cine mexicano en el mercado español data de 2001 y se debe a títulos como “Amores Perros”, de Alejandro González Iñárritu fue distribuida por Filmax y en España concentró el 35% (297.720) de los espectadores europeos y “Y tu mamá también”, distribuida por Warner Sogefilms congregó 280.746 espectadores. Por su parte, el cine argentino, con su mejor registro de taquilla también en 2001, lo debe a títulos de la factoría Patagonik Film Group como “Nueve reinas” (de Fabián Bielinsky distribuida por Alta Classics, 2,3 millones de euros con el 62% (468.556) de los espectadores europeos españoles) o “El hijo de la novia” (de Juan José Campanella distribuida por Alta Classics, con 1,56 millones de espectadores y 7,23 millones de euros recaudados en salas españolas) entre otros. El mejor año de la cinematografía brasileña fue 2003, con tan sólo un largometraje, “Cidade de Deus”, dirigida por Fernando Meirelles, producida por Globo Films y distribuida por Vértigo Films, superó las cifras registradas por los 17 títulos argentinos, 202.575 espectadores y 959.968,55 euros. Se trata de unas cantidades muy bajas si tenemos en cuenta los más de 100 millones de espectadores y 600 millones de euros de media anual que la industria cinematográfica factura en el mercado español. Un mercado tan importante como Brasil, por extensión geográfica, número de habitantes e industria audiovisual, apenas encuentra representatividad en España. Si analizamos el volumen de coproducciones llevadas a cabo entre ambos paíse, en seis años, entre 2002-2008 tan sólo se realizaron 5 coproducciones, frente a las 10 chilenas, 7 venezolanas y 6 colombianas (ICAA). Estas cifras ponen de manifiesto la necesidad de reforzar las relaciones entre ambos paísesiv.

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España ha sido uno de los países que, junto Argentina, México y Portugal, se caracteriza por una larga experiencia en la firma de acuerdos de cooperación bilaterales y regionales, lo que explica este incremento respecto al resto de cinematografías. También es el principal contribuyente del programa Ibermediav.

Comercialización intra-regional del cine iberoamericano: paralelismos UE-Mercosur El cine español en la UE

El mercado español en la Unión Europea, al igual que el iberoamericano en Europa, representa una cuota de mercado muy pequeña. Son muy pocas las producciones nacionales que logran estrenarse en otros mercados de la Unión y muy pocos los títulos que, sin ser en régimen de coproducción, logran alcanzar el millón de espectadores. Francia es el país europeo que más títulos españoles exhibe -sobre todo si estos llevan la firma del director manchego Pedro Almodóvar-, también es el país de la Unión con el que España más coproducevi. El principal paralelismo que se detecta entre el cine español y el iberoamericano que se estrena en Europa es la elevada concentración del éxito en unos pocos títulos, coproducidos con algún país europeo o participados por alguna multinacional de Hollywood. De hecho, en el ranking de las 10 películas españoles más vistas en la Unión entre 19962008 (tabla 5), tan sólo encontramos cuatro de producción “100% española”, dos del director manchego Pedro Almodóvar, “Volver” (2006) y “Hable con ella” (2002); “El orfanato” (2007) y “Torrente 2: Misión en Marbella” (2001). Estas ocupan los últimos puestos de la tabla, los primeros son para las coproducciones multipartitas realizadas entre países europeos y con estados Unidos, las que superan los diez millones de espectadores.

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Tabla 5. Ranking de los estrenos españoles con mayor número de espectadores en la UE, 1996-2008 Título

Países

Los otros (2001)

ES/EE.UU.

Astérix en los Juegos Olímpicos (2008)

FR/AL/ES/ IT

El Reino de los cielos (2005)

GB/AL/ES/ EE.UU.

El Perfume: historia de un asesino (2006)

AL/ES/FR

Sáhara (2004)

EE.UU./ GB/AL/ES

Volver (2006)

ES

Hable con ella (2002)

ES

El Orfanato (2007)

ES

Mar adentro (2004)

ES/FR/IT

Torrente II: Misión en Marbella (2001)

ES

Productoras Cruise/Wagner Prod., Soc. Gral. de Cine, Las Producciones del Escorpión, Dimension Films, Canal+, Lucky Red, Miramax Films Pathé Renn Prod., La Petite Reine, TF1 Films, TriPictures, Sorolla Films, Constantine Film Prod., Canal+, Banque Populaire Images 7, Motion Investment, Les Editions Albert René Twentieth Century-Fox Film Corp., Scott Free Prod., Cahoca Prod., Dritte Babelsberg Film, Inside Track 3, Kanzaman, Reino del Cielo Constantine Film Prod., VIP 4 Medienfonds, Nouvelles Éditions de Films (NEF), Castelao, Davis-Films, Ikiru Films, Rising Star Paramount Pict., Bristol Bay Prod., Baldwin Ent. Group, J.K. Livin Prod., Desertlands Ent., Kanzaman, Babelsberg Film, Moguletta, Sahara Prod., Mace Neufeld Prod. Canal +, El Deseo, Ministerio de Cultura, TVE

Espectadores

El Deseo, Antena3, Good Machine, Vía Digital Telecinco Cinema, Televisió de Catalunya (TV3), Warner Bros, Grupo Rodar, Rodar y Rodar Cine y TV, Laboratorio de Nuevos Talentos, Wild Bunch Sogepaq, Sogecine, Himenóptero, Union Générale Cinématographique (UGC), Eyescreen, TVE, Canal+, TVG y Filmanova

6.736.175

Amiguetes Entertainment y Lolafilms

5.299.617

14.394.102

13.028.979

11.141.832

11.046.353

10.938.330 8.148.664

5.839.621

5.429.566

Fuente: elaboración propia/ Observatorio Audiovisual Europeo/ IMDb

De este análisis se desprende que la única vía de entrada del cine español en otros mercados de la Unión pasa casi exclusivamente por el régimen de coproducción, pero ni siquiera esta cualidad le garantiza un eficiente recorrido comercial por el resto de salas europeas ni óptimos resultados de taquilla, si no cuenta con la distribución de alguna major. El cine iberoamericano en el Mercosurvii

En los últimos años en la región “mercosureña”, utilizando la terminología de Octavio Getino, se han implementado diversas acciones en materia audiovisual encaminadas a incrementar el volumen de coproducciones cinematográficas, incluyendo aquellos mercados con menor renta audiovisual, y favorecer el flujo de intercambios comerciales. Ejemplo de ello es la firma del acuerdo de codistribución celebrado entre Argentina y Brasil en 2003viii y la creación, también en el mismo año, de un espacio regional dedicado al estudio del ámbito cinematográfico: la Reunión Especializada de Autoridades Cinematográficas y Audiovisuales del Mercosur (RECAM) y el Observatorio Mercosur Audiovisual (OMA).

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Por países, Argentina sigue siendo el mercado que más coproduce con el resto de la región. Entre 2000-2008 se realizaron 51 coproducciones entre Argentina y países del Mercosur (tabla 6), Brasil 32, más de la mitad en 2004. Sorprende el elevado nivel de coproducción de Uruguay, con 23 películas. Bolivia, Paraguay y Venezuela participaron en un número reducido a consecuencia de la escasa financiación con que afrontan la producción.

Tabla 6. Evolución de las coproducciones realizadas en el Mercosur, 2000-2008 Argentina Brasil Paraguay Uruguay Bolivia Chile Venezuela

2000 3 1 0 4 0 2 0

2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 4 3 5 12 7 6 2 3 3 3 12 5 2 0 0 0 1 0 1 1 1 3 2 1 3 5 2 1 0 0 1 1 1 1 0 1 4 5 9 3 0 0 2 0 2 3 1 1 0 Fuente: DE MORA (2009) /OMA-RECAM (2008)

2008 9 3 0 2 0 5 1

TOTAL 51 32 4 23 4 29 10

Respecto a la presencia del cine iberoamericano entre los países de la región, es difícil conocer el volumen de estrenos al no existir una base de datos similar a Lumière del Observatorio Audiovisual Europeo. Pero con los datos recopilados podemos decir que se trata de un volumen inapreciable. Entre 2002-2007 los cuatro mercados mayores (Argentina, Brasil, México y España) y Chile estrenaron un total de 323 largometrajes en España, Brasil, Argentina, Chile y Colombia, un promedio de 65 largometrajes por año (gráfico 2). Argentina y España, con 138 y 91 estrenos respectivamente fueron las cinematografías más representativas.

Gráfico 2. Largometrajes iberoamericanos estrenados en España, Brasil, Argentina, Chile y Colombia según país de origen, 2002-2007

Fuente: elaboración propia/ GONZÁLEZ (2005)/ ICAA/ INCAA/ ANCINE/ Filme-B/ CNCA/ IMDb

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Entre 2002-2006 Brasil estrenó 35 películas argentinas que congregaron 1,3 millones de espectadores y una recaudación en sala que ronda los 3 millones de dólares; 18 películas españolas; 2 chilenas y 7 mexicanas (GONZÁLEZ, 2005). En el mismo período Chile proyectó en sus pantallas 29 títulos argentinos que congregaron a un total de 275.642 espectadores y una recaudación de 740.631 dólares, frente a los 19 españoles, 6 brasileños -que congregaron a 31.116 espectadores y recaudaron 110.790 dólares-, 6 mexicanos y 6 peruanos. Uruguay, Venezuela o Bolivia apenas lograron estrenar un único largometraje en estos cuatro años con recaudaciones inferiores a los mil dólares y menos de 200 espectadores. En Venezuela en 2006 se estrenaron 18 títulos iberoamericanos procedentes de Argentina (8), Chile (6), Brasil (2), Paraguay (1) y Perú (1). En Colombia se exhiben fundamentalmente películas españolas y argentinas, un promedio de 13 estrenos por año, cifra que supera la media de estrenos colombianos (7). México, Chile y Brasil tan sólo estrenaron un par de títulos en estos cinco años. Potencialidades digitales para la comercializacón del cine euro-iberoamericano Nos encontramos en un momento de crucial relevancia para el futuro desarrollo de las industrias audiovisuales euro-iberoamericanas. La reconversión tecnológica digital que afecta a las salas de exhibición de todo el mundo y el auge de los nuevos modelos de negocio asociados al consumo audiovisual en la Red establecen un nuevo modelo de negocio e imprimen un nuevo rumbo que, como mínimo viene a alterar el tradicional status quo del que gozaban determinados agentes al controlar los sectores clave de la economía cinematográfica. Este nuevo orden podría suponer un halo de esperanza a aquellos mercados que sufren fuertes procesos de concentración para salir de la delicada situación en que se encuentran, pero sobre todo, vendría a suponer una alternativa con la que deben contar los mercados menos maduros para fortalecer e incrementar los escasos flujos comerciales tanto a nivel interno, como a nivel interregional. Según Media Salles, en 2011 se contabilizaron 10.346 salas digitales en la Unión, un incremento del 121% (4.684) respecto al año anterior, el 43,9% pertenecen a Francia (1.887), Reino Unido (1.408) y Alemania (1.248)ix. Según Roque González (2010), en septiembre de 2010 se contabilizaban en Latinoamérica 850 salas digitales equipadas con tecnología 3D, el 60% concentradas en México (42%) y Brasil (18%). Asimismo, el país azteca cuenta con 370 salas digitales (el 7-8% del total), Brasil con 150 (el 7%), Argentina 75 (9%), Colombia 60 y el resto de países como Bolivia, Chile, Ecuador, Paraguay, Perú, Uruguay y Venezuela entre 10 y 30 salas digitales cada uno.

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De este análisis se desprenden dos características significativas, la fuerte concentración geográfica y empresarial que acompaña a dicho proceso. Son los mercados maduros y los empresarios de grandes complejos cinematográficos los que lideran el avance digital, que en Europa lleva el sello del grupo UCI/Odeon (en Reino Unido), Circuito Georges Raimond (en Francia), Kinépolis (Bélgica, Francia y España) y Lusomundo (en Portugal) y en la otra orilla la firma de Cinemark, Cinépolis y Hoysts en México, Brasil y Argentina respectivamente. Contenidos alternativos y una oferta audiovisual en sala más heterogénea

El hecho de contar con un equipo de proyección digital (proyector 2K-4K y servidor)x y disponer de conexión a internet en las nuevas salas de exhibición digital supone e implica una auténtica revolución, y evolución, tanto en el sector de la distribución como en el de la exhibición. Está claro que en todo proceso de transformación existen una serie de ventajas y desventajas. Dejando a un lado estas últimas, relacionadas con la fuerte inversión, que ronda los 120 mil eurosxi y que debe realizar el exhibidor, quien recientemente acometió un profundo desembolso económico en la modernización y creación de macrocomplejos cinematográficos; el riesgo de sufrir un mayor control todavía más absoluto de Hollywood ante la posibilidad de realizar estrenos simultáneos a escala mundial; pero sobre todo de incrementar la discriminación que dicho proceso puede ocasionar entre los países desarrollados y subdesarrollados que presentan un desigual acceso a las nuevas tecnologías y con diferente desarrollo de la banda ancha, e internamente, entre las zonas más pobladas y rurales del país en donde un elevado volumen de población apenas dispone de salas de cine (un rasgo destacable en la mayoría de mercados iberoamericanos). Entre las ventajas, más allá del ahorro que supone la eliminación del tiraje de copias

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o la reducción de los costes operacionales (almacenamiento, transporte,

mantenimiento…) entre otras, sin duda destaca una que implica a varios sectores y supone una nueva vía de ingresos. Podemos decir que en las nuevas salas digitales el empresario de la exhibición se convierte en programador de diversos contenidos audiovisuales (GARCÍA SANTAMARÍA, 2009)xiii; el público encuentra una cartelera más heterogénea (retransmisiones musicales y deportivas en directo, ballet, ópera, teatro, circo…) y otras industrias culturales como la música cuentan ahora con un nuevo medio de promoción y una nueva vía de ingresos. Artistas como Robbie Williams o la banda irlandesa U2 han colgado el cartel de aforo completo en salas de exhibición con retransmisiones en directo en 3D y Alta Definición a nivel mundial. Pero no sólo triunfa el género pop-rock, sorprendentemente

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la ópera se ha convertido ya en un reclamo de éxito en las salas de todo el mundo y ha conseguido hacerse un hueco en la programación habitual de las carteleras de cinexiv. En este sentido es destacable el programa de contenidos audiovisuales que ofrece el grupo de exhibición español Yelmo Cineplex, desde ciclos de Circo (“Un circo de cine”), videojuegos en red (“Cinegames”), actividades educativas extraescolares (“Cineduca”) hasta el alquiler de las salas para conferencias privadas a nivel internacional en alta definición son algunas de las opciones que el público puede encontrar, aunque de momento sólo disponible para las salas de la ciudad de Madrid (www.yelmocineplex.es). Pero sin duda, la mayor ventaja que comporta la distribución y exhibición digital y que resulta de especial relevancia para la integración del espacio audiovisual euroiberoamericano, es la posibilidad de permitir el acceso a las salas a aquellas películas digitales de origen no made in Hollywood que ahora viajan a través de la Red, en disco duro o vía satélite. El exhibidor podría programar aquellos títulos menos comerciales en horarios distintos a los que manejan los estrenos de las grandes multinacionales, pero además, también se le brinda la posibilidad de reponer viejos éxitos de taquilla, crear ciclos de cine (de autor, género o nacionalidad)… en definitiva ofrecer una cartelera más democrática y atraer al público a unas salas que no sólo se definan por la mera atracción y espectacularidad que de momento despierta el visionado tridimensional de moda. Nos encontramos ante un nuevo modelo de negocio donde la proyección de películas continuará primando y determinará el recorrido comercial en el resto de ventanas, pero el auge que está teniendo en nuestros días el consumo audiovisual online y un público joven cada vez más activo que elige lo que quiere ver y dónde, abren un atisvo de esperanza a las cinematografías de aquellos mercados menos desarrollados.

Distribución online y plataformas web para la comercialización de películas en la Red

El desarrollo de la banda ancha y su elevada tasa de penetración a nivel mundial, el auge de las redes sociales, el intercambio de archivos y la interrelación de medios (telefonía móvil, televisión digital e Internet) han convertido Internet en un medio específico, independiente y de éxito para la distribución y exhibición de contenidos audiovisuales online. Streaming, o visionado online, y download, o descarga en línea, son dos nuevos conceptos vinculados al consumo audiovisual en la Red. Y dos son los nuevos modelos de negocio asociados a la distribución de contenidos audiovisuales online: el modelo basado en dispositivos de reproducción portátiles (como el desarrollo por iTunes Store de Applexv o el dispositivo Xbox Live desarrollado por Microsoft para la consola de videojuegos Xbox 360,

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de gran éxito en Estados Unidos) y los modelos asociados a portales web, cuyas principales líneas de acción para la distribución de vídeo son: la descarga permanente de películas (Download-to-own, DTO)xvi, el “videoclub online” o alquiler de películas (Download-to-rent, DTR), suscripción a servicios de descarga o streaming (SVoD)xvii y servicios de descarga o streaming soportados por publicidad (FVoD)xviii (ASIMELEC, 2008, p. 41-43). Empresas distribuidoras y productoras cinematográficas ya poseen su propio espacio en la Red. A nivel internacional destacan portales como “Hulu”, “Intertainer”, “Movielink”, “Netflix”, “CinemaNow” o “MovieSystem”, pero sin duda alguna, el anuncio más importante para el sector tuvo lugar en 2011, cuando los principales estudios estadounidenses (Warner, Lionsgate, Paramount Pictures, Sony, Universal y Twentieth Century Fox) deciden agruparse y crear su propio portal conocido como “Ultraviolet” desde el que distribuir sus propias producciones. En Reino Unido la plataforma Lovefilm también ha firmado acuerdos con Sony, Twentieth, Universal y Warner. En Francia Canal Play con Disney, Paramount, Sony y Twentieth. En Españaxix son varias las plataformas que, utilizando herramientas basadas en la web 2.0, distribuyen contenidos audiovisuales a través de Internet, como la Entidad de Gestión de Derechos de los Productores Audiovisuales (EGEDA) a través del portal “www.filmotech.com”; la Sociedad General de Autores y Editores (SGAE) en el portal “www.accine.com”; la distribuidora Filmax en “www.yodecido.com” y Telefónica y Terra en “www.pixbox.com”. A nivel iberoamericano se pueden mencionar al menos algunas experiencias importantes y de éxito en la puesta en marcha de nuevos portales de promoción y redes de distribución online, algunas de ellas apoyadas por la Agencia Española de Cooperación Internacional para el Desarrollo (AECID) como, “Hamaca, Media & video art distribution from Spain” (www.hamacaonline.org), una iniciativa de la Associació d’artistes visuals de Catalunya (AAVC) cuyo objetivo es la difusión de vídeos en el ámbito iberoamericano; “Fábrica do Futuro” (www.fabricadofuturo.org.br), economía creativa del audiovisual creada en 2005 en Catagueses-Mata (Brasil), ofrece formación, gestión y educación audiovisual y cultural a la ciudadanía de forma presencial y virtual; Docfera (www.docfera.com), creada en 2007 se centra en los documentales y dispone de acceso privado y público. Los principales obstáculos que presenta este el nuevo modelo de negocio online tiene que ver con la falta de unificación de precios (desde 1 euro en “Filmotech.com” a 4 euros en “Yodecido.com” por un alquiler de 48 horas), catálogos reducidos, anticuados y limitados a producciones nacionales, además de incómodos sistemas de DRM que casi imponen la reproducción en Windows.

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Reflexiones finales y propuestas digitales

No podemos hablar de la existencia de un espacio audiovisual europeo y/o iberoamericano común e integrado por el que circule un flujo comercial importante de obras producidas en la región. Tampoco podemos decir que la existencia de programas de cooperación internacionales, como Media e Ibermedia, mejorasen esta situación después de dos décadas de funcionamiento. Mientras que los acuerdos de cooperación, bilaterales o multilaterales, que han garantizado la presencia de las cinematografías de los países coproductores en sus respectivos mercados, por un lado debieran hacerse extensibles a otros mercados más pequeños, contando con el resto de países de la región, y por otro, garantizar el recorrido comercial por otros países además de los de origen. Coproducción pero también codistribución. El éxito del acuerdo ratificado entre Argentina y Brasil en 2003, con un incremento de películas de ambas nacionalidades exhibidas entre ambos países durante la vigencia de dicho acuerdo establece las bases para la formulación de unos posibles acuerdos de aplicación conjunta entre todos los estados pertenecientes a un mismo espacio. No sólo acuerdos puntuales entre determinados países ni favoreciendo determinada actividad, los gobiernos y empresarios privados deben encaminar sus esfuerzos a la fase comercial y para ello es necesario contar con una red de distribución y circuitos de exhibición por el que circulen los contenidos de la región. Los bajos costes operacionales, el desarrollo de la banda ancha y la elevada tasa de penetración hacen de Internet un medio con el que las industrias culturales europeas e iberoamericanas deben contar para la distribución de contenidos audiovisuales online a través de portales web. Entidades públicas (Ministerios de Cultura, Institutos de Cinematografía, Organismos internacionales) y privadas (distribuidoras y productoras) deben tener garantizada su presencia en la Red. A nivel iberoamericano debe ser puesto en marcha el programa Cibermedia, debe digitalizarse el amplio archivo audiovisual de que se dispone en la región ofreciendo un catálogo atractivo y actualizado con posibilidades de reproducción en varios sistemas operativos, facilidades de acceso y de descarga de películas/series de televisión con unos precios homogéneos entre los distintos portales. Por tanto, será en el seno de la CAACI y de la Unión Europea en donde se deban trazar las futuras líneas de acción del nuevo modelo de distribución digital en y entre Europa e Iberoamérica.

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A nivel privado destacan importantes iniciativas internacionales para la distribución digital de películas, como la llevada a cabo por la empresa Rain Network en Brasil, pionera en la región. A nivel público, el gobierno español en 2010 lanzó la plataforma Cinneo en colaboración con empresarios privados, entre los que se encuentran exhibidores y distribuidores, para digitalizar y distribuir contenidos audiovisuales digitales en salas de exhibición, Internet, IPTV, TDT... En la actual era digital, dominada por la convergencia de las telecomunicaciones, el consumo digital (e-books, música en mp3, archivos audiovisuales en youtube y redes sociales…) y la elevada tasa de penetración de las nuevas tecnologías a nivel mundial (móvil, TDT, Internet) hace necesario, ahora más que nunca, revisar y reformular el papel de las políticas públicas y los programas de fomento a la industria nacionales e internacionales si no se quieren revivir nuevos procesos de concentración, si cabe, todavía más poderosos. Referências ÁLVAREZ MONZONCILLO, J.M. y LÓPEZ VILLANUEVA, J. La situación de la industria cinematográfica española: políticas públicas ante los mercados digitales. Madrid: Fundación Alternativas, Documento de trabajo 92/2006. Disponible en: http://www.almendron.com/politica/pdf/2006/8819.pdf. Consultado el. 05.09.2011. ÁLVAREZ VALENCIA, J. (Coord.) et al. Evaluación del Programa IBERMEDIA, 1998-2008. 10 años de apoyo al cine iberoamericano, Fundación para la Investigación del Audiovisual y Secretaría General Iberoamericana (SEGIB): Universidad Internacional Menéndez Pelayo, 2009. Disponible en: http://www.slideshare.net/LucioLatorre/informe-ibermedia-fia. Consultado el: 02.09.2011. ASOCIACIÓN MULTISECTORIAL DE EMPRESAS ESPAÑOLAS DE ELECTRÓNICA Y COMUNICACIONES (ASIMELEC). Informe 2008 de la Industria de Contenidos Digitales, Madrid: ASIMELEC, 2008. Disponible en: http://www.asimelec.es/media/Proyectos/Informe%20Contenidos%20Digitales/Informe_2008 _Industria_Contenidos_Digitales.pdf. Consultado el: 10.09.2011. BONET, L. y GONZÁLEZ, C. El cine mexicano y latinoamericano en España en GARCÍA CANCLINI, N., MANTECÓN, A.R. y SÁNCHEZ RUIZ, E. (Coord.). Situación actual y perspectivas de la industria cinematográfica en México y en el extranjero, México: IMCINE, Universidad de Guadalajara, 2006. BUSTAMANTE, E. (Ed.) et al. “Iberoamérica: La cooperación cultura-comunicación en la era digital”, Madrid: AECID, 2010. CABALLERO, R. (Coord.). Producción, coproducción e intercambios de cine entre España, América Latina y el Caribe, Fundación Carolina: Madrid, 2006. DE MORA, R. Cooperación e integración audiovisual en Iberoamérica. Tesis dirigida por BUSTAMANTE, E., Madrid: Universidad Complutense de Madrid, 2009. DIGITAL CINEMA INITIATIVES (DCI). Digital Cinema System Specification, Version 1.2, march 7, 2008. Disponible en: http://www.dcimovies.com/specification/index.html. Consultado el: 08.09.2011.

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Consulta de páginas web: Accine, www.accine.com Agência Nacional do Cinema, www.ancine.gov.br (Brasil) Arts Alliance Media (Alternative contents), http://alternative.artsalliancemedia.com Base de datos de cine brasileño, www.filmeb.com.br (Brasil) Cinema Now, www.cinemanow.com Cinneo, www.cinneo.com Consejo Nacional para la Cultura y las Artes, www.cnca.gov.mx (México) Consejo de la Cultura y las Artes (CNCA), www.consejodelacultura.cl (Chile) Centro Nacional Autónomo de Cinematografía, www.cnac.gov.ve (Venezuela) Digital Cinema Initiatives, www.dcimovies.com Docfera, www.docfera.com Filmotech, www. filmotech.com Fábrica do Futuro, www.fabricadofuturo.org.br Hamaca, Media & video art distribution from Spain, www.hamacaonline.org Instituto de la Cinematografía y Artes Audiovisuales (ICAA). Boletín informativo de cine: producción, distribucion y exhibición de películas. Disponible en: http://www.mcu.es/cine/MC/BIC/2009/Produccion.html. Consultado el: 06.09.2011. ICAA. Estadísticas de cine: El cine y el vídeo en datos y cifras. Disponible en: http://www.mcu.es/cine/MC/CDC/index.html. Consultado el: 06.09.2011. Intertainer, www.intertainer.com Instituto Nacional del Cine y las Artes Audiovisuales, www.incaa.ar (Argentina) Internet Movie Database, www.imdb.com Media Salles, www.mediasalles.it Movielink, www.movielink.com MovieSystem, www.moviesystem.com Netflix, www.netflix.com Observatorio Mercosur Audiovisual (OMA)-Reunión Especializada de Autoridades Cinematográficas y Audiovisuales del Mercosur y Estados Asociados, www.recam.org Observatorio Audiovisual Europeo (OAE), www.obs.coe.it Yodecido, www.yodecido.com i

El término Iberoámerica hace referencia al conjunto de países de habla hispano-lusa que forman parte de la Comunidad Iberoamericana de Naciones. Estos son: Andorra, Argentina, Bolivia, Brasil, Chile, Colombia, Costa Rica, Cuba, República Dominicana, Ecuador, El Salvador, España, Guatemala, Honduras, México, Nicaragua, Panamá, Paraguay, Perú, Portugal, Puerto Rico, Uruguay y Venezuela. ii En 2010 en España se contabilizaron un total de 250 empresas productoras de cine con actividad, de las cuales el 79,6%, o lo que es lo mismo, 199 empresas participaron en la producción de una sola película, 44 empresas produjeron entre dos y cuatro y tan sólo 7 produjeron cinco o más películas. Tan sólo una empresa recaudó más de 20 millones de euros en 2010, Antena 3 Films con 11

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largometrajes producidos. Una superó los 10 millones con sólo 2 filmes, Globo Media; 10 empresas entre 5 y 9 millones de euros; y 13 entre 1 y 5 millones de euros (ICAA, 2010. Estadísticas de Cine. El cine y el vídeo en datos y cifras). iii Según datos de Screen Digest (2006), en 2002 se produjeron en Latinoamérica un total de 122 películas, 173 en 2003, 255 en 2004 y 283 en 2005. Sin embargo, hasta finales de 2007 sólo 49 de las 283 películas latinoamericanas producidas en 2005 habían sido estrenadas en la UE, 37 de ellas fueron coproducciones realizadas con productoras europeas. iv Según ANCINE, en octubre de 2008 se celebró en Madrid el primer encuentro entre empresarios de la producción de España y Brasil. v En 2008 España aportó 3.844.706 dólares, casi el 60% del total (6.594.586) de un fondo compuesto por un total de 18 estados miembros: España, México, Argentina, Brasil, Colombia, Cuba, Portugal, Uruguay y Venezuela como estados fundadores, en 1998; Chile, Bolivia y Perú se sumaron entre 1999-2001 y aportan la cantidad mínima exigida, 100.000 dólares. En 2003 se suma Puerto Rico, Panamá en 2006, en 2008 lo hacen Costa Rica, Ecuador y República Dominicana y en 2009 Guatemala (ÁLVAREZ VALENCIA, 2009). vi Entre 2002-2008 España ha participado en la coproducción de 79 largometrajes con el país galo, el 32% del total de las coproducciones realizadas con países europeos en dicho período (247), un promedio de 13 títulos al año (ICAA. Boletín informativo de cine. Producción, distribución y exhibición de películas. Varios años). vii El Mercado Común del Sur (MERCOSUR) nace el 26 de marzo de 1991 con la firma del Tratado de Asunción suscrito por los cuatro Estados Partes, Argentina, Brasil, Paraguay y Uruguay con el fin de crear un área por el que circulen libremente bienes, servicios y factores productivos. viii Un acuerdo inédito en el continente que tiene como objetivo facilitar la co-distribución de películas argentinas en Brasil y brasileñas en Argentina, mediante el otorgamiento de subsidios a las distribuidoras. Este Acuerdo explica el incremento de la presencia del cine brasileño en el mercado argentino (22 largometrajes) y viceversa (37 títulos) entre 2002-2007. ix En 2011, en los mercados latinos de la Unión se contabilizaban 758 salas digitales españolas, 912 italianas y 317 lusas. Un crecimiento significativo si tenemos en cuenta los pobres datos de 2009 cuando tan sólo se registraban 50 en España, 80 en Italia y 44 en Portugal (MEDIA SALLES, 2011). x La resolución mínima requerida para la proyección digital siguiendo las especificaciones DCI para la proyección digital será la equiparable al 35mm, 2K (2048 x 1080 píxeles) ó 4K (4096 x 2160 píxeles). En el servidor se almacenan los archivos digitales que llegan en formato disco duro, a través de fibra óptica o vía satélite codificados, comprimidos y encriptadas siguiendo códigos DRM (Digital Rights Management) que incluye el sistema de “marca de agua” (Watermarking) para impedir la copia ilegal (DCI, 2008, p. 144). xi En Latinoamérica, cada sala digitalizada (incluyendo proyector, servidor, software y equipo para proyección en 3D) tiene un coste cuatro veces superior al de Estados Unidos o Europa, ronda entre los 200.000 y 300.000 dólares USA (GONZÁLEZ, 2009). xii En un mercado como el español, la supresión del coste de duplicado de copias (cerca de 1.500 euros por cinta) permite un ahorro de cerca de 75 millones de euros (ÁLVAREZ MONZONCILLO Y LÓPEZ VILLANUEVA, 2006, p. 35). xiii Los exhibidores ahora negocian con empresas de televisión o productoras concesionarias de los derechos de emisión para la retransmisión en sala y en directo (vía satélite y en Alta Definición) de cualquier evento, musical o deportivo. De hecho en España los principales empresarios de la exhibición (ACEC, Cinesa, Yelmo, Kinépolis y Vircas) han firmado un acuerdo con Mediapro para la retransmisión de partidos de fútbol de la liga española (ONTSI, 2009). xiv Según Arts Alliance Media (AAM), sólo en 2008 más de 50 mil espectadores españoles asistieron a ver ópera a las salas de exhibición. El precio de la entrada ronda los 16 euros, en torno a los 6 para los eventos deportivos en España. Se recomienda visitar la web para consultar el programa de contenidos alternativos que ofrece esta plataforma a las salas de exhibición europeas (http://alternative.artsalliancemedia.com). xv Este dispositivo se conecta directamente al televisor y permite comprar música, películas, visualizar vídeos gratuitos de Youtube y contenidos generados por el propio usuario a través de una conexión a Internet. Según la propia compañía, desde su puesta en marcha en 2008 han vendido más de 125 millones de programas de televisión y 7 millones de películas online afirman que cada día se compran más de 50.000 películas sólo en los Estados Unidos (www.notasdecine.com, 15.01.08). xvi El modelo de venta y descarga permanente es el más extendido en Europa. Sólo en 2006 se distribuyeron bajo esta modalidad 5 millones de películas. Los países nórdicos, Francia y Alemania,

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debido a sus velocidades de conexión (Suecia, 14,3 Mbps, más del doble que en España) son los mercados europeos más avanzados (ASIMELEC, 2008). xvii En el modelo de suscripción para descarga o visionado en tiempo real (streaming), el usuario, previo pago de una cuota mensual o semanal, según establezca el proveedor, puede acceder de forma ilimitada al catálogo de películas. En España sólo MovieFlix e Imagenio de Telefónica ofrecen este servicio. xviii Se trata de un modelo similar al existente en la música con plataformas como Spotify, en donde los usuarios no tienen que pagar por la escucha del producto seleccionado y los productores son compensados con un porcentaje de los ingresos por la publicidad insertada. xix Según Screen Digest (2007, p. 270), en España en 2007 los ingresos por nuevos modelos de negocio generados a través de Internet, como la descarga permanente de películas y el alquiler online, han superado el medio millón de euros llegando a efectuarse 28.000 descargas de películas y una recaudación que ronda los 400 mil euros y 35.000 películas en modo de alquiler.

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La segmentación del mercado como estrategia de venta en España: el caso del diario Público Dra. Rosalba Mancinas Chávez1, Universidad de Sevilla (España) Belén Zurbano Berenguer2, Universidad de Sevilla (España) Sara Domínguez Martín3, Universidad Oberta de Catalunya, (España)

Resumen En 2007 surge en España un nuevo periódico con alcance nacional que se autodefine como un medio de comunicación pensado para un segmento cultural de público joven y de izquierdas. El diario Público está respaldado por un grupo empresarial internacional y obedece a una corriente política específica: una especie de socialdemocracia situada más a la izquierda que la oficial, instalada por completo en el seno del sistema de mercado, representada en España por el diario El País, del grupo Prisa . En este trabajo se pretende demostrar –con la utilización de diario Público como ejemplo- que la segmentación del mercado es una estrategia para la venta y la pluralidad de la información es una quimera cuando existen grupos empresariales propietarios de los medios de comunicación más influyentes. Palabras clave Público, prensa, estructura de la información, economía política de la comunicación, empresas de comunicación. Abstract In 2007 a new newspaper with national scope was born in Spain. They define themselves as a media thought for a cultural segment of young and left-wing public. Público is endorsed by a managerial international group and obeys a political specific current: a species of social democracy placed more to the left side than the official one, installed completely in the bosom of the market system, represented in Spain for the daily El País, property of PRISA. This article try to demonstrate - by the utilization of 1

Rosalba Mancinas Chávez es doctora por la Universidad de Sevilla. Su tesis, titulada La estructura mediática de México y el caso del Estado de Chihuahua: Prensa, Radio, Televisión e Internet, constituye uno de los principales documentos en cuanto a la estructura de la información en México. Es miembro del Grupo de Investigación en Estructura, Historia y Contenidos de la Comunicación. Autora de El poder mediático en México (2008) y La palpitante historia de la comunicación en Chihuahua (2009). E-mail: rmancinas@us.es. 2 Belén Zurbano Berenguer es licenciada en periodismo e investigadora del Grupo Comunicación y Cultura del Departamento de Peridismo I de la Universidad de Sevilla. Además, ha colaborado en diversas publicaciones como la revista Comunicación y Cultura y Pueblos, con artículos relativos a su actual ámbito de estudio, la mujer y los medios de comunicación. E-mail: bzurbano@us.es. 3 Sara Domínguez Martín es licenciada en Periodismo por la Universidad de Sevilla y actualmente realiza estudios de posgrado en “Dirección de Márketing y Comunicación” por la Universitat Oberta de Catalunya y trabaja como periodista especializada en Redes Sociales. Email: sara.dominguezmartin@gmail.com.


the newspaper Público as an example - that the segmentation of the market is a strategy to sale and the plurality of the information is a lie when there are managerial proprietary groups of the most influential mass media. Keywords: Público, press, information structure, media policies, communication enterprises Resumo E, 2007 surgiu na Espanha um novo jornal com abrangência nacional que se descreve como uma mídia voltada para um segmento cultural de público jovem e de esquerda. O jornal Público está respaldado por um grupo empresarial internacional e reflete uma corrente política específica: uma espécie de social-democracia situada mais à esquerda que a oficial, totalmente instalada dentro do sistema de mercado, representada na Espanha pelo jornal El País, do grupo Prisa. Este trabalho visa demonstrar, com o uso do do jornal Público como um exemplo, que a segmentação do mercado é uma estratégia para a venda e que a pluralidade da informação é uma quimera, quando há grupos empresariais proprietários dos meios de comunicação mais influentes. Palavras–chave: Público, jornal, estrutura de informação, economía política, empresas de comunicação. Introducción

En el mundo globalizado en que nos hallamos inmersos, los elementos que conforman las estructuras informativas existentes dentro del sistema hegemónico de medios de comunicación, extienden sus tentáculos hasta la imprimación de su huella en aspectos tanto políticos como sociales. El consumo de bienes simbólicos es determinado por multitud de interrelaciones que se establecen entre los diferentes sectores empresariales, incluido el informativo. Los periódicos, las estaciones de radio y demás medios de comunicación masiva constituyen empresas que participan de la necesidad de beneficios, comparten accionariado en otros sectores industriales o incluyen en sus cúpulas directivas a personajes ligados al mundo de la política. La economía globalizada, las empresas transnacionales, los flujos internacionales de productos, personas e ideas, nos llevan a retomar el viejo discurso del derecho a la información y nos invitan a reflexionar acerca de la Estructura de la Información como una forma de comprender el funcionamiento de los medios masivos de comunicación, determinada por las relaciones de poder político y económico que se gestan por detrás del mensaje explícito. Se concibe entonces la información como un sector más dentro del sistema capitalista de compraventa de bienes y servicios.


Nos encontramos con un panorama diversificado, muy concentrado a la vez, y tendente a la obtención de sinergias empresariales e incluso ideológicas que tienen su reflejo en los medios de comunicación que cada día consumen los ciudadanos y que deberían proveer de una información veraz, diligente, digna y de calidad. La información no es una fuente de riqueza o entramado empresarial más, sino que la relación que se establece entre los ámbitos informativo-empresariales, interconectados con las esferas políticas de decisión, ha de conocerse y explicitarse para que los públicos, los ciudadanos, los consumidores de medios, puedan conocer las relaciones existentes y juzgar, a partir de esa experiencia, el producto ofrecido y las implicaciones de su modo de manufactura: la información. Con

esta

investigación

se

aporta

una

pequeña

contribución

al

conocimiento general del entramado de interrelaciones, más o menos evidentes según los casos, que representa la estructura mediática o el sistema de medios en España. Se ha elegido como objeto de estudio para demostrar las premisas anteriores, el diario español Público, un medio de tirada nacional que surgió en 2007 con el objetivo de brindar una alternativa de izquierda en el panorama mediático español. Pretendemos demostrar –a través del análisis pormenorizado de Público, como empresa, más allá del mensaje- que existe un abismo conceptual entre la imagen proyectada del medio con su realidad económico-empresarial. Así, un medio novedoso, poco estudiado y de posicionamiento ideológico claro y explicitado por los fundadores como progresista4 y “de izquierdas” se torna ante una mirada analítica y reflexiva en un panorama interesante sobre el que profundizar. El objetivo principal es demostrar que Público cumple la función de atender a un determinado sector cultural, derivado de la segmentación del mercado, un público definido por su ideología de izquierda que no ve satisfechas sus demandas de información con el periódico El País, de tendencia socialdemócrata conservadora. Para lograrlo, deberán cumplirse los siguientes objetivos particulares:

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Su propietario, Jaume Roures, lo definía antes de su lanzamiento como “progresista, de izquierdas, popular, democrático radical, pero respetuoso”.


1. Reseñar brevemente la historia del nacimiento y evolución del diario Público desde una perspectiva estructural. 2. Analizar el devenir del diario dentro de la estructura de la información española actual (2011) apreciando las similitudes y diferencias entre el recorrido de este medio y las tendencias generales. 3. Situar a este periódico en su contexto mediático, empresarial e ideológico. Pese a haberse revestido a Público con una “imagen de marca” anclada en valores progresistas y sociales, este medio pertenece al ámbito de influencia de uno de los más poderosos grupos mediáticos de poder en la actualidad española: el grupo Mediapro. A pesar de no estar claras sus vinculaciones, Mediapubli, editora del diario que nos ocupa, pertenece a la intrincada red empresarial de los dueños del grupo Mediapro, lo que inserta a este aparentemente modesto y “radical”5 periódico en un ámbito financiero y político en el que la libertad y la profesionalidad tienen unos límites muy marcados. Quedando reducido el espíritu progresista, renovador, libertario, únicamente a una imagen que proyectar con la finalidad de atraer a un nicho de mercado (eminentemente joven y de ideología marcadamente izquierdista) no cubierto por la oferta informativa impresa nacional. Así, partimos del convencimiento de que las grandes (y no tan grandes) empresas mediáticas, son piezas de un rompecabezas macro-estructural llamado Mercado (Reig, 2010). En este sentido, las empresas mediáticas obedecen a las leyes de oferta y demanda y venden su producto sin considerar la naturaleza del mismo. Basamento teórico y epistemológico

En el clásico paradigma de Lasswell Quién-dice Qué-a Quién, mejor entendido como Emisor-Mensaje-Receptor, este estudio se sitúa en el Quién, en el análisis del Emisor, como una forma de comprender el Mensaje, pues parte del convencimiento de que el Emisor determina los mensajes emanados de un medio de comunicación, independientemente de los avances tecnológicos que permiten la retroalimentación por parte del receptor.

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Siempre en comparación con los iconos mediáticos impresos progresistas de España en el momento de su lanzamiento: el diario El País, cada vez más virado hacia el centrismo ideológico.


Los medios tienen la gran responsabilidad de transmitir mensajes y símbolos para el ciudadano medio y, en este sentido, este trabajo bebe de los preceptos de la Teoría de la Responsabilidad de los Medios de Comunicación (Siebert, Schramm y Peterson, 1963) y concibe la información como un derecho fundamental para el desarrollo de las democracias modernas, no puede ser –por tanto- un mero producto mercantil. En el ordenamiento jurídico español la información es un derecho constitucional por lo que las empresas informativas no son sólo empresas cuyo producto es un bien intangible sino que la naturaleza de su productor las convierte en garantes de un derecho ciudadano. Los medios de comunicación son considerados como organismos de interés público, no pudiendo ser aceptados como un ente económico cualquiera. Las empresas de comunicación deben tener normas específicas de comportamiento en el mercado, acordes con la responsabilidad social que les confiere el poder que tienen sobre el imaginario colectivo y –como consecuencia- sobre el desarrollo económico, político y social. Existen largos e interesantes debates académicos sobre la deontología periodística, pero no es ese el tema que nos ocupa en este trabajo de investigación. La función de los medios de masas es divertir, entretener e informar, pero mientras cumplen esta función inculcan valores, creencias y códigos de comportamiento (Chomsky y Herman, 1990). Desde finales del siglo pasado, Fernando Quirós (1998) dejó claro que la verdadera manipulación de los medios de comunicación se encuentra oculta, la manipulación que nos interesa como objeto de estudio, más allá de casos particulares de periodistas corruptos o incompetentes, es la manipulación organizada, aquélla que utiliza a los periodistas como peones de unas prácticas que identifican discurso informativo con poder. En este sentido, el trabajo que aquí se presenta no viene sino a aportar un pequeño grano de arena más en este sinfín de complejas e intrincadas relaciones entre los diversos poderes que dan lugar a una configuración noticiosa carente de los más mínimos preceptos de calidad, profesionalidad y veracidad. En España existen trabajos muy interesantes que ponen al descubierto el entramado de intereses políticos y económicos que se esconden detrás del mensaje mediático (Reig, 1998; Bustamante, 1982; Zallo, 1992; Almirón, 2000; Labio Bernal, 2006; Serrano, 2010; Reig, 2011). Corresponden estos trabajos al ámbito de la Economía Política de la Comunicación, la Información y la Cultura, una rama de investigación de las Ciencias de la Información que aborda el objeto de


estudio desde el enfoque crítico, heredero de la tradición europea de estudios humanísticos. A partir de estos preceptos teórico-metodológicos, uno de los pilares fundamentales en los que se basa este trabajo de clarificación de la situación económica, política y estructural del diario Público (desocultación de los intereses que los grupos económicos en ciernes pretenden mantener silenciados) es el de la importancia de estudiar al emisor de los mensajes informativos para desvelar la tendencia al falso pluralismo que se da en la sociedades actuales. Sistemas sociales en los que ni política ni económica ni mediáticamente hablando puede afirmarse que existan verdaderas alternativas (pluralidades) al sistema establecido: el llamado capitalismo en su versión tanto económica (libre mercado) como política (democracia). En este sentido estudiamos a Público y su red de intereses, relaciones, financiadores y directivos con la voluntad de caracterizar al medio y situarlo dentro del sistema en el que se encuentra y no contra el que afirma oponerse, con el fin de demostrar que su posicionamiento ideológico es una estrategia para atender a un nicho de mercado, más que un compromiso real con el pensamiento de izquierda. Así, Público tratará temas que les interesan a los simpatizantes de las corrientes de izquierda, pero sin llegar a cuestionar el sistema de mercado, al cual pertenece, porque sería negarse a sí mismo como empresa y a todo el grupo de comunicación que lo respalda. Metodología

Como se afirma en el basamento teórico, este trabajo se sitúa en la Economía Política de la Comunicación, como corriente teórica y metodológica y parte de la tradición de estudios en Estructura de la Información, creada en España por Pedro Orive y continuada por Fernando Quirós, Enrique Bustamante, Ramón Zallo y Ramón Reig, principalmente, además de los mencionados en la parte teórica. Ramón Reig (2003, 9) concibe la Economía Política de la Comunicación como Una metodología interdisciplinaria, ilustrada, humanista, imprescindible para intentar aprehender el significado del mundo actual y, dentro de él, de las estructuras mediáticas y de poder, tan en contacto unas con otras.


El estudio se plantea desde un enfoque estructural, donde todos los elementos conforman un todo coherente. Se parcela la investigación por cuestiones metodológicas, pero nunca se abandona la visión de totalidad. Se ha elegido un medio de comunicación creado recientemente que se autodefine como periódico de izquierdas, para demostrar la falsa pluralidad que existe en un sistema de mercado donde el mensaje es único y se encamina a mantener el pensamiento único del cual forma parte. El estudio es inductivo, el diario Público es el punto de partida desde el cual se alcanza un universo empresarial complejo, vinculado con sectores específicos del poder político y económico del país y del mundo. Desde el caso particular de Público se analiza la composición empresarial que lo respalda hasta llegar a demostrar la vinculación –por ejemplo- con un grupo tan alejado geográfica e ideológicamente como es el mexicano Televisa, con quien comparte acciones en la cadena de televisión La Sexta. Es así como llegamos a demostrar La Telaraña Mediática (Reig, 2010) que existe detrás de un medio de comunicación que surge para atender un segmento de mercado como otro cualquiera, pero no por ello tiene un compromiso político ni ideológico. Como se ha mencionado anteriormente, se considera de vital importancia conocer la entidad emisora del mensaje, con el fin de comprender el tratamiento de la información. Resultados

En esta parte se presentan los principales resultados de la investigación. Para demostrar la hipótesis del trabajo, se dividen los resultados en tres partes: una descripción de Público -el objeto de estudio-, los vínculos empresariales que existen entre la empresa editora de Público y el grupo Mediapro y finalmente se centra el estudio en el grupo Mediapro. El diario Público: breve caracterización del medio

Público se lanzó al mercado el miércoles 26 de septiembre de 2007 con una clara vocación diferenciadora. Quería ser el periódico distinto, el “diario que hacía falta” y para hacerlo evidente utilizó herramientas como el color –de gama


cálida a diferencia de los tonos fríos predominantes en las cabeceras de referencia en España- o la inclusión en el logotipo de una silla de ruedas

(en

referencia a los colectivos vulnerables). Desde su creación, este diario ha diseñado una imagen de marca dispuesta a encuadrarse de lleno en el sector de la población al que iba a dirigirse, un

sector

definido

sobre

todo

ideológicamente

pero

también

sociodemográficamente. Para ello, puso especial atención en dos cuestiones: de un lado, su imagen corporativa atendiendo a elementos visuales como los que anteriormente hemos referido: color, tipo de

letra,

simbolismo, el grafismo de

estética moderna o la maquetación en la que se aprecian cuantiosas alusiones a la versión digital. De otro, las promociones que acompañan al diario, con un claro perfil de cultura contestataria con el sistema imperante. El afán distintivo y rompedor del medio fue advertido y criticado de inmediato por periodistas de otros medios. M.A. Menéndez, en Diario Crítico, planteaba … para el diseño, el trío Escolar-Valentín-Roures ha echado mano del estudio de Toni Cases –Caset i Associats–, que fue el responsable del premiado rediseño del británico The Independent y asesoró la puesta al día del argentino Clarín. Con la filosofía de Escolar, Cases ha proyectado, en definitiva, un diseño a mitad de camino con la línea que anima a El Periódico de Catalunya, con ciertos ribetes del desaparecido rotativo El Sol, la experiencia más negativa de Anaya6. Cambios e innovaciones que a pesar de ser en pocas ocasiones originales (tal y como ha puesto de manifiesto Menéndez) han tenido como objetivo acercarse a ese público que puede definirse como joven – entre 25 y 45 años–, urbano, de un nivel sociocultural medio o medio alto, y con una ideología encuadrada dentro el espectro izquierdista. Todo esto, que puede apreciarse también en el tipo de publicidad –y de promociones– que contiene el diario, es también matizado si se comprenden las principales corrientes ideológicas en torno al socialismo –y su correspondencia mediática– en nuestro país. Según Ramón Reig (2000 y 2010), en España coexisten principalmente dos tendencias socialdemócratas que se han turnado en el poder a lo largo de nuestros escasos años de tradición 6

M.A. Menéndez (2007): “El nuevo diario, Público, saldrá la próxima semana pese a que Zapatero lo quería para 2008”. Diario Crítico. [En línea]. Disponible en: http://www.diariocritico.com/2007/Septiembre/nacional/37086/el-publico-lanzamientoprint.html [Consultado 08.07.2011]


democrática. Ambas cuentan con respaldo mediático, con medios afines o, dicho con otras palabras, encuentran simpatías entre los dirigentes de las empresas informativas que les garantizan una amable cobertura mediática dentro de la estructura informativa de nuestro país. Por un lado, encontramos la socialdemocracia

“tradicional”, la más

conservadora, escindida de los movimientos marxistas y que en la actualidad supone la versión más integrada de la izquierda política. Es la representada por Felipe González y cuyos preceptos básicos asumen plenamente la lógica de mercado en que nos encontramos inmersos. No tiene cabida recordar las diversas actuaciones que se llevaron a cabo bajo el “Gobierno González” –como por ejemplo la entrada en la OTAN– y lo que aquello supuso. Esta corriente encontraría en el grupo Prisa su sostén mediático y un apoyo especial en el diario El País, al que en no pocas ocasiones se ha acusado de ser “el periódico del PSOE”. Nada más lejos de la realidad si tenemos en cuenta la multitud de escisiones ideológicas que conviven en este gran partido y, sobre todo, como apunta el profesor Reig, si observamos la gran brecha existente entre las dos principales corrientes socialdemócratas que este partido acoge en su seno en la actualidad. Por otro, encontramos una socialdemocracia más decantada a la izquierda del marco político, encarnada por José Luis Rodríguez Zapatero y que tendría como respaldo mediático a Jaume Roures –y su vasto entramado empresarial, que no sólo atañe a medios informativos–, al grupo audiovisual Mediapro y a la editora Mediapubli. A través de éstos, el equipo de Zapatero, representante de esta corriente de pensamiento nueva en el poder, ha intentado crear un grupo de comunicación que hiciese frente a la crítica del socialismo más tradicional. Ésta, la representada por Felipe González, siempre había disfrutado –con sus altos y bajos, por encima de todo ha estado siempre el interés empresarial y económico– de un inquebrantable sostén mediático. Por eso, con la llegada al poder de Rodríguez Zapatero, se presentaba la necesidad de crear un nuevo sostén mediático que se diferenciara del felipista. Desde entonces, en no pocas ocasiones se han alzado voces contra ese “matrimonio bien avenido” que parecían formar Roures – como representante de un intento de imperio mediático, el de Mediapro y otras empresas como Mediapubli, editora de Público– y Zapatero7.

7

El profesor Reig ha recogido parte de este análisis en su libro Periodismo de investigación y pseudoperiodismo. Realidades, deseos y falacias, Madrid, Libertarias/Prodhufi, 2000, y ha ampliado el tema durante el curso 2009-2010 en sus clases de Estructura de la Información, en


Volviendo a los orígenes de Público, el día de su lanzamiento Jaume Roures, accionista principal de Mediapubli, definía el diario como "progresista, de izquierdas, popular, democrático radical, pero respetuoso" en lo que todos los medios han venido a llamar “su declaración de intenciones”. Además, nacía sin editoriales, con una tirada de 250.000 ejemplares, 64 páginas y a color. Con cuatro ediciones (Nacional, Madrid, Barcelona y Andalucía), y bajo el lema de una información “clara, dinámica, objetiva y completa, con sensibilidad social”8. Para ello, se había puesto un cuidado especial en la selección de la dirección del medio. En la mancheta de aquel miércoles 26 de septiembre, Público se estrenaba con Ignacio Escolar como director y con Jesús Maraña como subdirector, en los puestos principales. Menéndez se ha mostrado muy ácido en Diario Crítico con respecto a esta selección: La lista de fichajes por Escolar y su escalón más alto, Juan Pedro Valentín, se haría interminable, pero Público ha sacado gente de los más diversos medios de comunicación con los que ahora va a competir… y de otras instancias oficiales, como Antonio Avendaño, responsable para el área de Andalucía, al que ha sacado de la Dirección de los Servicios Informativos de la Oficina del Portavoz de la Junta de Andalucía, que presidía en ese momento el socialista Manuel Chaves. O como Miguel Ángel Marfull, hasta ahora mano derecha en asuntos de comunicación de José Blanco en el Partido Socialista, para llevar asuntos de Sociedad, (…) le ha desmantelado a El Periódico de Catalunya su delegación en Madrid –ha fichado a dos redactoras y al jefe de fotografía–; ha incorporado al ex director de Tiempo, Jesús Maraña, y le ha quitado a El Mundo el hombre de confianza en política nacional de Pedro J. Ramírez, es decir, que ha fichado a Fernando Garea para la corresponsalía política de Público, además de a Javier Ortiz, uno de los hombres que han permanecido fieles a Pedro J. desde el lanzamiento de El Mundo y que incluso ha anunciado en su blog que comenzará a publicar una columna diaria en Público (…) Pero Escolar y Valentín han fallado al querer desmantelar la redacción de El País: muchos le han dicho ‘no’, como Javier Valenzuela, que fue asesor en Moncloa. Y, luego, claro está, ha completado los huecos con ‘mileuristas’, más conocidos jocosamente como los ‘JOPEMP’ (Jóvenes Pero Especialmente Mal Pagados), en contraposición a aquellos famosos ‘JASP’ [Jóvenes Aunque Suficientemente Preparados] del PP.

Con respecto a la distribución temática este diario no se aleja sustancialmente de la que llevan a cabo el resto de los periódicos nacionales pero sí introduce secciones novedosas como “En Portada”, “Ciencias” o “Actualidad”, y, la Universidad de Sevilla (España). También se encuentra ampliamente tratado este asunto en www.hispanidad.es. 8 Puede consultarse esta información en: Mundo Cultural Hispano. Disponible en http://www.mundoculturalhispano.com/spip.php?article4231 [Consultado: 7/07/2011]


sobre todo, subsecciones destacadas como “Medio Ambiente”, “Tecnología” o “Música” que intentan cubrir ese espectro de interés de su bien definido target group. Además, cabe resaltar la nomenclatura que los responsables dieron a secciones como “Culturas”, al que deliberadamente asignaron un plural que venía de modo implícito a diferenciarse del término “cultura”, para designar una nueva realidad más abierta y no circunscrita a las fronteras nacionales. Con ésta nace un nuevo concepto de lo potencialmente válido para la sección a la par de que se flexibilizan los márgenes de noticiabilidad para la misma. En esta sección podíamos encontrarnos en el año 2007 temas musicales (“Los francotiradores de la canción”, Jesús Miguel Marcos), de inmigración (“No todos los inmigrantes son Latin Kings”, Paula Corroto), historiográficos (“El extraño viaje de los restos de Mussolini”, Jesús Centeno), autopromociones fílmicas (“Fahreheit 9/11, de Michael Moore, gratis con Público”) o temas de fotografía (“Imágenes para siempre”, Peio H. Riaño). Un aspecto destacable es el contenido de las secciones, el material con el que llena sus páginas. A qué se debe, por ejemplo, la sección “Actualidad” en un periódico diario –amén de, obviamente, funcionar como un luminoso temáticamente hablando, como un multiplicador de la relevancia otorgada por el medio a determinados asuntos–, qué configuración hace de la realidad, cómo construye esta realidad en sus páginas. Para ello, nos basamos en un estudio que han realizado desde la misma redacción del diario con respecto de la utilización del espacio durante el año 2009 (Público: 2009). Partiendo de nuestra hipótesis inicial (el discurso de lo radical y diferente se mantiene sólo en el plano discursivo), parece validarse la idea de que la selección informativa –siendo parecida a la de los demás medios informativos impresos– es ampliada en Público, concediéndosele un mayor espacio a los temas ideológicamente afines (diálogo social, que potencialmente describíamos defendemos la

podrían

interesar

Gaza, ayudas públicas) y a los a

su

público

objetivo

que

y caracterizábamos con anterioridad. No podemos olvidar que idea de que

Público

nace

con

una

clara

intención

diferenciadora, por ello da relevancia a ciertos temas –mediante el espacio de tratamiento entre otras estrategias– que otros medios obvian o tratan más someramente, y que lo hace por la oportunidad de cubrir un nicho de mercado vinculado a una corriente política del socialismo español, siguiendo las tesis de Reig. Sin embargo, parece que con el tiempo –y también afectados por la


crisis económica– se han llevado a cabo ciertos cambios que si no llegan a contravenir el espíritu renovador de los inicios, sí que parecen, al menos, poco trasgresores. De otro lado, se ha encarecido el precio de los ejemplares –lo habitual es que el precio sea un euro, menos el día de las promociones, que puede llegar a dos, y ya es extraño encontrar algún día en el que cueste 0,50

P.V.P. con el

que se inició el diario –. Además, la contraportada se ha transformado en una “contra” bastante normal, con humor, una columna de opinión y publicidad. Ya no queda ni rastro de aquélla especie de segunda portada dedicada a los deportes que convertían al periódico en un singular objeto que podía

iniciarse

indistintamente por el principio o por el final dependiendo de los intereses informativos personales. Además, se ha introducido un nuevo género entre las páginas de opinión encabezado por el oscuro cintillo de “Del consejo editorial” firmado por una pluma distinta en cada ocasión aunque se repitan con frecuencia. Los cambios, aunque no son profundos a simple vista, vienen a unirse a las alteraciones en la cúpula directiva y a la actuación mantenida para con los trabajadores contraviniendo su idea política laboral defendida por su primer director en una de sus primeras entrevistas9– y a la situación de Público en el entramado empresarial del grupo al que está vinculado. Así, empezamos a atisbar cómo este diario –diferente en apariencia– no deja de estar implicado en esa gran oleada de homogeneización del pensamiento que recorre a todos los medios tradicionales. Una tendencia donde sólo un valor prima sobre los demás: el interés empresarial. A continuación se mostrarán dos ilustraciones que recogen las posiciones que ocupa y ha ocupado este diario en el ranking de medios impresos según su número de lectores. En la primera de las ilustraciones se atenderá a los datos ofrecidos por García Chamizo (2009, 208) y en la segunda a las cifras del Estudio General de Medios (2010).

9

Sindicato Periodistas. Disponible en periodistas.es/profesion_ver.php?id=261 [Consultado: 22/04/2010]

http://www.sindicato-


Ilustración 1. Difusión de los diez principales diarios españoles enero- mayo 2008. García Chamizo (2009) Según se muestra en la ilustración, en 2008, con apenas un año de vida, Público ocupaba el décimo lugar por número de lectores en España.

Ilustración 2. Elaboración propia con datos del ranking de medios impresos por número de lectores, del Estudio General de Medios 2010 (segunda oleada) Dos años después, en el Estudio General de Medios se reflejaba que, a pesar de la crisis económica general y de la crisis de la prensa en particular, el


diario se había posicionado en su segmento y ocupaba la séptima posición por número de lectores en España, muy alejado todavía de los dos diarios más leídos, El País y El Mundo, pero muy cerca del diario La Razón. Las conexiones de Público con la estructura mercantil internacional. Público pertenece a Mediapubli Sociedad de Publicaciones, la cual, según el perfil de la web e-informa, es una sociedad limitada de publicaciones y ediciones sita en Barcelona. Ésta empresa editora –según datos de e-informa– cuenta con un total activo de 35 millones de euros y un resultado negativo en las cuentas, lo que la convierte en una empresa poco rentable. Cuenta, además, con acciones en algunas de las empresas que forman parte del grupo Mediapro y es propietaria de La Voz de Asturias10, antes en manos del Grupo Zeta.

Mediapubli aparece sustentada por cinco accionistas: - Orpheus Media. - Multiax. - Mentaema. - Mediavídeo S.L. - Mediacable.

Varias de esas empresas –a pesar de su nomenclatura comercial que evoca al mundo mediático- tienen su actividad en el ámbito inmobiliario. Vinculados a todas las empresas accionistas de Mediapubli aparecen, de una u otra forma, los nombres de Jaume Roures, Gerard Romy y Josep Benet. Aunque no se muestra una relación explícita entre el diario Público y el grupo Mediapro, la aparición de estos tres nombres en ambas empresas lleva a deducir que existe una vinculación. Mediapubli está situada en Barcelona, en el mismo edificio que Mediapro11. Por cuestiones de simplificación informativa, se da por hecho que Público es el diario de Mediapro, sin embargo, oficialmente no es así, los empresarios crean otras

10

La voz de Asturias. Disponible http://www.lavozdeasturias.es/noticias/noticia.asp?pkid=545085 [Consultado: 28/04/2010] 11

en

En Sevilla, la delegación de Público para Andalucía y la de Mediapro están en la misma oficina, compartiendo incluso personal.


entidades con nombres distintos con fines legales y económicos, pero tras la investigación se demuestra que ambas empresas están ligadas porque pertenecen prácticamente a las mismas personas. El grupo Mediapro

En febrero de 2006 se crea en España el grupo Imagina Media Audiovisual, producto de la fusión de Globomedia y Mediapro. Con la fusión de estos dos grupos Imagina se convierte en el grupo líder en España en la creación y producción integral de contenidos audiovisuales y uno de los líderes del mercado europeo. Imagina es una de las primeras productoras independientes de Europa por volumen de producción, número de horas emitidas y prestación de servicios técnicos. Imagina es responsable de la creación y producción de series de éxito para televisión (Los Serrano, Aida, Siete Vidas o Periodistas), de programas de entretenimiento y divulgación (Noche Hache, Caiga quien caiga, El Informal) o de películas (Los lunes al sol, Princesas, La vida secreta de las palabras), además de documentales e informativos. Imagina también realiza la producción técnica, cobertura integral y distribución de eventos deportivos como el Mundial de Fútbol de Alemania, la Liga de Campeones europea o el campeonato de Motos GP. Entre los accionistas de Imagina Media Audiovisual encontramos a la multinacional de publicidad WPP, Torreal y la unión de Grupo Árbol y Mediapro, representada por Tatxo Benet, Jaume Roures, Gerard Romy y Emilio Aragón. En la siguiente ilustración se muestran las proporciones de los accionistas.

20

WPP Torreal

59,18

19,82

Benet, Roures, Romy y Emilio Aragón

Fuente: Elaboración propia, 2011


A partir de Imagina se crean dos vertientes, una es el grupo Árbol y otra el grupo Mediapro. Mediapro es socio mayoritario de GAMP, el grupo que se conformó para fundar la cadena de televisión La Sexta, en sociedad con el grupo mexicano Televisa y la sociedad de inversión Gala Capital. Su estructura se puede observar en el siguiente cuadro.

Estructura del grupo Mediapro. Fuente: El País, 25/VI/2010

Como podemos ver en el cuadro anterior, publicado por El País, el 25 de junio de 2010, cuando se describe Mediapro, no se recoge al diario Público, pues – como se ha mencionado- oficialmente no pertenece al grupo. Sin embargo, según podremos ver a continuación, existe una clara relación. Vinculaciones de Público con el grupo Mediapro

Jaume Roures es el propietario mayoritario de Mediapro. Por su parte, Josep Benet y Gerard Romy son socios del primero, además de actuar Benet, en ocasiones, como representante legal del propio Roures. Según Diario Crítico, la red empresarial de Roures es amplísima. Su nombre aparece asociado a más de cuarenta empresas


de muy diversos campos, aunque su actividad se centra especialmente en el audiovisual y la explotación de eventos deportivos: las catalanas Fregoli Galería D’Art Imagina;

Ovideo

TV;

Versátil

Cinema;

Orpheus

Media;

Nuevas

Iniciativas

Audiovisuales; Melancolic Films y Globepro Telecomunicaciones; la madrileña Umedia Sports Advertising; la tinerfeña Mediareport Producciones Audiovisuales; y la asturiana Asturmedia Producciones Audiovisuales12. Por su parte, Gerard Romy aparece vinculado a más de veinte empresas, entre ellas Imagina Media Audiovisual. Además, es de destacar su presencia en el Consejo de Administración de Publiseis Iniciativas Publicitarias –la empresa que ya comercializa la publicidad en La Sexta y que se encarga de comercializar Público–. Romy figura también en Gestora de Inversiones Audiovisuales La Sexta; en la Sociedad General de Producción y Explotación de Contenidos; en Media Gol Net Services; y en Medianews Producción de Noticias13. Por último, Josep Benet aparece actualmente vinculado con casi treinta empresas, algunas compartidas con Romy y con Roures. Fernando García Chamizo en su tesis doctoral (2009, 204) dedica un capítulo a la relación existente entre Público y Mediapro en el que no se explicita de forma alguna la entidad independiente de cada una de ellas. En el capítulo “Público, el diario que amplía el espectro empresarial de Mediapro” García Chamizo afirma que “Mediapro es también responsable del diario Público, a través de la empresa Mediapubli Sociedad de Publicaciones y Ediciones”. Asimismo argumenta cómo gracias a la larga trayectoria de Mediapro en el mercado audiovisual pudo Público nacer con una política competitiva en merchandising y precios. Público se lanzó al mercado con un precio de 0,50 céntimos so pretexto, en palabras del presidente de Mediapro y principal impulsor del diario –Jaume Roures–, de apostar por un periódico “popular”.14 Al respecto, García Chamizo establece que, en este campo, la trayectoria de más de una década de Mediapro en el sector audiovisual y su propia especialización y derechos ha permitido que desde el arranque, Público lleve a cabo campañas de 12

Diario Crítico. Disponible http://www.diariocritico.com/2007/Septiembre/nacional/37086/elpublico- lanzamiento.html [Consultado: 12/04/2010]

13

Íbidem

14

El Mundo. Disponible en: http://www.elmundo.es/elmundo/2007/09/20/comunicacion/1190308120.html[Consultado: 03/09/10]

en


obsequios a los lectores, doblando el precio aunque manteniéndolo más barato que el resto de periódicos (1 €). Esto ha permitido que los DVD y CD sean su principal reclamo, por un precio entre cuatro y siete veces menor que otros diarios españoles y olvidándose de los clásicos regalos de menaje del hogar: tazas, vasos, cuberterías y sartenes, sobreexplotados por sus rivales. Una vez superada la fase de lanzamiento, Público aumentó el precio de sus DVD en un 50% y así ofreció los domingos a sus lectores la serie de Globomedia (empresa integrada desde noviembre de 2005 junto a Mediapro en el holding Imagina) Los Hombres de Paco desde el 29 de junio de 2008 a un precio de 1,50 €.

Para este autor, la similitud en los perfiles del público de ambos medios (el diario Público y La Sexta, producto audiovisual de Mediapro) constituye un argumento más de confluencia empresarial. Esta evidente relación que García Chamizo da como válida, vinculando al diario como parte de la estructura informativa del grupo Mediapro, no es un caso aislado. Para la prensa, la relación entre este medio y el Grupo Mediapro es más que evidente a pesar de no presentar, en sus noticias, evidencia alguna de la imbricación de ambas sociedades en una sola. Por ejemplo, la publicación digital Kaos en la Red sostiene que Jaume Roures es el propietario del entramado mediático-empresarial llamado Mediapro, dueño de soportes como La Sexta y Público, y que pretende competir por el espacio que un decadente grupo Prisa está dejando, tanto a nivel político como económico e informativo. La crisis del imperio de Polanco, junto con las diferencias ideológicas con el equipo de gobierno de Zapatero han venido a confluir temporalmente con operaciones como la concesión en televisión analógica de la cadena La Sexta (a la vez que se concedía la licencia a Cuatro, vinculada al accionariado de Prisa) y la aparición del periódico Público, más cercano a la esfera del ejecutivo de Rodríguez Zapatero15. Éstos y otros acontecimientos son los que han llevado a diversos medios de comunicación, como Diario Crítico, a las siguientes afirmaciones:

“La próxima semana Jaume Roures

tendrá en la calle su

periódico ‘Público’ para seguir haciendo la pascua a PRISA. Hay quien dice con 15

Isabel Ordoñez en Forum Libertas “Mientras tanto, Zapatero no parece dispuesto a pagar tributo a un grupo mediático como Prisa y ha creado su propio diario, Público [sic.]; un periódico que se ha autodefinido como “un medio de izquierdas y demócrata radical”, y que tiene un ideario prácticamente calcado del republicanismo cívico” del presidente del Gobierno. Al lanzamiento del periódico, Zapatero envió hasta siete de sus ‘pesos pesados’: la vicepresidenta Maria Teresa Fernández de la Vega; los ministros de Justicia, Cultura, Educación e Industria, o sea Mariano Fernández Bermejo, César Antonio Molina, Mercedes Cabrera y Joan Clos, respectivamente; así como el secretario de Estado de Comunicación, Fernando Moraleda, y el director de Comunicación de La Moncloa, Julián Lacalle”. Forum Libertas. Disponible en http://www.forumlibertas.com/frontend/forumlibertas/noticia.php?id_noticia=9126 [Consultado: 03/04/2010]


evidente mala fe que es el periódico de la Moncloa zapaterista, la izquierda de ‘El País’”.16 Y no son los únicos que han reseñado las relaciones entre Moncloa y el diario. En el mes de marzo de 2010, los sindicatos denunciaban, según informaciones de eleconomista.es, la connivencia del Ejecutivo con este medio: “Los sindicatos denuncian: RTVE financia a Mediapro”17. Público y La Sexta: ejemplo de análisis estructural

En párrafos anteriores se afirmaba que Mediapro es la empresa dueña de Público y La Sexta, dos medios de comunicación relativamente nuevos en España, que surgen con el presidente Zapatero y se definen como medios de izquierda, con el público joven como segmento a cubrir. En este apartado se hace un análisis de la vinculación oficial que existe entre estos dos medios de comunicación, algo que se concreta para desentrañar La Telaraña (Reig, 2010) de intereses que existe detrás de una cabecera. La finalidad última es demostrar que el posicionamiento de izquierda de estos medios -sobre todo de Público por ser el objeto de estudio de este trabajo de investigación- es ante todo una estrategia comercial, para atender a un segmento del mercado, pero no representa una alternativa real de información, pues está inmerso en un entramado empresarial que va mucho más allá de las fronteras españolas. Aunque los accionistas de La Sexta han variado desde su creación, los dos principales se mantienen, estos son GAMP Audiovisual, S.A. y el mexicano Grupo Televisa. Actualmente (2010), completa el grupo de accionistas Gala Desarrollos Comerciales, S.L.U. GAMP surge con la unión de varias empresas españolas dedicadas al negocio de la comunicación y las finazas y Gala Desarrollos Comerciales es una sociedad de capital riesgo, con presencia en empresas tan distintas como tiendas departamentales de lujo, inmobiliaria y energía eólica. Televisa es un conglomerado mediático mexicano, con presencia en Latinoamérica, Estados Unidos y España. En la web de La Sexta, se ilustra con el siguiente gráfico la composición del accionariado: 16

Diario Crítico. Disponible en: http://www.diariocritico.com/2007/Septiembre/nacional/37086/elpublicolanzamiento.html [Consultado: 12/04/2010] 17 El Economista: Disponible en: http://www.eleconomista.es/espana/noticias/1956344/03/10/Los-sindicatos-denuncian-RTVEfinancia-a-Mediapro.html [Consultado: 12/04/2010]


Como se puede observar, GAMP es el accionista mayoritario, compuesto a su vez, por El Terrat, Bainet, BBK e IMAGINA, como accionista mayoritario. Imagina, como se ha dicho en otra parte de la investigación, es propiedad de la multinacional de pubicidad WPP, la empresa de Andreu Buenafuente, Torreal y El Grupo Árbol y Mediapro. Mediapro está conformada por las mismas personas que conforman Mediapubli, por tanto, Mediapro es propietario de Público. En la siguiente ilustración se muestra el entramado anteriormente descrito. El significado de lo que se está constatando es que el mensaje que aparece en Público está condicionado a intereses tan dispares como el gigante latinoamericano Televisa, que por sí sólo representa una enorme complejidad en su composición empresarial.

Relaciones empresariales entre La Sexta y Público


Televisa

La Sexta

Gala Capital

GAMP

El Terrat Bainet Torreal BBK WPP IMAGINA Árbol MEDIAPRO

PÚBLICO

Fuente: Elaboración propia, 2011. Archivo personal

Conclusiones

1. El derecho a la información pasa a segundo plano cuando se trata de beneficios económicos y de consolidación de grupos empresariales. Como hemos demostrado con el análisis detenido del diario Público, la segmentación del mercado, lejos de basarse en criterios culturales o de hacerse con la finalidad de brindar una pluralidad informativa, se fundamenta en estrategias empresariales. 2. Un diario que surge con una ideología concreta, que pretende ser el diario de izquierdas, no puede serlo si detrás tiene un entramado empresarial tan complejo como el que hemos descrito. 3. En el sistema de libre mercado, los empresarios tienen libertad de hacer crecer sus empresas, incluso tienen la obligación de hacerlo, es el rol que les toca desempeñar en el sistema económico, sin embargo, las empresas informativas venden un producto de carácter público, un servicio garantizado por las leyes nacionales e internacionales como derecho de los seres


humanos, no pueden por tanto, actuar como si de un producto cualquiera se tratara. Referencias CHOMSKY, Noam. y HERMAN, Edward (1990). Los guardianes de la libertad. Barcelona: Grijalbo Mondadori. CHOMSKY, Noam y RAMONET, Ignacio (2004). Cómo nos venden la moto. Barcelona: Ed. Icaria GARCÍA CHAMIZO, Fernando (2009). El nacimiento de La Sexta: análisis de una nueva estrategia competitiva de televisión generalista. Tesis doctoral, inédita, Universidad Complutense de Madrid. [En línea]. Disponible: http://eprints.ucm.es/9583/ [Consultado: 14.02.2011] LABIO BERNAL, Aurora (2006). Comunicación, Periodismo y Control Informativo. Barcelona: Anthropos Editorial. Menéndez, M.A. (2007): “El nuevo diario, Público, saldrá la próxima semana pese a que Zapatero lo quería para 2008”. Diario Crítico. [En línea]. Disponible en: http://www.diariocritico.com/2007/Septiembre/nacional/37086/el-publicolanzamientoprint.html [Consultado 08.07.2011] PÚBLICO (2009). Pulso informativo del año 2009. [en línea]. Disponible en: http://www.publico.es/especial/anuario-2009/info2009/info2009.swf [Consultado 07.097.2011] QUIRÓS, Fernando (1998). Estructura internacional de la información. Madrid: Síntesis. REIG, Ramón (2003). Estructura y mensaje en la sociedad de la información, Sevilla: Ed. Mergablum. ---- (2010). La telaraña mediática. Cómo conocerla, cómo comprenderla, Sevilla/Zamora: Comunicación social, ediciones y publicaciones. ---- (2011). Los dueños del periodismo. Claves de la estructura mediática mundial y de España, Barcelona: Gedisa. ---- (2000). Periodismo de investigación y pseudoperiodismo. Realidades, deseos y falacias, Madrid, Libertarias/Prodhufi. ----- (1998). Medios de comunicación y poder en España, Barcelona, Paidós. SERRANO, Pascual (2010). Traficantes de información, Madrid: Ediciones Akal.


TV digital: da promessa a realidade. Os caminhos da digitalização Alexon Gabriel João∗ Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS)

BRITTOS, Valério Cruz; SIMÕES, Denis Gerson. Para entender a TV digital: tecnologia, economia política e sociedade no século XXI. São Paulo: Intercom, 2011. (Coleção TV digital, v.1). 98 páginas.

Para entender a TV digital vai além de suas 98 páginas, fruto dos estudos e das inquietudes de seus autores; Valério Cruz Brittos e Denis Gerson Simões, o livro faz um convite aos leitores interessados em compreender as principais questões que nortearam o processo de implantação da TV digital. Através de uma linguagem bastante acessível, a obra, que é a primeira de uma série, tem como grande mérito associar o rigor acadêmico dos pesquisadores com a vivência direta dos fatos dos investigadores especializados, que acompanharam

o

assunto

desde

o

primeiro

momento

até

os

dias

atuais.

Os autores decidiram estudar a televisão digital como meio, pela sua centralidade e relevância para todo o processo de tematização pública da realidade na sociedade brasileira, pela importância como mecanismo de democratização e pela riqueza de recursos técnicos em relação a outras mídias. A divisão das principais questões sobre a TV digital foi organizada em tópicos não lineares, que podem ser lidos de maneira independente. O fluxo de leitura que se dá dentro da narrativa vai construindo a Televisão Digital, com suas bases, evolução, tecnologia utilizada, disputas, interesses e os possíveis efeitos que ela pode causar na sociedade brasileira.

No

primeiro

capítulo,

“O

contexto

da

televisão

brasileira”, os autores analisam o surgimento e a importância da televisão, que começou a ser popularizada na década de 60, e que hoje, firma-se como a mídia de maior impacto na sociedade e principal fonte de entretenimento e informação do país, e para muitos, a única. A influência desempenhada pela televisão se espraiou durante décadas, inclusive durante o regime militar. Nessa época, a ampliação do acesso à televisão é vista pelos autores como a maneira encontrada pelo sistema para manter o controle sobre a sociedade, através da ∗

Pesquisador do Grupo de Pesquisa CEPOS (apoiado pela Ford Foundation), mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da UNISINOS, graduado em Comunicação Social – Jornalismo e Especialista em Televisão Digital pela mesma Universidade. E-mail: <alexon_gabriel@ig.com.br>.

1


relação estabelecida entre as emissoras e o Estado. Isso porque, visto o interesse, revelouse inquestionavelmente um aparelho técnico, discursivo e determinante para a legitimação e longevidade da ditadura, mantendo as relações estabelecidas mesmo após o fim do regime militar. Já em 2007, com o início das transmissões do sinal televisivo digital, houve um avanço significativo no setor das comunicações, principalmente aqueles relacionados com a entrada e avanço da internet e a convergência digital, trazida pela telefonia móvel. “Gradativamente, as emissoras começaram a disponibilizar, paralelamente ao conteúdo transmitido de modo analógico, a programação pelo Sistema Brasileiro de Televisão Digital Terrestre (SBTVD-T), característico da TV aberta digital”, Brittos e Simões. p. 15. No entanto, as negociações que estiveram por trás da escolha do padrão que seria adotado pelo país, definida como sendo o japonês (ISDB), se deram entre os países fornecedores da tecnologia e o Estado brasileiro, tendo como critério a manutenção dos interesses das empresas de TV. As disputas para impedir que novos atores entrassem no cenário televisivo, foi uma das tônicas do processo de escolha do padrão que seria adotado pelo país. Assim como a manutenção dos espectadores, a fim de impedir a migração para outros meios, como jogos eletrônicos e computadores. Após os movimentos que marcaram a entrada do sinal digital, Brittos e Simões destacam o desempenho obtido pela TV por assinatura, que, apesar de não obter os altos índices das TV aberta, segue procurando ocupar um espaço mais destacado no mercado brasileiro. O crescimento da economia e a dilatação do mercado de televisão, foram elementos chave para o aumento dos investimentos no setor. Se, por um lado, no início alguns entraves impediram o crescimento do setor, por outro, hoje, aproveitando o bom momento, já é possível observar algumas ações em direção a expansão do número de residências que consomem esse serviço, assim como ofertas de novos produtos que usem a estrutura física desse meio. A WebTV, que vem ocupando importante presença e se constituindo em instrumento capaz de gerar sérios rearranjos no cenário televisivo, é vista pelos autores como uma ferramenta geradora de novas experiências com o audiovisual, mesmo com toda a deficiência da rede da banda larga. Assim, fica evidente o momento de reformulação pelo o qual o cenário televisivo está passando e as transformações advindas pela entrada de novas tecnologias e novos atores. Ao demonstrar a precariedade e a importância assumida pela televisão em seus anos iniciais, vive-se um período de intensa transformação. Os autores também enfatizam o atual momento da televisão, caracterizado pelo aumento do número de canais, aumento da concorrência entre as emissoras, popularização

2


da programação, entrada de novos dispositivos tecnológicos e agentes que passam a investir no negócio midiático. O livro destaca a digitalização e o oligopólio das comunicações, no qual o mercado comunicacional brasileiro é caracterizado pelo oligopólio. Os autores citam a Rede Globo de Televisão, que detém a liderança de audiência, com faixas de horário que chegam a mais de 50% da preferencia do público, gerando uma maior arrecadação publicitária e tendo assim, maior quantidade e qualidade na programação. Um dos desafios dos canais de TV aberta é a possibilidade de ingresso de vídeo por demanda ( video ondemand), com qualidade HDTV, característico dos sistemas de televisão paga, o que pode influenciar na distribuição de conteúdo também em rede aberta. Um dos atrativos da TV paga é o gravador de vídeo digital, porque através dele o receptor pode selecionar e assistir o programa a hora que achar conveniente. Há uma grande discussão na digitalização da TV no Brasil. Além da falta de recursos técnicos, os recursos

político-econômicos

também

impedem

os

processos

comunicacionais.

O cruzamento de meios e de inovação no que tange o audiovisual televiso originaram o nome PluriTV. Essa nova televisão buscar atender a diferentes segmentos, com variedade na oferta de produtos simbólicos, além da multiplicidade de telas para a visualização. Ela está na internet, no celular, no aparelho móvel, no ônibus, nas aeronaves, nos trens, nos táxis, nos carros, nos espaços de circulação em geral (edifícios, shoppings centers, saguões de espera) elevadores, outdoors e também no televisor de casa. Esta ampliação acaba pulverizando os investimentos feitos por patrocinadores, pois com a audiência distribuída de forma mais ampla, o foco passa a ter um alvo mais especifico, e os investidores tentam manter a liderança para capturar a maior fatia do bolo. De forma lenta, o estado tenta regular esta nova estrutura mutante, já que a PluriTV, em tese, serve para democratizar o conteúdo midiático, e a internet passou a ser uma grande aliada para que isso ocorra. O Brasil precisava avançar na digitalização televisa, pois desde a década de 90, a TV digital já era pauta do governo. Este avanço não dependia unicamente das emissoras, já que concessões públicas dependem de outorga do governo. Era necessária uma ação por parte do poder político no setor de comunicação. A complexidade do quadro midiático na escolha de um sistema digital não permitiria erros e envolvia as influências das operadoras de telefonia móvel, interessadas em entrar no negócio e detentoras de grandes montantes financeiros para investimentos. A definição do sistema a ser usado era o ponto fundamental da discussão, já que ele atingiria os canais, os aparelhos receptores, as empresas que fabricam os equipamentos, os conglomerados que apresentam opções de convergência de serviços e os espectadores. De antemão, observando essa pluralidade, pode-se destacar a

3


mutações ocorridas tanto no monitor quanto no conteúdo. Na maioria das vezes, o conteúdo passa a ser mais voltado ao “interesse do público” do que ao “interesse público”. Nesse ponto, há a necessidade de visualizar a diferença entre esses interesses, já que o primeiro “do Público”- orienta-se ao que o espectador (considerado parte de uma engrenagem) quer assistir. E o segundo –“público”- àquilo que é socialmente pertinente, os deveres da televisão como instrumento de serviço à coletividade. O que se vê são ações para buscar anunciantes e audiência, fazendo uso de programas apelativos, que se sobrepõem a exibição de produções de qualidade. A interatividade e a convergência de meios acabam sendo significativas, pois tencionam os dados, passando a gerar novas percepções do audiovisual. Contudo, deixa claro que assim como no princípio, o capital humano é o grande diferencial da mídia. Sem dúvida a internet foi à principal ferramenta de todo esse modificador de paradigmas e fez o mercado midiático se rearranjar. Todavia, não implicou uma total renovação nas lógicas socioculturais da televisão. Sozinho o equipamento não resolve, afinal de contas, o homem é que se manifesta diante das máquinas.

4


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