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Eptic On Line, v. XII, n. 1, ene.-abr. 2010 1. Expediente 2. Presentación

Artículos 3. O futuro do rádio no cenário da convergência frente às incertezas quanto aos modelos de transmissão digital Nelia R. Del Bianco

4. Crítica del concepto de “capital social” (Putnam) y propuesta del enfoque de “capital informacional” (Hamelink) para el análisis y el diseño de estrategias de apropiación social de las TIC por parte de los movimientos sociales Víctor Manuel Marí Sáez

5. A ciência como mercadoria Rodolfo C. M. Xavier; Rubenildo O. Costa

Entrevista 6. Más Allá... Comunicação e governos progressistas na América Latina: entrevista com Dênis de Moraes Denis Gerson Simões e Gislene Moreira

Especial Debate informação e capitalismo 7. Trabalho e informação: para uma abordagem dialética Marcos Dantas

8. Informação, conhecimento e valor - Comentário às indagações de Marcos Dantas Ruy Sardinha Lopes


9. Informação, Conhecimento e valor: alguns esclarecimentos epistemológicos necessários Alain Herscovici

Investigación 10. Governo eletrônico e pós-modernidade tardia. Uma hipótese sobre a situação do cidadão diante das novas tecnologias da informação e da comunicação Thaïs de Mendonça Jorge; Fábio Henrique Pereira

11. O (web) jornal em tempos de Economia Digital: uma discussão sobre lógicas sociais Anelise Rublescki

12. TV pública no Brasil: proposta de expansão através da multiprogramação e da parceria com as emissoras comercias Paloma Maria Santos

13. Experiências de televisões públicas no mundo: distinções para o conceito de público Luiz Felipe Ferreira Stevanim

Reseña/Nota de Lectura 14. Mobilizações e conseqüências dos trabalhos das rádios comunitárias Orlando Maurício de Carvalho Berti

15. La vie en la terre tupiniquim! Comunicação, cultura e interfaces econômicas nas relações históricas entre Brasil e França Janaina Cardoso de Mello


EXPEDIENTE Revista de Economía Política de las Tecnologías de la Información y Comunicación Volume XI, Numero 1, Ene. a Abr. de 2010 http://www.eptic.com.br ISSN 1518-2487

Revista avaliada como “Nacional A” pelo Qualis/Capes Director César Bolaño (UFS - Brasil) Editor Valério Cruz Brittos (UNISINOS – Brasil) Editores Adjuntos Luis A. Albornoz (Un. Carlos III de Madrid - Espanha) Francisco Sierra (Un. Sevilla – España) Apoio Técnico Danielle Azevedo Souza (UFS – Brasil) Elizabeth Azevêdo Souza (UFS - Brasil) Rafael Silva Bispo (UFS - Brasil) Rodrigo Braz (UFS-Brasil) Consejo Editorial Abraham Sicsu (Fund. Joaquim Nabuco – Brasil) Alain Herscovicci (UFES – Brasil) Alain Rallet (Univ. Paris - Dalphine-França) Anita Simis (UNESP - Brasil) Cesare G. Galvan (UFPb - Brasil) Delia Crovi (UNAM - México) Dênis de Moraes (UFF - Brasil) Diego Portales (Univ. del Chile) Dominique Leroy (Un. Picardie – França) Edgar Rebouças (UFPE - Brasil) Enrique Bustamante (UCM – Espanha) Enrique Sánchez Ruiz (UG – México) Francisco Rui Cádima (UNL – Portugal) Gaëtan Tremblay (Un. de Québec - Canadá)

Gilson Schwartz (USP - Brasil) Giovandro Marcus Ferreira (UFES - Brasil) Graham Murdock (Loughbrough Univ. - UK) Guillermo Mastrini (UBA – Argentina) Hans - Jürgen Michalski (Univ. Bremen - Alemanha) Helenice Carvalho (UNISINOS – Brasil) Isabel Urioste (Un. Compiègne – França) Jean-Guy Lacroix (Un. de Québec - Canadá) Jorge Rubem Bitton Tapia (UNICAMP - Brasil) Joseph Straubhaar (Univ. Texas - EUA) Juan Carlos de Miguel (Un. Pais Vasco - Espanha) Luiz Guilherme Duarte (UOPHX - EUA) Manuel Jose Lopez da Silva (UNL - Portugal) Márcia Regina Tosta Dias (FESPSP - Brasil) Marcial Murciano Martinez (UAB – Espanha) Marcio Wohlers de Almeida (UNICAMP - Brasil) Murilo César Ramos (UnB – Brasil) Nicholas Garham (Westminster Unv. - UK) Othon Jambeiro (UFBa - Brasil) Pedro Jorge Braumann (UNL – Portugal) Peter Golding (Loughborough Univ. - UK) Philip R. Schlesinger (Stirling Univ. - UK) Pierre Fayard (Un. Poitiers – França) Ramón Zallo (Un. Pais Vasco – Espanha) Reynaldo R. Ferreira Jr. (UFAL – Brasil) Roque Faraone (Um. de la República - Uruguai) Sérgio Augusto Soares Mattos (UFBA - Brasil) Sergio Caparelli (UFRGS - Brasil) William Dias Braga (UFRJ - Brasil)


PRESENTACIÓN A Rede de Economia Política das Tecnologias da Informação e da Comunicação (Eptic) tem a honra e o prazer de lançar o primeiro número de 2010 da Revista Eptic On Line, inaugurando o 11º ano de existência do periódico. Após uma década de existência, a Eptic se consolidou como um espaço de diálogo crítico da EPC com as Ciências da Comunicação e os estudos em cultura, atuando diretamente na pesquisa e produzindo conhecimento sobre a temática. Dando continuidade a essa trajetória, a presente edição traz um dossiê especial que conta com a participação de três dos principais pensadores da Economia Política da Comunicação (EPC) no Brasil e retoma um debate seminal para o campo, sobre o papel da informação no sistema capitalista a partir dos estudos marxistas. O debate ganhou novo fôlego no país em 2008, quando o professor Ruy Sardinha Lopes lançou o livro “Informação, conhecimento e valor”1, fruto da sua tese de doutoramento na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo2. Em “Trabalho e informação: para uma abordagem dialética”, Marcos Dantas propõe alguns questionamentos à obra de Lopes, argumentando que a discussão não pode ser desvinculada de pressupostos dialéticos monistas, sendo possível associar o conceito científico de informação ao conceito marxiano de trabalho concreto ou útil e à lógica da acumulação baseada na redução dos tempos de circulação do capital. As provocações de Dantas são comentadas logo em seguida pelo professor Ruy Sardinha Lopes, no texto “Informação, conhecimento e valor - Comentário às indagações de Marcos Dantas”. Encerrando o dossiê, Alain Herscovici faz uma análise crítica do texto de Dantas, propondo novos elementos para problematizar as novas formas de produção e de apropriação do valor, na fase atual do capitalismo dito “informacional”. Além dos três trabalhos que compõem o dossiê especial, a presente edição conta com três outros artigos. No texto “O futuro do rádio no cenário da convergência frente às incertezas quanto aos modelos de transmissão digital”, a professora Nélia R. Del Bianco discute as perspectivas para o rádio frente ao processo de convergência digital e a, 1

LOPES, Ruy. Informação, conhecimento e valor. São Paulo: Radical Livros, 2008. Para uma resenha do livro, ver o texto de Pablo Ortellado publicado no volume XI, edição número 2 de 2009, da Revista Eptic. Disponível em: http://www.eptic.com.br/arquivos/Revistas/vol.XI,n2,2009/15ResenhaPablo.pdf// 2


consequente, emergência de novas plataformas para se ouvir o rádio. A análise baseou-se nos processos de digitalização dos EUA, Europa e Brasil. Em seguida, Víctor Manuel Marí Sáez faz um estudo sobre o uso do conceito de “capital social” nas análises sobre os processos de acesso e apropriação cidadã das tecnologias da informação e da comunicação e propõe uma reflexão em torno da pertinência e validez da perspectiva do “capital informacional”, utilizada por Cees Hamelink e outros autores no tratamento da temática. Já Rodolfo C.M. Xavier e Rubenildo O. Costa, no trabalho “A Ciência como Mercadoria”, debatem a informação científica enquanto bem econômico dentro do mercado do conhecimento científico, dominado pelas novas tecnologias da informação e comunicação, demonstrando as limitações da teoria econômica neoclássica no que concerne à análise do valor de uso e do valor de troca da Ciência. A edição atual da Eptic On Line traz também uma entrevista com Dênis de Moraes, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), sobre as mudanças que aconteceram nas políticas de comunicação latino-americanas durante nos últimos anos, marcados pela ascensão de governos progressistas. As respostas do pesquisador estão baseadas em três anos de pesquisa realizada em sete países da região, processo que culminou com o lançamento do livro A batalha da mídia: governos progressistas e políticas de comunicação na América Latina e outros ensaios, publicado em 2009. Para Dênis, é impossível pensar uma comunicação democrática na região sem olhar para as alternativas de países como Venezuela, Bolívia e Equador, que, no entendimento do pesquisador, estão reorientando as políticas públicas numa perspectiva antimonopólica e favorável à diversidade informativa e cultural. A entrevista foi realizada por Denis Gerson Simões e Gislene Moreira. A sessão de Pesquisa – Investigación – conta com quatro excelentes colaborações. A primeira, “Governo eletrônico e pós-modernidade tardia. Uma hipótese sobre a situação do cidadão diante das novas tecnologias da informação e da comunicação”, de autoria de Thaïs de Mendonça Jorge e Fábio Henrique Pereira, fazendo a crítica de algumas abordagens teóricas, trabalhos empíricos e dados sobre o contexto brasileiro, demonstram como a estratégia do chamado e-governo não é apenas uma forma de atrair e seduzir a


população, mas também uma maneira de controle social. Em seguida, Anelise Rublescki, com o texto “O (web)jornal em tempos de Economia Digital: uma discussão sobre lógicas sociais”, debate a crise dos jornais impressos e o conceito de lógica social, focando-se no impacto das redes sociais na concorrência publicitária inter-meios e nas estratégias de sobrevivência dos jornais impressos e online. Na pesquisa “TV pública no Brasil: proposta de expansão através da multiprogramação e da parceria com as emissoras comercias”, Paloma Maria Santos propõe uma reflexão sobre a possibilidade de expandir a TV pública no Brasil por meio de parceria com as redes comerciais de televisão e do uso da multiprogramação. Finalizando a sessão, Luiz Felipe Ferreira Stevanim, com a pesquisa “Experiências de televisões públicas no mundo: distinções para o conceito de público”, levando em consideração a história política e características culturais de cada país, realiza um levantamento sobre os principais modelos de televisão pública no mundo e propõe que os modelos de radiodifusão de um país ou região não podem ser pensados para além da problemática social, política e cultural e da realidade específica de cada nação. Já na sessão de Resenhas - Reseña/Nota de Lectura – Orlando Maurício de Carvalho Berti analisa o livro “Rádios comunitárias: mobilização social e cidadania na reconfiguração da esfera pública”, de autoria de Lílian Mourão Bahia. Já em “La vie en la terre tupiniquim! Comunicação, cultura e interfaces econômicas nas relações históricas entre Brasil e França”, Janaina Cardoso de Mello descreve e discute os 22 artigos que compõe a obra “Franceses no Brasil. Séculos XIX-XX”, organizada pelos pesquisadores Laurent Vidal e Tania Regina Luca. Com estas contribuições, a Revista Eptic On Line espera subsidiar e fomentar a pesquisa e o debate no campo das ciências da comunicação e áreas afins, cumprindo, da melhor maneira possível, o trabalho a que se propõe. Apresentada a presente edição, desejamos a você, caro leitor, um bom aproveitamento dos textos aqui disponibilizados. Não esqueça de enviar novas colaborações para as próximas edições da Revista Eptic.

Até Breve, César Bolaño Diretor Eptic On Line

Valério Brittos Editor Eptic On Line


O Futuro do Rádio no Cenário da Convergência Frente às Incertezas Quanto aos Modelos de Transmissão Digital1 Nelia R. Del Bianco (Universidade de Brasília)2

Resumo O presente artigo discute o futuro do rádio frente ao crescente processo de convergência entre sistemas de comunicação e tecnologias da informação e redes integradas de alta capacidade que carregam informação em formato digital e a emergência de diversos dispositivos e plataformas para se ouvir áudio. Em questão está o paradoxo entre a integração do meio a Internet e plataformas digitais e o lento processo de migração para o sistema de transmissão digital registrado em boa parte do mundo. Por meio de análise comparativa do processo de digitalização nos EUA, Europa e Brasil, conclui-se que o impasse está relacionado a características tecnológicas do sistemas disponíveis que dificultam sua adaptação ao modelo de radiodifusão, ao marco regulatório e as regras de mercado em cada país. Palavras-chave: rádio digital; convergência tecnológica; digitalização. Resumen Este artículo discute el futuro de la radio ante el creciente proceso de convergencia de comunicación y tecnologías de la información, redes integradas que llevan la información de alta capacidad en formato digital y la aparición de múltiples dispositivos y plataformas para escuchar el audio. Se trata de la paradoja de la integración a través de la Internet y plataformas digitales y lento? proceso de migración a la transmisión digital en gran parte del mundo. A través del análisis comparativo del proceso de digitalización en los EE.UU, Europa y Brasil, se llega a la conclusión de que el estancamiento se relaciona con las características tecnológicas de los sistemas disponibles que hacen difícil adaptarse al modelo de la radiodifusión, el marco normativo y las reglas del mercado en cada país. Palabras clave : radio digital; convergencia tecnologica; digitalizacion Abstract This article discusses the future of radio with the increasing process convergence of communication and information technologies and integrated networks that carry highcapacity information in digital format and the emergence of multiple devices and platforms to listen to audio. At issue is the paradox of integration through the Internet 1

Trabalho apresentado no GP Rádio e Mídia Sonora, IX Encontro dos Grupos/Núcleos de Pesquisas em Comunicação, evento componente do XXXII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. O paper faz parte da pesquisa intitulada ―Análise do processo de construção das políticas públicas para implantação e desenvolvimento do Rádio Digital no Brasil e na Espanha‖. Parte desta pesquisa foi desenvolvida durante estágio de pós-doutoramento na Universidade de Sevilha em 2008, sob a supervisão do professor Francisco Sierra Caballero. 2 Professora da Faculdade de Comunicação da UnB, Doutora em Comunicação pela ECA-USP, vicepresidente da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação – Intercom.

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and digital platforms and slow process of migration to digital transmission recorded in much of the world. Through comparative analysis of the scanning process in the U.S, Europe and Brazil, concluded that the impasse is related to technological characteristics of the systems available that make it difficult to adapt the model of broadcasting, the regulatory framework and market rules in each country. Key words: digital radio, technological convergence, digitization

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Tem sido recorrente dizer que a transição para uma sociedade baseada na informação está acelerando-se através da convergência de sistemas de comunicação e tecnologias da informação e redes integradas de alta capacidade que carregam informação em formato digital. Embora seja um processo em pleno andamento, sem definição que possa ser vislumbrada a longo prazo, há uma série de características na evolução dos meios que permite considerar a convergência uma realidade concreta. Plataformas digitais e produtos, como telefones celulares com acesso a Internet, câmeras de vídeo, player de áudio e outras facilidades já fazem parte do dia-a-dia e do mercado. Como define o Livro Verde da Convergência da Comissão Europeia (1997, p.ii), convergência não diz respeito apenas à tecnologia, afeta também serviços, negócios e a interação com a sociedade. Trata-se de um fenómeno que abrange pelo menos três dimensões básicas: a) tecnológica - processo que envolve a combinação e cruzamento das infraestruturas de distribuição de informação, armazenamento, processamento e oferta diferentes tipos de serviços como telefonia, vídeo, áudio, voz, internet e dados (SIMPSON, 2005); b) mídiática – fluxo de conteúdos codificados digitalmente através de múltiplas plataformas mediáticas e de rede (JENKINS, 2008:16); c) empresarial - resulta na tendência de integração de grandes corporações com focos em diferentes mercados para prover serviços agregados, caracterizando por uma atuação que se opõe ao isolamento que tradicionalmente prevaleceu no setor (CUNHA, 2004). O processo de convergência implica em mudanças na produção, marketing, venda e distribuição de serviços de informação e comunicação. Significa disponibilizar as mesmas informações através de diferentes plataformas de rede (celular, Internet), e das mais variadas maneiras (texto, vídeo, som, de forma interativa ou não). O que decorre também em alterar a lógica como operam as indústrias midiáticas, ou seja, na forma como processam a informação e o entretenimento para o público desses meios. Mudanças que estão em sintonia com um tipo de consumo cotidiano de mídia cada vez mais convergente. Basta observar o comportamento dos jovens em relação a mídia. Hoje é comum que ele faça suas tarefas escolares utilizando o computador ao mesmo tempo em que mantém cinco ou seis janelas abertas, seja para navegar pela rede, escutar música, descarregar arquivos de MP3, usar o chat para falar com amigos, escrever e processar textos, tudo isso alternando rapidamente seu foco de atenção.

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A evolução da tecnologia tem ampliado radicalmente todos os meios de comunicação frente as opções à disposição dos consumidores, incluindo o centenário meio rádio. No passado, o rádio era limitado ao que estava disponível nas frequências AM e FM. Hoje as possibilidades de escuta se estenderam com as plataformas digitais: Internet, players de MP3, celulares, satélite e rádio digital. Situação que levou o instituto americano de pesquisa Arbitron denominar de ―rádio sem limites‖. Essa expansão tem sido mais significativa por meio da Internet. Estima-se que 33 milhões de americanos sintonizem uma estação de rádio pela Internet semanalmente, chegando a 54 milhões se tomar por base a audiência mensal, segundo estudo da Arbitron e Edson Media Research realizado em 2008 nos Estados Unidos3. Em média, um em cada cinco americanos diz ouvir rádio online. O hábito não é restrito a jovens, alcança todas as faixas etárias. Quinze por cento dos americanos em idade de 25 a 54 são ouvintes de rádio online. Em 2007, 54% dos jovens americanos tinham um player de MP3. No ano seguinte esse número cresceu drasticamente para 73%. Ao contrário da crença comum de que as pessoas ouvem menos rádio em plataformas digitais, a pesquisa da Arbitron aponta que o tempo médio gasto por dia para ouvir AM/FM são 2 horas e 45 minutos por dia, apenas dois minutos a menos do que o consumo normal entre os que não são usuários de rádio on-line, rádio por satélite ou MP3. Somente 10% dos proprietários de players de MP3 disseram que estão ouvindo menos rádio. Embora entre esses usuários se consolide o hábito de baixar música, um em cada cinco americanos já compraram áudio digital online. O estudo da Arbitron e Edson Media Research detectou, ainda, que a introdução do iPhone e dos novos modelos do iPod continuarão a impulsionar o crescimento do consumo sob demanda, o que leva o setor de radiodifusão a pensar sobre a necessidade de ampliar a oferta de conteúdo em podcast. Um em cada dez americanos diz ter escutado um podcast de áudio durante o mês. A audiência é estimada em 23 milhões de ouvintes. Outro indicativo importante da pesquisa é a necessidade de revitalizar a imagem do meio como canal para se descobrir novas músicas. Em 2002, o rádio dominava a Internet nesse quesito: 63% ouviam novas músicas no rádio. Hoje a Internet

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Um total de 1.857 pessoas foram entrevistadas por telefone para a pesquisa escolhidas aleatoriamente de uma amostra nacional que representa 80% da população americana.

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reduziu essa vantagem para 49%. Entre adolescentes é o local de descoberta: 25% dos entrevistados identificaram lançamento de músicas na rede. Embora os dados revelem mudança de hábitos de consumo, quando perguntados se no futuro vão continuar a ouvir rádio AM/FM como fazem agora, apesar dos crescentes avanços da tecnologia, os entrevistados americanos surpreenderam: 71% disseram manter o mesmo nível de consumo atual. No Brasil, o crescimento do acesso às plataformas digitais está provocando impacto nas formas de consumo de mídia. De acordo com a pesquisa TIC Domicílios realizada em 2008 pelo Centro de Estudos sobre as Tecnologias da Informação e da Comunicação - CETIC.br4, 25% dos domicílios brasileiros possuem um computador5, sendo que apenas 18% deles com acesso a Internet e a grande maioria (58%) por meio de banda larga. O que leva uma grande parcela da população a não ter Internet em casa é a falta de recursos para pagar pela conexão (54%). Entre os 39% que já acessaram a Internet, a maioria o faz diariamente (53%), seja em casa (42%) ou de centro público de acesso pago (48%). Em média um brasileiro gasta de uma a cinco horas na Internet (55%) diariamente. A maior parte deles desenvolvendo múltiplas tarefas como enviar e receber e-mails (77%), participar de sites de relacionamento (70%) ou messenger (61%). Entre as atividades desenvolvidas, o interesse maior é por informações relacionadas a lazer e a diversão (60%). E entre elas está se consolidando o hábito de ouvir rádio em tempo real (43%), ocupando o quarto lugar entre as preferidas, perdendo para assistir vídeos do Youtube (49%), ler jornais e revistas (47%) e jogos online (44%). Essas mudanças não são circunstanciais, na visão da especialista espanhola Rosa Franquet, uma vez que todos os meios das indústrias culturais estão sendo afetados de alguma forma pela emergência de novas plataformas, colaborando para a construção de novos hábitos de consumo cultural, especialmente entre o público jovem (in BUSTAMANTE, 2008, p. 126-7). Novos modos de consumo implicam também na aparecimento de novos competidores que oferecem informação e conteúdo em tempo real, a exemplo da telefónica móvel. Cebrián Herreros (2008) vê nessa mudança um salto radical de paradigma em relação a comunicação tradicional baseado em sistemas unidirecionais. Com a 4

O Centro é responsável pela produção de indicadores e estatísticas sobre a disponibilidade e uso da Internet no Brasil, divulgando análises e informações periódicas sobre o desenvolvimento da rede no país. http://www.cetic.br 5 Os dados do IBOPE são relativamente maiores. O número de pessoas com acesso à internet em casa ou no trabalho é de 44,5 milhões de pessoas. Dessas, 34,5 milhões usaram a internet em maio de 2009 em pelo menos um desses dois ambientes. O número de usuário ativos chega a 34,5 milhões. 5


convergência, abre-se espaço para sistemas multidimensionais e interativos de comunicação, muito embora boa parte dessa interatividade ainda não esteja totalmente presente na mídia de massa que inicia seu processo de digitalização da transmissão, a exemplo da TV no Brasil e em boa parte do mundo. É paradoxal ver a crescente integração do rádio a Internet e plataformas digitais se considerar que ainda é lento o processo de migração para o sistema de transmissão digital em boa parte do mundo. O impasse leva até mesmo a questionamentos sobre a importância ou necessidade de se digitalizar o sistema de transmissão radiofônico por ondas eletromagnéticas. Para quê digitalizar se é possível ouvir rádio em diferentes suportes digitais – web, celular, mp3 e televisão – sem necessidade de mudar o sistema de transmissão? A resposta ao questionamento está no fato de que não digitalizar significa deixar de participar do código comum que é a base da convergência. Esse aspecto é um pouco diferente de estar presente em outros suportes. Indica ter em si os dispositivos tecnológicos que permitam abertura para a convergência com outros meios dentro da mesma linguagem e, de algum modo, apropriando-se das vantagens advindas dessa condição a exemplo da melhoria da qualidade de som, novos usos e funcionalidades para o aparelho receptor de rádio, incluindo dados associados que possam fornecer mais riqueza a programação. O problema é que a digitalização da transmissão ainda é incerta e não homogenea entre diferentes continentes. Para entender esse paradoxo se fez uma análise do processo de construção das políticas públicas para implantação e desenvolvimento do rádio digital nos EUA, Europa e Brasil, a partir da compreensão da dinâmica dos atores políticos de maior importância que gravitam em torno desse fenômeno da comunicação contemporânea: o Estado, o setor da radiodifusão (englobando emissoras públicas, privadas e comunitárias e a indústria de equipamentos) e os atores não hegemônicos vinculados às organizações da sociedade civil. A partir da perspectiva metodológica multidimensional de Castells (1999), discute-se a tecnologia da digitalização não apenas em suas formas operativas e impacto econômico, mas, fundamentalmente, nas suas inter-relações e vínculos com a sociedade e a cultura, o que remete ao exame dos processos de produção, distribuição e consumo do rádio digital. Adota-se a estratégia de análise comparativa para permitir que os fatores endógenos e exógenos identificados em cada caso sejam realçados. As diferenças e semelhanças identificadas foram relacionadas, de maneira independente, tanto aos aspectos do funcionamento de cada processo, quanto aos aspectos sistêmicos.

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O que se observou a partir dessa análise é que boa parte do problema está nos formatos de digitalização disponíveis, cujas características técnicas de origem confrontam com crescente evolução da convergência tecnológica, exigindo dos desenvolvedores revisá-los para se adequar a ambiente multimídia.

Caminhos e descaminhos do rádio digital na Europa

A Europa optou por um modelo de rádio digital out-of-band concebido como um novo serviço. Essa característica técnica resulta no imperativo de atribuir uma faixa de freqüência exclusiva para o padrão digital DAB, uma vez que o padrão não pode funcionar simultaneamente nas atuais emissoras AM e FM analógicas. Nesse sistema, a difusão é feita por um transmissor multiplex, gerenciado por um operador de rede que pode ser privado. Seis estações diferentes partilham o mesmo transmissor, antena, faixa de freqüências e, consequentemente, a mesma área de cobertura de sinal. Em funcionamento na Europa e Ásia há quase 15 anos, esse modelo de digitalização enfrenta dificuldades para conquistar popularidade. O pioneiro na rádio digital, a Suecia, gastou mais de 100 milhões de coronas para desenvolver o DAB (Digital Audio Broadcasting). Em 2007, no entanto, o governo social democrata tomou a decisão de parar os investimentos na tecnologia DAB, embora se possa emitir em digital para quase todo o país (TELEVISON DIGITAL, 2007). A Alemanha transmite em DAB desde 1999 e alcança 80% da população, oferecendo cerca de 80 programas (rádios) para cerca de 500 mil receptores. O professor Hans Keinsteuber, da Universidade de Hamburgo, ao participar da 7ª Bienal Internacional do Rádio no México em 2008, disse que, embora esse número de aparelhos seja grandioso, a cifra representa apenas 1% dos receptores ativos de rádio no país. Ou seja, apenas 1% de penetração entre os ouvintes. Diante dessa situação, segundo o professor, a Alemanha já pensa em desativá-lo. Na Espanha, radiodifusores se queixam que estão ―emitindo para as pedras‖ e ameaçam deixar de transmitir em digital diante da queda de publicidade em 2009 (EL PAIS DIGITAL, 02.03.2009). O rádio digital está em funcionamento no país há dez anos sem ter alcançado a meta de atingir 80% do território, prevista para 2006 e prorrogada para 2011, e nem sequer conquistou ouvintes nas localidades onde é transmitido por falta de receptores à venda a preços acessíveis. E não há qualquer projeto do governo para subsidiar a produção de aparelhos. Os radiodifusores alegam 7


que estão pagando por um sinal que não se ouve. Mensalmente as emissoras pagam 15 mil euros à empresa Abertis, gestora privada do multiplex que transmite sinal de 18 programas (rádios) digitais em toda a Espanha.6 Pesquisadores daquele país buscam entender se o fracasso é uma questão de timing, porque a tecnologia é relativamente nova, ou porque não existe conteúdo interessante nas transmissões (BADILLO MATOS, 2006). Todas as emissoras digitais divulgam a mesma programação do analógico em total descumprimento a lei de concessão de canais que estabelece obrigatoriedade de emissão de conteúdo novo7. A transição para o digital na Espanha foi orientada, inicialmente, não por critérios técnicos e sim políticos. Com a intenção de reestruturar o setor, o governo distribuiu licenças de rádios digitais em 1999 a grupos empresariais que não tinham tradição no segmento, abrindo espaço para os novos atores que passaram a integrar o mercado a partir da liberalização das comunicações de 1978 com o fim do regime autoritário. A medida trouxe resistência do segmento tradicional em criar um novo mercado para o rádio digital. Na falta de políticas públicas incentivo, os radiodifusores tradicionais não querem impulsionar o mercado digital. É bem verdade que ocupam o espaço do digital, porém como estratégia de sobrevivência. Transmitem agora à espera do que

acontecerá no futuro, estratégia semelhante a que foi adotada diante da

emergência da Internet. Muitos passaram a transmitir o sinal pela rede sem explorar todo o potencial de liguagem e recursos oferecidos pelo novo suporte digital.8 Considerado um dos poucos casos bem sucedidos, a Inglaterra não está imune às críticas e digitalização ainda não alcança a totalidade da população. Levantamento do World DAB de 2008 revela que 32% dos adultos no país possuem um rádio DAB, o que equivale a um em cada três britânicos. Um quinto da audiência ouve rádio digital. Há mais de 6,5 milhões de aparelhos receptores digitais no Reino Unido. O bom desempenho em relação a outros países da Europa se deve a diversidade de programação, impulsionada, especialmente, pela BBC que criou cinco canais com conteúdos diversificados exclusivamente para o digital. Além disso, um acordo entre fabricantes, radiodifusores e governo permitiu oferecer ao mercado receptores a preços 6

Dados fornecidos por Xavier Rendon, Diretor de Marketing da Abertis Telecom, em entrevista concedida a autora em dezembro de 2008, Madrid. 7 Real Decreto 1287/1999, de 23 de julio – aprova Plano Técnico Nacional de Radiodifusão Sonora Digital Terrestre. 8 Essa visão é partilhada pela pesquisadora da Universidade de Navarra, Maria Pillar Martinez-Costa, em entrevista concedida a autora em 3 de novembro de 2008, e pelo secretario da Associación Catalana de Radio, Francesc Robert I Angell em entrevista concedida a autora em 24 de outubro de 2008. 8


acessíveis. O aparelho mais barato custa 15 libras, no entanto, ainda é considerado caro. Existem mais de 340 produtos DAB à venda no mercado do Reino Unido nas grandes cadeias de lojas. Em relatório divulgado em 2008, a Digital Radio Working Group recomendou ao governo criar critérios e condições que possam ser cumpridos pelas emissoras britanicas de modo a permitir o apagão do analógico até 2020. Um dos problemas do DAB atual é a falta de unificação dos padrões disponíveis. Além do tradicional há o DAB + (permite maior eficiência com menos bits) e o multimídia DMB (Digital Multimedia Broadcasting), uma plataforma de áudio e televisão digital móvel. Em todo mundo existem mais de um mil diferentes receptores de DAB, 190 de DMB. Os receptores de DAB + receptores são mais recentes no mercado e tendem para uma rápida adoção em 2010, segundo previsão da World DAB. Observa-se, no entanto, que a evolução do digital tem sido desigual na Europa devido, em parte, aos custos altos de implantação (50 a 150 mil libras na Inglaterra) e manutenção e o retorno de mercado ainda não é significativo. Segundo Franquet (in BUSTAMANTE, 2008, p.130), a situação é paradigmática se considerar que o setor radiofônico dispõe de padrão digital desde o principio da década de 90, muito antes da televisão. Entretanto, o que se vê é a migração da TV para o digital em aceleração, com data para apagão do analógico determinada em vários países, uma consequência, de decisões políticas e econômicas que potencializaram a migração. Situação oposta ao rádio digital que permanece sem decolar quando possui, em tese, grande potencial seja pela tradição do setor, pela competição entre emissoras generalistas e segmentadas e as vantagens oferecidas pela informatização dos processos de produção. A diferença básica está no fato que a tecnologia da TV digital é de substituição, enquanto a do rádio é de convivência, neste caso a transição do sistema analógico para o digital não é somente mas lenta, como também incerta ante às dúvidas surgidas frente a emergencia de novos sistemas de transmissão, ou por fatores tecnológicos, de construção de política transição ou de mercado. Como essa mudança acontece num ambiente de convergência midiatica, os defensores do rádio digital precisam provar que a tecnologia pode proporcionar benefícios tangíveis para os consumidores como também favorecer o aumento de receita para as emissoras. Em geral, o consumidor compra um produto que satisfaça seus desejos ou que faça melhor o que outros do gênero não fazem. Ora, se o rádio FM atual ainda possui som bastante aceitável, muitos os ouvintes questionam se há motivação para trocar de aparelho.

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Outro aspecto importante a ser considerado são as críticas à qualidade do som do DAB. Ouvintes ingleses se queixam de baixa qualidade, dizem que alguns instrumentos musicais soam distorcidos (THE GUARDIAN, 09.10.2006). O problema, segundo especialistas, está nas empresas que utilizam uma taxa de bits em níveis demasiado baixos para se atingir a qualidade desejável. E isso acontece porque as empresas decidiram lançar uma série de novas estações digitais dentro do mesmo espectro (frequência) que tem, evidentemente, uma dimensão limitada. A solução foi dividir os bits de forma a encaixa-las, mesmo sabendo que a qualidade sonora seria menor do que uma FM9. As versões digitais da Radio 1 e 2 da BBC, por exemplo, transmitem hoje em taxas significativamente mais baixas do que quando foram lançadas para dar espaço à outras congêneres. A situação do DAB é mais problemática ainda na Espanha. O sinal digital não tem boa recepção dentro de edifícios, especialmente os situados em ruas com grande densidade de prédios e tráfego intenso. Para o engenheiro Augustín Ruiz, diretor técnico da Cadena Ser, a mais importante da Espanha, o DAB hoje não tem futuro. A solução é adotar o DAB + por ser multiplex, multicanal, multimidia e possuir sistema de compressão melhor, permitindo funcionar com menor quantidade de bits sem perda de qualidade.10 O DAB+ é uma das esperanças para o futuro do rádio digital na Europa por suas características multimídia. Suécia e Australia já iniciaram testes com a tecnologia em 2009. Na Inglaterra há previsão de se testar o sistema nos próximos dois anos. A promessa do simulcasting: HD e DRM O segundo modelo de digitalização é o sistema de in-band, no qual o sinal digital é transmitido no canal adjacente da mesma faixa de freqüência das emissoras analógicas. Sistemas como o norte-americano IBOC (In-Band On-Channel) e o europeu DRM (Digital Radio Mondiale) transmitem simultaneamente sinais analógico e digital dentro canalização analógica atual, o que favorece a transição gradual para o rádio digital. Nesse modelo não há necessidade de atribuir novas freqüências, mantendo o status das atuais emissoras. Ainda é possível utilizar a infraestrutura existente, desde torres e transmissores, sendo necessário adquirir novo excitador de radiodifusão digital e alguns equipamentos e periféricos. 9

Incompetent adoption of dab http://www.digitalradiotech.co.uk/dab/.htm Entrevista concedida a autora em 30 de novembro de 2008 na sede da Cadena Ser em Madrid.

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O IBOC foi criado com o propósito de oferecer alternativa tecnológica para o modelo americano de rádio comercial, que apostava numa transição lenta e sem mudar o status quo das emisssoras tradicionais (BIANCO, 2004). Em funcionamento nos Estados Unidos desde 2003, o HD Radio (nome comercial do IBOC) é utilizado por 1,8 mil rádios de um total de 13 mil emissoras existentes no país, segundo dados do FCC. A nova tecnologia ainda não conquistou a confiança dos consumidores. De acordo com pesquisa da Arbitron e Edison Media Research em 2006 apenas 14% dos americanos disseram que tinham ouvido falar ou lido informações sobre HD Rádio. No ano seguinte quase duplicou para 26%, mas em 2008, o nível de sensibilização continuou bastante baixo, com 24% dos entrevistados dizendo terem informações sobre a nova tecnologia radiodifusão. Menos de um terço dos consumidores americanos revelam interesse no padrão HD Rádio. Apenas 6% deles dizem que estão muito interessados em HD Rádio e outros 23% são pouco interessados na nova plataforma de alta definição de áudio. Quando a questão é audiência, os índices não são animadores. Apenas 450 mil usuários em uma população de 300 milhões ouvem HD. Em parte, a resistência tem relação com a necessidade de trocar o aparelho por outro considerado caro: o mais barato custa 80 dólares.11 De outro pela falta de atrativos no conteúdo: apenas metade das estações oferecem mais de duas ou três programações diferentes no mesmo canal digital que, muitas vezes, não é diferente das freqüências analógicas. Das 13 mil rádios americanas cerca 1.800 são digitais (MCBRIDE, The Wall Street Journal, 2008). Assim como o modelo de rádio digital europeu, o americano também está sujeito à críticas pela qualidade de som. A maior parte da primeira geração de receptores em HD Radio têm sido apontados como sendo muito insensível, tornando recepção problemática. O sinal é mais abaixo em relação a estação de sinal analógico. Os aparelhos não podem ser utilizados para receber estações vindas do exterior, ou seja, são incompatíveis com DAB e DRM. A qualidade de som do HD na faixa FM tem sido descrito como equivalente a do CD. No entanto, o sistema permite multiplexação de fluxo de dados entre dois ou mais programas distintos. Se um programa utilizar metade 11

Existem 100 diferentes receptores HD Radio à venda nos EUAComo estratégia para tornar a recepção integrada a convergência, a Microsoft anunciou que vai embutir um receptor de rádio digital em seu novo player multimídia portátil, o Zune. Outra aposta dos radiodifusores norte-americanos, caso realmente se concretize, é a inclusão de receptores no iPhone, este sim sucesso de vendas no país (TELA VIVA 27/05/2009).

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ou menos do fluxo de dados, o sinal pode não atingir a melhor qualidade de um único programa com dados completo. Outro aspecto é a tecnologia proprietária, o codec do sistema HD Radio é da empresa iBiquity. Para usuá-lo é preciso pagar pelo licenciamento. Situação diretamente oposta a modelos como DRM e DAB que possuem código aberto. Dentro do conceito de transmissão digital in-band simulcasting uma perspectiva promissora é o DRM (Digital Radio Mondiale). Trata-se do único sistema digital aberto do mundo para ondas AM (curtas, médias e longas) que cobre transmissões para bandas abaixo de 30MHz. O DRM é administrado por um consórcio constituído por 100 membros, entre eles associações, universidades, fabricantes, operadoras e emissoras estatais européias. Em operação desde 1998, a versão do DRM para o AM tem sido apresentada como um sistema mais robusto, com som equivalente a qualidade de CD, além de permitir redução significativa no uso da potência dos transmissores. O sistema possibilita também a utilização de novos conteúdos integrados num mesmo aparelho, como serviço de notícias de texto no visor, sintonia da estação pelo nome, gravação e armazenamento de um programa enquanto se escuta outro. Embora apresente vantagens, o sistema não está imune as críticas. Estudo realizado em 2007 por técnicos da Cadena Ser da Espanha, a partir de testes com o DRM, detectou que a recepção desse padrão no interior de edifícios depende muito do tipo de construção. A recepção geralmente é melhor na parte superior de prédios e em ambientes de pouca densidade demográfica (GIl, GUERRA, DEL AMO e MASDEU, 2008). Essa tecnologia foi atualizada em 2009 com o lançamento do DRM +. O sistema utiliza a mesma codificação de áudio, serviços de dados, multiplexagem e esquemas de sinalização que o standard DRM para as ondas curta, média e longa até 30 MHz, mas opera em frequências mais elevadas entre 30 e 174 MHz, incluindo as bandas de broadcast I e II. O padrão DRM+ apresenta vantagens sobre a FM convencional, porque utiliza menor potência de transmissão para uma igual cobertura; abre novas possibilidades de áudio como o suporte surround, aumentando a eficiência do espectro e a oferta de serviços de dados, a exemplo de guia de programação e informação adicional. O DRM+ tem sido apontado como uma alternativa importante para as emissoras europeias que não querem operar em DAB por várias razões como área de cobertura, custos e o desejo de permanecer no controle de suas operações de

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transmissão sem tercerização. Mais do que isso, o DRM+ é apresentado como a solução para rádios locais, ultra locais e emissões em comunidades pequenas.12

Brasil em processo de decisão

A definição do padrão de rádio digital a ser adotado no Brasil tem sido marcada, até o momento, por dois movimentos: de um lado os empresários manifestam suas preferências, antecipando-se a qualquer possibilidade de debate público sobre a questão; e de outro, setores da sociedade civil pressionando o Ministério das Comunicações para que estabeleça parâmetros de adoção de um padrão técnico de digitalização que contemple a diversidade de exploração e financiamento do sistema de radiodifusão. Esses segmentos entendem que adoção de uma tecnologia não pode ser fator de aprofundamento de diferenças de padrões técnicos, de produção e financiamento de emissoras, ou mesmo de exclusão de modelos de exploração com finalidade educativa, cultural, institucional e comunitária. Embora a escolha do modelo de transmissão digital seja, tradicionalmente, uma prerrogativa do Estado, os radiodifusores já optaram pelo modelo americano IBOC. A escolha é um esforço para combinar vantagens tecnológicas com a possibilidade de preservação do negócio, uma vez que não há necessidade de mudar freqüência no dial. Nesse sentido, dois fatos importantes marcaram o processo as discussões sobre o padrão digital no período de 2007-2008. O primeiro foi a conclusão dos testes realizados com o sistema IBOC pelo Instituto Mackenzie, com a supervisão da Abert, em setembro de 2008. O sistema norte-americano operou em caráter experimental em emissoras AM e FM de Belo Horizonte, Ribeirão Preto e São Paulo. Participaram dos 12

O DRM+ foi testado com sucesso a ajuda de instituições como a University of Applied Sciences, Kaiserslautern e o instituto Fraunhofer IIS e Erlangen. Além dos testes com esse modelo de transmissão , o Rádio Digital DRM Receiver Profiles, definiu a funcionalidade mínima para diferentes classes de receptores de rádio digital com o objetivo de ajudar os fabricantes a construírem receptores de DRM de forma autônoma. Para as • emissoras, os perfis oferecem garantia de que estão investindo numa tecnologia que tem apoio de ampla variedade de serviços. Para os consumidores, os perfis de receptor sinalizam que estão comprando produtos •que possuem características necessárias para oferecer qualidade de som. Aos reguladores mostram que é confiável desenvolver estratégias e políticas para adoção da transmissão de rádio digital dentro das fronteiras nacionais. Os perfis foram desenvolvidos pelo consórcio DRM com o auxílio de fabricantes de chips de silício, de emissoras de rádio e outros peritos da indústria e são características e elementos obrigatórios que devem ser aplicados e recomendadas aos produtores de receptores. Para definir esse perfil, o consórcio do DRM levou em consideração questões de mercado, incluindo a experiência do consumidor, as necessidades de produção de equipamento e a radiodifusão. Ver Norma DRM+ experimentada com sucesso em Paris (2009). http://www.aminharadio.com/radio/node/1885 13


testes as emissoras Cultura AM, Sompur FM e Sistema Clube de Comunicação FM, em São Paulo, e Rádio Tiradentes AM, em Belo Horizonte. Durante nove meses foram analisadas as condições de transmissão e recepção e a robustez do sinal digital, com acompanhamento de engenheiros do Ministério das Comunicações e da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Os testes foram rigorosos e seguiram a parâmetros estabelecidos por estudos técnicos definidos pela Anatel colocados em consulta pública. O relatório técnico do Instituto Mackenzie menciona sérios problemas de propagação do IBOC, com áreas de sombra maiores do que as que são observadas no sistema analógico quando utilizado no AM. O digital não proporciona a mesma cobertura do rádio AM analógico com qualidade: "A Fundação Padre Anchieta tem somente 35% da cobertura analógica teórica com boa qualidade, enquanto mantém em 70,6% a cobertura digital, que sempre é de boa qualidade; a Rádio Tiradentes tem somente 54,5% da cobertura analógica teórica com boa qualidade, enquanto mantém em 81,8% a cobertura digital; a Sompur tem somente 47,5% da cobertura analógica teórica com boa qualidade, enquanto mantém em 90,5% a cobertura digital; o Sistema Clube cai para 81,8% da cobertura analógica com boa qualidade, enquanto mantém 86,4% a cobertura digital.‖ (Relatório dos testes realizados em estações AM e FM que utilizam o padrão IBOC, 2008, p. 455)

Diante desses resultados, o Instituto Mackenzie não considerou correto e nem possível recomendar um padrão sem conhecer o desempenho dos demais com a mesma profundidade. Os testes de campo do padrão IBOC foram contratados em novembro de 2007 pela Abert, e acompanhados pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e pelo Ministério das Comunicações. Foram medidos o alcance do sinal digital em comparação com o sinal analógico, as eventuais interferências, a qualidade da transmissão e da recepção móvel e fixa, tanto em AM) como em FM. Os resultados da avaliação do IBOC levaram o Ministério das Comunicações a lançar o Chamamento Público nº1/2009 (DOU 22.05.09) com o objetivo de efetuar testes com sistemas de radiodifusão sonora digital. Os experimentos com os sistemas nas diversas faixas de frequência deverão ocorrer até 22 de novembro de 2009. Ao final dos testes, os interessados podem encaminhar relatórios ao Ministério das Comunicações para a devida avaliação. O mais interessante desse chamamento é que o governo, pela primeira vez, estabeleceu que durante os testes devem ser considerados aspectos básicos idealizados para um sistema se tornar atraente à realidade brasileira. Os aspectos relacionados na parte anexa do documento indicam claramente que a arquitetura do rádio digital de

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preferência pelo Brasil é in band, compatível com o IBOC/HD Rádio ou DRM. Entre outras características estão a adoção de um sistema que contemple a transmissão em FM e AM, no mesmo canal; cobertura de todas as zonas de sombras do rádio analógico; oferta de condições para que a indústria brasileira tenha acesso aos detalhes técnicos do padrão e promova a transferência de tecnologia. No quadro abaixo uma análise entre os aspectos técnicos mencionados pelo documento oficial e os padrões de transmissão existentes mostra como essa preferência está sendo construída nesse processo de Chamamento Público: Aspectos técnicos

IBOC

DAB

Permitir o simulcasting, com boa qualidade de áudio e com mínimas interferências em outras estações. Operar de maneira satisfatória nos serviços de ondas médias (OM), ondas curtas (OC), ondas tropicais (OT) e frequência modulada (FM). Possibilitar a transmissão noturna também em modo digital. Área de cobertura do sinal digital igual da atual (analógico), com menor potência de transmissão. Transmissão de dados auxiliares, relacionados ou não à programação corrente. Nos sistemas operando em frequência inferior a 30 MHz, a qualidade de áudio deve ser superior ao atual, em modo estéreo, comparável ao de transmissões em FM. Soluções para emissoras de baixa potência, com custo reduzido. Recepção do sinal em ambientes outdoor e indoor. Não apresentar interferências co-canais e em canais adjacentes. Interatividade e multiprogramação. Transferência de tecnologia

Compatível

Opera AM e FM

Apresenta problemas no AM Apresenta problemas

Compatível

Não compatível

DRM AM e + Compatível

Compatível

Não compatível

Compatível

Compatível

Compatível

Compatível

Em testes

Compatível a depender da localidade Compatível

Compatível

Compatível

DRM +

Em testes

Compatível

Apresenta problemas

Não compatível

Compatível AM e OC

Compatível

Em estudo

Em estudo no DAB +

Incompatível

Compatível

Compatível

Compatível

Em testes

Compatível

Apresenta problemas Não compatível

Compatível

Compatível

Compatível

Compatível

Compatível

Em testes

Tecnologia

Tecnologia

Tecnologia

Tecnologia

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para a indústria brasileira de transmissores e receptores. Possibilidade da participação de Instituições de Ensino e Pesquisa brasileiras no ajuste e/ou melhoria dos sistemas de acordo com a necessidade do país. Custo para implantação de uma emissora digital ou adequação da emissora para transmissão do sinal digital utilizando cada sistema.

proprietária

aberta

aberta

aberta

Incompatível por ser um sistema proprietário

Incompatível pelo avanço no desenvolvimento da tecnologia

Há possibilidade de negociação

Há possibilidade de negociação

Médio a depender da infraestrutura da emissora

Médio a depender da infraestrutua da emissora

Médio a Alto depender da infraestrutura da emissora

Com o chamamento público, o governo espera receber propostas dos detentores dos diferentes padrões internacionais (o DRM, europeu, e o norte-americano HD Rádio) e de emissoras que façam testes com os padrões existentes. Terminada essa etapa, preve-se a definição do governo quanto ao sistema de transmissão. O Ministério das Comunicações já sinalizou que está abandonando a defesa do IBOC para permitir testes com o DRM. Em várias entrevistas a imprensa no dia do radio, 22 de setembro de 2009, o ministro Helio Costa anunciou que está providenciando a entrada no país dos equipamentos europeus para iniciar os testes, que serão acompanhados pela Anatel. E não poupou críticas ao IBOC, apontando os problemas relacionados a area de cobertura no AM e a questão referente ao pagamento de royalties à empresa proprietária do sistema. A posição pode ser interpretada como estratégica porque permite ao governo sinalizar que não pretende ceder as pressões da ABERT ao mesmo tempo em que abre caminho para busca de uma alternativa que tenha apelo popular. Concluindo.... Quando a renovação tecnológica só tem valor em si mesma ou referência a parâmetros econômicos, automaticamente se produz a substituição das leis do processo de comunicação pelas do processo tecnológico. O caso do rádio digital pode ser exemplar neste aspecto. Há uma série de fatores aleatórios que interferem nesse processo de transição típico dessa dinâmica tecno-mercantil. O rádio analógico já participa de parte do ambiente de convergência midiática, por meio da Internet, porém em condição desigual entre outros de natureza digital em circulação. Somente a digitalização da transmissão poderá integra-lo de modo consistente a convergência. A digitalização torna-se, portanto, necessária por quatro fatores. Primeiro porque a qualidade do som hoje está aquém da qualidade do áudio de CD, com qual a maior parte

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dos usuários passaram a ter como padrão de referência. A digitalização amplia a quantidade de armazenamento de som, dando maior capacidade de precisão na reprodução da música, o que favorece a apreciação dos ouvintes. Segundo porque o aparelho receptor permanece estático em termos das funcionalidades oferecidas pelo digital, como a oferta de conteúdo multimídia na tela de cristal líquido agregada ao aparelho. Terceiro porque a digitalização introduz no rádio o sistema multicast de programação, permitindo a divisão da faixa de freqüência utilizada para transmitir sinal digital canais com conteúdos diferenciados. Esse dispositivo tecnológico oferece potencial para diversificação e segmentação da programação. Do ponto de vista do conteúdo poderá significar a revitalização do rádio enquanto negócio pela possibilidade que oferece para se construir novos formatos e linguagens. E, por último, porque sem o digital o rádio perde a oportunidade de promover algum tipo de interatividade a partir do próprio aparelho receptor, algo que é hoje realizado com apoio de outros canais e suporte, como telefone, e-mail e SMS. A digitalização é a única solução inovadora capaz de elevar a qualidade e o alcance das transmissões e oferecer novas opções ao modelo de negócio das emissoras, diante dos desafios da convergência tecnológica e da entrada no mercado de competidores tão fortes quanto as empresas de telefonia. O meio poderá abrir-se para outros negócios rentáveis fruto de alianças estratégias, parceiras, visando oferecer conteúdo em outros suportes digitais e o desenvolvimento de serviços complementares de valor agregado a mensagem do rádio. A perspectiva sugere abandonar a tradição isolamento para atuar integrado num ambiente em rede. Diante do inevitável restará a negociação como estratégia para construção de políticas nacionais de transição para o digital, envolvendo uma ampla compreensão da dinâmica dos atores políticos de maior importância que gravitam em torno desse fenômeno da comunicação contemporânea, como o Estado, o setor da radiodifusão (englobando emissoras públicas, privadas e comunitárias e a indústria de equipamentos), os atores não hegemônicos vinculados às organizações da sociedade civil, e a indústria de radiodifusão. As experiências de digitalização mostram que é necessário flexibilização da tecnologia de transmissão para que se possa adaptá-la a necessidade do mercado de radiodifusão e às características de cada localidade, como edificações e topografia e problemas de poluição radioelétrica que trazem sérios problema de adaptação dos padrões existentes. A flexibilização torna-se essencial a considerar que todos os padrões de digitalização são incompletos, apresentam aspectos críticos, e não trazem em si, enquanto tecnologia, todas as soluções para o processo da 17


comunicação inserido numa dinâmica tecno-mercantil típica da econômica capitalista de liberal. Como em qualquer transição será necessário compreender que o processo de construção de políticas públicas para o rádio digital precisa estar alicerçada em critérios que garantam a manutenção da gratuidade do acesso ao rádio; a transmissão de áudio com qualidade em qualquer situação de recepção; adaptabilidade do padrão ao parque técnico instalado; coevolução e coexistência com o analógico; aparelhos receptores de baixo custo; adoção de uma tecnologia não proprietária e com potencial para integração com outras mídias; interatividade real time e multiprogramação. São critérios que preservam, de alguma forma, a experiência social, histórica e cultural do meio. Integrado ao um modo de vida, o rádio se vincula às identidades culturais do lugar, aos saberes cotidianos, ao partilhamento de patrimônios comuns como a língua, a música, o trabalho, os esportes, as festas, entre outros. É um espaço de reconhecimento do público como pertencente a uma dinâmica cultural local. Portanto, para ter sentido e ser útil as intervenções das políticas nas estruturas se guiam e se justificam por objetivos relacionados ao conteúdo. Significa por em relevo não somente as relações entre economia e política, mas também a dimensão do consumo. O que implica em considerar a cultura como um componente inerente à formulação de políticas públicas de transição para o rádio digital. Referências bibliográficas BADILLO MATOS, Ángel. Políticas públicas y la transición al audiovisual digital en España: el caso de la radio. Eptic On Line, v. VIII, n. 1, ene.-abr./2006. BIANCO, Nelia R. Del. E tudo vai mudar quando o Digital chegar. BARBOSA FILHO, André, PIOVESAN, Ângelo e BENETON, Rosana (orgs). Rádio, sintonia do futuro. São Paulo: Paulinas, 2004. CEBRIAN HERREROS, M. Radiomorfosis, la Era de la Convergencia Tecnológica en la

Radio. 7ª Bienal Internacional do Rádio. México, setembro, 2008. CUNHA, Américo Brígido. Convergência nas Telecomunicações no Brasil.: Análise das transformações no ambiente de negócios, estratégias e competitividade das empresas de telecomunicações. Dissertação (Mestrado em Engenharia de Produção) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, 2004. DAB gets a poor reception. The Guardian, 09/10/2006. http://www.guardian.co.uk/media/2006/oct/09/mondaymediasection.radio

Disponível

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18


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and

European

The Infinite Dial 2008: Radio‘s Digital Platforms Online, Satellite, HD Radio TM and Podcasting. Arbitron e Edson Media Research. www.arbitron.org World DAB. www.worlddab.org

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Crítica del concepto de “capital social” (Putnam) y propuesta del enfoque de “capital informacional” (Hamelink) para el análisis y el diseño de estrategias de apropiación social de las TIC por parte de los movimientos sociales1 Víctor Manuel Marí Sáez2

RESUMEN: La utilización intensiva del término capital social ha impregnado el campo de la comunicación, afectando, entre otros, a los análisis de los procesos de acceso y apropiación ciudadana de las TIC. Frente al enfoque mayoritario del capital social, proponemos la reflexión en torno a la pertinencia, coherencia y validez que puede tener el uso del enfoque de “capital informacional” propuesto por Cees Hamelink (1999, 2000) y otros autores. Analizar los procesos de apropiación tecnológica desde el enfoque del capital informacional ayuda a superar la estrechez de miras de los discursos y las prácticas sociales centradas en el acceso a las tecnologías, para permitir el análisis y el diseño de propuestas de acción orientadas a la utilización de las TIC para fomentar la articulación y el cambio social.

PALABRAS CLAVE: Capital Social; capital Informacional; apropiación social de las TIC; movimientos sociales; Comunicación para el Cambio Social.

Crítica do conceito de “capital social” (Putnam) e proposta do enfoque de “capital informacional” (Hamelink) para a análise e o desenho de estratégias de apropiaçao social das TIC por parte dos movimentos sociais

1 Este artículo se encuadra en el proyecto del Plan Nacional de I+D+i (2008-2011) “Nuevas Tecnologías de la Información y participación ciudadana. Formas de medicación local y desarrollo comunitario de la ciudadanía digital” (CSO2008-02206/SOCI) dirigido por el Prof. Francisco Sierra Caballero. 2 Profesor de la Universidad de Cádiz (España), en la Facultad de Ciencias Sociales y de la Comunicación. Licenciado en Ciencias de la Información por la Universidad Complutense de Madrid (1993) y Doctor en Periodismo por la Universidad de Sevilla (2009), con la tesis titulada “ Capital informacional y apropiación social de las nuevas tecnologías de la información. Usos sociales de Internet en Jerez de la Frontera” (Cádiz). Miembro del grupo de investigación COMPOLÍTICAS. victor.mari@uca.es

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RESUMO: A utilização intensiva do termo capital social impregnou o campo da comunicação, afetando, entre outros, às análises dos processos de acesso e apropriação cidadã das TIC. Frente ao enfoque majoritário do capital social, propomos a reflexão em torno da pertinência, coerência e validez que pode ter o uso do enfoque de capital “*informacional” proposto por Cees Hamelink (1999, 2000) e outros autores. Analisar os processos de apropriação tecnológica desde o enfoque do capital *informacional ajuda a superar a falta de visão dos discursos e as práticas sociais voltadas ao acesso às tecnologias, para permitir a análise e o planejamento de propostas de ação orientadas à utilização das TIC para fomentar a articulação e a mudança social.

PALAVRAS CHAVE: Capital social; capital informacional; Apropriação social das TIC; movimentos sociais y Comunicação para a Mudança Social

Critique of the concept of "social capital" (Putnam) and the proposal for an approach of "informational capital" (Hamelink) for the analysis and design of ICT social appropriation strategies by social movements.

ABSTRACT: The intensive use of the term social capital has permeated the field of communication affecting, among others, the analyses of the TIC access and civic appropriation processes. In contrast to the majority approach to social capital, we propose a reflection on the relevance, coherence and validity that the use of the "informational capital" approach, as proposed by Cees Hamelink (1999, 2000) and other authors, may have. The analysis of the processes of technological appropriation from the approach of informational capital helps to overcome the social discourses and social practices based on the access to technologies and it enables the analysis and the design of proposals for action aimed at the use of ICT, in order to promote coordination and social change. KEYWORDS: Social capital; informational capital; social appropriation of ICT; social movements; communication for social change.

Critique du concept de "Capital Social" (Putnam) et une proposition du point de vue du "Capital Informationnel" (Hamelink) pour l'analyse et conception de stratégies 2


d'appropriation sociale du TIC de la part des mouvements sociaux.

RESUMÉ:

L'intense utilisation du terme Capital Social a imprégné le champ de la communication, touchant, entre autres, aux analyses des processus d'accès et l'appropriation citadine des TIC. Face à l’approche majoritaire du capital social, nous proposons la réflexion autour de la pertinence, la cohérence et la validité qui peut avoir l'usage du concept "Capital Informationnel" proposé par Cees Hamelink (1999, 2000) et d'autres auteurs. Analyser les processus d'appropriation technologique depuis le point de vue du Capital Informationnel aide à surpasser les étroites mires des discours et des pratiques sociales pointées sur l'accès aux technologies, pour permettre l'analyse et la conception de propositions d'action orientées à l'utilisation des TIC pour promouvoir l'articulation et le changement social. MOTS - CLÉS: Capital Social; Capital Informationnel; appropriation social des TIC; mouvements sociaux; Communication pour le Changement Social.

Capital social y capital informacional en la apropiación tecnológica llevada a cabo por los movimientos sociales.

Este artículo centra su interés en el análisis del marco conceptual utilizado para orientar los procesos de apropiación tecnológica de Internet por parte de los movimientos sociales. Frente a la rápida y, en nuestra opinión, acrítica incorporación de términos al uso como el de “capital social”, remitimos a otros marcos conceptuales en los que se subraya más nítidamente la dimensión sociopolítica y estructural que tienen las estrategias de incorporación tecnológica llevadas a cabo por estos agentes sociales.

El concepto de capital social

Fabien Granjon y Benoit Lelong (2006) publicaron en el año 2006 un trabajo de

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investigación en la revista Reseaux en el que realizaban un estado del arte del concepto de capital social. El punto de partida de su reflexión es la constatación de que el capital social es un concepto “camaleónico”, que se aplica a una serie de realidades sociales muy diferentes: vínculos familiares, organizaciones sociales, relaciones entre la sociedad civil y el Estado, marco político e institucional, normas sociales, etc. En segundo lugar, estos autores rompen con la tendencia a asociar el nacimiento de este concepto con Robert Putnam (1995, 2000), al remitir a los trabajos pioneros de otros investigadores como Pierre Bordieu o James Coleman.

Marlen Huysman y Volker Wulf (2004) conectan las reflexiones sobre capital social con

dos

tradiciones filosóficas divergentes: la tradición marxista y la tradición

comunitarista. La primera está representada, principalmente, por Pierre Bordieu. Para el sociólogo francés, el concepto de capital social está estrechamente unido a otro término con amplias resonancias en su producción científica como es el concepto de campo. El capital social se apoya en una concepción del espacio social entendido como un espacio multidimensional, como una unión abierta de campos relativamente autónomos, es decir, más o menos abiertos y subordinados, en su funcionamiento y en sus transformaciones, al campo de la producción económica. En Le capital social (1980), Bourdieu remite a tres formas básicas de concebir el término “capital”: el capital económico, el capital cultural y el capital social. Los dos últimos tipos de capital son convertibles a capital económico, el primario y más determinante. En esta primera forma de concebir el capital social, éste no se puede desconectar de la posición de los actores ni del acceso que éstos tienen a los recursos.

La segunda tradición a la que remiten Huysman y Wulf es la

comunitarista,

representada principalmente por autores como Amitai Etzioni (1993) y, sobre todo, por Robert Putnam. La comunidad es vista como una unión que promueve el desarrollo armónico de las organizaciones y de la sociedad, como un catalizador normativo y organizacional que sirve para revitalizar la democracia. El capital social, entendido como la confianza y las normas de reciprocidad que surgen de las conexiones entre los individuos y las redes sociales, permiten construir comunidades y generar sentimientos identitarios. Estos lazos, además de tener valor en sí mismos, sirven, entre otras cuestiones, para generar beneficios y crecimiento económico.

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La rapidez con la que el concepto de capital social, especialmente en la versión de Putnam,

se ha introducido en la reflexión académica, no ha ido lo suficientemente

acompañada de la necesaria problematización del término. Así, Stephen Smith y Jessica Kulynich (2002) siembran dudas sobre los beneficios de pensar lo social desde el concepto de capital, esto es, a abrir las puertas de la reflexión teórica del campo social para que entren determinados conceptos del pensamiento económico capitalista. Las consecuencias de asumir acríticamente este concepto llevan a aceptar como naturales e inevitables las relaciones sociales, políticas y económicas que caracterizan al capitalismo, y a minimizar las referencias a los contextos históricos en los que se desenvuelven estas relaciones.

En una línea similar, Viçens Navarro (2002) critica la omisión del contexto social en los usos habituales del concepto (en la tradición comunitarista de Putnam), así como la sustitución de términos como clase, raza y género por el de capital social. Para Navarro, la primera observación que se deduce de la lectura de los trabajos de Putnam es la ausencia del concepto de poder y del análisis del contexto que configuran las políticas públicas. Ha adoptado el lenguaje de la economía clásica como consecuencia del triunfo del capitalismo, lo que cierra el debate sobre el tipo de sistema económico y social deseado, sustituyéndolo por otro debate que se centra únicamente en la gestión de lo existente.

Finalmente, un tercer análisis crítico del capital social de Putnam, elaborado por John Harris (1997), considera que la existencia de redes sociales y de normas que favorezcan el intercambio económico no garantiza que éstas beneficien igualmente a la democracia. Lo bueno para los mercados no tiene por qué ser también bueno para la democracia. Además, en función del concepto de capital social del que se parta,

es posible que los proyectos

orientados a incrementar este capital terminen aumentando las desigualdades sociales en lugar de reducirlas.

Capital social, TIC y capital informacional

En la literatura académica sobre la relación entre capital social y uso de las TIC asistimos a una especie de actualización de los viejos debates de Umberto Eco entre los 5


apocalípticos y los integrados. El uso intensivo de las TIC, ¿une más a los sujetos sociales o, por el contrario, les separa más? ¿Ayuda a la participación social o aísla a las personas en burbujas de cristal? ¿Sirven las TIC para el cambio social o ayudan a mantener las desigualdades existentes?

Para Atton (2002), el uso intensivo de Internet por parte de los movimientos sociales puede conducir al boom o al doom. Puede llevar a la materialización de las utopías tecnológicas de un mundo igualitario o, por el contrario, en Internet se pueden reproducir los desequilibrios de poder que existen ya en la realidad social. Para Frissen (2003), las TIC pueden aumentar el compromiso cívico o, por el contrario, pueden conducirnos hacia procesos de balcanización de la sociedad. En otro lugar (Marí, 2005), hemos planteado la posibilidad de que Internet sirva para enredarse (para la construcción de redes para el cambio social) o para liarse (para aumentar la fragmentación social y la dispersión respecto a las estrategias de cambio social).

Anabel Quan-Haase y Barry Wellman (2004) se preguntan si el uso de Internet incrementa, disminuye o complementa el capital social existente. Sus trabajos empíricos indican que el uso de Internet complementa el capital en red, extendiendo los niveles existentes en el cara a cara o en el contacto telefónico. Los usuarios intensivos de Internet no lo utilizan como sustituto de las relaciones cara a cara. Además, llegan a la conclusión de que Internet se usa, especialmente, para mantener los vínculos con los amigos, especialmente entre aquellos que están social y geográficamente dispersos. Las personas que más utilizan Internet y que realizan más actividades políticas online son, a su vez, quienes más están comprometidos en organizaciones y actividades políticas offline. A similares conclusiones llegan Granjon y Lelong (2006), para quienes el papel de las TIC, en relación con el capital social, pasa principalmente por concebirlas como un estrato sociotécnico complementario que permite mantener las relaciones sociales ya existentes en los diversos espacios sociales.

Si se analiza el uso de Internet por parte de los movimientos sociales, una primera constatación es que se ha producido una apropiación temprana y rápida de esta herramienta de comunicación. A diferencia de otras tecnologías – como es el caso de la radio o de la televisión – que tardaron tiempo en ser incorporadas a las prácticas comunicativas de estas 6


entidades, Internet ha estado presente desde muy pronto entre los movimientos sociales. Surge la cuestión de si Internet constituye una esfera pública virtual sustitutiva de los cauces tradicionales de participación cívica y política en la sociedad. Si nos atenemos al contexto europeo y español, podemos constatar que las nuevas generaciones de jóvenes demuestran un distanciamiento respecto a la participación sociopolítica clásica.

Asistimos, en los últimos tiempos, a unos procesos de cambio en cuanto a las formas de participación social de las generaciones de jóvenes. Para Pippa Norris (2002) se produce, sin embargo, una reinvención de la participación social y política. El impulso democrático de las sociedades avanzadas vuelve a alzar el vuelo y, como el Ave Fénix, pone en cuestión los análisis que anunciaban el declive y colapso de la participación social. Para este autor, el compromiso cívico actual complementa al compromiso “clásico”, a varios niveles:

Surgen nuevos actores sociales en el actual contexto sociopolítico.

Se ponen en juego nuevos repertorios de herramientas para la acción política.

Los sectores de la población (targets) que participan en estas movilizaciones también son novedosos.

Apropiación tecnológica y capital informacional

A la hora de referirnos al uso de Internet por parte de las organizaciones solidarias preferimos hablar de apropiación, por ser esta la lógica específica en la que mejor se expresan las relaciones de los movimientos sociales con las TIC (Sénecal, 1986) y por las sugerentes resonancias que tiene este término en la investigación comunicativa. Para Michel de Certeau (1990) el proceso de apropiación tecnológica y comunicativa está estrechamente vinculado a la vida cotidiana de los sectores populares, a sus “guerrillas de comunicación”, en las que ponen en juego tácticas de resistencia y subversión; para él, en la apropiación hay un acto popular de transformación del sentido y de la experiencia. Por otra parte, para Martín Barbero 7


(1987) el proceso de comunicación y de massmediación tiene que ser releído desde el lugar de la recepción, como una vía para que la comunicación salga del paradigma de la transmisión y pueda ser comprendida desde una clave cultural.

La palabra apropiación apunta a la capacidad de hacer propio y de incorporar aquello que no se tiene (la tecnología) a partir de lo que ya se sabe y se tiene (cosmovisiones, imaginarios, lógicas de funcionamiento y organización). Los movimientos sociales se apropian de la Red a partir de sus objetivos de resistencia y transformación del proceso de globalización capitalista. Su proyecto alternativo de sociedad marca, de alguna manera, los usos que hacen de las herramientas comunicativas. Además, los movimientos sociales se apropian de la Red desde unas estructuras organizativas que buscan la horizontalidad y la participación de sus miembros. Se puede decir que, en los movimientos sociales, la lógica de la red antecede a la red tecnológica de Internet. Aquellos que se habían dotado de organizaciones flexibles, horizontales e interconectadas unas con otras, son las que mejor se están aprovechando de los nuevos medios.

Como señala Carlos del Valle (2006) lo fundamental no es la tecnología en sí misma, sino la forma en que es utilizada como modo de producción de los sujetos y de las subjetividades. Si se tiene en cuenta la capacidad transformadora de quienes están al otro lado de la Brecha Digital, o si estos sectores reproducen las lógicas de control y de reproducción social. Por lo tanto, para hablar de los diversos niveles de complejidad en la apropiación social de las TIC, creemos que es más pertinente utilizar el concepto de capital informacional (Cees Hamelink, 1999, 2000), que comprende: “La capacidad financiera para pagar la utilización de redes electrónicas y servicios de información, la habilidad técnica para manejar las infraestructuras de estas redes, la capacidad intelectual para filtrar y evaluar la información, como también la motivación activa para buscar información y la habilidad para aplicar la información a situaciones sociales” (Hamelink,2000:91).

A partir del concepto de capital informacional se pueden establecer distintos niveles en el proceso de apropiación social de las TIC: 8


1. En primer lugar estaría el acceso a las herramientas, es decir, la dotación de las infraestructuras necesarias (energía eléctrica, líneas telefónicas, ordenadores, software). En este sentido, no podemos obviar que, para millones de personas del planeta, aún no es una realidad cotidiana el acceso a la electricidad o a unas líneas telefónicas con la suficiente calidad y estabilidad.

2. Un segundo nivel de apropiación implica la formación necesaria para manejar los equipos y los programas informáticos. Sería el nivel instrumental de la formación tecnológica, que asegura el manejo de los dispositivos tecnológicos. Muchos programas de alfabetización digital impulsados a nivel institucional finalizan en este nivel, claramente insuficiente. Como sugiere Alfonso Gutiérrez (2003), el ordenador es la parte visible de un proceso de formación en el que dimensiones fundamentales de la alfabetización digital suelen ser obviadas, invisibilizadas. Las nuevas tecnologías van acompañadas de unas visiones del mundo y de unos modelos de comunicación, de aprendizaje y de relación, que necesitan ser explicitados y debatidos, con el fin de verificar su validez para el cambio social que impulsan los movimientos sociales.

3. Hace falta, por tanto, dar el salto a un tercer nivel de apropiación de las TIC, que permita:

- Situar el acceso a las TIC en un marco de reflexión más amplio. La comunicación y el acceso tecnológico debe relacionarse con los procesos de cambio social, verdadero eje vertebrador de las políticas de comunicación de los movimientos sociales. Por utilizar el lema del movimiento altermundialista, la búsqueda de “otra comunicación posible” debe hacerse en el marco de los procesos globales de cambio, en las dinámicas que conducen a la construcción de “otro mundo posible”. En este mismo sentido, Granjon y Lelong (2006) señalan que las diferentes maneras mediante las que los agentes sociales se apropian de las tecnologías digitales y las integran en su cotidianidad se encuadran en lógicas sociales colectivas. 9


- Descubrir las posibilidades que ofrecen las tecnologías de la información para el trabajo en red. La reflexión en materia de comunicación tiene que ir unida a la reflexión sobre los modelos organizativos de los movimientos sociales. Se produce un mayor aprovechamiento de las TIC cuando las organizaciones sociales cuentan con modelos de organización en red: horizontales, participativos y flexibles. Uno de los miembros fundadores de los centros Indymedia en el contexto español, Jeff Juris (2004), refuerza la idea de que las tecnologías de la información pueden servir para representar físicamente mundos utópicos alternativos, basados en principios de la red como la coordinación descentralizada, la participación de base, la toma de decisiones por consenso y el intercambio de información, ideas y recursos abiertos y libres. Estas conexiones en red se pueden llevar a cabo, según Geert Lovink (2002), al interior de un movimiento social (como mecanismos de comunicación interna) y al exterior del movimiento, entre él y otros grupos sociales. En cualquier caso, ambas formas remitirían a las mejores posibilidades que ofrece Internet para los activistas.

- Finalmente, articular mecanismos para el procesamiento y aprovechamiento de la información que fluye por la Red, de tal modo que se puedan aplicar a las situaciones reales y concretas de cambio social en las que se trabaja.

En este último nivel del capital informacional se sitúan las prácticas más innovadoras de los movimientos sociales en relación con los usos y procesos de apropiación de las TIC. Contemplar la apropiación tecnológica desde esta fase permite superar el simple nivel de intercambio de información para entrar en una dimensión en la que se produce la construcción colectiva del conocimiento mediante las tecnologías digitales. Frissen (2003) hace referencia a estos dos modelos contrapuestos de apropiación bajo el nombre de enfoque instrumental y enfoque orgánico. El primero de ellos implica el uso de Internet como herramienta, en función del trabajo de la organización. Este uso no tiene un especial impacto en la entidad, ni consigue transformar su modo de funcionar. Por el contrario, el enfoque orgánico lleva a utilizar Internet como una plataforma desde la que iniciar nuevas actividades y nuevas relaciones. En este caso sí se produce una transformación significativa en los modos de organización y de 10


funcionamiento, que pasan a regirse por la lógica de la red.

La Red puede ser utilizada desde unas lógicas afines a los movimientos sociales orientados al cambio social, para la puesta en marcha de procesos de fortalecimiento organizativo, de reflexión y de construcción colectiva de conocimiento, elementos que necesariamente conducen a la generación de praxis transformadoras. Como apunta Sierra Caballero (2006), la apropiación tecnológica de las TIC por parte de los movimientos sociales tiene el reto de pasar por cuestiones como la inteligencia colectiva y la cultura del aprendizaje activo, por la definición de nuevas estrategias de autoobservación y construcción social que permitan la implementación de solidaridades creativas.

La apropiación social de las TIC desde las claves que aporta el concepto de capital informacional permite resituar la experiencia acumulada por los medios comunitarios en el nuevo contexto de la Sociedad Global de la Información. Esta es la vía que abre la línea de investigación que se encuadra bajo el término de Informática Comunitaria. Para Michael Gurnstein (2000), uno de los impulsores de este enfoque, el objetivo final de la Informática Comunitaria (Community Informatics) es el de superar la Brecha Digital, y permitir a los sectores excluidos de la sociedad la puesta en marcha de procesos que conduzcan al desarrollo económico, a la justicia social y el empoderamiento político a través del uso de Internet.

Retomando este enfoque, José Sánchez Lugo (2007) apunta que, en la Informática Comunitaria, convergen las teorías, experiencias, prácticas y concepciones generadas por los educadores populares, los teóricos críticos y los activistas comunitarios quienes, a través de su práctica comprometida, luchan por abrir un espacio democrático desde el cual abordar la integración tecnológica en las comunidades: “La concepción socio-técnica que implica la práctica de la Informática Comunitaria (IC) orienta la participación activa de los sectores populares. Las estrategias socio-técnicas permiten elaborar proyectos e iniciativas para habilitar individuos y comunidades en el proceso de apropiarse de las tecnologías de la información, para que éstas sirvan para su desarrollo y bienestar. Entendemos la IC como un acercamiento estructurado para apoyar 11

el


desarrollo y la autogestión de las comunidades a través de la integración de las TIC” (Sánchez Lugo, 2007:4).

La puesta en marcha de la lógica de la apropiación social, y la comprensión de las tecnologías a partir de categorías como la de capital informacional, más coherentes con los objetivos y estilos de los movimientos sociales,

permite

el impulso de la línea de la

Informática Comunitaria. Para Sierra Caballero (2008), este enfoque prioriza tres líneas principales de actuación:

1. El acceso a las redes y a los sistemas de comunicaciones. Las comunidades deben identificar opciones y recursos para generar, desde su propia especificidad, formas creativas de apropiación de las nuevas tecnologías, produciendo la información y el conocimiento necesarios para autodeterminar el proceso de desarrollo.

2. La formación de competencias comunicativas. El acceso requiere además la adquisición de una serie de competencias y acciones de capacitación para garantizar un uso inteligente y productivo de los nuevos recursos culturales puestos en juego.

3. La cooperación para el desarrollo local. Finalmente, la perspectiva ecológica de la Informática Comunitaria plantea un proceso de intervención que promueva el lenguaje de los vínculos, facilitando la cooperación intermodal y polivalente entre diferentes actores, agentes e instituciones del ámbito local con mediación de las nuevas tecnologías a fin de contribuir positivamente al desarrollo local.

El énfasis que pone la Informática Comunitaria en el empoderamiento requiere, sin embargo, de una matización que permita orientar las estrategias de acceso y apropiación tecnológica en un marco de más amplio alcance, que contemplen el largo plazo y que tengan 12


más en cuenta la dimensión macro política de la Comunicación para el Desarrollo. Como sugiere Robert White (2004), el empoderamiento puede ser la respuesta si se contempla la resolución inmediata de una situación, pero hace falta ver cómo funciona esta estrategia en un periodo más largo de tiempo. Si el empoderamiento se puede contextualizar en el marco teórico de los derechos humanos y de la cultura del diálogo.

Por otro lado, las nuevas aportaciones de la Informática Comunitaria multiplicarán su potencial innovador si se tiene en cuenta todo el aprendizaje acumulado en los periodos anteriores de los medios comunitarios (radios comunitarios y televisiones comunitarias, principalmente). En esta línea, Alfonso Gumucio (2004) propone como una condición esencial de la incorporación de las TIC en las estrategias de desarrollo la cuestión de la convergencia con otros medios comunitarios. Para él, las tecnologías basadas en Internet tendrán que aprender de la experiencia de cincuenta años de la radio comunitaria, si pretenden llegar a ser la herramienta para el cambio social que se espera. Es necesario, por tanto, una convergencia entre los diversos medios comunicativos y tecnológicos que impulsan el desarrollo local (radios, televisiones, telecentros, etc), así como la convergencia entre las diversas iniciativas y proyectos de desarrollo y participación social que se impulsan en un territorio determinado

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A CIÊNCIA COMO MERCADORIA Rodolfo C.M. XAVIER1 Rubenildo O. COSTA2 Resumo: Analisa-se a informação científica como bem econômico dentro do mercado do conhecimento científico, dominado pelas novas tecnologias da informação e comunicação, demonstrando a inaplicação da teoria econômica neoclássica, com relação ao valor de uso e o valor de troca da Ciência. Com isso, apresentam-se características que tentam responder o porquê da informação científica custar tão caro. Palavras chave: indústria da informação científica; economia política do conhecimento científico; produção e comunicação científica. Abstract: Analyzes the scientific information as well in the economic market of current scientific knowledge, dominated by new information and communication technologies, demonstrating the disapplication of neoclassical economic theory, with the value in use and exchange value of science. With that, are features that attempt to answer why the cost so expensive scientific information. Keywords: scientific information industry, political economy of scientific knowledge, scientific production and communication Resumen: Se investiga el bien científico y económico en el mercado del conocimiento, dominado por las nuevas tecnologías de información y comunicación, lo que demuestra la inaplicabilidad de la teoría económica neoclásica, sobre el valor de uso y valor de cambio de la ciencia. Con ello, son características que intentam responder a por qué el costo de información científica es tan caro. Palabras clave: industria de la información científica, economía política de los conocimientos científicos, la producción y la comunicación de la Ciencia.

1 - Introdução Objetiva-se analisar a informação científica como bem dentro do mercado do conhecimento. Para tanto, recorre-se a uma parábola platônica a seguir, a fim de desenvolver uma analogia com o tema em questão. No capítulo 7 da República de Platão, Sócrates inicia sua narrativa incitando seu interlocutor – Glauco – a acompanhá-lo por uma alegoria: 1

Graduado em Filosofia com Licenciatura Plena em Filosofia pela Unicamp; Graduado em Economia e Mestrado em Ciência da Informação, PUCCampinas. e-mail: rodolfoxavier@hotmail.com 2 Graduado e mestre em Ciência da Informação com habilitação em Biblioteconomia, PUCCampinas. Colaborador técnico na Biblioteca Central César Lattes da Unicamp. e-mail: rubcosta@unicamp.br


Sócrates: agora imagina a maneira como segue o estado da nossa natureza relativamente à instrução e à ignorância. Imagina homens numa morada subterrânea, em forma de caverna, com uma entrada aberta à luz; esses homens estão aí desde a infância, de pernas e pescoço acorrentados, de modo que não podem mexer-se nem ver senão o que está diante deles, pois as correntes os impedem de voltar à cabeça; a luz chega-lhes de uma fogueira acesa numa colina que se ergue por detrás deles; entre o fogo e os prisioneiros passa uma estrada ascendente. Imagina que ao longo dessa estrada que os apresentadores de títeres armam diante de si e por cima das quais exibem as suas maravilhas. Glauco: estou vendo. Sócrates: imagina agora, ao longo desse pequeno muro, homens que transportam objetos de toda espécie, que o transpõem: estatuetas de homens e animais, de pedra, madeira e toda espécie de matéria; naturalmente, entre esses transportadores, uns falam e outros seguem em silêncio. Glauco: um quadro estranho e estranhos prisioneiros. Sócrates: assemelham-se a nós. E, para começar, achas que, numa tal condição, eles tenham alguma vez visto, de si mesmos e dos seus companheiros, mais do que as sombras projetadas pelo fogo na parede da caverna que lhes fica defronte? Glauco: Como, se são obrigados a ficar de cabeça imóvel durante toda a vida? Sócrates: E com as coisas que desfilam? Não se passa o mesmo? Glauco: sem dúvida. Sócrates: portanto, se pudessem se comunicar uns com os outros, não achas que tomariam por objetos reais as sombras que veriam? Glauco: é bem possível. ” (PLATÃO, p. 225 e 226, 1997).

O trecho explicitado acima tem para Sócrates uma finalidade didática. Ele esta tentando fazer uma analogia entre a ignorância e fato de estarmos dentro de uma caverna, onde não é possível conhecer efetivamente o mundo verdadeiro. Nesse sentido, também aproveitando dessa parábola platônica, enfim, acredita-se estarmos numa caverna vendo apenas as sombras dos objetos quando falamos de ciência e da sua relação com o modo de produção capitalista. Sentimo-nos como Platão que tem de lutar apenas com os instrumentos idôneos que a ciência me permite, ou seja, a experiência e a razão, enquanto nosso adversário, a Indústria da Ciência, pode se valer do grande poder de persuasão que possui, do seu grande poder de divulgação e difusão das suas mensagens. A República é um grande exemplo da luta de um filósofo contra um grande formador de opinião na época, Homero, o qual era base da religião grega aceita por


quase toda a sociedade, menos por alguns e por Platão. Assim também nos vemos contra um grande Golias chamado Indústria da Ciência, colocamos uma pequena pedra numa atiradeira, temos uma mísera chance de conseguir despertar as pessoas da caverna onde vivem e arrancá-las para onde brilha o sol. O objetivo deste trabalho é apresentar Ciência como mercadoria, distinguindo-se dos demais bens e serviços por suas relações com a informação, com os aspectos políticos, exacerbados pela própria característica intrínseca da informação, e aspectos ligados à tecnologia. Constantemente essa mercadoria cria, modifica ou dissipa consciências, o que a torna extremamente instável e dinâmica tanto às idéias que divulga quanto às inovações tecnológicas que disputam espaço nesse mercado. Especificamente no mercado das ciências, dada à rapidez das transformações em curso, de instabilidade constante, tanto da inserção de novas tecnologias de informação e comunicação quanto de inovações científicas, criam-se condições favoráveis para a entrada de novos participantes na produção do conhecimento, pois reduz as barreiras à entrada, permitindo assim que o cartel da distribuição do conhecimento científico pelos provedores on-line seja contestado3, o que implica em reestruturação de relações de poder entre os grandes oligopólios. Nesse sentido, Bolaño aponta que: "Se trata-se de uma situação de introduzir novas tecnologias e de mudança estrutural, os mercados se tornariam mais contestáveis, ou seja, quem é dominante num determinado mercado pode enfrentar a concorrência que esta por vir, que é sempre possível" (BOLÃNO, p. 78, 2003). A idéia de que o conhecimento científico poderá se tornar mais acessível ao consumidor a partir da entrada de novas tecnologias de informação como Internet, MP3, programas de compartilhamento de arquivo pode ser um grande erro, na verdade, não é exclusivamente pelo fator tecnológico que se promove à inclusão social e o acesso às Ciências, mas também fatores econômicos, políticos, de regulamentação jurídica dos mercados de radiodifusão e telecomunicações, culturais, institucionais são necessários nesse processo de integração da sociedade. Cabe salientar que estamos num campo muito novo e inexplorado do conhecimento humano. Na verdade, existem ainda pífias formulações teóricas e poucos estudos sobre a natureza dos bens científicos, além de como a ciência armazenada sobre outros tipos de suportes materiais afetam nossa sociedade. A hipótese sobre a relação entre a Indústria da Ciência e o conhecimento científico é: a teoria econômica neoclássica não se aplica sobre vários aspectos na análise desse mercado, ou seja, a lei dos rendimentos marginais decrescentes é falha, os bens científicos não entram na teoria dos bens tangíveis e de primeira necessidade.

3

São os seguintes os requisitos para a existência de um mercado perfeitamente contestável: ausência de barreiras à entrada – não há diferenciais de custos entre empresas entrantes e estabelecidas porque ambas têm acesso aos mesmos fatores de produção e a mesma habilidade de servir mercados (qualidade, marcas, etc.), ausência de barreiras à saída – custos irrecuperáveis são nulos, isto é, o capital empregado pode ser inteiramente recuperado seja porque pode ser revendido sem perdas, transferido para outra indústria ou ainda porque foi alugado ou subcontratado.” (KUPFER, HASENCLEVER, 2002, p. 125 e 126).


2 - O mercado da produção e comunicação da ciência

Antes de iniciar a reflexão sobre a inaplicação da teoria econômica neoclássica no mercado do conhecimento científico atual, faz-se necessária uma breve discussão acerca da produção e comunicação da ciência e suas implicações econômicas, como forma de fundamentar o tema “ciência”. Sendo assim, os processos de produção e comunicação da ciência envolvem, entre outros, as sociedades científicas, editores e bibliotecas. Assim, tais processos já estão envolvidos quando um cientista publica seu resultado de pesquisa, pois se utilizou de informações já publicadas e comunicadas para publicar e comunicar a sua própria pesquisa, formando um espiral do conhecimento científico, ou seja, ele nunca está sozinho na produção do conhecimento. No que tange a produção do conhecimento, Ziman (1979) adverte que a ciência não é apenas conhecimento publicado, sendo seu objetivo “alcançar um consenso de opinião racional que abranja o maior vasto campo possível” (ZIMAN, 1979, p. 24). De maneira mais específica e recente, Latour (2000) corrobora tais idéias ao afirmar que o pesquisador, ao desenvolver uma pesquisa, propõe um enunciado científico, que poderá ser usado ou não por outros cientistas. Um enunciado científico em construção se modifica em cada uma de suas traduções/translações, podendo se tornar um fato ou dissolver-se em ficção. Isso não depende do conteúdo que seu autor lhe conferiu, mas sim do uso que os outros fazem dele. Se for aceito, criticado, usado, modificado e articulado com outros enunciados científicos, evoluirá e se tornará um fato. Se for esquecido, se tornará uma ficção. Assim, a ciência, por meio da pesquisa científica metódica e sistemática, é construída coletivamente. Por sua vez, a comunicação científica tem um papel fundamental, uma vez que cria mecanismos que fazem girar o ciclo e\ou fluxo do conhecimento científico: produção, comunicação e uso. Apesar de a Royal Society de Londres ter sido importante para a institucionalização da comunicação científica, preocupando-se com a divulgação internacional de pesquisas e a criação de um dos primeiros periódicos científicos no século XVII, foi somente na década de 1960 que estudos sobre o tema foram estimulados por trabalhos de Merton, Menzel e Solla Price (MUELLER, 1994). Inicialmente, esses autores estudaram o aspecto informal da comunicação científica, como, por exemplo, os colégios invisíveis, que significa “um grupo de pesquisadores que está, em um dado momento, trabalhando em torno de um mesmo problema ou área de pesquisa e se comunica sobre o andamento das pesquisas” (MUELLER, 1994, p. 310). Entretanto, posteriormente Garvey (1979) investigou uma forma de representar estruturalmente a comunicação científica tanto formal quanto informal. Para ele o termo comunicação científica inclui as atividades associadas com a produção, disseminação e uso da informação, desde o momento


que o cientista teve uma idéia para pesquisar até a hora que os resultados de seu trabalho são aceitos como parte integrante do conhecimento científico. Desta forma, existem dois tipos de comunicação que se complementam: informal e formal. O primeiro está ligado à conversas entre cientistas, como os colégios invisíveis, seminários e congressos. Já o segundo está ligado à publicação dos resultados de pesquisas em periódicos e livros. O periódico científico é considerado o principal veículo da comunicação da ciência. Suas funções desempenhadas, segundo Meadows (1999), são:

1. Canal de divulgação da pesquisa; 2. Estabelecimento da ciência certifica, ou seja, que recebeu o aval da comunidade científica ou avaliação dos pares; 3. Arquivo ou memória científica; e 4. Registro da autoria da descoberta científica.

Nesse contexto, considera-se que as funções de “ciência certificada” e “memória” são os pontos chave para o mercado do conhecimento científico, que controla o conhecimento científico internacional. Como principal exemplo para a função de ciência certificada, pode-se constatar a pressão exercida pelas agências de fomento e universidades sobre os pesquisadores para publicarem seus artigos nos principais periódicos internacionais. A problemática se revela no fato de que tais periódicos são de origem privada, com altas assinaturas, o que torna difícil o seu acesso posterior. A reclamação dos autores é que eles estão efetivamente doando seus trabalhos de graça às editoras, ao passo que quando tentam recuperá-los, terão de pagar caro. Meadows (1999) exemplifica que o preso médio de periódicos da área de Química\Física em 1982 era de US$ 177,94, já em 1990 saltou para US$ 412,66. Como principal exemplo para a função memória, pode-se constatar a dificuldade das bibliotecas universitárias em manter e oferecer acesso a periódicos impressos. Ocorre que o acervo impresso está sufocado com tantos títulos. A principal causa é a explosão exponencial da informação científica causada pela continua especialização da ciência, com o aparecimento de novas disciplinas; e a efemeridade da literatura científica, por exemplo, na área de Física, segundo Meadows (1999), a idade média de citações é de 4,8 anos – logo, pouco se é usado da literatura antiga, ocorrendo num grande acúmulo de exemplares nos acervos das bibliotecas. Por outro lado, as bibliotecas se tornam reféns de altas assinaturas de periódicos impressos e também eletrônicos, pois se torna necessário as duas assinaturas, impressa e eletrônica, pois tem-se, obrigatoriamente, que manter a memória na forma impressa, apesar de não ser, praticamente, utilizada pelos usuários, que preferem recuperar o artigo de forma eletrônica.


Essas foram algumas fundamentações e implicações introdutórias para embasar a seção seguinte

3 - O produto científico como bem econômico A mercadoria científica passa por uma cadeia produtiva tanto quanto outra mercadoria qualquer. Sua função de produção exige variáveis independentes como os recursos humanos, os recursos materiais, os recursos de capital e os recursos financeiros, todos eles juntos e combinados produzirão a mercadoria cultural. Cada um deles gerará um respectivo custo na produção, e a melhor combinação desses recursos é aquela que minimiza os custos da mercadoria e do estoque, o que implica dizer que esses bens devem estar mais em circulação do que armazenados para realizarem o lucro. Entre a necessidade da informação científica e sua efetiva satisfação desenvolveu-se a Indústria da Ciência, a qual utiliza de várias etapas de transformação de informação científica até a consumação do produto final, são elas: juntar as matérias-primas materiais e intelectuais, usar os equipamentos, máquinas e ferramentas de produção, difundir o produto acabado através dos meios de comunicação e de transporte, disponibilizar o produto nos circuitos comerciais de distribuição. Cada uma dessas fases requer uma mão de obra especializada, além de muito capital, o que mostra que essa atividade econômica assim como qualquer atividade tradicional exige matéria-prima, trabalho e capital, seja de origem privada ou pública. As formas de organização desse mercado podem variar, desde um monopólio até um oligopólio, sejam estes públicos ou privados, dependendo da regulamentação governamental exercida no setor. Porém, se por um lado a Indústria da Ciência tem pontos semelhantes com as demais indústrias, por outro lado seu produto carrega peculiaridades muito discrepantes com relação aos produtos tangíveis comuns, provocando uma sensível repercussão sobre todo o processo de produção e distribuição das outras empresas. As tecnologias de informação e de comunicação, colocadas cada vez mais a serviço do conhecimento científico, tem o objetivo principal de economizar o tempo e em segundo lugar de economizar mão-de-obra. Mas como esse conhecimento é perecível, inversões elevadíssimas devem ser feitas para aproveitar o frescor da novidade, além de profissionais de altíssima especialização em cada função, o que torna esse negócio extremamente dispendioso, caro. Nesse contexto, as relações entre os donos dos meios de produção, ou seja, os empresários e os assalariados se tornam delicadas, uma vez que a necessidade de produzir, reproduzir e distribuir a ciência é cada vez numa velocidade maior, promovendo assim uma maior apropriação do valor colocado da mão-de-obra na reprodução e distribuição. Mas em que medida a ciência pode ser tratada como um bem?


Qualquer coisa que satisfaça uma necessidade humana e tenha utilidade se configura como um bem. Para que ele seja econômico, porém, deve ser escasso e exigir trabalho humano para ser elaborado. É um bem não durável, tanto mais as novas tecnologias avançam; não é essencial do ponto de vista da sobrevivência humana, mas dirige a conduta humana, viabilizando a mudança do comportamento social. A Ciência como mercadoria, com preço, custo e valor, possui uma série de características que são peculiares enquanto bem: é simbólica; tem qualidades de um bem público apesar de vendida por agentes privados; não se deteriora com o consumo; o consumidor não se apropria exclusivamente da cultura no ato de satisfação das suas necessidades. Ademais, a efetivação dessas qualidades da Ciência só se realiza para um consumidor preparado, o qual terá que possuir não só as capacidades perceptivas e cognitivas normais de todo o ser humano saudável, mas também fazer um uso eficaz dessas potencialidades. Não existe uma unidade de medida padrão para o conhecimento científico, e ele não é uma mercadoria homogênea, o que quebra um dos pressupostos básicos da concorrência perfeita, estrutura de mercado esta que não pode ser referência na investigação do mercado do conhecimento. O preço da informação científica não tem vínculo explicativo com o seu custo, apesar de seguir, como qualquer mercadoria, a regra primordial de que o preço sempre deverá ser maior que o custo. Aquele, por sua vez, devido aos meios de comunicação e transportes, é majorado não apenas porque os custos dessas atividades compõem o preço final, mas é pela representação linguística, indexação e ampliação de mercados que os preços se elevam. Não obstante, preço e valor são distintos no mercado do conhecimento: enquanto o preço é a quantidade de moeda paga para viabilizar uma transação de troca entre duas mercadorias como dinheiro e informação científica, o segundo é pressuposto necessário à própria produção e troca do bem, sem o qual não se forma o preço. O valor da mercadoria científica industrializada está intrinsecamente associado à utilidade atribuída a essa mercadoria, sendo que, para isso, deverá satisfazer algumas condições: preferências pessoais pelos bens científicos com relação a outros bens, capacidade cognitiva para entender e assim comparar os bens, compreensão dos códigos simbólicos que fazem o bem acessível, instrução e educação prévia que permite a assimilação do bem. Um primeiro passo, muito importante da revisão do valor de uso e valor de troca, é reconhecer os argumentos e conceitos fundadores dos dois pólos do debate da Economia Política (clássicos e neoclássicos, de um lado, e Marx, de outro). Mais especificamente devemos tomar emprestados desses autores os conceitos que vão nos permitir discutir a questão atual e específica da determinação do valor da informação dos bens científicos do capitalismo contemporâneo. No caso dos marxistas, o valor da mercadoria é determinado pela quantidade de trabalho medida pelo tempo despendido para sua produção, o que gera seu valor de uso, a saber, a utilidade ou grau de prazer e satisfação dado pelos consumidores, no caso pesquisadores e cientistas.


Em “Princípios de Economia Política e Tributação” David Ricardo declara: “Há alguns bens cujo valor é determinado unicamente pela sua escassez. A quantidade de tais bens não pode ser aumentada pelo trabalho e, portanto, não se pode reduzir o seu valor aumentando a oferta. Pertencem a esta classe estátuas e pinturas célebres, moedas e livros raros e vinhos de qualidade que só se podem fazer com castas criadas em solos especiais e disponíveis em pequena quantidade. O seu valor é absolutamente independente da quantidade de trabalho necessária para produzi-los, mas, em contrapartida, varia com as alterações na situação econômica e nos gostos dos que os desejam possuir.”. Logo depois de esclarecer essa concepção, Ricardo ressalva que alguns artigos de luxo e a arte concretizada em determinados objetos exclusivos – estátuas e pinturas- são exceções à teoria do valor-trabalho, valida para quase todas as mercadorias. Ele parece admitir que nesse caso o valor fosse dado subjetivamente, através do estado ou nível econômico do consumidor ou de um grupo de consumidores e em função dos gostos de cada pessoa, que tais mercadorias variam de preços conforme o grau de escassez e abundância, como será admitido pelos marginalistas neoclássicos em sua teoria geral do valor-utilidade. Mas David Ricardo não acredita que a utilidade seja colocada como medida de valor. Aproveitando a teoria de Adam Smith sobre a distinção entre valor de uso e valor de troca, Ricardo interpreta Smith como se ele tivesse colocado a impossibilidade da utilidade mensurar o valor de troca fundamentado no trabalho humano. Assim enfatiza Adam Smith: “Aquilo que tem elevado valor de uso tem, freqüentemente, pouco ou nenhum valor de troca e, pelo contrário, aquilo que tem elevado valor de troca tem pouco ou nenhum valor de uso.” (Smith, 1993:117) Contudo, admite a indispensabilidade do valor do uso sem o qual não existiria motivo para a troca ou o valor da troca, ressalvando que tal contradição entre as duas referências de valor impede que tomemos uma das estimativas de valor para mensurar à outra. Destarte, Ricardo não se aprofundou muito no tema, tratando de colocar o problema no âmbito da quase totalidade das mercadorias, nos deixando um caminho árduo a ser percorrido, o qual nem ele mesmo mostra acreditar possível. O duplo caminho aberto por Adam Smith e a contradição colocada entre o diamante e a água não foram solucionados pelos neoclássicos marginalistas. Ao invés disso, preferiram apenas rejeitar incondicionalmente a trabalho como uma unidade de medida constante que pudesse ser a medida do valor e de ao contrário de David Ricardo e Marx, atribuir o valor de troca a um cálculo utilitarista feito pelos consumidores e produtores no mercado. Assim, os consumidores estariam interessados em alocar suas rendas maximizando as utilidades marginais finais auferidas dos bens e serviços de modo racional. Por outro lado, os produtos racionalmente mensuravam seus sacrifícios, riscos e retornos, tentando ampliar seus lucros do modo mais rápido que pudessem. Não é verdade que o preço de venda de um produto no mercado seja determinado apenas pela utilidade estabelecida pelos consumidores, a oferta influencia o preço de venda na própria negociação que faz no mercado e também na própria produção da mercadoria. Mas Jevons, insaciável por derrubar a teoria do valor-trabalho, não quis se dedicar ao problema da produção, colocando todo peso da formação dos preços na Economia Capitalista apenas em cima da demanda.


Por coincidência nosso problema parece seguir a mesma direção, por ser impossível mensurar o trabalho através do tempo gasto em uma obra de ciência, não se podem impor critérios como o de produtividade e nem o de quantidade de trabalho despendida para valorar esse bem. Resta – nos a utilidade, mas será essa teoria feita para a maioria das mercadorias é condizente e adequada para responder ao preço de venda ou de equilíbrio desse objeto? A nosso ver a teoria marginalista da utilidade também esta atrelada ao que comumente ou normalmente ocorre, e seus gráficos dizem respeito à maior parte dos produtos. Contudo, usando do aparato analítico dessa teoria, chegamos a conclusões diferentes a respeito das quantidades marginais de produto e utilidade relacionadas, a lei de rendimentos decrescentes e a abundância e escassez da posse. Aplicando a derivada nessa questão e supondo que tal mensuração da utilidade tem ser dada pelo comportamento, pois é ininteligível a nós a quantidade de satisfação adquirida pelos corpos alheios, temos que considerados infinitesimais tanto tempo quanto produto, há uma relação não proporcional e decrescente na medida em que se consome ou possui esse bem. Na verdade, não é concebível que um consumidor voraz de ciência tenha se desinteressado por outra obra porque têm muitas ou porque já apreciou muitas. Nem tão pouco se pode dizer que o consumo da ciência feito pelo público de pesquisadores e cientistas, siga decréscimos não proporcionais de satisfação na medida em que uma unidade a mais da obra de ciência é consumida, sendo a última porção de objeto de ciência a que gera o menor grau de prazer ou utilidade. Pressupondo a atenção e cumplicidade total do consumidor diante desse objeto, o que se observa é que a última parte do bem – o seu final- pode ser a parte de maior utilidade para quem está mergulhado nesse universo criado pelo cientista. Desse modo são feitos os resumos e palavras-chaves nas bases de dados privadas, que não fazem os artigos, dissertações e teses perderem seu valor porque mostram partes deles e contam resumidamente um pouco da estória do texto, mas porque exatamente mostram a finalidade do bem e esclarecem qual a problemática traçada no corpo do trabalho, ou aumentam sua utilidade e valor ou poupam o tempo de busca do leitor. Maravilhamo-nos e ficamos mais curiosos à medida que no itinerário, percorrido por nós dentro da obra de ciência, o problema vai se colocando mais detalhadamente e quanto mais indiscernível e surpreendente for esse futuro maior peso terá para nós a última unidade consumida da obra. Podemos dizer que a obra de ciência relaciona de modo diverso as unidades marginas do produto e as unidades crescentes de um “desconforto”, ansiedade ou expectativa, tornando a obra de ciência cada vez mais importante ao passo que se vai criando a tensão da história, dos argumentos passo a passo até a conclusão do texto. Aqui não se está oferecendo dados de precisão, nem pretendemos aplicar uma unidade de medida precisa ao prazer ou a dor, o que se sabe é que existe uma relação de quantidade entre consumo e prazer ou alívio da dor, essa relação pode ser esquematizada quantitativamente. Além disso, não se está dizendo que todos os consumidores passem por essa curva exatamente desse modo, isso dependerá da expectativa subjetiva de cada consumidor, seu nível de desejo ou necessidade


prévio ao consumo do bem, seu entendimento e interesse no decorrer do consumo. O que estamos querendo demonstrar é que em todos os casos a curva é crescente, ou seja, aumenta o desejo ou a necessidade na medida em que o bem é consumido e diminui quando a expectativa criada é resolvida, solucionada. Admite-se que a quantidade de prazer ou de dor é alterada pela intensidade e duração dos mesmos, mas não é possível ser fixada uma unidade medida matemática única e universal válida para todo o ser humano. Não se deve esquecer que para uma medida exata do indivíduo – aqui sendo tratado como uma média ou comportamento médio – deve considerar a emoção antecipada e a proximidade e longiqüidade dessa emoção. Podemos estar muito próximos de algo que temos como certo e nos tornamos indiferentes para com o evento futuro, ou estarmos muito distantes no espaço e no tempo e darmos grande relevância. Esse aspecto deve ser considerado como relevante, sendo um grande influente no total das utilidades marginais absorvidas. A conclusão do objeto gera uma expectativa menor do que a encontrada no inicio do consumo presente do bem. A conclusão dividida em unidades infinitesimais de tempo e produto vai gradativamente de modo não proporcional aumentando nossa satisfação e diminuindo nossas expectativas, as quais estão sendo resolvidas e serão minimizadas na última unidade marginal do bem. Por conseguinte, os bens científicos não seguem a lei dos rendimentos marginais decrescentes. Os neoclássicos chegaram à conclusão óbvia de que a última unidade marginal de bens essenciais como alimentação, seriam muito menores que a última unidade adquirida por um artigo de luxo ou obra de arte, e pode-se incluir também a ciência nisso. Não podemos nivelar água e um bem científico num mesmo sistema de unidades marginais decrescentes. Pois uma obra de ciência que seguisse esse preceito, poderia depois de certo tempo ser tão desinteressante – pois esse sempre seria aumentado junto com a satisfação - que possivelmente não nos preocuparíamos com o final da narrativa ou privilegiaríamos outras atividades em detrimento de consumir esse objeto como comer e dormir. Não se pode dizer que o aumento da expectativa gera a redução da utilidade do bem, pois é exatamente o contrário que ocorre. Além dessa inicial crítica e refutação da teoria neoclássica sobre a lei dos rendimentos marginais, encontramos a oposição de Galbraith, a qual desmascara a idéia de que o indivíduo apenas pela sua exclusiva reflexão e análise, sem nenhuma influência externa, é capaz de maximizar sua satisfação alocando da melhor maneira sua renda em determinados produtos, até que todas as satisfações por produto sejam iguais: “Igualmente, um perfeito estado de equilíbrio com utilidades marginais em toda parte iguais pode ser quebrado não por uma mudança na renda do indivíduo, ou por uma mudança nos bens disponíveis, porém por uma alteração na persuasão a que ele está sujeito.” Galbraith (1997, p.226). Com isso Galbraith desmascara a utopia de que somos livres para escolher, consciente dessa manipulação, influência, indução, manobra e controle da demanda criada pelas inovações, tanto tecnológicas quanto científicas, usadas pelos


distribuidores e criadas pelos produtores, admite-se que estas podem até gerar mais opções para a decisão de consumo, mas isso não diminui, exclui e elimina em nada o poder dos meios de comunicação legitimados do conhecimento científico, que controlam o que deve ser reconhecido e o caminho da evolução da ciência: “E, se as necessidades do indivíduo estão sujeitas ao controle do produtor[distribuidor], isso é interferência. A distribuição de sua renda entre objetos de dispêndio refletirá esse controle. Haverá uma diferente distribuição de renda – um equilíbrio diferente- de conformidade com as alterações da eficiência do controle por diferentes produtores[distribuidores].” Galbraith (1997, p.225). Os neoclássicos indicaram o talento como uma variável importante para compor o valor do objeto cultural. Contudo, como eles mesmos admitem, é inatingível conceber uma unidade de medida trabalho ou talento para se mensurar o valor do objeto precisamente. Além disso, a proposta é a de que se estime aquilo que está na obra, no objeto, e não na pessoa. Não se pode julgar a obra pelo talento de quem a fez, estaria avaliando a pessoa e não a obra. Deve-se avaliar o êxito, o resulta final, mas nunca o esforço que foi despendido, isso não nos interessa e nem ao consumidor de modo geral. A ação derivada de modo mais múltiplo possível demonstra que não há metodologia restrita ou uma receita de bolo específica para criação desse objeto. Somente se pode afirmar com relação a ela que, independente dos métodos, a ação para o cientista nem sempre tem que produzir exatamente o que deseja, a saber, a perfeita semelhança entre sua hipótese e a realidade materializada. Caso isso não aconteça ele não necessariamente desistirá da produção da obra. O objeto científico não tem uma finalidade apenas utilitarista, este vai além da utilidade adquirida pelo desenvolvimento tecnológico e científico, que ameniza e relativiza as barreiras temporais e espaciais, provocando sensações diferentes do monótono e banal. As sensações e os sentimentos que constroem em nós vão ao nosso pensamento, e mudam o nosso modo de enxergar o mundo e a realidade. Não se trata de uma sensação comum, apreendida de uma mercadoria homogênea e padrão, mas sim de algo que elabora uma nova ordem de sentir e pensar dentro do indivíduo. Esta mercadoria excepcional nos evidencia que os sentimentos não são um simples resultado da escassez ou abundância, de ausência ou presença de bens que geram prazer ao homem, mas que sentir dor ou alegria é muito mais complexo em todo o ser humano. Mesmo com a base matemática sendo utilizada, não é estimável o valor de uma obra científica. Não se deseja argumentar que o valor e, em decorrência disso, o preço sejam dados pela utilidade ou prazer adquirido. Não se deve ser rígido estipulando o preço de venda ou equilíbrio deste objeto apenas em função da última satisfação adquirida com o acréscimo marginal da última unidade do produto. Cabe verificar como o consumidor e produtor de modo geral – e não o distribuidor – se comporta quando ele tem o encontro efetivo com a obra. Isto significa que não se trata olhar um livro ou uma estátua de qualquer modo, como estamos sempre acostumados pelo marasmo do trabalho e do cotidiano. Tal objeto exige uma mudança de postura, de visão, de perspectiva.


Ao consumidor o objeto de ciência parece dizer: “é preciso que você esteja atento se quiser perseguir meus itinerários, seu olhar e pensar deve esmiuçar com mais cuidado tudo que tenho para dizer.” Muitos consumidores podem se negar à mudança. Preferem de antemão as respostas e conclusões que já estipularam como certas, antes de tentar sempre ver todas as coisas sobre outro ponto de vista. Se isso ocorre todas as leis matemáticas não se aplicam, pois é condição básica a permissão e “cumplicidade” das pessoas para que possamos influenciá-las. No que toca buscar agregar valor a uma mercadoria científica, necessariamente implica no aumento dos custos, mas não inevitavelmente no aumento do valor atribuído pelo consumidor. Por exemplo, o fato de se aprimorar um banco de dados com variedade de produtos culturais, busca avançada, hipertexto, resumos, palavras-chave, não significa que seus demandantes atribuirão mais utilidade a essas mercadorias, apesar de os custos terem aumentado. Por outro lado, tornar um bem científico mais acessível pode tanto elevar o custo quanto agregar valor a esse bem. Inicialmente o valor pode ser agregado tornando o produto científico mais recuperável num banco de dados. Posteriormente, na etapa da transferência, a mercadoria científica deve estar adequada à sociedade, pois é da compreensão do produto pela sociedade que se transforma a ciência socialmente estabelecida num novo conhecimento científico. Desse modo, o valor simbólico da mercadoria científica depende do reconhecimento do código simbólico pelo consumidor, que decifra essa mercadoria para satisfazer suas necessidades, uma condição sem a qual não existiria nem valor de uso e nem valor de troca, pois o valor de uso é pressuposto fundamental do valor de troca, isto é, a utilidade do bem, e o valor de troca é definido pela quantidade monetária trocada por esse bem. Da mesma maneira, nossa nova Lei de rendimentos crescentes e decrescentes pode ser vista não só da perspectiva microeconômica, do individuo, mas também sobre o ponto de macroeconômico, ou seja, de toda a sociedade. Após o lançamento da mercadoria científica, todo produto chega a limites de consumo e produção, seja devido à saturação seja por obsolescência, quando outro produto científico o substitui. O ciclo de vida desse produto – seu lançamento, crescimento, diminuição e fim – é muito menor do que hoje a tecnologia pode propiciar em termo de preservação e manutenção da sua vida útil. Conseqüentemente, a evolução desse produto científico, assim como também os produtos tecnológicos com a finalidade da comunicação e da informação, segue a mesma lei dos rendimentos crescentes e decrescentes, formando uma curva próxima ou parecida com um “S”, na qual primeiro o produto tem um lançamento vagaroso, num segundo momento um crescimento vertiginoso, rápido e exponencial – com uma taxa de progressão crescente -, depois existe a passagem por um ponto de mudança de comportamento da curva, isto é, de inflexão, reduzindo o crescimento, decrescendo e chegando a um estágio estacionário, o qual pode ser entendido tanto como o fim da produção daquela mercadoria quanto uma forte redução de sua compra.


Isso não significa que bens científicos que deixaram de ser importantes como eram no passado cairão no completo esquecimento, podendo ser retomados com ênfase no futuro conforme as inovações científicas vão retomando certas concepções já defendidas antes. Toda ampliação de mercado de um produto qualquer esbarra no poder de compra dos consumidores – universidades, centros de pesquisa, profissionais da ciência -: primeiramente os compradores mais abastados consomem os produtos ainda raríssimos e muito caros, mas viabilizam o começo da produção em grande escala, o que diminui o preço de venda e afeta a classe média. Mas as limitações não são apenas econômicas: existe a da alfabetização, do nível cultural de uma sociedade e do tempo. Conseqüentemente, a junção dessas limitações com o nível de renda fará com que o consumidor opte por um determinado meio de comunicação e informação em detrimento de outros, o que repercutirá limitando a demanda efetiva por ciência nos grandes provedores de acesso on-line no mercado do conhecimento. Rádio, televisão, imprensa e ao que tudo indica a própria Internet se difundiram para os consumidores finais inicialmente de modo lento, logo em seguida de maneira acelerada, para depois verem sua taxa de progressão se reduzir. Há algumas estratégias para recuperar o fôlego perdido nas vendas de bens de equipamento, - rádio, televisão e computador – como a substituição dos aparelhos antigos por novos mais sofisticados. No que se refere ao produto científico, historicamente observa-se o mesmo comportamento, passando a ciência pelo que Schumpeter chamou de “destruição criativa”4, a qual aniquila negócios antigos, mas cria novos em seu lugar, um grande desafio para a estratégia empresarial, o qual as mercadorias científicas e tecnológicas passam atualmente. Dessa maneira, os consumidores se atraíram por todos os tipos de bens que proporcionassem a comunicação e a informação, desde a transferência da imprensa escrita para a rádio e televisão, até as inovações nos próprios produtos, da televisão preto e branco para a televisão a cores. Porém, a taxa de obsolescência desses produtos se alcança mais rapidamente, sobre os efeitos tanto da transferência para outro produto – Internet – quanto devido à substituição – CD pelo MP3 -. As inovações científicas e as substituições dos suportes materiais de informação seguem a mesma lógica da lei de rendimentos crescentes e decrescentes, na medida em que elas também se tornam saturadas e obsoletas.

Considerações finais

A hipótese em questão, a saber: a teoria econômica tradicional não se aplica sobre vários aspectos na análise desse mercado, ou seja, a lei dos rendimentos

4

Schumpeter (1945), cap. 7.


marginais decrescentes é inútil, os bens científicos não entram na teoria dos bens tangíveis e de primeira necessidade, parece ser confirmada pelas evidências. Contudo, não podemos esquecer que a realidade econômica é mutável não só por variáveis dessa mesma natureza, mas políticas, culturais, institucionais, jurídicas, tecnológicas, sendo nossas apreciações restritas à um tempo e espaço determinado. Faz-se possível se aproximar da verdade, mas se faz necessário dados confiáveis, interpretações corretas, ponderações para não colocar todo efeito sobre uma causa única. Não se pretende dar aqui conclusões definitivas e acabadas, seria uma insana presunção, todavia, pode-se deduzir do conteúdo discutido acima que o grande “laboratório” para se observar e verificar as transformações atribuídas pelas novas tecnologias de informação e comunicação na ciência é os EUA. Aqui no Brasil somos apenas telespectadores do movimento desses grandes blocos econômicos, o cartel dos grandes provedores de acesso em linha e o oligopólio das bases de dados privadas, os quais ainda não mostraram grande interesse em satisfazer o mercado brasileiro da ciência, pois nossa demanda efetiva não chama atenção para se distribuir on-line em grande escala artigos, teses, dissertações e livros, visto que o preço ainda está muito aquém da capacidade de compra das universidades, centros de pesquisa, governos e bibliotecas públicas.

REFERÊNCIAS

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ZIMAN, John. Conhecimento público. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1979.


Más Allá... Comunicação e governos progressistas na América Latina Por Denis Gerson Simões* e Gislene Moreira**.

Em entrevista exclusiva à Revista Eptic, o professor e pesquisador Dênis de Moraes, da Universidade Federal Fluminense, falou dos resultados de três anos de incursões por sete países da América Latina, para investigar e avaliar as políticas de comunicação de governos progressistas. As conclusões da pesquisa estão no livro A batalha da mídia: governos progressistas e políticas de comunicação na América Latina e outros ensaios, publicado em 2009. Para Dênis, é impossível pensar em uma comunicação democrática na região sem olhar para as alternativas de países como Venezuela, Bolívia e Equador, que, a seu ver, estão reorientando as políticas públicas numa perspectiva antimonopólica e favorável à diversidade informativa e cultural. Essas e outras reflexões podem ser encontradas na reveladora conversa a seguir, realizada em Porto Alegre por ocasião do lançamento do livro Mutações do visível: da comunicação de massa à comunicação em rede, organizado por Dênis de Moraes e que tem como co-autores Antônio Fausto Neto, Bernard Miège, Jesús Martín-Barbero, Lorenzo Vilches, Manuel Castells, Martín Becerra e Valério Cruz Brittos. O debate sobre o novo livro foi promovido pelo Grupo de Pesquisa Comunicação, Economia Política e Sociedade (CEPOS), do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos. Eptic: A partir do seu estudo para o livro A batalha da mídia, o que poderia nos dizer do atual cenário comunicacional na América Latina? Dênis de Moraes: Nós podemos perceber, na área de comunicação, reflexos dos processos de transformação na América Latina nesta década. Processos que resultaram de mobilizações de setores organizados da sociedade civil e de revoltas populares contra a prevalência do modelo neoliberal e suas terríveis consequências sociais, em países como Equador, México, Argentina e Bolívia. Também contribuíram para essa reação a resistência do pensamento crítico e outras formas de reivindicação e pressão, como o Fórum Social Mundial. Finalmente, tivemos o prolongamento à *

Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), membro do Grupo de Pesquisa CEPOS (apoiado pela Ford Foundation) e licenciando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: <denis@portal25.com>. ** Doutoranda em Ciências Políticas pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO-México). Graduada em Comunicação Social, é mestre em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Também integra o CEPOS, grupo de pesquisa em Economia, Política e Sociedade da UNISINOS. E-mail: gislene.moreira@flacso.edu.mx


área de comunicação das preocupações com a transformação, no bojo de movimentos políticos e culturais que buscam construir uma outra visão do processo histórico, da produção simbólica, do desenvolvimento econômico e da vida social. Há uma grande variedade de experiências, em função de contextos e ações específicos. Não há uma unicidade; acho até bom que seja assim, pois as várias propostas evidenciam experimentos de luta emancipatória. Eptic: Em que países os progressos em matéria de políticas públicas de comunicação são mais acentuados? Dênis de Moraes: A maior parte dos avanços se concentra no eixo da esperança (a expressão é do sociólogo argentino Atilio Boron e eu a endosso) formado pelos governos de esquerda de Venezuela, Bolívia e Equador. Nestes países, há esperanças de transformação e emancipação, com vistas à construção de um outro tipo de sociedade, uma sociedade socialista, não mercantilizada, que não se fundamenta no dinheiro, no lucro, na reificação e na alienação. Estão em andamento experiências de transição progressiva para modelos baseados em economia mista e maior interferência do Estado nas atividades essenciais e na condução de processos de desenvolvimento sociocultural e econômico que possam combater e reverter desigualdades e exclusões. O eixo da esperança foi muito focalizado na minha pesquisa, e é claro que, ao se estabelecer a análise comparativa, percebemos que nos três países há uma configuração política e cultural mais avançada, e por isso lá se produz, se veicula, se regula, se interfere e se resiste muito mais do que em outros países. Mas isso absolutamente não me levou a ignorar progressos consideráveis que estão acontecendo em países vizinhos, no campo das políticas de comunicação, no sentido de controlar, tentar barrar, tentar deter a concentração dos setores de informação e entretenimento. Infelizmente, a América Latina tem uma tradição histórica de forte concentração dos meios de comunicação nas mãos de dinastias familiares, em parceria e cumplicidade com grandes grupos privados norte-americanos e elites conservadoras. Daí as campanhas agressivas e difamatórias das corporações de mídia contra governos que se dispõem a enfrentar o seu poderio. Eptic: Antes de falar nos resultados, como foi o processo que norteou a pesquisa? Denis de Moraes: A pesquisa teve como definição prévia levantar e averiguar ações e proposições governamentais que visam reestruturar, reconceber e realinhar os sistemas de comunicação em sete países com governos progressistas (Venezuela, Bolívia, Equador, Argentina, Uruguai, Chile, Nicarágua e Brasil). Ressalto que muitas dessas políticas públicas decorrem de reivindicações e pressões dos movimentos sociais, do mesmo modo que em alguns países há um fortalecimento expressivo da comunicação alternativa e comunitária. Mas o esforço de investigação foi feito para mostrar que é possível, a partir da revitalização do Estado como espaço ético-político


voltado à justiça social, ao desenvolvimento inclusivo e à diversidade cultural, construir uma comunicação mais plural e não mercantilizada. Optei por uma abordagem comparativa das experiências, a fim de destacar aquilo que fosse mais significativo, que representasse mudanças estruturais, conjunturais ou permanentes, ao mesmo tempo proporcionando uma visão de conjunto dos processos em curso. A pesquisa foi, simultaneamente, presencial e virtual, levando em consideração que, pelo menos no meu campo de estudos, é impossível deixar de utilizar metodologias de pesquisa virtual. São ferramentas de consultas sistemáticas a diferentes bases de dados, fontes informativas e acervos audiovisuais, atualizando-se constantemente os materiais obtidos e explorando o sentido dinâmico que as ações na Internet possibilitam. A pesquisa de campo tradicional, viabilizada por um decisivo apoio da Fundação Ford, foi muito útil para verificar, ao vivo, o que está acontecendo naqueles países, levantar informações e documentações, fazer entrevistas e contatos com autoridades governamentais, organismos da sociedade civil e pesquisadores afins. Contei também com a ajuda de bolsistas de iniciação científica do CNPq para monitorar, diariamente, os sites dos principais governos progressistas, com atenção redobrada para a Venezuela, que tem o sistema de comunicação estatal mais abrangente. Eptic: O estudo aborda conceitos complexos, como Políticas Públicas de Comunicação e Governos Progressistas. Como foram definidos esses termos? Ao acompanhar as ações dos governos progressistas, considerei que políticas públicas de comunicação, atualmente, são um somatório de informação e difusão cultural. Ficou claro para mim que é preciso haver um caráter integrador, abrangente e dialético, na medida em que as políticas de comunicação e as políticas culturais cada vez mais se ampliam, se integram e se complementam numa época de midiatização e de convergência digital. Sob o título genérico “políticas de comunicação”, incluí as políticas públicas de produção e difusão culturais, procurando englobá-las no quadro geral da produção simbólica. Outra questão foi definir o que são governos progressistas e quais os que se ajustavam, em maior ou menor grau, ao figurino de transformação da América Latina. Adotei o seguinte sentido para a palavra progressista: uma linha de pensamento que se comprometa explicitamente com tudo o quanto se possa mudar, transformar e humanizar na sociedade. Desde o início, eu estava advertido de que existiam e existem diferenças entre os governos progressistas. Há controvérsias sobre o governo Lula, quando confrontado, por exemplo, com os de Hugo Chávez, Evo Morales e Rafael Correa. Prevaleceu o entendimento de que deveria ser incluído na pesquisa como governo progressista, considerando que Lula foi eleito e reeleito com as bandeiras da justiça social, do desenvolvimento inclusivo e da diversidade cultural. Se seu governo traduz, não traduz, ou traduz insatisfatoriamente, essas bandeiras, é uma outra discussão. Acredito apresentar um quadro realista e equilibrado da tímida atuação do governo Lula no plano das políticas de comunicação. Fico


satisfeito de saber que, mesmo em setores governamentais e entre apoiadores de Lula, A batalha da mídia foi recebido com respeito e até com elogios, sendo que, um ano depois de lançado o livro, não houve qualquer reparo ou contestação por parte do sistema oficial de comunicação. Isso mostra que o livro faz críticas objetivas e creio que justas, mas ao mesmo tempo menciona avanços localizados, circunstanciais e tópicos alcançados pelo governo Lula. Eptic: E que mudanças mais significativas destacaria? Dênis de Moraes: Os governos de Venezuela, Bolívia e Equador são os mais ativos na rejeição à mercantilização da informação e ao monopólio privado da mídia e ao seu predomínio desmedido na sociedade. Naqueles três países, as novas legislações visam democratizar as concessões de canais de rádio e televisão, além de se adotarem medidas para estimular meios alternativos e comunitários, apoiar a divulgação de conteúdos regionais e locais, revalorizar os meios públicos e fomentar a produção audiovisual independente. A Lei do Audiovisual da Venezuela coíbe o controle da distribuição e da exibição cinematográficas por cartéis norteamericanos, garantindo reserva de mercado para filmes nacionais e latino-americanos e instituindo taxação dos lucros dos cartéis. A cadeia de 30 emissoras de rádios dos povos originários da Bolívia, criada pelo presidente Evo Morales e operada em regime de autogestão, resgata tradições culturais e favorece a expressão comunitária. As redes culturais comunitárias, promovidas pelos governos de Chávez e Correa, instituíram circuitos itinerantes de difusão cultural em todo o interior da Venezuela e do Equador. Com diferenças de focos e intensidades, observamos iniciativas relevantes em outros países, como, por exemplo, a lei geral de comunicação da Argentina, de clara inspiração antimonopólica e antioligopólica; a legislação de radiodifusão comunitária do Uruguai, considerada uma das mais avançadas do mundo; os inovadores canais estatais de televisão educativa e cultural Encuentro, na Argentina, e Vive TV, na Venezuela; o programa de apoio ao audiovisual independente no Brasil; os fundos de financiamento à produção independente para televisão e à regionalização da mídia patrocinados pela ex-presidente Michelle Bachelet no Chile; as modalidades de integração e intercâmbios entre órgãos públicos latino-americanos, como acontece no canal multiestatal Telesur, entre agências de notícias e emissoras de televisão estatais e com os mecanismos de coprodução e codistribuição cinematográficas. Eptic: Como podemos avaliar a participação do Brasil nesse cenário? O governo Lula pouco fez para modificar o nosso elitista sistema de comunicação. Aí estão a anacrônica legislação de radiodifusão e as renovações quase automáticas de outorgas de canais de rádio e televisão. Houve progressos, como o citado apoio à produção audiovisual independente e a criação dos pontos de cultura e de mídia livre, além de uma participação relativamente maior da mídia alternativa nas verbas de publicidade e patrocínios oficiais. A TV Brasil é um projeto


interessante, e o presidente Lula acertou ao avalizá-lo, derrotando as pressões dos grupos midiáticos, que tudo fizeram para desqualificar um canal de televisão desvinculado de regras mercadológicas – portanto, mais favorável à diversidade cultural. Mas a programação tímida, os problemas de gestão, a falta de autonomia financeira e a insuficiente participação de organismos da sociedade civil no conselho consultivo têm dificultado o desenvolvimento da emissora. A Conferência Nacional de Comunicação foi um fato positivo em termos de discussão e proposição de medidas democratizadoras, embora eu seja cético quanto à disposição governamental de implementar pelo menos uma parte delas, em ano eleitoral e a meses de Lula terminar o mandato.


Trabalho e informação: para uma abordagem dialética Marcos Dantas1

Resumo: Neste texto, propõe-se um debate teórico sobre algumas questões chaves para a compreensão do capitalismo contemporâneo, discutindo noções como trabalho, mercadoria e informação, conforme podem ser articuladas ao pensamento de Karl Marx. O texto sustenta que essa discussão não pode ser desvinculada de pressupostos dialéticos monistas, sendo possível associar a informação, conforme cientificamente definida, ao conceito marxiano de trabalho concreto ou útil e à lógica da acumulação baseada na redução dos tempos de circulação do capital. Palavras-Chave: Informação. Conhecimento. Valor de uso. Marx. General intellect Abstract: In this paper, we propose a theoretical debate on some key issues for the understanding of contemporary capitalism. We will discuss concepts such as labor, goods and information as may be articulated at the thought of Karl Marx. The paper argues that this issue can not be separated from dialectical monist assumptions. It is possible to associate the information as scientifically defined with the Marxian concept of use value of labor and his logic of accumulation based on the time reduction of circulating capital. Key-words: Information. Knowledge. Use value of labor. Marx. General Intellect Resumo: En este trabajo se propone un debate teórico sobre algunas cuestiones claves para la comprensión del capitalismo contemporáneo, proponiendo articular conceptos como el trabajo, la mercancía y la información al pensamiento de Karl Marx. El documento sostiene que estas cuestiones no pueden separarse de la hipótesis monista dialéctica. Es posible asociar uma definición cientifica de información con el concepto marxiano de valor de uso del trabajo y con la lógica de acumulación basada en la reducción de los tiempos de circulación del capital. Palabras-clave: Información. Conocimiento. Valor de uso del trabajo. Marx. General intellect

1. Introdução

Entre as linhas de investigação propostas para a compreensão das mudanças experimentadas pelas sociedades capitalistas nas últimas décadas, uma delas destaca o papel determinante que a informação e o conhecimento passaram a exercer nesta nova 1

Marcos Dantas é professor da Escola de Comunicação da UFRJ. Doutor em Engenharia de Produção pela COPPE-UFRJ, foi Secretário de Planejamento e Orçamento do Ministério das Comunicações, Secretário de Educação a Distância do MEC, membro do Conselho Consultivo da Anatel e do Comitê Gestor da Internet-Brasil. É autor de A lógica do capital-informação (Rio de Janeiro: Contraponto, 2002) Este texto é a versão completa de uma sintética comunicação intitulada “Informação, conhecimento e valor”, apresentada no GT de Economia Política e Políticas de Comunicação durante XVIII Encontro Anual da Compós (junho de 2009). E-mail: prof.marcosdantas@gmail.com

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etapa. Pesquisadores como Radovan Richta (1971), Jean Lojkine (1995), César Bolaño (2000) e o autor deste texto (DANTAS, 1994; DANTAS, 1996; DANTAS, 1999; DANTAS, 2001; DANTAS, 2003), só para citar os explicitamente marxistas/marxianos, têm procurado estudar a relação do capital com a informação, e esclarecer como essa relação pôde vir a ser fonte de valor e acumulação, dando ainda origem aos conflitos característicos deste capitalismo informacional. Em seu Informação, Conhecimento e Valor, Ruy Lopes (2008) nos apresenta uma importante resenha crítica de alguns desses autores, inclusive Manuel Castells, Jeremy Rifkin e os teóricos ítalo-franceses do “capitalismo cognitivo”, sugerindo, a partir deles, algumas soluções que serão adiante discutidas. Este artigo se propõe a levar o debate adiante. Cabe reconhecer que se trata de uma discussão relativamente nova. A compreensão da informação como fenômeno social não é própria da nossa cultura geral, menos ainda da marxista, podendo ser, por isto, alvo de muitas abordagens e visões – questão que será tratada nos capítulos 1 a 3 deste artigo. Assim, as divergências, não podendo ser escamoteadas, não devem ser também tributadas a posições irreconciliáveis ou irredutibilidades ideológicas, mas antes a uma ainda geral incompreensão do fenômeno sócio-informacional, mesmo por aqueles que se têm proposto a estudá-lo, inclusive o autor deste texto. O terreno a percorrer terá que sê-lo cuidadosa e respeitosamente. Há mais questões a serem respondidas, do que respostas já dadas aos novos e desafiantes problemas para nós colocados pelo capitalismo contemporâneo. Esses pontos ficam mais claros nos capítulos 4 a 8, onde buscamos situar a informação no modelo teórico de Karl Marx. Este artigo será guiado pelo debate proposto por Lopes, com quem temos, não obstante, algo básico em comum: assumimos que, para a compreensão do capitalismo atual, é absolutamente necessário entendermos a natureza dessa entidade denominada “informação”, e sua relação com as lógicas econômicas e sociais do capitalismo. A maioria dos pesquisadores, estudiosos ou simples militantes marxistas ainda não se deu conta disso. Conforme nos lembra Bolaño, no seu “Prefacio” ao mesmo livro, “toda a resistência que reafirme a fragmentação é ilusória, pois, ao negar a possibilidade de uma superação progressista do sistema, por meio da construção de uma alternativa global, permite que a unidade se reconstrua sempre no mercado” (in LOPES, 2008: 19). Por

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isto mesmo, a reconstrução teórica há que, como se verá, buscar também um pacto epistemológico e metodológico. Sem isso, tornamo-nos presa fácil de um amplo leque de intelectuais e pensadores, muitos deles bem intencionados mas, reconheçamos, mais interessados em explicar o mundo do que em transformá-lo...

2. Questão de método Para o método dialético, “a totalidade concreta é a categoria fundamental da realidade” (LUKÁCS, 1974: 24). Não se tratando de totalidade formal mas, por suposto, dialética, ela resulta de sucessivas aproximações do real pelo sujeito, através de abordagens que, indo além da imediatidade, avancem através de mediações por meio das quais se revelarão as determinações fundantes do real. Lucien Goldman traduziria esse processo em uma permanente estruturação-desestruturação da realidade pelo sujeito (apud LOWY e NAÏR, 2008). O Todo só pode ser conhecido revelando-se as relações entre as suas partes, partes estas, por sua vez, determinadas pela Todo.

Para compreender a mudança, o pensamento deve ir além da separação rígida dos seus objetos; deve pôr no mesmo plano da realidade as relações entre eles e a interação entre essas „relações‟ e as „coisas”. Quanto mais nos afastamos da simples imediatidade, mais se alarga a rede destas „relações‟, mais integralmente as „coisas‟ se incorporam no sistema destas relações e mais a mudança parece perder o seu caráter incompreensível, despojando-se da sua essência aparentemente catastrófica e tornando-se assim compreensível (LUKÁCS, 1974: 173-174, grifo meu - MD). Portanto, se nem toda abordagem sistêmica será dialética, toda abordagem dialética é necessariamente sistêmica. Como o sujeito, individual ou social, é parte dessas relações historicamente sistêmicas, a identidade sujeito-objeto (LUKÁCS, 1974) será inerente ao processo dialético do conhecimento. Neste ponto, Prado Jr (1969: 679 passim) nos dá uma aula. Num primeiro momento, sujeito e objeto distinguem-se um do outro, opõe-se um ao outro. Através da ação de sentir e pensar, logo da interação do sujeito e do objeto, aquele neste se objetiva, este naquele se subjetiva. Da diferença inicial constrói-se a identidade final para um dado momento do processo.

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Trata-se de um processo essencialmente contraditório. Em cada um de seus movimentos, ao mesmo tempo que se marca e caracteriza a diferença, esta tende a ser eliminada, seja num sentido pela penetração do Objeto no Sujeito, seja noutro pelo confronto e verificação de eventuais concordâncias. Mas é precisamente aquela contradição que constitui o impulso e motor do processo, pois é a caracterização da diferença, tanto num como noutro sentido, que no movimento do Objeto para o Sujeito, e deste para aquele, provoca respectivamente os fatos contrários de verificação da concordância e de penetração do Objeto no Sujeito. [mas] o movimento do pensamento tem uma direção: cada um dos seus ciclos termina no Sujeito com uma penetração maior nele do Objeto, e tendendo assim para a igualização e confusão dos dois. Eles se aproximarão mais e mais, a diferença irá decrescendo até ambos se confundirem. Aí cessará o movimento, pois não haverá mais Sujeito e Objeto distintos; e o Indivíduo pensante terá incluído no seu estado mental mais uma parcela da Realidade representada anteriormente pelo Objeto (PRADO Jr, 1969: 683, grifos no original). Implica dizer que o conhecimento não opera apenas sobre algo já dado a ser desvelado pela prática teórica ou empírica, mas resulta de uma construção social, já que as determinações do sujeito pensante e ativo são, no limite, sociais, ou seja, ele “penetrará” num objeto conforme este lhe seja sócio-culturalmente recortado e nele se sintetizará nas condições em que a sua realidade social lhe orientarem. Essa identidade sujeito-objeto inserida na totalidade histórica faz do materialismo dialético uma Filosofia e uma metodologia monista (SOCHOR, 1987). Daí que nossa investigação precisará estar atenta e crítica à oferta de soluções que possam ter origem em algum conjunto de categorias e conceitos oriundos de formulações teóricas de fundo dualista, até mesmo cartesiana, e, no rigor do método, fenomênicas.

3. Para uma dialética da informação

Os estudos sociais e os físico-químicos sobre a informação têm sido conduzidos tanto sob abordagens dualistas quanto monistas. Sfez (1994) as distingue sob as denominações de “metáfora da bola de bilhar” e “metáfora do organismo”. Aquela seria representativa, isto é, buscaria representar uma realidade objetiva, independentemente do observador. Já esta seria expressiva: “o sujeito faz parte do ambiente, e este faz parte do sujeito [...] A realidade do mundo não é mais objetiva, mas faz parte de mim mesmo. 4


Ela existe em mim... eu existo nela [...] Eu exprimo o mundo que me exprime” (SFEZ, 1994: 65). Em outras palavras, sublinha Sfez, as teorias “organísticas” são monistas: postulam o “justo lugar do indivíduo no concerto do universo. Totalidade, mas totalidade hierarquizada” (idem, ibidem). No campo epistemológico dualista, encontram-se as teorias de Claude Shannon (1916-2001), Warren McCulloch (1898-1969), Marvin Minsky (1927-...), entre outros, cujo conjunto de teses viriam a ser identificadas à “primeira Cibernética” (DUPUY, 1995). Em diálogo crítico com eles, cresceu e se diferenciou a “segunda Cibernética” de von Foerster (1911-2002), Gregory Bateson (1904-1980) e sua Escola de Palo Alto, além de Henri Atlan (1931 - ...) e, numa outra vertente, Humberto Maturana (1928-....) e Francisco Varela (1946-2001). Porque lá predomina o pensar dualista, ela remete a Descartes. Porque, aqui, o compromisso é monista, inspira-se em Spinoza. Daí, acompanhando Lukács ou Goldmann, chegaremos a Hegel e Marx. Sfez chama atenção para essa arqueologia, embora não deixando de observar que aqueles autores de tendência monista, sobretudo os anglo-saxões ou os ambientados nos Estados Unidos, demonstram ignorá-la, até menosprezá-la: “nenhuma referência a Hegel, mesmo quando ele parece se impor, no caso da filosofia do espírito a que nos convida Bateson, para dar um exemplo” (SFEZ, 1994: 184). “O que importa a Bateson e seus amigos é a mudança, sua justa descrição e os caminhos de sua criação voluntária” (idem: p. 53). Não será necessário acrescentar que isto é o que importa também à Dialética. A Teoria da Informação, na sua vertente “organística”, é a própria teoria da mudança, daquela mudança que sustenta o sistema em estado longe do equilíbrio (PRIGOGINE e STENGERS, 1992) e, para sustentá-lo, precisa alimentar permanentemente esse desequilíbrio. Trata-se de mudança que, considerado os máximos limites termodinâmicos, resulta em evolução e desenvolvimento.

4. O problema epistemológico da Informação O significante “informação” vem do latim informatio, -onis, “ação de formar”, “plano”, daí o verbo informare, “dar forma”, “modelar”2. Em sua origem, o significante 2

Ver o Dicionário Latino-Português, de Francisco Torrinha. “Informatio, -onis: 1. ação de formar; representação; 2. Esboço, plano, idéia; concepção. 3. Formação, forma. Informo, -avi, atum: 1. dar forma a, formar, modelar, fabricar. 2. formar, instruir, educar.|| Informare clypeum: fazer um escudo.

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denotava um processo, ou movimento de pôr-em-forma algo pensado, ou concebido. Até meados do século XX, esta palavra será pouco usada no discurso científico ou filosófico. Poderia ser substituída por “concepção”, “fabricação”, “idéias” até, em significações mais amplas, por “conhecimento”. Marx quase não usa a palavra “informação”. Consta que teria sido o economista William Jevons (1835-1882), um dos pioneiros da escola neo-clássica, o primeiro a anotar, em termos teóricos, a importância da informação para o funcionamento dos mercados: “é da essência do comércio dispor de uma informação ampla e permanente”, escreveu ele (apud FLICHY, 1991: 73). Esta idéia seria retomada e melhor formalizada pelos seus continuadores da Escola de Lausanne, a exemplo de Léon Walras (1834-1910) e Vilfredo Pareto (1848-1923). A esta altura e nesta significação que lhe é dada também pelos economistas, “informação” já é sinônimo de “notícia”, um fato ou evento que “realmente” aconteceu, descrito como “de fato” se deu. Informação começa a assumir, através dos investidores, dos empresários e dos seus economistas, seus jornalistas e políticos, o significado de comunicações a respeito de fatos acontecidos no mercado ou na sociedade, que possam influenciar os negócios ou as condutas sociais, tais como cotações bursáteis, preços de mercadorias e, também, decisões governamentais, resultados de batalhas, eventos do cotidiano etc. Estes são os sentidos que registrarão os nossos dicionários. Em português, diznos o Aurélio (ed. 1986), encontramos, entre outras acepções, “dados a cerca de alguém ou algo” e “comunicação ou notícia trazida ao conhecimento de uma pessoa ou do público”. Capurro e Hjørland (2003) registram que, no inglês cotidiano, conforme o Oxford, informação pode ser entendida como “conhecimento comunicado”. Parece que aquele significado original, em latim, perdeu-se com o passar dos tempos. Para o Oxford, aliás, aquela acepção de “pôr-em-forma”, ao menos na língua inglesa, seria um arcaísmo. Anthony Wilden (2001), num texto de explícita inspiração marxista, comenta que o “nosso

trissecular sistema socioeconômico, em conjunto com a episteartibus aliquem informare: dar instrução a alguém”. Ver também o verbete “Informação”, na Enciclopédia Mirador Internacional, versão 1986: “o port. Informação” (bem como os termos correspondentes nas outras principais línguas ocidentais) “é o lat. informatio, -onis, „ação de informar, formação, plano, esboço‟, do verbo latino informare, „dar forma a‟, „esboçar‟, „delinear‟.”

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mologia e a ideologia que o acompanham, manifesta ainda hoje uma particular obtusidade à aplicação e à compreensão das relações informacionais, uma atitude refratária ao seu uso no interesse da sobrevivência a longo prazo. [... Esta...] já tradicional incapacidade de reconhecer as relações informacionais parece ser uma característica peculiar da sociedade moderna, ao contrário do que acontece em todas as outras sociedades de que se tem conhecimento (WILDEN, 2001: 61). As sociedades pré-modernas, inclusive a européia, reconheceriam no Universo um princípio ordenador que, em latim, seria expresso pela palavra informatio, -onis. “Pôr-em-forma” significaria identificar ou estabelecer um grau de ordem, oposto ao caos, e, por extensão, “ensinar” ou “educar”. Capurro e Hjørland (2003) demonstram que a palavra aparece com significados epistemológicos, ontológicos e pedagógicos em vários autores gregos e latinos, a exemplo de Cícero e Tertuliano, e medievais, a exemplo de Santo Agostinho e São Thomaz de Aquino. Segundo Wilden, palavras em diferentes línguas antigas que significariam um princípio cósmico ordenador, como o hebraico “dābhār”, ou o aramaico “mēmrā” ou o dogon “so”3, entre outros exemplos, expressariam alguma força ordenadora que só podendo, nessas culturas, ser explicada como manifestação de alguma vontade divina ou sobrenatural, acabaram sendo traduzidas, nas línguas européias, por “palavra de Deus” ou “verbo divino”. Daí que “no princípio era o Verbo”... Para Capurro e Hjørland (2003), “informação” foi destituída de seus significados epistemológicos e ontológicos ao longo do processo de rejeição moderna ao pensamento especulativo medieval. Os racionalistas, acompanhando Descartes (1596-1650), ou os empiricistas, acompanhando Francis Bacon (1561-1626) ou Locke (1632-1704), reivindicariam para a mente humana, na forma de “idéias”, “pensamentos”, “conceitos”, o poder de ordenamento e, daí, conhecimento do mundo natural, ainda que, devido a crença genuína ou prudência compreensível, por delegação de uma “vontade divina”. Para a Modernidade então nascente e em aberta oposição ao pensamento Antigo, “conhecer” representaria mais do que mera percepção das formas do mundo (moldadas, ou informadas, por Deus, segundo os Antigos), mas uma efetiva compreensão e explicação dessas formas, através de um método que viria a ser reconhecido como científico. Disto teria resultado a perda do status ontológico e epistemológico da palavra “informação”.

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Seria a partir dos anos 40 ou 50 do século XX, que o significante “informação” voltaria a ser pensado cientificamente, sendo progressivamente adotado para representar ampla gama de diferentes fenômenos, identificados e estudados tanto no mundo natural (sobretudo na esfera biológica), quanto nas muitas atividades sociais do ser humano. Pode-se dizer que a estrutura cristalina mineral é ou contém “informação”; que o código genético é “informação”; que um animal irracional age em função de “informação”; que um estado psicológico qualquer, num indivíduo, resulta de alguma “informação”; que um computador processa “informação”; até mercadorias, ou commodities, são ou podem ser “informação”. A palavra extrapolaria aquele significado vulgar consagrado nos últimos séculos, incorporando outras acepções nem sempre imediatamente relacionadas à comunicação humana ordinária. Mais do que isso, “informação” tornou-se um problema científico, logo também epistemológico, no sentido de que o seu conceito e os fenômenos que exprime passaram a ser formalmente pesquisados e debatidos, conforme métodos próprios dos diferentes campos científicos que dela fizeram objeto de estudo. Nisto que foi trazida para o debate científico, a compreensão e a conceituação do fenômeno informacional tornaram-se vítimas das distinções, das (sub)culturas, dos objetivos, até das idiossincrasias próprias de cada área do conhecimento. Não será difícil catalogar-se muitas definições diferentes e até contraditórias para “informação”, sugeridas pelos mais diversos autores, havendo quem já tenha relacionado mais de 400 delas (YUEXIAO, 1988). Tem-se a nítida impressão que cada pesquisador ou estudioso, ao defrontar-se com uma situação que lhe parece relacionada à “informação”, precisando caracterizá-la, conforma-se em lhe sugerir uma definição ad hoc, utilitária, quando não intuitiva. Então, “informação”, numa compilação em diferentes autores, poderá ser “as relações que se tornam perceptíveis, quando ocorrem mudanças no estado físico de algum objeto”; ou “conhecimento que é comunicado”; ou “símbolos produzidos por um comunicador, para efetuar o seu intento de comunicar”; ou “um processo que ocorre na mente humana quando se completa uma produtiva união entre um problema e um dado útil à sua solução”; ou “dados produzidos como resultado do processamento de dados”; ou... (apud WERSIG e NEVELING, 1975). Informação seria tudo isto, ou algo disto, enquanto percepção imediata de um fenômeno que no entanto, hoje em dia, já pode ser bem compreendido através de um 3

Etnia africana que habita uma porção do vale do rio Niger.

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corpo teórico rigoroso, formalizado e, no que nos interessa, aderente ao materialismo dialético. Em princípio, não haveria mais porque ainda tatear-se na busca de definições pouco precisas, apenas para atender-se, um tanto quanto arbitrariamente, às demandas de um estudo qualquer. Muito menos, quando este estudo versar exatamente sobre processos sociais e econômicos diretamente relacionados à produção ou uso de informação. O nosso problema se limitaria a investigar como relacionar a informação à Economia Política marxiana – e, nisto, já seria um enorme problema... Se vamos estudar a relação entre informação e sociedade, precisamos, para começar, entender o que vem a ser informação. Trata-se de uma noção que se encontra intrinsecamente ligada a qualquer situação onde haja organização, logo, também, a qualquer estudo sobre uma sociedade. Como observou o biólogo e psicólogo Anatol Rapoport (1911-2007), nisto recuperando, embora agora no contexto científico moderno, a antiga dimensão epistemológica e ontológica da palavra, se a energia tinha sido o conceito unificador subjacente a todos os fenômenos físicos que supunham trabalho e calor, a informação tornou-se o conceito unificador subjacente ao funcionamento dos sistemas organizados, isto é, sistemas cujo comportamento era controlado de modo a atingir alguns objetivos préestabelecidos (RAPOPORT, 1976: 29). 5. Os conceitos objetivistas de informação e conhecimento

Ruy Lopes, na trilha de muitos outros autores, parece desconhecer essa arqueologia. Aceitando alguma das tantas definições fragmentárias e ad hoc de informação, ele nos sugere “nos concentrarmos num contexto no qual a informação é mercadoria criada no processo produtivo”. Para isso, será necessário retornar a “uma noção de informação [...] como conhecimento codificado e plasmado em um suporte físico” (Lopes, 2008: 85 passim). Ou seja, entenderá informação como objeto. Lopes cita, como suas fontes, Michel Callon, Jean-Pierre Courtial, Dominique Foray e outros autores que usariam esse conceito ou similares. A eles, poderia ter adicionado Lundvall (apud LASTRES, 1999) e ainda outros. Todos estes empenharam-se numa construção social que, como toda construção social, não será ingênua: no fundo,

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mesmo que muitos dos seus autores não saibam o que fazem (“mas fazem”...) 4, ela serve para legitimar teórica e ideologicamente o sistema do capital. Se não, vejamos. Felizmente para um texto como este que necessita ser o mais curto possível, toda essa construção está resumida em uma mera nota de rodapé, ainda em seu “Prólogo”, na tão momentosa quanto fenomênica trilogia de Castells (1999):

Para a maior clareza deste livro, acho necessário dar uma definição de conhecimento e informação, mesmo que essa atitude intelectualmente satisfatória introduza algo de arbitrário no discurso, como sabem os cientistas sociais que já enfrentaram o problema. Não tenho nenhum motivo convincente para aperfeiçoar a definição de conhecimento dada por Daniel Bell (1973: 175): „Conhecimento: um conjunto de declarações organizadas sobre fatos e idéias, apresentando um julgamento ponderado ou resultado experimental que é transmitido a outros por intermédio de algum meio de comunicação, de alguma forma sistemática. Assim, diferencio conhecimento de notícias e entretenimento‟. Quanto a informação, alguns autores conhecidos na área, simplesmente definem informação como a comunicação de conhecimentos (ver Machlup 1962: 15). Mas, como afirma Bell, essa definição de conhecimento empregada por Machlup parece muito ampla. Portanto, eu voltaria à definição operacional de informação proposta por Porat em seu trabalho clássico (1977: 2): „Informação são dados que foram organizados e comunicados‟ ” (CASTELLS, 1999: 45, nota 27). De lá para cá (observar as datas das referências de Castells), o mainstream tem acompanhado esses autores de formação neo-clássica, liberal e dual-objetivista. Bell será explícito, ao justificar sua conceituação: No entanto, e para fins de política social – a necessidade de se determinar a alocação de recursos sociais para fins específicos de utilidade social –, eu proporia uma definição restrita: o conhecimento é algo que se conhece objetivamente, uma propriedade intelectual, ligado a um nome ou grupo de nomes e certificado pelo copyright ou por alguma outra forma de reconhecimento social (por exemplo, a publicação). Este conhecimento tem seu preço: no tempo empregado em escrever e investigar; na 4

Como disse Marx, em outro momento, nas relações de troca, os homens “não o sabem, mas o fazem” (MARX, 1983: v. 1, t. 1, p. 72). Evidente boutade com as palavras finais de Cristo: “Perdoai-os, Pai, eles não sabem o que fazem”.

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compensação monetária aos meios de comunicação e de educação. Se sujeita aos ditames do mercado, das decisões administrativas ou políticas dos superiores ou colegas quanto ao valor dos resultados e também quanto às suas demandas por recursos sociais, caso sejam feitas essas demandas (BELL, 1976: 207-208). São as próprias palavras de Bell que reconhecem a arbitrariedade, o objetivismo e a lógica de mercado contida nessa conceituação. Será também de Bell, esse demiurgo de toda essa ideologia da “sociedade da informação”, a seguinte definição de informação:

Por informação, eu entendo o processamento de dados no mais amplo sentido: a estocagem, a recuperação, o processamento de dados torna-se recurso essencial para as trocas econômicas e sociais (BELL, 1981: 504)5. Bell, pelo menos, faz a distinção necessária entre informação e conhecimento: aquela, como também em Porat, consistirá de dados organizados e estocados. Este resulta, curiosamente, do trabalho de tratamento desse dados (“tem seu preço no tempo empregado em escrever, investigar”), mas somente o será assim entendido se reificado para fins de apropriação (“propriedade intelectual”). Em suma, tanto informação quanto conhecimento, nessa conceituação, são objetos.

6. Informação e conhecimento: para um conceito dialético Se Castells não vê motivos para “aperfeiçoar” o conceito de Bell, devemos ter motivos, por mais fortes razões, para não nos afastarmos dos conceitos dos Mestres. Para Jean Piaget (1896-1980), cujas idéias, conforme Goldmann, poderiam se aproximar das de Marx (apud LOWY e NAÏR, 2008),

o conhecimento não procede, em suas origens, nem de um sujeito consciente de si mesmo, nem dos objetos já constituídos que a ele se imporiam. O conhecimento resultaria de interações que se 5

É importante prestar atenção à própria elaboração do discurso: “By information I mean...”. O conceito não tem uma história, não passa de uma afirmação arbitrária e utilitária do seu autor, de modo a responder às suas finalidades sociais ou políticas. A mesma operação discursiva, Bell efetua ao conceituar conhecimento.

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produzem a meio caminho entre os dois (apud ANDRADE e VICARI, 2003: 256). Conceito similar será enunciado por Prado Jr:

O conhecimento constitui a ligação entre a ação passada e a ação futura: é o receptáculo da experiência adquirida naquela ação passada que se destina a fornecer padrões para esta última ação futura. E fará isto convenientemente, na medida em que inspirando-se na primeira, for capaz de exibir eventualmente as circunstâncias e feições da realidade objetiva na qual e em função da qual o homem tem que agir (PRADO Jr., 1969: 107). Em ambos os enunciados, nos é ensinado que o conhecimento estabelece uma relação mas ele mesmo não é esta relação: o conhecimento “resulta de interações”, conforme Piaget; “constitui a ligação” entre ações passada e futura, enquanto “receptáculo” que fornece os padrões para a ação futura, segundo Prado Jr.. Conhecimento, pois, se nos surge aí como recurso inicial e produto final da ação, logo como processo em construção. Encontra-se na origem e no resultado da ação. É uma forma de memória enquanto registro da ação realizada, e fonte orientadora da ação futura. No entanto, isto que conceituamos por “conhecimento” vai se distinguir de outras memórias naturais ou biológicas, por ser uma memória registrada ou transmitida através da linguagem humana, mesmo que não esteja posta em alguma forma externa de registro, como pedras ou papéis. Quando ainda não se usavam pedras ou papéis para registrar (signicamente) conhecimento, a experiência de um indivíduo humano já podia ser passada para os seus familiares, amigos ou descendentes diretos através da palavra e, por ela, se reproduzir através de gerações. Desconhecemos algum grupo humano que não possua um sistema relativamente complexo de linguagem falada, embora muitos grupos, até hoje, não disponham de linguagem escrita. Portanto, o estudo do conhecimento não pode ser separado do estudo da linguagem, e a produção do conhecimento será, necessariamente, produção de linguagem. Impossível não incorporar aqui a Semântica, ou Semiótica, na totalidade desta nossa compreensão do real. Todo o conhecimento é codificado. O dualismo objetivista e mesmo as limitações teóricas fragmentárias de muitos autores os levaram a introduzir no debate a dicotomia “conhecimento tácito”/“conhecimento codificado”. Ora, todo e qualquer conhe-

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cimento é construído, enunciado ou absorvido por meio de um amplo conjunto de unidades culturais articuladas e relacionadas, através das quais são estabelecidas, graças a algum código, as relações entre formas de expressão significantes, formas de conteúdo significadas, suas circunstâncias práticas e seus contextos sócio-históricos (ECO, 1980). O conhecimento que Foray e Cowan (1998) pretenderão “codificado” não passa de conhecimento externamente registrado em materiais apropriados, através de algum código sócio-cultural pré-existente6. Conhecimento subjetivo também será conhecimento registrado, mas nas estruturas da mente e do corpo, por isto, inclusive, parecerá muitas vezes, a um observador externo, um tanto incerto, informal, implícito, vago, misterioso, indescritível, espontâneo, “tácito”, embora também codificado nas mesmas unidades culturais pelas quais relaciona socialmente o sujeito e o objeto7. Se conhecimento é o ponto de partida e o ponto de chegada da ação, então será o alfa e ômega do trabalho, entendido exatamente, nos termos de Marx, como metabolismo entre o homem e a natureza. Que metabolismo é este? Nos tempos de Marx, quando as hoje sesquicentenárias idéias de Darwin (1809-1882) ainda estavam incubadas; a Biologia não lograra, como a Física, libertar-se da hipótese divina8; na própria Física, predominava a mecânica temporalmente reversível de Newton e as leis da termodinâmica ainda estavam em construção por Sadi Carnot (1796-1832), Rudolf Clausius (1822-1888) ou James C. Maxwell (1831-1879); nos tempos de Marx, ele poderia perceber esse metabolismo intuitiva ou até empiricamente, mas não poderia explicá-lo, exceto como axioma filosófico. Mesmo assim, neste aspecto, legou-nos uma obra de extraordinária percuciência. 6

É claro que os códigos se transformam e podem mesmo ser socialmente inventados. Aqui não estamos tratando dessa discussão até porque as condições de transformação ou invenção também derivam, nem que sejam no limite, de códigos sócio-culturais pré-existentes, bem como, uma vez revelados pela comunicação, novos códigos logo se incorporam às práticas sociais, isto é, passam a integrar seus códigos pré-existentes (ver Eco, 1980; ver Dantas, 2001). 7 Unidades culturais são os menores elementos significativos possíveis, num dado recorte sóciocultural. Tanto são, na unidade significante/significados, as palavras dicionarizadas de uma língua (substantivos, verbos, adjetivos, interjeições, preposições etc.), como também podem ser os jargões profissionais ou idioletos de pequenos grupos ou comunidades, os gestuais de corpo, expressões vestuárias, suntuárias, ritualísticas etc. Qualquer relação entre a subjetividade da mente e a objetividade do mundo é estabelecida por algum conjunto expressivo, socialmente codificado, de unidades culturais articuladas nas suas formas significantes, não importa se previamente registrada, ou não, em algum objeto externo de memorização e comunicação (livros, discos, filmes etc.). Para essa discussão, ver Eco (1980). 8 Ao explicar ao Imperador Napoleão Iº, as leis que regiam os movimentos dos astros, conforme já bem estabelecida pela Cosmologia de seu tempo, Pierre-Simon Laplace foi interrompido com a seguinte pergunta: “E onde se encontra Deus nesse seu sistema?”. “Majestade, eu não preciso dessa hipótese”, respondeu (BERNAL, 1983: 174).

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Este metabolismo é a informação. A relação entre informação e trabalho foi inicialmente proposta por Leon Brillouin (1988, original 1956), ao introduzir, na Física termodinâmica, o conceito de neguentropia: capacidade que um sistema possui para fornecer trabalho. Esta capacidade deve dissipar-se entropicamente mas, se e quando pode processar informação, ela também será empregada para sustentar a própria neguentropia do sistema, mantendo-o longe do equilíbrio, ainda que não podendo deixar de, nisto, pagar algum “preço” entrópico a alguma outra dimensão sistêmica, nos termos da Segunda Lei da termodinâmica. Brillouin não lograria extrair todas as conseqüências de sua percepção. Tal seria alcançado por biólogos como Jacques Monod (1976) ou Henri Atlan (1992): numa crítica à “primeira Cibernética”, eles entendem o “ruído” (informação) como negação estruturante-desestruturante de partes do sistema relativamente a outras, vetor, por isto, de aperfeiçoamento, crescimento, desenvolvimento, do sistema como um todo. A informação é tão constitutiva da natureza quanto a energia. Os pré-modernos, como vimos, o sabiam... Ela é tão vital quanto o oxigênio ou a água para a sobrevivência de qualquer organismo vivo. Estava no princípio... É na relação informacional estabelecida pelos seus órgãos de sentidos com o seu ambiente, que um organismo vivo logra perceber, selecionar, capturar e processar a energia livre necessária à sua recomposição neguentrópica. Por isto, podemos entender que

Informação é uma modulação de energia que provoca algo diferente em um sistema qualquer e produz, neste sistema, algum tipo de ação orientada, se nele existir algum agente capaz e interessado em captar e processar os sentidos ou significados daquela modulação (DANTAS, 2006: 46). Enquanto modulação de energia, a informação é material – logo, não cabe insistir em conceitos como “trabalho imaterial” e similares. Mas essa modulação assim o é, e assim se torna vetor de ação orientada, porque haverá um agente, logo, se humano, um sujeito, que está materialmente dotado de recursos para captar e processar os sentidos ou significados da modulação:

A informação se situa, se pudermos usar, para efeitos didáticos, alguma metáfora espacial, em uma espécie de sítio intermediário entre a origem dos fenômenos sinalizadores e os agentes 14


que os captam e os processam. Não será nem atributo do objeto, nem do agente, mas será sempre uma relação entre ambos. Sinais sinalizadores não passam de fenômenos físico-energéticos se não existir, no ambiente, algum agente capaz de percebê-los e deles extrair algum sentido ou significado. Na outra ponta, qualquer agente não poderá agir orientadamente, se não estiver apto para perceber e compreender os sinais que emanam do ambiente (DANTAS, 2003: 25). Já deve estar clara a distância que guarda esta construção, dos conceitos dualobjetivistas de Bell, Castels ou Foray. Aqui, informação não é objeto, mas será uma relação de trabalho, dispêndio de energia, mas dispêndio de energia orientado a um fim, determinado por esta finalidade e emergindo da relação definida por essa finalidade mesma. Tal construção encontra sua expressão-síntese na definição canônica de Bateson: “informação é uma diferença que faz uma diferença” (BATESON, 1998: 484). A diferença resolve-se na identidade mas esta identidade, ela mesma, já será diferente de alguma identidade anterior e sujeito de um novo objeto diferente do anterior. Releia-se Prado Jr., aí acima... Assim entendido, a formalização proposta por Atlan será prenhe de significados e conseqüências. Como a informação será justamente esta ação orientada pelo conhecimento, ela nasce de um conhecimento dado (relação subjetividade-objetividade), projetando-se no conhecimento a ser construído e consumado na identidade sujeito-objeto. Matematicamente, seriam, respectivamente, a ordenada R (redundância) e a variável H (incerteza): R será aquela informação “total” shannoniana (quantificável) e, por que total, desprovida de significado; H, será aquela informação que se revela inesperada ou aleatoriamente no curso da ação, como produto da interação, cujas origens e efeitos o sujeito desconhece num instante inicial dado, devendo, por isto, dela fazer alvo do seu trabalho ou ação cognitiva. Este trabalho avança na medida em que o agente possa atribuir significados (sócio-culturais) aos eventos que denunciam a sua ignorância sobre as condições totais do sistema. Deparamo-nos aqui com uma dimensão semiótica (qualitativa, não-quantificável) do trabalho, dimensão esta que, como veremos, aparecerá em Marx, no seu conceito de valor de uso das mercadorias em geral e da força de trabalho, em particular. Como o processo se dá na relação dinâmica neguentropia-entropia, ele é determinado pelo tempo: a recomposição neguentrópica do agente – seja uma ameba, seja

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um indivíduo humano, seja uma unidade de capital – não pode estender-se num tempo para além de seu provável limite entrópico. Logo, quanto menor for o tempo da ação, se atingido o objetivo, maior seu rendimento neguentrópico (DANTAS, 2006). Trata-se de um aspecto essencial para avançarmos na compreensão do valor da informação e, por conseguinte, na crítica às “antinomias do pensamento burguês” (Lukács) nesta etapa informacional do capitalismo. Marx já ensinara:

Uma vez posta a produção coletiva, a determinação do tempo, como é óbvio, passa a ser essencial. Quanto menor é o tempo que a sociedade necessita para produzir trigo, gado etc, tanto mais ganha tempo para outras produções materiais ou espirituais. Do mesmo modo, para o indivíduo isolado, a plenitude de seu desenvolvimento, de sua atividade, do seu gozo depende de poupança do tempo. Economia do tempo: a isto se reduz finalmente toda a economia (MARX, 1973/1974: v. 1., p. 101, grifos meus – M.D.).

7. O problema do conhecimento e valor em Marx

O tempo é uma dimensão da realidade essencial para a compreensão do próprio pensamento de Karl Marx. Será extraordinário que, numa época dominada por uma noção newtoniana do tempo invariável e reversível, logo neutro ou sem história (exceto a bíblica), Marx tenha feito dele, o pilar central de todo o seu edifício teórico:

Já que o modo de ser quantitativo do movimento é o tempo, assim o modo de ser quantitativo do trabalho é o tempo de trabalho. Pressupondo sua qualidade como dada, a única diferenciação que é suscetível é a diversidade da sua própria duração [...] Tempo de trabalho é o modo vivo de ser do trabalho, indiferente à sua forma, ao seu conteúdo, à sua individualidade; é o seu modo vivo de ser como quantidade, ao mesmo tempo que é sua medida imanente. O tempo de trabalho objetivado nos valores de uso das mercadorias é tão exatamente a substância que os torna valores de troca, e daí mercadorias, como também mede sua grandeza determinada de valor [...] Como valor de troca, todas as mercadorias são apenas medidas determinadas de tempo de trabalho coagulado (MARX, 1974: 143, grifos meus – MD, suprimidos os originais de Marx).

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Este tempo de trabalho, hoje sabemos graças à Teoria da Informação, distinguese quanto à sua aleatoriedade ou redundância (DANTAS, 1994; DANTAS, 2001; DANTAS, 2006), isto é quanto aos graus maiores ou menores de incerteza presentes em cada momento do processo. Se o grau de incerteza é muito baixo, se já estão fornecidos a priori todos os eventos ou “dados” prováveis, o movimento de trabalho efetua-se num tempo tendendo ao limite de zero. Pode-se dizer redundante esse tempo de trabalho. Se os eventos não estão “dados” a priori, mas, ainda assim, supõe-se que poderão ser captados, classificados, analisados, o movimento tende para um tempo sensível, embora somente mensurável a posteriori, após concluída a ação. O tempo torna-se, neste caso, também uma dimensão da incerteza. Será tempo de trabalho aleatório. Não se tratam de trabalhos diferentes, de trabalho “intelectual” ou trabalho “operário”, de trabalho “imaterial” ou “material”, de trabalho “espiritual” ou “manual”. Trata-se de uma unidade nas suas mediações contraditórias, na qual, em essência, pensar e agir são instantes sincrônicos de um mesmo corpo que trabalha, ou, marxianamente, de um mesmo movimento de trabalho. As dimensões aleatoriamente cognitivas da ação (trabalho) serão mais exigidas quando as condições do sistema (fábrica, mercado, sociedade) se mostrem menos definidas, mais nebulosas (aleatórias); ou serão menos exigidas, quando, ao contrário, estão muito bem definidas e determinadas (redundantes). No primeiro caso, um exemplo óbvio será o trabalho científico, de engenharia, de pesquisa e desenvolvimento. No segundo, será o trabalho rotinizado de montagem, o trabalho taylorista, “chapliniano”. Social e culturalmente, nas condições capitalistas do trabalho coletivo, essa relação poderá levar à mobilização de diferentes trabalhos concretos em distintos elos do sistema – e aos conflitos daí decorrentes. É o que Marx percebeu com uma clareza que não nos permite dúvidas (quanto ao seu pensamento):

[...]e como as diversas capacidades de trabalho que cooperam e formam a máquina produtiva total participam de maneira muito diferente no processo imediato de formação de mercadorias, ou melhor, neste caso, de produtos – um trabalha mais com as mãos, outro mais com a cabeça, este como diretor, engenheiro, técnico etc., aquele como capataz, aqueloutro como operário manual ou até simples servente – temos que são cada vez em maior número as funções da capacidade de trabalho incluídas no conceito imediato de trabalho produtivo, diretamente explo-

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rados pelo capital e subordinados em geral ao seu processo de valorização e de produção. Se se considerar o trabalhador coletivo constituído pela oficina, a sua atividade combinada realizase materialmente e de maneira direta num produto total que, simultaneamente, é uma massa total de mercadorias e aqui é absolutamente indiferente que a função deste ou daquele trabalhador, mero elo deste trabalhador coletivo, esteja mais próxima ou mais distante do trabalho manual direto [grifos meus – M.D.]. Porém, então, a atividade desta capacidade de trabalho coletiva é o seu consumo direto pelo capital, ou por outra, o processo de auto-valorização do capital, a produção direta de mais-valia e daí, como se há de analisar mais adiante, a transformação direta da mesma em capital (Marx, s/d: 110, grifos no original; grifos meus – M.D. – onde indicado). Se entendermos essa unidade básica das diferentes qualidades de trabalho na realização de um produto total, podemos entender dois aspectos essenciais à compreensão do capitalismo informacional: i) a importância da poupança de tempo na formação da mais-valia; e ii) a relação entre o valor de uso da força de trabalho e o processamento da informação. Entender a mais-valia apenas como “tempo agregado” (LOPES, 2008: 83), é ignorar que a extensão absoluta ou física do tempo de trabalho, conforme percebida por Marx, resultou de um fenômeno histórico vivenciado pelos artesãos no século XVIII, do qual o próprio Marx nos dá a conhecer (MARX, 1983/1984: v. 1., t. 1, p. 217 passim). Produzindo apenas para si sem a finalidade de acumular, o trabalhador-artesão não se mantinha produtivamente ocupado por tempo equivalente a mais do que três a quatro dias por semana (LANDES, 1994: 67). Os mercadores-capitalistas, neste primeiro momento, criarão as condições políticas, jurídicas e culturais necessárias para estender o tempo de trabalho do artesão, reduzido a operário, ao máximo – daí a mais-valia absoluta. Mas esta extensão enfrentava três limites: a duração do dia (24 horas); o cansaço natural do corpo humano (entropia); a resistência dos operários e da própria sociedade (informação). Marx nos é claro quanto a estes pontos (MARX, 1983/1984: v. 1, t. 1, p. 188). Daí que, para seguir acumulando, o capital irá desenvolver uma outra dimensão de mais-valia, apresentada a nós por Marx no capítulo 15 do Livro I d‟O Capital: a intensificação do trabalho, ou “dispêndio ampliado de trabalho no mesmo espaço de tempo” (MARX, 1983/1984: v. 1, t. 2, p. 116). Não se trata de “agregar tempo” – quem o diz é o próprio Marx – mas de agregar trabalho no mesmo tempo ou, melhor, fornecer o má-

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ximo possível de trabalho num tempo mínimo, tendendo a zero. Para isto, o capital desenvolverá, via ciência e tecnologia, todo o sistema de maquinaria, inclusive, mais recentemente, a informática, ou seja, acrescentará às limitações do trabalho vivo, as ilimitadas possibilidades do conhecimento registrado e congelado na máquina (trabalho morto). Ainda segundo Ruy Lopes, dando curso à vulgata marxista, o conceito correto de valor de uso da força de trabalho estaria na sua “capacidade para transformar e empregar energia no processo de trabalho” (idem, ibidem) e, não, na sua capacidade de processamento da informação (emprego ou produção de conhecimento). Daí que, diz ele, para Dantas e outros teóricos, “o processo de abstração [recairia] não mais sobre uma capacidade produtiva entendida enquanto força mecânica ou dispêndio de energia mas potências cognitivas, sígnicas ou, nos termos de Marx, general intellect” (idem, p. 84). Este seria um modelo teórico que “adaptar-se-ia melhor a uma época na qual ainda se podia medir o rendimento do trabalho em função da dissipação máxima de energias durante o processo laboral” (idem, p. 85). Donde em seguida Lopes dirá que estamos em uma época na qual o capital deixou de se valorizar no chão-de-fábrica e passou a “focar suas luzes numa esfera – da concepção, do planejamento – em que a „poupança do tempo‟ não é mais essencial” (idem, ibidem). E, assim, surpreendentemente, acaba indo ao encontro dos “negristas” que diz objetar... Há dois problemas aí. O primeiro aponta para um possível desconhecimento, por Lopes, da realidade dos processos produtivos. Decididamente, conforme aliás nos diz a consultora empresarial Anderson Consulting,

as organizações estão começando a gerenciar explicitamente o tempo como recurso corporativo, assim como gerenciam os seus ativos de capital e seu pessoal (ANDERSEN CONSULTING, 1991: 31). A gestão do tempo torna-se mais crítica na medida em que a automação digital elimina trabalho vivo redundante (nos moldes taylor-fordistas), mas não pode deixar de convocar trabalho vivo aleatório, no qual, a gestão do tempo, de fato, por definição, é difícil mas não a ponto de nos autorizar afirmar que deixou de ser essencial. Pelo contrário, porque complexa, essa gestão se fez mais essencial do que nunca e, justamente por isso, o capitalismo “tardio” investe maciça e decisivamente nas tecnologias digitais 19


de informação e comunicação: para poupar tempo ao, quando não controlar o tempo do, trabalho vivo aleatório que delas se utiliza. O segundo problema nos leva de volta a Marx e à teoria. Ora, 150 anos de muita evolução histórica e científica depois, seria até aceitável que descobríssemos em Marx alguns erros importantes, dadas as condições e limites de sua época, ou que, nessa evolução, alguns de seus postulados básicos pudessem estar superados. Se fosse o caso de revisá-lo, não deveríamos temer a tarefa. No entanto, o que demonstra a força de seu pensamento é justamente o contrário: não poucos equívocos são de seus epígonos, não dele. Marx não entendia o valor de uso da força de trabalho como mera capacidade de transformar e empregar energia no processo de trabalho mas como o emprego de “habilidade, destreza, rapidez” e outros fatores “subjetivos” no processo de trabalho, durante o tempo em que o trabalhador permanecia empregado pelo capital. Em geral, dada a ausência de conceitos informacionais ou semânticos explícitos n‟O Capital, entender este ponto fundamental demandaria uma detalhada discussão hermenêutica impossível de ser efetuada nos limites deste espaço. A questão está razoavelmente discutida na tese de doutoramento deste autor (DANTAS, 2001). Um pouco esquematicamente, revisemos porém várias passagens de Marx. Numa carta a Engels, quando estava começando a estudar a maquinaria, ele comenta:

Mas se olharmos para a máquina na sua forma elementar, não temos dúvidas de que toda a revolução industrial começa, não da força motriz, mas daquela seção da maquinaria que os ingleses chamam máquina de trabalho; não, por exemplo, da substituição do pé que move a roda de fiar, por água ou vapor, mas pela transformação do processo imediato de fiar ele mesmo, e pela eliminação daquela parcela de trabalho humano que não é apenas „dispêndio de energia‟ (como mover uma roda) mas que se refere ao processo, à ação direta sobre o material a ser transformado [...] Mas neste caso do moinho, como no caso da imprensa, da forja, do arado etc., o trabalho propriamente, isto é, bater, esmagar, moer, pulverizar etc., foi realizado desde o início sem trabalho humano, mesmo que a força a mover fosse humana ou animal. Esse tipo de maquinaria é muito antigo [...] A revolução industrial começou tão logo os mecanismos foram empregados onde desde tempos antigos, o resultado final requeria trabalho humano; aqui e não onde, como nos instrumentos lembrados acima, a matéria a ser realmente transformada nunca era tratada pela mão humana, mas onde, pela natureza das coisas, o homem não agia, desde o início, como força (MARX e ENGELS, 1975: 20


129-130). Além de, en passant, esta carta nos revelar que, para Marx (e assim deveria ser para os marxistas), a revolução industrial começa, não com a máquina a vapor (força), mas com a máquina de trabalho substituindo a inteligência operária por um mecanismo automático; ela sustenta a percepção, por Marx, do lugar da mente, comandando o corpo, no processo de trabalho. A força humana pode ser substituída, desde sempre, pela animal, pelos ventos, pela máquina a vapor. Mas a máquina já era claramente percebida, por ele, como meio de substituição da mente humana no “comando” dos movimentos de transformação da matéria (“bater”, “pulverizar”) que, até então, eram exclusivos da “mão”, ferramenta imediata dos sentidos e da mente. Claro que nestes movimentos dava-se consumo entrópico do corpo (dissipação de energia) mas o seu resultado era a transferência da idéia, da imagem de um objeto, da mente do trabalhador para o material trabalhado. Ou seja, pôr-em-forma a matéria. Outro exemplo:

O trabalhador conserva, portanto, os valores dos meios de produção consumidos ou os transfere, como partes componentes do valor, ao produto, não pelo acréscimo de trabalho em geral, mas pelo caráter particularmente útil, pela forma específica produtiva desse trabalho adicional. Como atividade produtiva, adequada a um fim – fiar, tecer, forjar –, o trabalho, através do seu mero contato, ressuscita dos mortos os meios de produção, os vivifica para serem fatores do processo de trabalho e se combina com eles para formar produtos (Marx, 1983/1984: v.1, t.1, p. 166, grifos meus – M.D.). Está claro que, por trabalho útil, Marx entendia alguma qualidade do trabalho – a competência para “fiar”, para “tecer”, para “forjar” – não, meramente, o consumo de força ou energia no exercício dessas atividades, mas sim consumo de energia com uma determinada finalidade. É essa competência que “se combina” com o objeto, coerentemente à dialética sujeito-objeto do conhecimento. No famoso capítulo 13 d‟O Capital, citando, aliás, Andrew Ure, num trecho que fala por si só:

[...] onde quer que uma operação requeira muita destreza e

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mão segura, retirar-se-á, tão rápido quanto possível, dos braços do trabalhador, para confiá-la a um mecanismo específico, que é tão bem regulado que até uma criança pode cuidar dele. No sistema automático, o talento do trabalhador é progressivamente suprimido. (URE, apud Marx, 1983/1984: v.1, t.2, p. 50, grifos meus – M.D.). Ainda no mesmo capítulo:

A máquina-ferramenta é portanto um mecanismo que, ao serlhe transmitido o movimento correspondente, executa com suas ferramentas as mesmas operações que o trabalhador executava antes com ferramentas semelhantes. Que portanto a força motriz provenha do homem ou novamente de uma máquina em nada modifica a essência da coisa (Marx, 1983/1984: v.1, t.2, p. 9, grifos meus – M.D.). Nos Grundrisse, outra passagem onde fica clara a compreensão, por Marx, da principal atividade do trabalhador, enquanto “virtuosidade”, no processo de trabalho, daí porque o seu trabalho, com a mecanização, tornar-se-á “abstração de atividade”:

Não é como no caso do instrumento, ao qual o trabalhador anima, como a outros órgãos, com a sua própria destreza e atividade, e cujo manejo depende, portanto, da sua virtuosidade. A máquina, senhora, no lugar do trabalhador, da habilidade e da força, é ela mesma a virtuosa, possui alma própria presente nas leis mecânicas que operam nela, e tanto quanto o operário consome combustíveis, ela também consome carvão, óleo, visando perpetuar o seu automovimento. A atividade do trabalhador, reduzida a uma mera abstração da atividade, está determinada e regulada em todos os seus aspectos pelo movimento da maquinaria, e não o contrário (Marx, 1973/1974: v.2, p. 219, grifo meu). Mais a frente, numa passagem definitiva:

[...] a matéria-prima se consome ao ser modificada, formada pelo trabalho, e o instrumento de trabalho se consome ao ser desgastado, utilizado nesse processo. Por outro lado, também o trabalho se consome ao ser aplicado, posto em movimento, no qual se gasta certa quantidade de força muscular etc., do operário, esgotando-o. Mas o trabalho não apenas se consome, como, ao mesmo tempo [grifos meus – M.D.], se fixa, se materializa, 22


ao passar da forma de atividade à de objeto; [...] A atividade formativa consome o objeto e se consome a si mesma, mas consome somente a forma dada do objeto para pô-lo em sua nova forma objetiva, e se consome a si mesma unicamente em sua forma subjetiva, como atividade [grifos meus – M.D.]. Consome o objetivo do objeto – a indiferença relativamente à forma – e o subjetivo da atividade [grifos meus – M.D.]; forma uma, materializa a outra. Como produto, no entanto, o resultado do processo de produção é valor de uso (idem: v. 1., p. 240-241, grifos no original, exceto quando indicado os meus). Neste parágrafo, Marx quase recupera aquele significado original de “informação” como ação de pôr-em-forma a matéria. Não esqueçamos que Marx, como qualquer outro intelectual do seu tempo, sabia muito bem latim e grego, e lera os “clássicos”. Ele claramente associa a atividade de trabalho à subjetividade do trabalhador: é esta subjetividade que é transferida ao objeto, não o seu eventual, embora inevitável, cansaço físico. Nada mais dialético... Para concluir essa remissão, não podemos deixar de relembrar a conhecida definição de Marx:

Pressupomos o trabalho numa forma em que pertence exclusivamente ao homem. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a construção dos favos de suas colméias. Mas o que distingue de antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça, antes de construí-lo em cera. No fim, o processo de trabalho obtém um resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador, e portanto idealmente. Ele não apenas efetua uma transformação na forma da matéria natural; realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural seu objetivo, que ele sabe que determina, como lei, a espécie e o modo da atividade e ao qual tem de subordinar sua vontade. Essa subordinação não é um ato isolado. Além do esforço dos órgãos que trabalham, é exigida a vontade orientada a um fim, que se manifesta como atenção durante todo o tempo de trabalho, e isso tanto mais, quanto menos esse trabalho, pelo próprio conteúdo e espécie e modo de sua execução, atrai o trabalhador, portanto, quanto menos ele o aproveita, como jogo de suas próprias forças físicas e espirituais. Os elementos simples do processo de trabalho são a atividade orientada a um fim ou o trabalho mesmo, seu objeto e seus meios (MARX, 1983/1984: v. 1, t. 1, p. 149-150).

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Está clara a unidade, no processo de trabalho, entre o pensar, o idealizar, por um lado, e o desgaste físico, por outro, visando ambos atingir uma finalidade: trata-se do exato conceito de informação, conforme exposto mais acima. Está claro que, para Marx, o capitalista não compra o desgaste físico, até porque, como força, pode também empregar motor a vapor, roda d‟água ou cavalo... O que ele compra é aquele potencial cognitivo; é aquela capacidade de processar significativamente informação dada uma finalidade; é o conhecimento produtivo detido pelo trabalhador e passível de ser empregado por esse trabalhador durante a sua jornada de trabalho. O capitalismo industrial moderno sempre foi “cognitivo”. O conhecimento vem a ser o valor de uso do trabalho, do qual o capital se apropria. Numa leitura da obra de Marx em sua totalidade, perceber-se-á que ele discute, na crítica à Economia Política, esta transferência do conhecimento e do saber, das habilidades e destrezas do trabalho, para o capital. O problema do capital é o de não poder absorver essa atividade cognitiva, sem incorporar junto, por óbvio, o corpo de quem trabalha – é isto que Marx entenderá por subsunção real do trabalho ao capital. “Para o capital, o trabalhador não é pré-condição necessária para a produção, mais sim somente o trabalho” (MARX, 1974: v. 1, p. 459). Esta será a real dialética capital-trabalho, a ser superada se e quando, no processo daquela incorporação mesma, capital e trabalho se resolvam numa síntese superior. Com base em Marx, podemos propor que já se consumou esta incorporação do corpo que trabalha ao capital, nisto necessariamente superando-se o operário marxiano, inclusive o chapliniano, e gerando-se essa pletora de profissionais universitários, cientistas, artistas, inclusive os operário-técnicos atuais que logram efetuar trabalhos produtivos e mais ou menos criativos, nas indústrias científicotécnicas, nas indústrias de grifes, nas produções cinematográficas e desportivas, na internet e nos muitos demais ramos próprios deste capitalismo informacional em que vivemos. A síntese superior, no entanto, ainda está por ocorrer... No momento, o que assistimos, ao invés de um novo salto histórico, é uma caminhada segura para a barbárie, já que o sistema, como contraparte dessa evolução, está produzindo dramaticamente enormes e crescentes levas de excluídos materiais e culturais. Multidão, mas multidão de jihadistas (BARBER, 2003). Marx diria, conforme o caso, “lumpensinato” ou “bárbaros”. Esta é outra discussão. Que fique apenas registrado. Marx, até pelas determinações ontológicas e epistemológicas da sua época, não

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poderia desenvolver uma “teoria da informação” para explicar aquilo que claramente percebia como sendo o valor de uso da força de trabalho: conhecimento, desejo, habilidade, competência. Obviamente essa utilidade incluía também as condições de saúde e força do trabalhador. Trabalhos delicados eram feitos por dedos infantis. Trabalhos pesados, por operários musculosos. Qualquer trabalho, inclusive o “intelectual”, implica desgaste físico e cansaço. Mas isto, parodiando Marx, “não modifica a essência da coisa”.

8. A comunicação produtiva

O modelo estrito de Marx, condicionado à sua época, não poderia se descolar da relação conhecimento/força física conforme as condições técnico-científicas do século XIX e o ainda baixo nível relativo de desenvolvimento das forças produtivas (DANTAS, 2001; DANTAS, 2006; DANTAS, 2007). Na medida em que o capitalismo se desenvolveu, expandindo o trabalho em novas e mais ricas direções – o general intellect –as dimensões informacional-cognitivas do sistema vão ficando cada vez mais explícitas, embora tal não tenha sido bem percebido durante a maior parte do século XX. Atribua-se esta dificuldade ao “paradigma obreirista”, digamos assim, que então marcou o marxismo e as próprias ciências sociais em seu conjunto ao longo desse largo período. É que essas dimensões informacionais, ou melhor, o trabalho diretamente material sígnico, se expandiram principalmente fora e além do chão-de-fábrica. Nos Grundrisse, escreveu Marx: Em segundo lugar, o momento temporal9. O mesmo, em essência, cabe no conceito de circulação. Supondo que o ato de conversão da mercadoria em dinheiro está contratualmente fixado, isto implicará tempo: calcular, pesar, medir. A redução deste momento é, também, desenvolvimento de força produtiva. Estamos ante um tempo concebido exclusivamente como condição exterior à transição da mercadoria em dinheiro; a transição se dá por suposta; se trata aqui do tempo que transcorre durante este ato pressuposto. Isto cai dentro dos custos de circulação (MARX, 1973/1974: v. 2, p. 25). 9

“A circulação se efetua no espaço e no tempo”, escreveu Marx linhas antes. Nesta referência, depois de tratar do momento espacial, ele passa a discutir o “momento temporal”.

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Calcular, pesar, medir – é óbvio que Marx está a nos falar daquilo que, vulgarmente, entenderíamos por informação. É uma das poucas vezes em que ele trata de um trabalho cujo objeto não é a transformação da matéria, mas a produção de material sígnico (ainda que nisto, como sempre, transformando-se matéria e dissipando-se energia). Este trabalho cai nos “custos de circulação”. Porque, aqui, não se tem trabalho transformando materiais que podem apodrecer ou enferrujar em nova forma de matéria que, se não for consumida, também vai apodrecer ou enferrujar (isto é, transformação de valores de uso entrópicos em novos valores de uso entrópicos), por isto, e não porque Marx dixit, o lugar do trabalho informacional de produção material sígnica é na circulação. Estamos tratando de um tempo de trabalho indispensável à realização da mercadoria que não produz, porém, nova mercadoria. Na época de Marx, esta dimensão do capitalismo ainda estava pouco desenvolvida e era quase toda efetuada pelo capitalista em pessoa e um corpo reduzido de auxiliares. Será esta dimensão que o capital fomentará definitivamente através da revolução científico-técnica da virada do século XIX para o XX, nela incorporando muitas novas funções, inclusive a pesquisa científicotecnológica, o planejamento, o marketing, a gestão, ao mesmo tempo e constituindo o mesmo processo em que desenvolvia – e porque desenvolvia – o general intellect. Marx trata da circulação na primeira seção do Livro II d‟O Capital, no qual se percebe que a acumulação do capital será o resultado do movimento dialético da sua valorização-desvalorização – informação-entropia – conforme ela se dá ao longo de suas várias “metamorfoses” formais, enquanto trabalho, mercadoria, dinheiro – e tempo. “Anular o espaço por meio do tempo” (MARX, 1973/1974: v. 2, p. 13), processo que se efetua na circulação, torna-se uma necessidade para o capital e, portanto, “os meios de comunicação e o transporte mesmo não podem se converter em outra coisa que em esferas onde se valoriza o trabalho posto em marcha pelo capital” (idem, ibidem, grifos meus – M.D.). Vivendo em uma época anterior à termodinâmica estatística de Ludwig Boltzmann (1844-1906), Marx não poderia dizê-lo com todas as letras mas claramente percebeu que o prolongamento (entrópico) do tempo em que a mercadoria (tempo coagulado) permanecia apenas como mercadoria potencial, contribuía para negar a valorização (neguentrópica) do capital por meio do trabalho (informação) nele

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incorporado. Marx define o “processo de circulação do capital [como] unidade de produção e circulação, incluindo ambas” (MARX, 1983/1984: v. 2, p. 45, grifos meus – M.D.). Esta unidade se expressa na conhecida fórmula: D – M... P... M’ – D’

O dinheiro adquire mercadorias (inclusive força de trabalho) para, através da produção, gerar mercadoria valorizada que será vendida e transformada em maisdinheiro. No entanto, só haverá D’ > D se o tempo do ciclo total, inclusive daquele consumido em P, for o menor possível. Reduzir o tempo será a função das comunicações, enquanto “ramos autônomos da indústria

nos quais o produto do processo de produção não é um novo produto material, não é uma mercadoria. Entre eles, economicamente importante é apenas a indústria da comunicação, seja ela a indústria de transportes de mercadorias e pessoas propriamente dita, seja ela apenas a transmissão de informações, envio de cartas, telegramas etc. [...] O que, porém, a indústria de transporte vende é a própria locomoção. O efeito útil acarretado é indissoluvelmente ligado ao processo de transporte [...] O efeito útil só é consumível durante o processo de produção; ele não existe como uma coisa útil distinta desse processo, que só funcione como artigo de comércio depois de sua produção, que circule como mercadoria. Mas o valor de troca desse efeito útil é determinado, como o das demais mercadorias, pelo valor dos elementos de produção consumidos para obtê-los (força de trabalho e meios de produção) somados à mais-valia, criada pelo mais-trabalho dos trabalhadores empregados na indústria de transportes (MARX, idem, p. 42-43, grifos meus – M.D.). Daí, em Marx, a fórmula da produção de locomoção, será ligeiramente, mas significativamente, diferente, pois despojada de M’: D – M... P – D’ (P = locomoção)

É natural que Marx, num tempo quando inexistiam o telefone, o rádio e a televi-

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são, desse maior atenção, em sua análise, à indústria do transporte. Mas é essa análise mesma, articulada a toda a sua elaboração teórica e metodológica, que nos autoriza a sugerir a expansão, também, nas fases mais avançadas do capitalismo, de um ciclo específico de produção de comunicação, enquanto processamento, registro e transporte de material sígnico, cuja fórmula geral seria aquela mesma da locomoção, substituindo-se P por I (DANTAS, 2001; DANTAS, 2006). D – M... I – D’ ( I = informação)

Aqui, também, não se produz uma nova mercadoria. Mas aqui, o determinante não será a “existência espacial modificada” do objeto, como na locomoção, mas a “dimensão temporal”, isto é, a dimensão de informação processada e comunicada no tempo, ou seja, a relação aleatoriedade/redundância estabelecida no processo de trabalho mesmo. Em seus últimos cem anos, será nesse I onde o capital crescentemente mais investirá, onde mais e mais expandirá e diversificará seus negócios, inclusive onde principalmente ampliará quantitativa e qualitativamente o emprego – até chegar ao seu atual estágio do capital-informação.

9. Concluindo

Em uma passagem d'O Capital, afirma Marx: Uma máquina que não serve no processo de trabalho é inútil. Além disso, sucumbe à força destruidora do metabolismo natural. O ferro enferruja, a madeira apodrece. Fio que não é usado para tecer ou fazer malha é algodão estragado. O trabalho vivo deve apoderar-se dessas coisas, despertá-las entre os mortos, transformá-las de valores de uso apenas possíveis em valores de uso reais e efetivos. Lambidas pelo fogo do trabalho, apropriadas por ele como seus corpos, animadas a exercer as funções de sua concepção e vocação, é verdade que serão também consumidas, porém de um modo orientado a um fim, como elementos constitutivos de novos valores de uso, de novos produtos, aptos a incorporar-se ao consumo individual como meios de subsistência ou a um novo processo de trabalho como meios de produção" (MARX, 1983/1984: v.1, t.1, p. 153, grifos meus – M.D.).

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Marx terá percebido aquela mesma relação entre informação e neguentropia que nos descrevem a Física e a Biologia contemporâneas. As máquinas, os materiais são trabalho conservado (Marx também diz, “trabalho passado” ou “trabalho morto”) que tendem à degradação entrópica. Mas podem recuperar certa capacidade anterior de fornecer trabalho (ainda que modificado e por que modificado), graças à informação que neles é introduzida por um agente externo – o trabalho vivo. A utilidade deste trabalho – o seu valor de uso – reside exatamente nesta competência, ou conhecimento, para pôrem-forma o trabalho morto, conforme uma dada finalidade: dar-lhe novas formas necessárias à sua utilidade social. Não haverá mercadoria sem a utilidade que lhe é conservada ou adicionada pelo fator subjetivo do processo de trabalho, pela força de trabalho em ação. Enquanto o trabalho, por meio de sua forma adequada a um fim, transfere o valor dos meios de produção ao produto e o conserva, cada momento de seu movimento cria valor adicional, novo valor. […] Esse valor forma o excedente do valor do produto sobre seus componentes devidos ao valor dos meios de produção. Ele é o único valor original que surgiu de dentro desse processo, a única parte de valor do produto que é produzida pelo próprio processo. Certamente substitui apenas o dinheiro adiantado pelo capitalista na compra da força de trabalho e gasto pelo próprio trabalhador em meios de subsistência" (idem: v.1, t.1, pgs. 170/171, grifos meus – M.D.). Em suma, a informação significativa, processada na interação do sujeito trabalhador com o seu objeto, adiciona um novo valor ao trabalho passado. Nisto, este acréscimo de valor não derivou de qualquer “exploração capitalista”. Ele é intrínseco à relação entre o trabalho útil e o seu objeto – não é “insumo”, algo externo, mas é constitutivo do trabalho mesmo. A função do capital será a de ampliar ao máximo essa capacidade de o trabalho vivo adicionar um novo valor, na condição de nova utilidade, aos produtos de trabalho passado – para isto, como vimos, agregando trabalho ao tempo, um trabalho que, por isto mesmo, será cada vez mais “intelectual”, “cognitivo”, “simbólico”, “espiritual”, “artístico”, que outros nomes se queiram dar às atividades do general intellect. Quanto mais, por um lado, logra bem realizar essa agregação, quanto mais, por outro, condensa o “tempo coagulado” do trabalho no limite de zero, logo anula suas próprias condições de realização e acumulação na forma mercadoria. Se o valor que o trabalho vivo concreto acrescenta aos materiais e meios de tra-

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balho submetidos à sua ação, é a informação que neles introduz, isto é, alguma diferença ao material pré-existente, por isto mesmo, para fins de troca, esta nova utilidade não é equiparável. A medida de troca há que ser indiferente à qualidade dos objetos. Nos tempos de Marx, sendo essa relação informação/entropia predominantemente endógena ao chão-de-fábrica, o tempo de trabalho (social médio), logo o “trabalho igual”, ou abstrato, poderia ser adotado teoricamente como medida de equalização de valores. O tempo de trabalho físico, este mero “dispêndio de força de trabalho humano, sem consideração pela forma como foi despendida” (MARX, 1983/1984: v. 1, t. 1, p. 47) mede a entropia do próprio trabalhador a lhe ser neguentropicamente reposta através dos bens de salário. Como dito antes, se o trabalhador apenas trabalhasse o suficiente para a sua recomposição neguentrópica, não deixaria de produzir valores, mas não geraria acumulação. Faria o seu trabalho num ritmo lento ou rápido, como lhe interessasse, sem muita pressão externa, em função de outras circunstâncias culturais ou da relação autonomamente estabelecida entre o seu tempo de trabalho e o seu tempo livre. Tal como é o ritmo de trabalho nas sociedades pré-industriais. O capital obrigou esse trabalho que cria valor “a cada momento do seu movimento”, a trabalhar pelos máximos momentos possíveis ao longo de um dia de 24 horas. E quando o dia de 24 horas, o cansaço do homem ou da mulher, a pressão social forçouo a limitar esse tempo de trabalho, expandiu-o na direção intensificada, na qual quase se torna indiferente, para a acumulação, trabalhar 6, 8 ou 10 horas. O decisivo aí será a dimensão da informação processada e comunicada, a relação aleatoriedade/redundância por unidade de tempo e complexidade do problema. O valor do resultado do trabalho (“mercadoria”) passa a ser função exclusiva do valor da informação processada, trabalho útil, mas o valor dessa informação continua a ser, como vimos, função do tempo. Embora pudesse perceber que o capitalismo tendia a reduzir o trabalho a “mera abstração de atividade”, Marx não poderia examiná-lo além do ponto em que chegou. Mais do que isso: como elaborava uma crítica à Economia Política (no sentido amplo, kantiano, da expressão), Marx buscava demonstrar como o capital se apropriava do conhecimento para a produção detido pelo trabalho (não confundir com “trabalhador” ou “operário”), e, nisto, denunciar como a Economia Política legitimava essa apropriação ao definir a mercadoria como esse conhecimento objetivado (“coagulado”) no produto, para efeito de troca. Marx lembra, nos Grundrisse, que “a fome é a fome, mas a fome

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que se satisfaz com carne cozida comida com garfo e faca, é uma fome muito diferente daquela que devora carne crua com ajuda de mãos, unhas e dentes” (MARX, 1973/1974: v. 1, p. 12). Ou seja, há uma dimensão sócio-cultural, logo semiótica, na produção e consumo de valores, que não pode ser ignorada mas que é ignorada pelo capital, logo por sua Economia Política (e mais drasticamente ainda, pela Economia neo-clássica que se pretende “pura”). A Economia Política, sempre nos termos da crítica de Marx, só pode ser Economia Política se ignorar os valores sócio-culturais concretos e reduzir todo o valor humano, inclusive o trabalho, a uma abstração de valor, necessária porém à quantificação monetária da troca. Para explica-lo, Marx consumiu sua vida... Informação, como trabalho vivo determinando o seu valor de uso; e neguentropia, como trabalho passado definindo o seu valor de troca, são duas grandezas distintas. No seu tempo, Marx poderia dizê-lo assim:

Mas o trabalho passado que a força de trabalho contém e o trabalho vivo que ela pode prestar, seus custos diários de manutenção e seu dispêndio diário, são duas grandezas inteiramente diferentes. A primeira determina o seu valor de troca, a outra forma seu valor de uso. O fato de que meia jornada seja necessária para mantê-lo vivo durante 24 horas não impede o trabalhador, de modo algum, de trabalhar uma jornada inteira. O valor da força de trabalho e sua valorização no processo de trabalho são, portanto, duas grandezas distintas. Essa diferença de valor, o capitalista tinha em vista quando comprou força de trabalho. Sua propriedade útil, de poder fazer fios ou botas, era apenas uma conditio sine qua non, pois o trabalho para criar valor tem de ser despendido em forma útil. Mas o decisivo foi o valor de uso específico dessa mercadoria ser fonte de valor, e de mais valor do que ela mesma tem. Esse é o serviço específico que o capitalista dela espera. [...] O possuidor de dinheiro pagou o valor de um dia da força de trabalho; pertence-lhe, portanto, a utilidade dela durante o dia, o trabalho de uma jornada. A circunstância de que a manutenção diária da força de trabalho só custa meia jornada de trabalho, apesar de a força de trabalho poder operar, trabalhar, o dia inteiro, e por isso, o valor que sua utilização cria durante um dia é o dobro do seu próprio valor de um dia, é grande sorte para o comprador, mas, de modo algum, uma injustiça contra o vendedor (Marx, 1983: v. 1, t. 1, p. 159-160 – grifos meus, MD). A “propriedade útil” do trabalho é saber fazer fios ou botas. Mas para isso, o 31


corpo do trabalhador tem que estar minimamente alimentado, vestido, saudável – em condições de fornecer trabalho. Aquela grandeza se poderia medir, até certo ponto, pelas equações de Shannon, Brillouin, principalmente Atlan, embora, sobretudo, somente poderá ser de fato analisada e dimensionada por métodos qualitativos (semióticos). Já esta outra grandeza poderá ser descrita a partir das equações de Carnot, Clausius, Maxwell, Boltzman. Lá, informação recupera neguentropia. Aqui, neguentropia dissipa-se entropicamente. Pretender que o valor de uso consistiria na possibilidade de o trabalhador gastar suas energias durante muito mais horas do que aquelas necessárias à sua recomposição neguentrópica, seria ademais um absurdo físico. Marx não o cometeria... É a subjetividade do trabalho, adotando as palavras de Marx, que pode permanecer aplicada ao processo capitalista de produção, por tempo muito maior do que seria aplicada, pelo próprio trabalhador, se apenas visasse à sua própria reprodução vital – como o fazia nas condições culturais pré-industriais. A mais-valia se funda numa diferença que faz uma diferença. Foi Marx quem o disse. A mais-valia se funda na informação. A relação da informação com o capital, conforme aqui proposto, vai bem além do “nível das aparências fenomênicas”, ao contrário do que acusa Bolaño em seu “Prefácio” (in LOPES, 2008: 14). Esta construção teórica, demonstrando-se aderente ao método e à teoria, denuncia, por isto mesmo, o fetiche absoluto de qualquer noção de informação como mercadoria, posto que se trata de trabalho vivo concreto, não objetivado. Logo, acusa a irracionalidade extrema à qual chegou o sistema sócio-econômicocultural do capital, ao insistir em tornar mensurável e apropriável o produto de um trabalho – conhecimento – cuja própria natureza é anti-entrópica, indivisível, enraizadamente social. Entender a informação como trabalho e seu produto como conhecimento; entender seu lugar na circulação e o lugar da circulação no processo de valorização; explicam-nos: i) a internet – redução do tempo de rotação do capital ao limite de zero; e ii) a crescente pressão do capital para naturalizar a propriedade intelectual (criminalização da “pirataria”), por meio da qual pode açambarcar, na forma de rendas informacionais, as riquezas criadas por um trabalho já despojado de qualquer medida de troca (DANTAS, 2001; DANTAS, 2008). Porque a apropriação da riqueza do trabalho só se pode dar, no capitalinformação, sob a forma de renda de monopólio, este sistema teve que introduzir a lógi-

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ca rentista e especulativa no âmbito da própria produção da mercadoria, fenômeno muito corretamente percebido por Bolaño (in LOPES, 2008: 18). Mas aí, não podemos mais falar de mercadoria, pois já não se trata mais da troca de equivalentes, mas de obtenção, por quem necessita e pode pagar, de uma licença para acessar os produtos do trabalho açambarcados por meio de “direitos intelectuais” ou do controle direto dos meios físicos de acesso – fenômeno percebido por Jeremy Rifkin que Ruy Lopes resume a páginas tantas (LOPES, 2008: 93 passim). Em suma, a proposta aqui exposta se demonstra também teoricamente operacional, ao nos revelar, para além da imediatidade, as mediações que explicam dimensões fundamentais do capitalismo atual. É o oposto de definir “informação como conhecimento codificado e plasmado em um suporte físico”. Esta definição, sim, fenomênica serve exatamente aos interesses de um sistema que pretende nos fazer crer que informação possa ser mercadoria... Para o capital, informação e conhecimento, definidos como “dados” e “propriedade intelectual”, não passariam de novos meios que devem lhe servir para ainda seguir se reproduzindo dentro dos limites de “sua mesquinha base”. A crítica a esta nova Economia Política deverá ser também um meio de “fazer saltar essa base pelos ares” 10.

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O capital “se propõe a medir com o tempo de trabalho essas gigantescas forças sociais assim criadas e reduzi-las aos limites requeridos para que o valor já criado se conserve como valor. As forças produtivas e as relações sociais – umas e outras, aspectos diversos do desenvolvimento do indivíduo social – surgem diante do capital unicamente como meios, e não são para ele mais do que meios para produzir suportando-se sobre sua mesquinha base. No entanto, constituem as condições materiais necessárias para fazer saltar essas bases pelos ares” (MARX, 1973/1974: v. 2., p. 229).

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Informação, conhecimento e valor - Comentário às indagações de Marcos Dantas Ruy Sardinha Lopes1

Palavras-chaves: Informação, conhecimento, capitalismo, valor, dialética Information, Knowledge, capitalism, value, dialetic Información, conocimiento, capitalismo, valor, dialéctica

Resumo Este artigo dialoga com algumas considerações feitas por Marcos Dantas em seu artigo Informação, Conhecimento e Valor – um diálogo com Ruy Sardinha Lopes pretendendo, desta forma, contribuir para o debate sobre algumas questões chaves para a EPC Abstract This paper dialogues with some considerations done by Marcos Dantas in his article Informação, Conhecimento e Valor – um diálogo com Ruy Sardinha Lopes intending , in such a way, to contribute for the debate on some questions for the EPC. Resumen Este trabajo dialoga con algunas consideraciones hechas por Marcos Dantas en su artículo Informação, Conhecimento e Valor – um diálogo com Ruy Sardinha Lopes pretendiendo, de esta forma, contribuir para el debate sobre algunas cuestiones llaves para a EPC.

Certamente notará o leitor o quanto meu livro, um primeiro passo neste campo disciplinar em formação, a EPC, é devedor das análises solidamente constituídas de três de nossos melhores pensadores a esse respeito: Alain Herscovici, Cesár Bolaño e Marcos Dantas. A este último, a quem agora também devo a importância deste diálogo , tributo o interesse primevo por esta seara, uma vez que foi a partir de sua obra seminal que este horizonte a mim se descortinou. Infelizmente o grande público não pôde ainda se beneficiar das sugestivas e precisas análises ali presentes, uma vez que suas mais de 500 páginas não receberam a chancela de alguma 1

Ruy Sardinha Lopes é doutor em Filosofia, professor e pesquisador do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da EESC-USP e autor do livro Informação, Conhecimento e Valor. São Paulo, Radical Livros, 2008


editora nacional. Carência esta parcialmente suprida pela divulgação de alguns conceitos basilares ali contidos através dos diversos artigos e capítulos de livros que o autor vem produzindo desde então. No meu caso, não se tratou, na obra em questão, de empreender uma análise crítica e detida de tais conceitos , o que demandaria esforço analítico e espaço reflexivo incompatíveis com os rumos da pesquisa em curso àquela época, mas de tirar partido e tensionar alguns resultados ali postos à luz de nossas preocupações centrais. Assim, não foi objetivo de minhas pesquisas refletir sobre o estatuto epistemológico ou ontológico ( e os eventuais desvios de uma provável “essência”) deste “mais vicioso dos camaleões conceituais”, a informação, que como mostra Yuexio (lembrado por Dantas) possui mais de 400 definições, mas explicitar o modo de funcionamento – e seus eventuais “emperramentos” – de um sistema econômico que, segundo boa parte da literatura, se dizia funcionar movido pela informação e/ou conhecimento. Como o título de meu livro busca sugerir e as análises ali contidas pretenderam evidenciar, os conceitos de informação e conhecimento ali trabalhados devem ser,evidentemente, referenciados ao conjunto das transformações históricas e processos de burocratização trazidos pela reestruturação produtiva em curso. Por não se tratar de um movimento meramente do conceito mas, materialisticamente falando, de formações sociais concretas; é justamente para as contradições postas por este processo – cuja tarefa da crítica é justamente apreendê-las conceitualmente – que tal empreitada volta-se, ainda que, como aponta Marcos Dantas, um longo percurso, inclusive de precisão conceitual, esteja por ser trilhado. Destarte, ainda que concordemos com a necessidade, também política, de um embate epistemológico não vimos muito sentido em retomar, ali, um autor que trabalhamos na década de 1990 (por época do mestrado e nas incursões pelas teorias da comunicação) justamente para criticar os aportes comunicacionais então em voga. Em todo caso, a lembrança serve para rememorar que também para Sfez a metáfora biológica corresponde a uma visão ultrapassada dos processos de comunicação, caracterizada, contemporaneamente, por uma espiral delirante e tautológica. Embora não tenha sido nossa intenção instaurar um novo methodenstreit, foi justamente a necessidade de contornar essa carência e pensar uma informação e conhecimento sob as condições atuais de reprodução do capital que nos levou a comparar o método derivacionista adotado por Bolaño com o de matriz termodinâmica defendido por Dantas. Se, no primeiro capítulo procuramos indicar o substrato histórico que conferiu centralidade econômica à informação e ao conhecimento, a constelação teórica assumida neste e no capítulo seguinte - forma, abstração, posição, adequação, negação etc – deve ter sugerido ao leitor , mais do que uma matriz marxiana, a recuperação da leitura hegeliana (nesse caso, através das análises de Ruy Fausto e Leda Paulani2). Neste sentido, num exercício de síntese, 2

Uma versão preliminar de nossa tese explicitava a leitura que Ruy Fausto fez da obra de Marx, recuperando sua dívida com a lógica hegeliana. Por questão de economia do texto tais análises foram


poderíamos dizer que nosso esforço residiu em mostrar em primeiro lugar a validade, no processo de valorização, da forma-mercadoria; a alteração da substância dessa forma (que, para além das evidências quantitativas e dos processos produtivos existentes agora se tornou informacional e/ou cognitiva) e, sobretudo, a inadequação desta substância à formamercadoria tradicional. Ou seja, e aqui vai uma discordância da leitura que fiz de Marcos Dantas, se as capacidades sígnicas ou informacionais sempre acompanharam o processo de transformação da natureza pelo homem, do ponto de vista do capital elas eram pressupostas. Somente com as transformações recentes (vislumbradas por Marx como possibilidade lógica) é que ganham posição. Daí decorre uma série de questões, relativas tanto à lógica de um sistema que não mais consegue adequar plenamente sua forma ao conteúdo, tornando-se cada vez mais poroso às contradições que lhes são inerentes( donde, em nosso entender, a importância de se deslindar as formas do fetiche na contemporaneidade), mas também às novas formas de valorização, de obtenção da mais-valia e aos mecanismos de subsunção do trabalho ao capital. Tendo como certo que o processo de abstração é essencial ao conhecimento científico e ao pensamento filosófico, devemos tomar a devida precaução de não considerarmos os conceitos aí produzidos como puros universais abstratos, postura esta presente em boa parte das ciências econômicas. Assim, embora as ciências – naturais, econômicas, da informação tenham contribuído de forma incontestável na compreensão dos fenômenos econômicos e comunicacionais, não estaria aí apontado o seu limite? Estamos convencidos que o professor Dantas, possuidor de um raciocínio dialético refinado, não partilha destas convicções. Mas, ao recuperarmos o conceito de informação oriundo dos sistemas organizados, da cibernética (mesmo que de segunda ordem) ou associá-lo aos gastos energéticos dos sistemas termodinâmicos (ainda que Dantas seja cuidadoso e aponte uma série de mediações referente a sua transposição para os fenômenos comunicacionais) não estaríamos afirmando que a sociedade possui o mesmo status epistemológico que a natureza? O corpo teórico, preciso e formalizado, oriundo destas áreas realmente ilumina ou, ao contrário, ofusca as particularidades dos diversos meios sociais e políticos aos quais tais conceitos se vinculam? Não teria (seguindo as sugestões de Leda Paulani) este corpus teórico uma dificuldade para “capturar” certos objetos sociais (em particular esta forma-mercadoria informação)?

suprimidas da versão final, estando, entretanto, assimiladas pelas formulações ali contidas. Neste breve comentário não teremos condições, é óbvio, de esmiuçar tais questões. Indico, pelo menos, ao leitor interessado, além dos livros de Fausto( Marx: Lógica e Política, Tomo I, II e III. São Paulo. Editora Brasiliense), a tese de Leda Paulani (Do conceito de dinheiro e do dinheiro como conceito. Tese de doutorado. Universidade de São Paulo. Faculdade de Economia e Administração. 1992) e o capitulo1 – Questões Metodológicas: a dialética marxista da tese de doutorado de Rodrigo Alves Teixeira (Dependência, desenvolvimento e dominância financeira: a economia brasileira e o capitalismo mundial. Universidade de São Paulo, Faculdade de Economia e Administração, 2007)


Assim, aquilo que aos olhos do cientista aparece como tateante ou impreciso, não se refere, do ponto de vista da dialética, exclusivamente ao pensamento, mas à própria realidade (as contradições são, deste ponto de vista, reais e somente o discurso dialético, ao adentrar o campo das pressuposições objetivas, mostra-se adequado a estes objetos). Desta forma a visada obscura é, para Marx mais do que para Hegel, aquela que têm a textura dos objetos do mundo. Em outras palavras, é o campo social que deve presidir a adequação do discurso ao seu conteúdo. Apenas para ilustrar, lembro o que apontei no livro: as determinações referentes as relações homem/natureza, trabalho concreto/trabalho abstrato etc., sintetizadas na forma mercadoria, devem-se, como Sohn-Rethel apontou, não a um produto mental, mas aos seus feitos, seus negócios; por isso essa abstração é real. É nesse sentido, o de melhor capturar a textura do campo social em questão, que a aplicação, por Bolaño, do método da derivação das formas ao campo das comunicações nos pareceu mais pertinente. Como lembra o autor ao prefaciar meu livro, o conceito de informação, não idealista e adequado às determinações gerais do modo de produção capitalista, por ele trabalhado vai da informação “objetiva” à sua forma fenomênica como mercadoria, passando por seu caráter classista, a serviço da produção capitalista. Neste segundo momento, explicitase a contradição na forma da comunicação, uma vez que se exige não apenas uma informação unidirecional e organizada de acordo com as necessidades da acumulação, mas também uma comunicação horizontal e cooperativa entre os trabalhadores individuais, ao mesmo tempo pró-ativos e resistentes. É, pois, a essa tessitura classista que este método dá acesso. Se o capitalismo monopolista exigiu, para seu desenvolvimento e consolidação, esta informação, as necessidades ulteriores tanto do processo produtivo quanto da concorrência passaram a exigir novas condições técnicas, impondo, por exemplo, o aperfeiçoamento dos meios de comunicação a distância (conferindo centralidade a um outro tipo básico de informação – “que se agrega como mais um insumo ao processo produtivo e que, controlada pelo corpo técnico e burocrático da empresa capitalista, é sempre, efetiva ou potencialmente, MERCADORIA-INFORMAÇÃO”3. É, portanto, para essa informação – ou em nossos termos para a forma-mercadoria informação - que nossa atenção se voltou, prioritariamente. Assim, se como aponta Bolaño, grande parte dos liberais e pós-modernos incorrem no erro de ignorar a essência contraditória da informação sob o capitalismo; tratamos, em primeiro lugar, de explicitar algumas contradições inerentes à forma-mercadoria informação e, em segundo lugar, indicar a necessidade, para a superação das análises que enxergam aí os elementos de esgotamento da forma-valor, de voltarmos à esfera da produção – do valor, evidentemente. Infere-se, assim, que é do próprio capital a tentativa de dar às forças anímicas, ao fundo comum de conhecimento a forma objetivista apontada por Bell (que, aliás, também foi o 3

BOLAÑO, Cesar Indústria Cultura, Informação e Capitalismo. São Paulo:Hucitec/Polis, 2000, p.47.


primeiro a observar que nesta nova fase as contradições de fundo do capitalismo seriam culturais). De nossa parte, coube mostrar que não sendo propriamente uma “coisa”, essa substância escapa aos ditames do capital (ou a adequação posta pela forma-mercadoria tradicional) implicando uma série de incoerências que terminam por comprometer o próprio processo de valorização (como aliás, vem demonstrando Alain Herscovici). Assim, ainda que concordemos com as observações de Dantas que todo conhecimento é codificado e que mesmo o conhecimento subjetivo é conhecimento registrado – nas estruturas da mente e do corpo, o que nos pareceu oportuno na dicotomia “conhecimento tácito”/”conhecimento codificado” (e que, como apontamos terá implicações importantes para a economia da inovação e do conhecimento) de Dominique Foray e Michel Callon foi o chamado à atenção para a resistência que o conhecimento “tácito” impõe aos processos de cristalização (ou de apropriação/expropriação) que nos pareceu pertinente. Dito em outras palavras: a vagueza, espontaneidade, indescritibilidade etc do conhecimento registrado nas estruturas mentais e corporais do trabalhador, agora dito “intelectual”, ao mesmo tempo que recoloca a necessidade do trabalho vivo na geração do valor (embora, agora, como sujeito efetivamente negado), impõe limites a esse processo (o tópico “resistências e insistências” e as considerações finais do meu livro procuram apontar alguns desses limites) e reabre a discussão a nosso ver central nos dias de hoje sobre os mecanismos de subsunção (formal, real) do trabalho (ou das capacidades sígnicas, ou do fundo comum de conhecimento) ao capital. Por último, no tocante à questão do valor, a se dar ouvidos a uma boa parcela da crítica atual, podemos afirmar que o lócus da criação do valor teria se deslocado, pelo menos potencialmente, do chão da fábrica para o trabalho “do conhecimento sobre o conhecimento, da informação sobre a informação). O que nosso trabalho argumenta é que tal deslocamento implicou uma mudança de qualidade na substância do valor. Assim, tem razão Marcos Dantas ao lembrar que, para Marx, “o tempo de trabalho objetivado nos valores de uso das mercadorias é tão exatamente a substância que os torna valores de troca, e daí mercadorias, como também mede sua grandeza determinada de valor *...+”. Marx, como não poderia deixar de ser, soube como ninguém extrair das condições materiais de sua época as determinações concretas da forma-valor, de onde se infere a discussão entre agregar ou poupar tempo, explicitadas na relação entre mais-valia absoluta e relativa e, no que diz respeito à realização, na necessidade de se reduzir o tempo de giro pela compressão espaçotempo (e nesse sentido, como procuramos indicar, a matriz termodinâmica se ajusta perfeitamente a este universo). O que, entretanto, a “economia da inovação” e até mesmo boa parte daqueles que pensam o “trabalho imaterial” ou “cognitivo” (não obstante suas inúmeras impropriedades) vêm mostrando é que, ainda que a poupança ou o desperdício de tempo determinem grandes ganhos ou perdas de capital (e,portanto, se busque incessantemente aperfeiçoar os mecanismos técnicos e gerenciais de poupança de tempo) isso não é o essencial, importa a qualidade da informação criada. Por isso falamos em mudança de substância da forma-valor. É claro que isso traz inúmeras conseqüências para a teoria do valor, sua geração e realização. A oposição entre a temporalidade requisitada pelos processos produtivos regidos pela


obsolescência programada e aquela requerida pela pesquisa e desenvolvimento, por exemplo, é uma delas. A questão da medida e da passagem do valor ao preço outra. Donde se falar, por consequência, na desmedida do valor ou até mesmo no fim da teoria do valor. Se partilhamos a crença numa mudança de substância, não cremos ser possível falar no fim da forma-valor. E isso porque, para Marx, embora o tempo possa se constituir como substância e medida do valor, sua geração deve-se essencialmente à conformação de determinadas relações de produção. Estas, apesar de todo o discurso em prol do fim das classes sociais, da liberdade do trabalhador intelectual e de um certo esfumaçamento destas relações, continuam configurando novos espaços coercitivos e mecanismos de exploração. Cabe, portanto, à crítica elaborar os conceitos que consigam capturar as novas texturas a partir das quais o sistema se perpetua. Assim, não obstante o papel estratégico das cruzadas epistemológicas e a urgente necessidade de formulações de corpus teóricos aderentes à dialética, a explosão das bases de sustentação do sistema também requer a explicitação de seus modos de funcionamento ou, para recuperarmos a tradição da teoria crítica, uma crítica imanente capaz de capturar as pressuposições do sistema em vigência.


Informação, Conhecimento e valor: alguns esclarecimentos epistemológicos necessários. Alain Herscovici *

RESUMO O objetivo deste artigo consiste a fornecer elementos para construir problemáticas relevantes no que diz respeito às novas formas de produção e de apropriação do valor, na fase atual do capitalismo dito “informacional”. Esta construção será elaborada a partir de uma análise crítica do texto de Marcos Dantas “Informação, Conhecimento e Valor. Um diálogo com Ruy Sardinha Lopes”. Palavras chaves: Informação- Valor trabalho. Redes eletrônicas- Mercadoria.

ABSTRACT Information, Knowledge and value: some necessary epistemological elements

The purpose of this paper consists in studying the pertinent problematic linked with the new forms of production and appropriation of the value, in the “informational” capitalism. “Informação,

This will be made from a critical analysis of Conhecimento

e

Valor.

Um

diálogo

Marco Dantas´ paper com

Ruy

Sardinha

Lopes”(Information, Knowledge and Value. A dialogue with Ruy Sardinha Lopes) Key words: Information – Labor value – Networks –Commodities.

*

Doutor em Economia pelas Universidades de Paris I Panthéon-Sorbonne e de Amiens, Coordenador do Grupo de Estudo em Macroeconomia (GREM) e do Grupo de Estudo em Economia da Cultura, da Comunicação, da Informação e do Conhecimento (GECICC) Programa de Pós-Graduação em Economia (PPGEco) da UFES, Professor e Coordenador do PPGEco, Sócio fundador da Associación Latina de Economia Política de la Información, Cultura y Comunicación (ULEP-ICC) e pesquisador do CNPq (email: alhersco.vix@terra.com.br).


RESUMO Información, conocimiento y valor: algunas aclaraciones epistemológicas necesarias.

El objetivo de este documento es proporcionar elementos para construir las problemáticas pertinentes en relación con las nuevas formas de producción y apropiación

del

valor

en

la

fase

actual

del

capitalismo

denominada

"informacional". Esta construcción se obtuvieron de un análisis crítico del texto de Marcos Dantas "Información, conocimiento y valor. Un diálogo con Sardina Ruy Lopes” . Palabras clave: Información-Valor trabajo. Redes electrónicas - Mercancías.

INTRODUÇÃO

O presente texto propõe-se a explicitar e a definir as problemáticas relevantes no que diz respeito à relação que existe entre a Informação, o Conhecimento e a criação do valor econômico. Esta discussão será feita no âmbito de uma abordagem marxiana, ou seja, de uma abordagem ligada à teoria do valor trabalho; por outro lado, o ponto de partida é constituído pelo texto de Marcos Dantas “Informação, Conhecimento e valor. Um diálogo com Ruy Sardinha Lopes”1. É preciso ressaltar a importância deste debate: i) Para vários autores, a informação e o conhecimento constituem as novas fontes do valor, no âmbito da “nova economia” (Castells, 1988); no entanto, não tem uma análise

1

Texto apresentado no XVIII Encontro Nacional da COMPÓS, GT Economia Política e Políticas de Comunicação Belo Horizonte/MG, 2009.


aprofundada dos mecanismos econômicos que permitem sustentar esta tese. Propõe-me a fornecer elementos para estudar tais mecanismos. ii) Por outro lado, uma série de discursos de cunho antropológico ou sociológico afirma que esta economia do conhecimento constitui uma superação do capitalismo, pelo fato de todos os cidadãos terem acesso à Informação e ao conhecimento 2. São duas abordagens possíveis: a primeira afirma que o sistema evolui para uma forma de democracia digital e de socialismo. Neste caso, a própria lei do valor deixou de vigorar. A segunda abordagem, ao contrário, mostra que o sistema continua sendo capitalista, mas que as modalidades de criação e de apropriação social do valor se modificaram, com o desenvolvimento de todas as formas de capital intangível; trata-se de estudar essas novas modalidades. O debate que pretendo iniciar se relaciona, obviamente, com esta segunda problemática. Numa primeira parte, partindo do texto de Dantas, farei algumas observações gerais relativas à definição das problemáticas relevantes; numa segunda parte, analisarei mais especificamente alguns pontos levantados neste mesmo texto. Finalmente, numa terceira parte, fornecerei elementos para elaborar uma agenda de pesquisa construída a partir dessas problemáticas.

I) Observações gerais 1) Algumas questões epistemológicas No que diz respeito às observações epistemológicas, não entendo o que Dantas define como metodologia monista (op. cit., p.4). A “identidade sujeito-objeto” (Idem) significa que a própria definição do objeto de estudo depende de uma série de variáveis sociais e históricas? Neste caso, autores como Tomas Kuhn e Pierre Bourdieu, por exemplo, já formularam este tipo de conclusões.

2

É a tese de Antonio Negri, com o conceito de comuns.


Por outro lado, não vejo porque o fato de utilizar determinadas categorias analíticas como conhecimento tácito/codificado seria incompatível com a metodologia marxiana: o conhecimento tácito corresponde ao conceito de trabalho vivo, e o conhecimento codificado àquele de trabalho “morto”. O valor é criado a partir do momento que o trabalho vivo põe em movimento, segundo as palavras de Marx, uma determinada quantidade de capital: no âmbito da economia da informação, isto significa que apenas o conhecimento tácito aplicado ao conhecimento codificado cria valor 3. Finalmente, não entendo porque a análise de Lopes (2008) é comparada com a análise de Negri: para este último,

o capitalismo cognitivo constitui uma superação do

capitalismo, à medida que as modalidades de apropriação da informação e do conhecimento seriam intrinsecamente sociais (programas livres, creative commons, etc.), o que se concretiza no “comum”: nem Bolaño nem Lopes formulam este tipo de conclusões.

2) Entropia e Economia Os mecanismos ligados à entropia e à neguentropia são utilizados sem definir previamente esses diferentes conceitos, o que torna de difícil compreensão a argumentação do autor. Trabalhos fundamentais como o livro de Georgescu-Rogen

4

poderiam ser utilizados e permitiriam esclarecer o debate. Esses conceitos foram amplamente utilizados na Ciência Econômica: a partir do estudo dos sistemas complexos, uma serie de modelos foram elaborados para ressaltar a instabilidade estrutural do sistema; a este respeito, a análise que Vercelli (1985) faz de Marx, de Keynes e de Schumpeter, é de primeira importância para este debate.

3) Valor e Informação 3 4

Para uma formalização deste argumento, ver Herscovici A., Bolaño C. (2005) .

Georgescu-Roegen, Nicholas The Enthropy Law and the Economic Process, Harvard UniversityPress, Cambridge, Massachusetts, 1971.


Se, conforme afirma o autor, a informação está ligada à esfera da circulação, ou seja, às atividades que se relacionam com a realização das mercadorias (Dantas, 2009, p. 21), e se o trabalho vivo permite “pôr em forma o trabalho morto”, é preciso reconsiderar as modalidades de criação de valor no capitalismo atual, e rediscutir o próprio conceito de mercadoria, da maneira como este é definido por Marx 5. Será que o autor vai nesta direção quando ele afirma que “não podemos mais falar de mercadoria, pois já não se trata mais de troca de equivalentes, mas de obtenção, por quem necessita e pode pagar, de uma licença” (Idem, p. 27)?

II) Valor e Informação: a análise de Dantas

1) Informação e Ciência Econômica: o estado da arte Contrariamente ao que afirma o autor (p. 6), os diferentes economistas que trabalharam a respeito da economia da informação não assimilam esta informação “à notícia, ou ao evento que realmente aconteceu”. À partir do final dos anos 60, o debate relativo à natureza da informação é fundamental na Ciência Econômica; já que o sistema walrasiano de concorrência pura e perfeita não permite explicar a realidade econômica, os economistas começaram a estudar as diferentes “imperfeições” relativas ao sistema de preços e ao tipo de informação que ele permite divulgar. i) Economistas do mainstream estudaram igualmente as diferentes formas de imperfeições da informação: Milton Friedman, Kenneth Arrow, Lucas, Sargent e Wallace, entre outros. A problemática central consiste em estudar em que medida o sistema de preços permite divulgar as informações necessárias ao funcionamento dos mercados, e quais são as implicações das diferentes falhas deste sistema de preços. A este respeito, é interessante observar que mesmo economistas neoclássicos como Varian (2003) reconhecem que 5

A este respeito, ver Herscovici Alain (2008).


determinados mercados (os mercados ligados à internet) não podem mais ser analisados a partir do instrumental neoclássico walrasiano. Os trabalhos pioneiros de Arrow (1962) mostram claramente que os bens e serviços ligados à Informação e ao Conhecimento são bens específicos: eles produzem externalidades positivas para os outros agentes, e os produtores não podem controlar todas suas modalidades de apropriação (a retro-engenharia). ii) Os trabalhos de Stiglitz e de Akerlof ressaltam os limites informacionais do sistema de preços, e o fato que, em função da natureza dos bens e dos comportamentos dos agentes, os mercados não são eficientes. Essas análises estudam as implicações ligadas à existência de assimetrias de informação e mostram que, na maior parte dos casos, os mercados não são eficientes. Essas assimetrias da informação podem ser explicadas a partir da natureza dos bens: quando trata-se de bens de experiência (experience goods), por natureza, o sistema de preços não tem condições de divulgar as informações relativas às características qualitativas desses bens. Neste caso, os componentes não mercantis permitem compensar as falhas do sistema de preços: clubes, comunidades on line, redes peer to peer, etc... O caráter de bem público favorece o aparecimento e o desenvolvimento dos comportamentos oportunistas: os comportamentos de free-rider, por exemplo, ressaltam o fato que não é possível construir um sistema de Direitos de Propriedade eficiente, nem prever as diferentes situações de mercado; neste caso, a atividade econômica se caracteriza por uma incerteza forte, e o universo não é ergódico (Saussier, Yvrande Billon, 2007). iii) Outras análises ligadas a uma problemática marxista e clássica ressaltam a ineficiência do sistema de preços no que diz respeito à estabilidade do sistema ( Sergeev, 2003, Steedman, 1984). Neste caso, a instabilidade do sistema pode ser assimilada à segunda lei da termodinâmica, na qual a entropia é crescente (Herscovici, 2005).


2) Economia de redes, utilidade social e valor É igualmente importante ressaltar o fato que hoje, a maior parte da informação e do conhecimento é produzida no âmbito de sistemas estruturados em redes, mais especificamente em redes eletrônicas. A economia das redes apresenta certas especificidades, no que diz respeito à natureza dos bens, à dinâmica dos mercados e às modalidades de financiamento: i) Os bens e serviços distribuídos na rede são, pelo menos parcialmente, bens públicos: como tais, eles geram externalidades e a indivisibilidade caracteriza suas modalidades de consumo. O paradoxo é o seguinte: bens públicos ou semi-públicos são produzidos e apropriados no âmbito de uma lógica de mercado (Herscovici, 2009). Por outro lado, a criação de uma rede se caracteriza por uma zona de déficit intrínseco; este déficit permite criar a utilidade social do serviço. Por utilidade social, entende-se um número mínimo de usuários a partir do qual o serviço apresenta uma certa utilidade para

cada

consumidor.

Uma

vez

alcançado

um

número

mínimo

de

usários/consumidores, a rede pode rentabilizar sua atividade valorizando as diferentes modalidades de acesso aos usuários. Assim, não existe uma correlação positiva entre os custos e as receitas: na zona de déficit, os preços são inferiores aos custos, e na zona de rentabilidade, os preços são superiores aos custos. Sem entrar nos detalhes técnicos da análise econômica, é preciso ressaltar as seguintes implicações: i) A concorrência se implementa fora dos preços, e os preços não constituem um regulador desses mercados. Em outros termos, existe uma desconexão entre as receitas (os preços) e os custos, notadamente os custos em trabalho. ii) O sistema complexa de Direitos de Propriedade Intelectual permite a apropriação privada de informações e de conhecimentos produzidos coletivamente, e a principal


fonte de financiamento consiste em valorizar as modalidades de acesso aos usuários que constituem essas redes. Neste sentido, o valor econômico provém da criação desses efeitos de rede, da utilidade social que lhe é ligada e das modalidades de controle de acesso à rede; Google representa o melhor exemplo desta estratégia. Isto não significa que o trabalho deixa de ser a fonte de criação do valor; não obstante, as modalidades de apropriação privada do produto deste trabalho não estão mais ligadas à mercadoria, da maneira como ela foi definida por Marx: (a) o consumo é essencialmente coletivo, em função da utilidade social e mercadorias

não se trata-mais de

apropriadas individualmente (b) conseqüentemente, as formas de

“exploração” não se traduzem pela existência da uma mais-valia, mas pela existência de sistemas complexas de Direitos de Propriedade Intelectual privados. Em resumo, em função desses elementos, é possível afirmar que a apresentação que Dantas faz da Economia da Informação é limitada e parcial, tanto em relação às análises “dominantes” quanto às análises marxianas.

III) Propostas para uma agenda de pesquisa

1) Valor e produção intangível: uma primeira abordagem O autor ignora todo uma série de debates de cunho marxiano, debates esses que permitem situar e posicionar a obra de Ruy Sardinha Lopes, por exemplo, o debate iniciado na França, em 2003, sobre a direção de Carlo Vercellone (2003): a partir da contribuição de vários economistas “heterodoxos”, coloca-se

o problema das

modificações das modalidades de criação do valor no capitalismo atual. Este debate se


prorrogou com uma nova publicação na qual contribuições de economistas, sociólogos e comunicólogos estudam este temática 6. No âmbito de uma problemática ligada ao valor trabalho, e mais especificamente à teoria do valor de Marx, trata-se de ver segundo que modalidades históricas a fase atual do capitalismo pode ser pensada como uma manifestação dos limites da forma mercadoria, segundo os termos de Marx. Neste caso, a quantidade direta e indireta de trabalho abstrato não permite mais explicar as modalidades concretas de valorização dos diferentes bens e serviços, e com a exacerbação do sistema de Direitos de Propriedade Intelectual, o preço não se relaciona mais com essas quantidades de trabalho.

2) Rumo a um capitalismo “imaterial” ? O próprio debate que eu mantém com Bolaño é totalmente ignorado7. À medida que a valorização econômica se implementa independentemente das quantidades de trabalho social, é possível afirmar que a fase atual se caracteriza pelo seguinte paradoxo: está tendo uma extensão da lógica de mercado, mas este movimento se implementa fora a forma mercadoria. O problema é o seguinte: será que a mercadoria, no sentido definido por Marx, é uma característica intrínseca do capitalismo? Em outras palavras, será que o capitalismo não pode se desenvolver fora da forma mercadoria? No caso de uma resposta afirmativa, uma série de bens que são “negociados” no mercado não são mercadorias: os diferentes produtos culturais (Herscovici, 1995), e a maior parte dos ativos intangíveis ligados à produção de conhecimento. Numa perspectiva braudeliana, é perfeitamente possível sustentar esta tese, mostrando que o capitalismo não é intrinsecamente industrial. 6

Critiques de la Société de l´Information, sous la direction d’Eric GEORGE et Fabien GRANJON, L´Harmattan, `Paris 2008. 7

Ver, a este respeito, Bolaño César (2000).


As categorias construídas por Braudel (1979) permitem distinguir três níveis: (a)

A vida material ligada ao valor de uso

(b)

O mercado, como espaço concorrencial e “transparente”

(c)

A super-estrutura capitalista que se caracteriza pelas assimetrias da informação,

pelas estruturas monopolistas e oligopolistas, pelas dimensões especulativas, internacionais e financeiras.

Em relação a essas categorias analíticas, surge o seguinte questionamento: na fase que corresponde à acumulação primitiva, o capitalismo investiu o terceiro nível. Ele tornouse industrial a partir do século XIX, até a metade dos anos 60. Hoje, no âmbito desta fase imaterial, os componentes internacionais, especulativos e financeiras voltaram a ser predominantes.

Conclusão O texto de Dantas aborda parcialmente as problemáticas que me parecem ser essenciais para estudar as novas formas do capitalismo imaterial: não obstante, apesar de certas argumentações pouco claras, para mim, ele tem o mérito de ressaltar um ponto importante deste debate: o problema da determinação do valor. Finalmente, quero comentar a seguinte afirmação de Braudel (op. cit., p. 262): “A economia de mercado pode ser destruída por baixo ou por cima, em economias atrasadas ou muito avançadas”.


A economia da informação e do conhecimento é o objeto deste duplo movimento: por um lado, o desenvolvimento das formas não mercantis ( Comunidades on line, clubes, programas livres, etc.) representa um elemento importante para a manutenção da superestutura capitalista. Por outro lado, os mercados reais, por natureza, não são mercados concorrenciais. A lógica do capital se estende para o conjunto das atividades sociais, mas esta extensão se realiza fora a forma mercadoria, e fora os mecanismos concorrenciais. É preciso observar que, teórica e historicamente, o desenvolvimento das instituições sempre foi necessário para o desenvolvimento do capitalismo; não obstante, é preciso limitar este desenvolvimento. A economia dos bens intangíveis é o objeto deste movimento dialético: ela é o fruto de lógicas capitalistas exacerbadas e, ao mesmo tempo, de lógicas não mercantis ligadas à formação de clubes e de comunidade que funcionam a partir de formas de propriedade coletiva e “solidárias”. As modalidades de criação e de apropriação do valor se explicam a partir dessas formas híbridas que combinam elementos aparentemente contraditórios.

Bibliografia Arrow Kenneth J., 1962, Economic Welfare and the Allocation of Ressources for Invention, in The Rate and Direction of Inventive activities: Economic and Social Factors, Princeton University Press, pp.609-26.

Bolaño César, 2000, Indústria cultural, informarção e capitalismo, Huvitec, São Paulo.


Braudel, Fernand, 1979, Civilisation matérielle, économie et capitalisme XVe-XVIIIème siècle. 2. Les jeux de l´échange, Armand Colin, Paris. Castells, Manuel, 1988, La société en réseaux, Fayard, Paris. Georgescu-Roegen, Nicholas The Enthropy Law and the Economic Process, Harvard UniversityPress, Cambridge, Massachusetts, 1971. Herscovici A., Bolaño C. (2005), A Crítica da Economia Política da Informação e do Conhecimento, texte présenté au X Encontro Nacional da Sociedade Brasileira de Economia Política, Campinas. Herscovici Alain, 1995, Economia da Cultura e da Comunicação, Fundação Ceciliano Abel de Almeida/UFES, Vitória. --------------------, 2005, Historicidade, entropia e não-linearidade: algumas aplicações possíveis na ciência econômica. Revista de Economia Política, v. 25, n. 3 (99), jul./set. 2005. --------------------, 2008, Production immatérielle, travail et valeur. Éléments pour une analyse de l´économie de la connaissance, in Critiques de la Société de l´Information, sous la direction d’Eric GEORGE et Fabien GRANJON, L´Harmattan, Paris 2008. ------------------------, 2009, Contribuições e limites das análises da escola francesa, à luz do

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Seergev Victor, 2003, The thermodynamic approach to the market equilibrium, acessado no site www.santafe.edu/sfi/publications/ Working-Papers./03-04-027, em 1 de julho de 2004. Steedman, Ian , 1984, "Natural prices, different profit rates and the classical competitive process", in The Manchester School of Economics and Social Sciences, v.2. Varian, H.R. , 2003, Economics of Information Technology, March 2003, sem editor.

Vercellone C. (dir.) Sommes-nous sortis du capitalisme industriel ?, La Dispute, Paris, 2003.


Governo eletrônico e pós-modernidade tardia. Uma hipótese sobre a situação do cidadão diante das novas tecnologias da informação e da comunicação.

Electronic government and late post modernity. A hypothesis about citizen situation before the information and communication technologies

Gobierno electrónico y post modernidad tardía. Una hipótesis sobre la situación del ciudadano frente a las nuevas tecnologías de la información y de la comunicación. Thaïs de Mendonça Jorge1 Fábio Henrique Pereira2

Resumo Este artigo propõe uma primeira abordagem crítica sobre o e-governo. Ao longo do texto, discutiremos diferentes aspectos do fenômeno, cotejando trabalhos teóricos, estudos empíricos e dados sobre o assunto no contexto brasileiro. Nossas considerações sugerem que os governos ofertariam serviços eletrônicos como forma de atrair, seduzir a população, funcionando também como uma ferramenta de controle social. Palavras-chave: e-governo, e-democracia, comunicação pública, controle social. Abstract This paper seeks to make a first critical approach about e-government. Along this text, we will discuss different aspects of such subject, working with theoretical studies, empirical researches and data about this subject related to Brazilian context. Our conclusions suggest that governments offer electronic services as a way to attract, seduce the people, also acting as a tool of social control. Key-words: e-government, e-democracy, public communication, social control. Resumen Este artículo presenta un abordaje inicial sobre el e-gobierno. Discutiremos distintos aspectos del fenómeno del gobierno electrónico, o sea, las páginas organizadas por los gobiernos de países en la Internet, comparando trabajos teóricos, estudios empíricos y datos sobre el tema en el contexto brasileño. Nuestras consideraciones sugieren que los 1

Doutora em Comunicação e professora da Universidade de Brasília. Atualmente, realiza um pósdoutorado na Universidad de Navarra, Espanha, com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Email: thaisdemendonca@uol.com.br. 2 Doutor em Comunicação pela Universidade de Brasília. Email: fabiop@gmail.com.

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gobiernos ofrecerían servicios electrónicos como forma de seducir, atraer la audiencia, que funcionarían además como herramienta de control social. Palabras-clave: e-gobierno, e-democracia, comunicación pública, control social.

Introdução

A rede brasileira de computadores do setor público começou a ser montada na década de 1960, na era militar, quando o país sentiu necessidade de controlar a máquina burocrático-financeira, instituindo mecanismos de fiscalização sobre as contas nacionais. Entretanto, somente com o fim da Lei da Informática – que restringia a importação de computadores e insumos eletrônicos –, em 1992, deu-se a expansão no rumo da independência no setor, e os brasileiros puderam ter acesso a computadores domésticos, ao mesmo tempo em que se disseminava o uso das máquinas nas empresas públicas e privadas. Assim, o Brasil, como muitos outros países, conseguiu aperfeiçoar sistemas de informática pública e vem desenvolvendo uma série de ferramentas para uso das pessoas, empresas e instituições, que visam facilitar o relacionamento delas com o governo. O imposto de renda, primeira obrigação legal a entrar em rede, em 1993, foi o passo inicial do chamado governo eletrônico ou e-government em território brasileiro. Junto com desenvolvimento do software bancário e sua adequação a um padrão nacional, a declaração anual de renda automatizada é um produto de sucesso, tanto em termos de eficiência, como em termos numéricos. Todos os anos, milhões de documentos são processados pelo site da Receita Federal durante os meses de fevereiro a abril. Este artigo propõe uma primeira abordagem crítica do instrumento e-governo (egovernment), entendido como o conjunto de sites que um governo coloca à disposição, para oferecer informações e serviços às pessoas. O potencial da internet para incrementar a participação política, debatido há uma década, encontra aqui o argumento, de acordo com reflexão de Vandenberghe, de que o chamado “governo do cidadão” constitui uma das formas de controle do capitalismo tardio sobre o indivíduo. Nos países desenvolvidos, os meios de comunicação (telefone, correio, TV interativa) foram e são usados para motivar a participação, seja em pesquisas de opinião, na mobilização

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para o planejamento comunitário, em projetos sociais, em campanhas eleitorais, seja, finalmente, na oferta de serviços via rede. É a chamada e-democracia. Ao longo deste texto, discutiremos diferentes aspectos do governo eletrônico, cotejando trabalhos teóricos, estudos empíricos realizados em diferentes países e informações sobre o assunto a partir do contexto brasileiro. Trataremos ainda das relações entre o e-governo e o ideal de comunicação pública. No final, discutiremos as apropriações dessas novas formas de participação social pelos mecanismos estatais de controle social. 1 – E-democracia e e-governo

O conceito de e-democracia, segundo a Sociedade Hansard, do Reino Unido, é associado aos “esforços para alargar a participação política, habilitando os cidadãos a se conectar uns aos outros e com seus representantes via novas tecnologias de informação e da comunicação (Tics)” (Hansard Society, 2003, apud Chadwick, 2006: 84-85). Essa definição, segundo Chadwick, aponta para a relação horizontal entre as pessoas de uma sociedade, e a verticalidade do contato com os encarregados das decisões políticas. Um outro conceito está ligado à “democracia digital”:

Uma coleção de tentativas de praticar a democracia sem limite de tempo, espaço ou outras condições físicas, usando as Tics ou a comunicação mediada por computador como uma extensão, não uma substituição, das práticas políticas tradicionais.

A preocupação com uma democracia participativa remonta à agora grega, o fórum onde os cidadãos (excetuando-se mulheres e escravos) se reuniam para trocar mercadorias, assistir a uma peça teatral, discutir política. Nos séculos XVIII e XIX, filósofos políticos como Jean-Jacques Rousseau (1712-78) e Alexis de Tocqueville (1805-59) se debruçaram sobre o assunto, que chegou aos dias de hoje com a ascensão das ideias liberais. O estado pós-moderno dos séculos XX e XXI enfrenta a questão da participação com distintos enfoques: de um lado, o escasso interesse do cidadão comum pela política e descrédito nas instituições, o que inclui os representantes eleitos para o Parlamento. De outro, influência das novas tecnologias na vida das pessoas e

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decréscimo do poder dos meios tradicionais, como o jornal impresso, o rádio e a TV no papel de formadores de opinião. Neste início do século XXI, a explosão das tecnologias em todos os aspectos da vida humana é uma realidade à qual não se pode fugir. No que Castells (2000: 498) denominou “sociedade em rede” seriam características: a) a informação, sua matériaprima; b) a penetração das Tics; c) a prevalência de uma lógica das redes, adaptadas à sociedade; d) o sistema de redes baseado na flexibilidade; e) a convergência e interdependência das tecnologias. Analisando o processo de reestruturação das organizações, econômica e socialmente pelo que passaram as instituições capitalistas, no qual as tecnologias exercem papel fundamental, o autor diz que o novo sistema econômico e tecnológico que estamos vivendo pode ser chamado “capitalismo informacional”. A entrada dos sistemas de governo no setor de informática não foi gratuita nem aleatória. Assim como a passagem dos computadores, de máquinas de operações lógicas para a função de edição de texto, marcou uma nova etapa de aperfeiçoamento da escrita, como observa Arnt (2002: 223-237), também o percurso da internet meramente comunicativa para a era da edição jornalística foi absorvido não só pelos periódicos como também pelos governos. No Brasil, como veremos, as atividades relacionadas ao governo eletrônico parecem estar intimamente relacionadas às notícias. Os sites do governo, em todos os níveis, reservam espaço para noticiário. Colocado de uma maneira direta, o e-government é “o uso de tecnologia para destacar o acesso e a liberação de serviços de governo destinados ao benefício de cidadãos, parceiros e servidores públicos” (Silcock, 2001: 88-101). Bertot et al. (2009: 433) afirma que “o governo eletrônico é o meio primário pelo qual o governo dissemina informação para indivíduos e comunidades”. Silcock (2001) alerta que os instrumentos de e-governo “afetam todos os aspectos de como uma organização trabalha com o público. Não é apenas tecnologia; não é só um processo negocial; não são apenas recursos humanos. São todas essas áreas combinadas” e centradas no consumidor, que é o cidadão. Trata-se, portanto, de “un modelo interactivo de gestión pública que se inspira en el empoderamiento de los ciudadanos y las organizaciones en general, a través del uso con sentido de las Tecnologías de la Información y la Comunicación especialmente de internet” (Montilla & Páez, 2007 : 20).

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Para Takao (2004), o e-government é parte de uma estratégia de aplicação das Tics para reduzir o custo e tornar mais eficiente a máquina de governo. Num estudo sobre o impacto político do “governo digital” no Japão, o autor examina dois aspectos da questão: a) o estímulo público relacionado à participação do cidadão na política e à responsabilidade do governo, e b) a disseminação de informação pelo governo significando maior grau de confiança e transparência na instituição. Vários atores – políticos, partidos, burocratas e funcionários de estado, grupos de interesse, público e mídia – convergem nas políticas de governo deflagradas pelo setor público: presidente, ministros, deputados, senadores, vereadores, prefeitos e têm um interesse comum – que as instituições funcionem e facilitem a vida do cidadão, garantindo-lhe melhor qualidade. Para os venezuelanos Montilla & Páez (2007), os processos de implantação de um governo eletrônico geralmente seguem quatro etapas. A primeira seria a consolidação de uma infra-estrutura, que permita às diferentes organizações adaptar-se ao uso inteligente da informação e das TICs. A segunda etapa implicaria em uma reorganização do aparato do estado, gerando novos e melhores mecanismos de participação do cidadão. Esse modelo incorporaria, numa terceira fase, plataformas tecnológicas e de informação, que permitam a realização de transações on-line. Finalmente, ocorreria a transformação do modelo de gestão tradicional para um governo baseado no uso do ciberespaço. Por sua vez, a pesquisa Deloitte (Public Sector Institute do Reino Unido), em junho de 2000 (citada por Silcock, 2001), afirma que os governos passam por seis estágios na aproximação com os serviços eletrônicos: 1) Publicação e disseminação de informação – departamentos e agências colocam em rede seus sites para divulgar informação sobre si mesmos e sobre os serviços que oferecem; é comunicação one-way, ou seja, de uma mão. 2) Transações oficiais de mão dupla – quando os sites de governo se tornam mais sofisticados, os cidadãos já podem submeter informação sobre a própria vida, como mudar o endereço ou fazer uma reclamação por e-mail. 3) Portais multiproposta – habilitam os usuários a entrar por uma porta e a ter uma série de funções, com visita a distintos sites de governo. 4) Portais personalizados – os governos atuam como a iniciativa privada e permitem aos usuários personalizar a página on-line. 5


5) Serviços organizados – quando os portais se consolidam, a percepção departamentalizada do governo desaparece e o cidadão passa a ver o governo simplesmente como uma entidade fornecedora de serviços; para que isso aconteça, o governo deve organizar as operações por setores e linhas. 6) Integração completa – neste estágio, os muros e divisórias entre as áreas de governo caem e a tecnologia é integrada para ajudar a diminuir o vácuo entre o atendimento on-line e os serviços de background. Os países usam diferentes terminologias para se referir à escalada do governo à internet. Além de fazer referência à e-democracia ou democracia eletrônica como uma parte dos direitos do cidadão – termos que predominam no Reino Unido e nos EUA –, alguns chamam esse setor de “serviços digitais” – caso da Espanha – ou de “governo digital”, como no Japão. Nem todos estão convencidos de que os governos têm um papel organizado a cumprir na transição para o ciberespaço. Alguns acham que o governo deve ser deixado à sua própria sorte (Grewlich, 1999). No Brasil, as preocupações em estruturar o terreno da comunicação pública digital encontram-se em diversos ministérios, secretarias, autarquias e empresas criadas com essa finalidade, como o Instituto de Tecnologia da Informação, ligado à Presidência da República, e o Comitê Gestor de Internet (CGI-Br), entidade destinada a administrar os dados relativos à rede no país. O objetivo do governo brasileiro com seu projeto próprio de “governo eletrônico” é promover a inclusão social por meio da expansão do acesso aos serviços eletrônicos, e o grande desafio seria fazer com que as classes D e E entrassem no sistema (Santanna, 20041). Preferimos, neste artigo, usar a expressão e-governo ou o correspondente em inglês e-government, embora usemos vez por outra o termo governo digital ou serviço digital. Entendemos aqui que a e-democracia constitui um conceito muito amplo, que abarca mecanismos de participação política como a mobilização popular via internet em campanhas eleitorais, o que está fora do escopo deste trabalho. Por outro lado, ao estudar o panorama dos cibermeios no Brasil, o governo eletrônico não pode passar ao largo, já que preenche uma parcela significa do espaço e ocupa muitos profissionais jornalistas. 1.1 – O e-governo no mundo e no Brasil

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Silcock (2001) e Takao (2004) observam que a maioria dos governos está ainda no primeiro estágio de desenvolvimento do e-government. No Reino Unido, em 2002, calculava-se que apenas um quinto das transações entre cidadãos e governo eram feitas via internet, número que cresceu para 50% em 2005 e 100% em 2008. Entretanto, o objetivo do governo britânico era tornar-se uma economia líder em serviços on-line. Todos os ministérios do Japão possuem websites e o nível de informação que liberam ao público varia conforme o tipo de atividade. Por exemplo, o ministério de Defesa tende a divulgar menos informação, por razões de segurança, enquanto o da Justiça, sob pressão da mídia, se vê forçado a colocar no ar uma grande quantidade de informação. Todas as prefeituras japonesas e 96% das municipalidades têm sua própria homepage. Ainda não existe um índice mundial para avaliar a adesão dos países ao egoverno, mas a Espanha construiu medidores próprios, que registram: 1) o ambiente das Tics; b) o acesso às Tics, e c) o uso das Tics. Para gerenciar a relação com a Sociedade da Informação, o governo da Espanha deflagrou o Plano 2006-2010 para o desenvolvimento da Sociedade da Informação e de Convergência com a Europa e entre as Comunidades e cidades autônomas2, conhecido como Plano Avanza.

El Plan Avanza se estructura en torno a cuatro áreas de actuación: Ciudadanía Digital, que tiene como objetivo garantizar el acceso de las TIC en los hogares y prevenir o resolver problemas de exclusión digital, Economía Digital, que orienta a potenciar el sector TIC y el acceso de las Pequeñas y medianas empresas (Pymes) a soluciones tecnológicas avanzadas, Servicios Públicos Digitales, que se dirige a la mejora a través de las TIC del nivel de servicio de la Administración Pública, y finalmente Nuevo Contexto Digital, que recoge actuaciones destinadas a extender la banda ancha en todo el territorio, mejorar la seguridad de Internet y fomentar la creación de nuevos contenidos digitales (Gimeno, 2007: 308)

A situação, em 2007, do chamado governo eletrônico na Espanha pode ser vista na Tabela 1, bem como os objetivos e previsões para 2010:

TABELA 1 - SERVICIOS PÚBLICOS DIGITALES Disponibilidad y uso eAdministración Situación

Objetivo Plan Previsión

Actual España Avanza 2010 eEspaña 2010 Ciudadanos (obtener información)

25%

40%

29%

7


Ciudadanos (envío de formularios)

7%

15%

9%

Empresas (obtener información)

52%

75%

75%

Empresas (envío de formularios)

35%

55%

55%

Fuente: eEspaña 2007 a partir de INE (2007), Eurostat (2007) y Plan Avanza

Vemos, portanto, que alguns países já estão fazendo um balanço da situação das Tics na relação com o cidadão. O processo de implantação da internet no Brasil durou 11 anos (Carvalho et al., 1999), a partir de 1988. Porém, desde o regime militar, havia uma preocupação em assegurar o controle do Estado sobre o setor e apoiar a indústria nacional de microeletrônica (Benakouche, 1997, apud Carvalho et al., 1999). As primeiras experiências com a transferência de dados a distância datam de 1988, embora a legislação de 1975 que regulamentava as funções da Empresa Brasileira de Telecomunicações (Embratel) já lhe desse a incumbência de instalar e explorar a transmissão eletrônica de informações. Antes disso, em 1972, o Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro) – criado em 1967, por influência do Ministério da Fazenda e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – já processava 10 mil declarações do imposto de renda, utilizando cartões perfurados e computadores que não ultrapassavam os 16 kbytes. O Serpro chegou a ter nessa época 24 mil empregados. Fazia também testes com urnas eletrônicas. Em 1991, quando a Universidade de São Paulo apresentou ao público o primeiro computador brasileiro, o Patinho Feio, os funcionários do Serpro de Santa Catarina mostraram um modelo de urna com bobina de papel, que terminou não sendo aprovado, mas deu origem à urna eletrônica usada pelo Tribunal Superior Eleitoral, hoje um produto de exportação. Os primeiros minicomputadores começavam a sair das oficinas do órgão, ao mesmo tempo em que se estruturavam as contas nas secretarias do Tesouro Nacional e da Receita Federal. Pressionado a montar um sistema tributário centralizado para controlar a vida financeira do país, o Serpro enfrentava o desafio da falta de modelo. Não havia sistemas similares no mundo que lidassem com grandes massas de dados. O sistema alemão Adabas, utilizado para um máximo de 800 mil registros, estourou na primeira rodada brasileira, incapaz de suportar 8 milhões de entradas.

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A história não teve o cuidado de marcar qual foi o primeiro site oficial a povoar a internet no Brasil, apesar de se apontar o ano de 1993 como o início da comunicação de governo, que seria a página do Imposto de Renda (www.receita.fazenda.gov.br). Isso significa que o ciberespaço brasileiro foi antes ocupado pelo e-government que pelos jornais impressos, que começaram a aparecer na rede em 1994-1995. Atualmente, os sites oficiais mantêm um lugar importante no quadro dos cibermeios brasileiros, com ênfase no principal portal, o www.brasil.gov.br, que concentra grande parte da informação e canaliza o fluxo de acesso do público para os espaços eletrônicos de ministérios, entidades e empresas governamentais, agências reguladoras e até para os governos dos Estados. O Congresso Nacional, com seus 81 senadores e 512 deputados, representando o Poder Legislativo; e o Poder Judiciário, com os tribunais, são outros organismos de poder que alimentam portais próprios e estão em diferentes estágios de desenvolvimento, segundo a qualificação Deloitte. Em Brasília, onde se localizam as infra-estruturas deste parque eletrônico oficial, são jornalistas – que trabalham em assessorias de imprensa – os responsáveis pela manutenção e alimentação da maior parte dos sites de governo, o que talvez explique a maciça presença de notícias nesses espaços. Fazendo uma análise do grande portal do governo eletrônico brasileiro (Brasil.gov.br), podemos observar que o país, por sua diversidade cultural e tecnológica, cumpriria vários estágios de desenvolvimento segundo a tabela Deloitte, a saber: 1) Publicação e disseminação de informação – assim se encontra a maior parte dos sites de governo, incluindo os executivos estaduais e municipais. A maioria deles coloca informação sobre si mesmos no site, e usa links para notícias; 2) Transações oficiais de mão dupla – os formulários colocados on-line (“Não estã achando o que procura?”) geralmente estão no link “Contatos” e nada garante que serão respondidos; 3) Portal multiproposta – o portal pretende habilitar a comunicação com os usuários e a ajudá-los na visita a distintos sites de governo. Nesse sentido, apresenta links, por exemplo, para os governos dos estados. Entretanto, muitos são links rotos; 4) Portais personalizados – isto ainda não é possível no Brasil; 5) Serviços organizados – o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) e o serviço de passaportes, ligado à Polícia Federal, são dois setores que estão se modernizando na questão internet. O INSS lançou recentemente uma campanha com o 9


tema Um novo tempo para o Brasil e para você, para tentar resolver o problema das filas; 6) Integração completa – desde a criação do Ministério da Desburocratização – ainda no governo Fernando Henrique Cardoso – faz-se um esforço para enfrentar a lentidão e a burocracia. Recentemente, o presidente da República assinou o Decreto nº 6.932, na intenção de reduzir ou eliminar procedimentos desnecessários e supérfluos e organizar a administração federal, dando força às iniciativas realizadas via eletrônica (Em questão, 12 ago 2009). 2 – E-governo e a comunicação pública A presença de jornalistas nos espaços de desenvolvimento do governo eletrônico no Brasil resulta, portanto de um processo concreto de ocupação de um novo território profissional. Isso sempre veio acompanhado de um poderoso discurso que buscou articular o desenvolvimento de novas formas de governo aos ideais de transparência pública e participação cidadão por meio da comunicação. De fato, observamos que a relação entre o acesso à informação e o exercício da cidadania está subjacente à definição de governo eletrônico e ao próprio desenvolvimento de plataformas digitais de participação popular. Para Bertot et al. (2009: 436) a “importância de uma informação acessível e bem distribuída numa sociedade democrática, junto com uma cidadania bem informada, que contribui ativamente com suas obrigações cívicas – votar, trabalhar pela mudança social” seria a base dos regimes democráticos. Essa crença se fia, na verdade, na existência de um ideal de transparência pública subjacente à própria definição de democracia e do papel da imprensa e do jornalista na manutenção desses regimes. Embora esse tipo de discurso não seja necessariamente original, a consolidação de novas formas de visibilidade política a partir do desenvolvimento tecnológico alterou as relações de poder, no sentido de transformar a comunicação entre governo e o público em uma arena mais acessível e aberta. A visibilidade midiática tornou-se uma estratégia fundamental de luta pelo poder político (Thompson, 2008). Trata-se de uma nova arena, mais ampla e includente, na medida em que os mecanismos de visibilidade se encontram descentralizados, dispersos no ciberespaço e em outras mídias digitais. Sabemos que o universo de culto em torno da Rede Mundial de Computadores se constrói fundamentalmente por meio do ideal de transparência. A internet seria uma 10


ferramenta de combate à opacidade, às barreiras que impedem ou atrapalham o livre acesso às informações pelos cidadãos (Breton, 2000) e consequentemente o próprio desenvolvimento da Sociedade da Informação. Um governo aberto, explicam Fugini, et al. (2005) ilustrando esse tipo de afirmativa, se calca no aumento da transparência e da responsabilidade tidas como ferramentas de combate à corrupção e às fraudes. Para os autores, a TIC seria particularmente adequada para aumentar esse tipo de transparência. Contudo, apenas exaurir as possibilidades de interação dos cidadãos com as novas mídias e suprir a demanda de informações por meio da comunicação política, não são suficientes para estimular a confiança e a participação dos cidadãos no exercício de uma democracia eletrônica ou virtual. “Os cidadãos inseridos na sociedade da informação, para os quais uma comunicação administrativa e governamental é algo indispensável, precisam ser capazes – com o aumento do fluxo de informação – de examinar a fidedignidade da informação”, pois seria precipitado acreditar que a comunicação na internet seria possível sem algum tipo de filtragem (Pitschas, 2004: 08). Nesse sentido, Pitschas defende a intervenção de uma “competência midiática” como um pré-requisito para a transição rumo a um governo/democracia eletrônico. Ora, a área que lida melhor com esse aparente contraste entre transparência e mediação é a comunicação pública. Esse tipo de constatação permeia os discursos de construção de novas modalidades de comunicação (relacional) capazes de potencializar as possibilidades de participação dos cidadãos no processo político. Ela está ainda presente na ideia de que as TICs devem ser incorporadas ao cotidiano das organizações (públicas e privadas) a partir do composto comunicacional, de forma a integrar diferentes estratégias de posicionamento e relacionamento institucional frente aos públicos (Saad, 2008). Essa integração implica numa descentralização do pólo do emissor (com a criação de vários espaços de emissão e interação), de forma a garantir maior participação e representatividade do público. Nesse caso, ao relacionarmos os conceitos de e-governo e comunicação pública observamos uma mesma releitura ou compartilhamento do discurso de emancipação política dos cidadãos pela internet. De fato, a internet representou a possibilidade de realização dos princípios que orientam essas duas áreas. Como já dissemos, para a democracia, as novas tecnologias abririam a porta para a intervenção direta dos cidadãos nos debates e na elaboração de políticas públicas dentro da sociedade. Para a comunicação, trata-se do fim de alguns constrangimentos (tempo, espaço, etc.) que 11


sempre limitavam a produção informativa, que seria agora mais livre e direta. E também da possibilidade de estabelecer novas formas de interação com o público, de forma a quebrar a aparente unidirecionalidade do processo comunicativo. Nesse duplo momento emancipatório, a mídia e a democracia parecem se reencontrar, potencializadas pelas novas tecnologias. O fato do discurso em torno da internet e das TICs legitimar a ideia de uma reconfiguração da democracia com a ampliação da participação do público, no entanto, não nos impede de discutir criticamente os riscos potenciais desse processo. É o que faremos a seguir, trabalhando, sobretudo, a partir da adaptação de um ensaio do professor belga Frédéric Vandenberghe. 3 – As redes e o controle global Rousseau acreditava no autogoverno, que seria uma forma de democracia direta. Para Tocqueville, a idéia era enfatizar a participação do indivíduo na sociedade e isso implicava admitir a competição entre grupos de interesse, conviver com uma imprensa vibrante e valorizar o poder das associações (hoje seriam as ONGs), todos atuando ao mesmo tempo como fiscais do governo e meio de educação dos cidadãos. Já na Revolução Industrial, foi necessário aumentar os salários dos trabalhadores para que eles pudessem comprar os objetos que produziam e assim foi necessário estimular o seu desejo de possuir. Vandenberghe (2007) diz que “o capitalismo não apenas produz objetos, mas também sujeitos e subjetividades.” A máquina capitalista funciona por meio dos pensamentos, vontades e até por meio do corpo humano. Os modernos computadores lêem as nossas atitudes e aprendem a reagir a elas. A ergonomia ajuda a projetar melhores teclados para que possamos nos comunicar melhor e não cansemos as mãos. Pesquisas de opinião colhem os pensamentos coletivos para desenvolver produtos próximos ao que as pessoas gostariam de comprar. Ao contrário do capitalismo do passado, que se expandia através do espaço e se integrava ao ambiente não-capitalista, num sistema de exploração colonial para garantir a acumulação de mais-valia, a rede capitalista contemporânea coloniza a vida, introduz a lógica econômico-administrativa da objetividade e do cálculo na vida cotidiana, entrando na estrutura comunicativa da sociedade. Tendo progressivamente integrado a periferia e a semi-periferia em um só mercado, a lógica da sociedade mercadológica invade e coloniza o mundo da vida “como os colonizadores das sociedades tribais”, co12


modificando a cultura, a mente, a pessoa e, ultimamente, a própria vida (Habermas, 1981, apud Vandenberghe, 2007). Com Foucault, podemos dizer que o “poder soberano” do Antigo Regime deu lugar ao “poder disciplinar” da modernidade e isso redundou no poder regulatório da “sociedade de controle”, na qual o exercício da disciplina é mais econômico e liberal, sutil e indireto, descentralizado e capilarizado, difuso e individualizado – e, por isso, muito mais invasivo e efetivo. Enquanto o controle, nos antigos regimes feudais, se fazia com punições, ele se transformou num poder disciplinar, não-repressivo, democrático e produtivo, atuando sobre a face externa do indivíduo. Já o poder regulatório, ao contrário, funciona a partir de dentro: não destrói o sujeito, ele produz o sujeito, de acordo com o que é necessário para os controles sociais. Estimula-o a ser ao mesmo tempo dócil e responsável, participante e ativo na sociedade, solidário e empenhado. Os estudiosos de governamentalidade não têm dúvidas em apontar a necessidade de se realizar a análise detalhada das várias formas de regulação, estandardização, homogeneização e uniformização que a sociedade de controle tenta impor, das formas mais sutis, às pessoas. Com esse instrumental, podemos examinar algumas das grandes transformações dos últimos 15 anos e o que alguns autores chamam de “capitalismo avançado”, e outros, “capitalismo tardio”. Dessa maneira, toda a crítica à alienação do indivíduo pela máquina, à proliferação da eletrônica na vida moderna, todo o medo da inteligência artificial e à dominação dos computadores que faziam parte do ideário da nova esquerda e da nova direita nos anos 1960-80 foram substituídos por um cardápio de defesa das novas tecnologias e de elogio à praticidade que elas imprimem à vida do cidadão comum. Com a facilidade de sacar dinheiro e pagar contas no caixa ou pela internet, a qualquer hora, várias entidades estão envolvidas na governança do tempo do contribuinte: o governo, que antecipa receitas, movimenta o sistema bancário, controla o dinheiro recebido; o banco, que faz girar a engrenagem econômica; o serviço de transportes, que regula as idas e vindas das pessoas e até os instrumentos de lazer, onde ele vai gastar o dinheiro que retirou. Quando a pessoa o faz no fim de semana está usando o tempo de lazer para cumprir uma obrigação e, portanto, o governo já interferiu em seu eu. Vandenberghe chega a afirmar que o próximo passo que “os burocratas da governamentalidade devem estar elocubrando será acabar com os chamados dias úteis”. 13


Na sociedade de controle da máxima produção, todos os dias são úteis e não podem ser desperdiçados. Por isso, os governos se empenhariam em colocar cada vez mais instrumentos – como dizem, de atendimento ao cidadão, para que eles se sintam intimamente conectados uns aos outros e ao governo que os governa. Por detrás da contínua troca de estímulos ideológicos e dos programas de ação destinados a atingir os cidadãos, e graças a uma linguagem comum a todos os sistemas pós-modernos de governança – incluindo o discurso do governo eletrônico – não devemos ter dúvidas de que o objetivo é transformar a todos em “pais amantíssimos, ardentes consumidores, cidadãos ativos e empregados entusiasmados”. No caso brasileiro, com a ajuda das notícias, que ajudam a disseminar um clima favorável ao governo, enquanto criam uma forma de representação da sociedade que se assemelha à realidade do mundo da vida. 4 – Considerações finais Neste artigo analisamos o fenômeno do governo eletrônico a partir de um aporte multidisciplinar. Procuramos, num primeiro momento, situar teoricamente o conceito de e-governo e descrever o cenário atual de desenvolvimento das iniciativas de participação cidadã pela internet no Brasil e no mundo. Num segundo momento, discutimos os possíveis diálogos entre os conceitos de governo eletrônico e comunicação pública na construção de um discurso em torno das possibilidades emancipatórias da internet. Finalizamos o texto alertando para as possibilidades de instrumentalização dessas tecnologias como ferramentas de controle social pelo estado. Nossas considerações finais, baseadas nos “estudos de governamentalidade” da escola anglo-australiana de Nikolas Rose – e ainda com Vandenberghe – , sugerem que, subjacente a esse processo, haveria não mais a “escravização pela máquina”, mas uma “sujeição à máquina”, introduzindo a idéia da “governança” pelo próprio indivíduo, visto como um ser desejante. A megamáquina capitalista funcionaria por meio dos pensamentos, das vontades e até por meio do corpo humano para seguir os objetivos do capital. Os governos ofertariam serviços eletrônicos, nessa hipótese, como maneira de atrair, seduzir a população e, ao mesmo tempo, controlá-la. Rejeitamos, é claro, a visão maniqueísta e conspiratória que pregaria uma ação explícita do Estado na implementação dessa nova forma de controle social. Acreditamos que ele integra, na verdade, o próprio processo de construção e reificação da realidade social a partir do desenvolvimento da internet e das novas tecnologias aplicadas à 14


administração pública. Nesse sentido, deixamos como ponto de discussão o papel da comunicação e do jornalismo na construção de um discurso capaz de legitimar essa nova forma de controle.

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O (web)jornal em tempos de Economia Digital: uma discussão sobre lógicas sociais

Anelise Rublescki1

Resumo O artigo discute a crise dos jornais impressos e o conceito de lógica social. Demonstra o potencial acirramento da concorrência por verbas publicitárias pelas redes sociais na Economia Digital. Aborda também algumas das dificuldades encontradas pelos webjornais em busca de um modelo sócio-econômico sustentável. Conclui que os jornais – impressos e online – terão que adotar estratégias criativas de combinação de lógicas sociais para sobreviver1. Palavras-chave: Jornalismo, Economia Digital, Lógicas Sociais

Resumen El artículo analiza la crisis de los periódicos y el concepto de lógica social. Demuestra el aumento potencial de la competencia por publicidad em redes sociales en la Economía Digital. También se analizan algunas de las dificultades encontradas por webjornais en busca de un modelo socio-económico sustentable. Conclue que los periódicos - impreso y online - tendrán que adoptar estrategias creativas para combinar lógicas sociales para sobrevivir. Palabras clave: Periodismo, Economia Digital, Lógica Social

Abstract The article discusses the crisis of newspapers and the concept of social logic. Demonstrates the potential growth competition for advertising on social networks in the Digital Economy. It also discusses some of the difficulties encountered by webnewspapers to find a social logic sustainable. Concludes that newspapers - in print and online - will have to adopt creative strategies in a mix of social logics in order to survive. Key-words: Journalism, Digital Economy, Social Logics

1

Jornalista, Mestre em Comunicação/Ciência da Informação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, convênio CNPq/IBICT, doutoranda do PPGCOM da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bolsista Capes. Anelise_sr@hotmail.com


Introdução Historicamente, o jornal impresso se constitui relevante instrumento ideológico, cultural, político e informativo da sociedade contemporânea. Certamente por isso e na medida em que se acentua a crise financeira que o cerca, especialmente em países plenamente desenvolvidos como França, Estados Unidos e Alemanha, discute-se o esgotamento do modelo de negócios clássico dos jornais impressos, com leitores e anunciantes como sua dupla base de financiamento. O surgimento da Internet comercial nos anos 90 acelerou uma crise estrutural que já se delineava para os jornais impressos, ao alterar rápida e sensivelmente a produção, circulação e o consumo de informações.

Em meio as mudanças sócio-econômicas que assolam a sociedade e a mídia, surgem também outros agentes e atores, a partir da consolidação das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC´s) como um dos principais sistemas de suporte à disseminação da informação na sociedade.

No Brasil, onde a crise dos jornais de referência vem sendo parcialmente contrabalançada com o crescimento dos títulos ditos populares 2, crescem os questionamentos sobre como otimizar a receita dos webjornais, que ainda demonstram pequena e incipiente participação de anunciantes. Tencionando o cenário, registra-se um exponencial crescimento das mídias sociais3, detentoras de ampla participação no Brasil e que gradualmente começam a disputar os aportes publicitários.

São questões que fomentam uma discussão em torno de novos modelos econômicos para os jornais – impressos e online - potencialmente mais adequados para a Economia Digital (TAPSCOT, 1997), como a lógica social de clube (HERSCOVICI, 2009; BOLAÑO, 2003), o Free (ANDERSON, 2009), Cauda Longa (ANDERSON, 2006) ou proposta híbridas (BOLAÑO, 2003, HERSCOVICI, 2009) que talvez melhor se adequem aos custos de um redação hoje convergente para produção de conteúdo para jornal impresso, webjornal e mídias digitais.

Entende-se que a discussão que este artigo propõe em torno do tema crise dos impressos/modelos de financiamento dos jornais impressos/online ganha relevância


quando considera-se o papel produtivo do jornalismo, percebendo-o como uma eficaz instância de mediação entre a reprodução simbólica do mundo vivido e a acumulação do capital. Para tanto, este artigo busca contribuir aos esforços analíticos da Economia Política das Comunicação em torno da discussão das lógicas sociais em tempos de Economia Digital.

Economia Digital Várias têm sido as tentativas de abarcar conceitualmente as mutações do capitalismo que se delineiam desde as últimas décadas do século XX, sob distintos enfoques e múltiplas denominações. Da Sociedade Pós-Industrial de Daniel Bell4 à Economia Digital, termo cunhado por Tapscott, em 1995, diversos são os autores que sinalizam para uma transformação da própria natureza das formas de acumulação do capital, da (des) regulamentação e, conseqüentemente, da lógica cultural.

Castells (2002), sociólogo de filiação weberiana, salienta que as décadas finais do século XX e a inaugural do século XXI trouxeram em seu bojo a emergência de uma nova configuração social – a Sociedade da Informação ou Sociedade em Rede. No cerne de tal configuração, a combinação de dois fatores de âmbito mundial interdependentes e indissociáveis: a revolução das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) a partir dos anos 70 e a reestruturação do capitalismo, a partir dos anos 80.

A Economia Digital proposta pelo canadense Tapscott (1997) alinha-se com esta lógica que relaciona as alterações no capitalismo e nas TICs, especialmente nas telecomunicações, recebendo também uma pluralidade de denominações, entre as quais Economia da Informação e Economia do Conhecimento. Salienta o autor que a Economia Digital não é apenas um novo mercado econômico, assim como certamente a Internet não é meramente um novo canal de distribuição. São características marcantes desse novo modelo: o papel central da informação como matéria-prima, a adoção de um novo conceito de espaço, no qual a localização física deixa de ser determinante, a possibilidade de trabalho em rede; as decorrentes alterações


de competências e a mudança de foco sobre os clientes. “Trata-se de um novo modelo econômico, baseado em tecnologias digitais” (TAPSCOT, 1997, p.45) Também para Castells (2002), sem as TICs não teria sido possível a reestruturação econômica que hoje presenciamos, visto que essas propiciaram uma nova forma de capitalismo. Caracteriza-se pela globalização das atividades econômicas centrais, pela flexibilidade organizacional e um maior poder para o gerenciamento em suas relações com o trabalho.

Castells caracteriza essa nova forma de capitalismo informacional

como um

capitalismo muito mais duro em seus objetivos, porém, incomparavelmente mais flexível que qualquer um de seus predecessores. Por estar fixado na cultura e ser propulsado pela tecnologia, Castells (2002) o denomina de “informacional”. Freqüentemente associados ao senso comum, os termos neoliberalismo e globalização também buscam dar conta do mesmo fenômeno, referindo-se à “reestruturação da vida social sob a hegemonia da ordem capitalista” (FONSECA, 2008, p,16).

Na mesma linha de raciocínio e referindo-se especificamente às mídias, nos diz Moraes (2006) que o avanço do neoliberalismo no território ideológico-cultural decorre em larga medida das mudanças na forma contemporânea de viver, vinculada à primazia da comunicação na ambiência tecnocultural. O autor defende a emergência de um novo paradigma comunicacional, baseado na soma de prefixos de setores convergentes (informática,

telecomunicação

e

comunicação)

sob

a

denominação

de

infotelecomunicações.

Este paradigma representaria a capacidade de redes infoeletrônicas, satélites e fibras ópticas de interligar povos, países, culturas e economias, “procurando unificá-los em torno de sínteses de uma hipotética vontade geral” (MORAES, 2006, p.11) e a mudança “do gabarito mediático para o multimediático ou multimídia, sob o signo da digitalização” (MORAES, 2004, p.10).

Nesse contexto, observa-se que as empresas adaptam-se rapidamente à digitalização, procurando aproveitar as oportunidades abertas pela convergência5 multimídia e, em


especial, pela Internet. Bolaño (2003, p.1) evidencia como a digitalização desestabiliza mercados consolidados, acirrando a concorrência:

A digitalização representa um novo paradigma técnico, que reestrutura em larga medida a economia política da comunicação e da cultura, ao permitir um movimento complexo de convergência, que desestabiliza mercados consolidados, contestando posições hegemônicas, não necessariamente no sentido de uma maior democratização dos meios. Em todo caso, a concorrência se amplia e torna-se virulenta nesta fase de transição da economia dos meios, em que a internet adquire papel central, a ponto de muitos falarem em uma “nova economia”. Na teia da rede mundial de computadores, os jornais concorrem com o rádio, esse com a televisão e todos com as companhias telefônicas, de modo que o conjunto da economia da comunicação está posto em questão, até que uma nova estrutura hegemônica se estabeleça.

Na busca da nova hegemonia técnico-produtiva, a convergência tecnológica funciona como estímulo a fusões e acordos entre corporações, resultando em conglomerados que buscam otimizar as cadeias produtivas, evidenciando novos modelos organizacionais, a partir da desregulamentação e transnacionalização das telecomunicações, das privatizações e liberalização parcial da propriedade dos meios de comunicação ao capital estrangeiro6, da integração horizontal7, vertical, cruzada ou do monopólio em cruz dos meios de comunicação.

A gestão corporativa flexibiliza-se com a descentralização das unidades e a crescente autonomia dada a cada uma delas, permitindo até que concorram entre si, a partir de uma estratégia global comum (CASTELLS, 2002). Este é o caso, entre muitos exemplos possíveis, da maioria dos conglomerados da publicidade, que atualmente operam globalmente através de extensas redes de filiais e coligadas.

Moraes (2000) está entre os autores que salientam que a busca da maximização de lucros norteia a publicidade por pressupostos semelhantes aos dos impérios de informação e entretenimento. Para tanto, ainda segundo o autor, observa-se a descentralização

das

áreas

operacionais,

reengenharias

para

incremento

de

produtividade, absorção e implementação de novas tecnologias, acordos e parcerias financeiras e de know-how tecnológico Cita ainda o autor duas vantagens adicionais: a


diluição dos aportes financeiros iniciais entre os participantes e, por extensão, as margens de riscos.

Em âmbito mundial, aprofunda-se a conglomeração em torno de holdings que implementam diretrizes de atuação compartilhada, onde as gigantes da publicidade têm filiais em mais de uma centena de países e não cessam de alastrar-se por nichos mercadológicos. O Brasil é considerado um forte mercado, com faturamento em 2009 de 20, 3 bilhões de reais em 20088.

Há, contudo, uma grande assimetria na distribuição das verbas entre os meios, onde apenas a televisão, no mês de julho de 2009, concentrou aproximadamente 60% das verbas publicitárias9. O jornal impresso vêm perdendo terreno: em 1995, a participação era de 28% do total investido em publicidade em meios diversos. Em julho de 2009, o porcentual baixou para 15,02%.

No Brasil, estima-se que a receita total dos grandes jornais seja composta 50% de anúncios, 25% proveniente dos classificados e os restantes 25% resultantes da venda dos exemplares.. Leitores e anunciantes são, tradicionalmente, as duas únicas fontes de receitas dos jornais impressos. É o que autores como Tremblay (1997), Herscovici (2009), Bolaño (2000) denominam de lógica social imprensa.

Lógicas Sociais No que concerne às Indústrias Culturais10 e, especificamente, aos jornais, a análise através do conceito de lógicas sociais permite distinguir diferentes modelos sócioeconômicos, cada um correspondendo a uma lógica social específica. O conceito de lógicas sociais foi cunhado por Bernard Miège (1990, p.12) como “movimentos de longa duração, que têm como objeto tanto os processos de produção quanto as articulações produção/consumo, ou sobre os mecanismos de formação dos usuários”.

Partindo-se dessa definição e raciocinando-se, inicialmente, sobre às modalidades de acumulação de capital, , percebe-se que uma lógica social engloba dois níveis analíticos distintos, mas complementares: o setorial e o nível macroeconômico. Herscovici (2009, p.2-3) detalha que:


O nível setorial se define a partir da compatibilidade existente entre determinadas tecnologias, determinadas normas e modalidades de consumo e um funcionamento econômico específico; [que] se define a partir das modalidades de valorização econômica dos diferentes produtos e serviços, das formas concorrenciais e das modalidades de financiamento compatíveis com os demais componentes do sistema. A tecnologia se desenvolve a partir do momento que ela é compatível com as lógicas globais do modo de regulação vigente, o que nos leva a analisar os níveis macroeconômicos e sociais.

Nesta perspectiva, as primeiras análises da EPC quanto às lógicas sociais relacionam-se diretamente com uma lógica macrosocial e econômica ligada à industrialização e ao fordismo11. Para Herscovici (2009), as análises e os modelos que elas permitem construir são historicamente determinados nas suas hipóteses e características de cultura de massa e, como tal, não correspondem às lógicas da Economia Digital que se relacionam ao pós-fordismo.

Para Bolaño (2006), quatro lógicas sociais ganharam evidência na literatura internacional e podem ser consideradas paradigmáticas: edição, onda, imprensa e clube. Circunscrevem-se no período fordista, os modelos editorial, a imprensa e a cultura de onda representada pelo rádio e pela televisão aberta.

No modelo editorial, o papel do produtor consiste em levar até o mercado um determinado bem cultural, podendo este ser – ou não - reproduzido industrialmente (livro, CD, peças teatrais), onde primeiro faz-se necessária a acumulação simbólica para posterior acumulação econômica (HERSCOVICIH, 2009). Observa-se que o consumo é individual, a difusão é descontínua e irregular, e o financiamento é assegurado pelo preço pago pelo consumidor final.

A imprensa constitui o segundo modelo. Ainda segundo Herscovici (2009), observa-se que a difusão é descontínua, mas regular, registra-se uma diversificação da modalidade de financiamento: parte provém do preço pago pelo consumidor final, outra parte dos anunciantes, a partir do desenvolvimento dos mercados intermediários. Esses se situam entre o produtor e o consumidor final, e constituem uma nova forma mercantil ligada à venda de audiência para os anunciantes, já mencionada A função central é assumida


pela empresa que coordena as diferentes atividades jornalísticas, define a linha editorial do jornal e permite, assim, fidelizar uma certa audiência.

Em comum entre as duas lógicas sociais já expostas, vale ressaltar algumas características, inclusive porque essas as difereciam da cultura da onda e do modelo de clube. Exceção feita à produção de espetáculos, a circulação ocorre a partir de bens tangíveis, tornando possível praticar exclusão pelo preço e pela escassez, face a materialidade do bem. A ruptura entre os dois modelos – editorial e imprensa - é “uma ruptura de mercado” (SALAÜN, 1990, p.40), onde este se altera em função da modalidade de financiamento. Ou, na síntese de Hercovici (2009, p.5), “o desenvolvimento da venda de audiência para os anunciantes representa uma nova forma mercantil e uma nova fonte de financiamento para essas empresas”. Do ponto de vista dos “ mecanismos de formação dos usuários” mencionados por Miège na conceituação de lógicas sociais já mencionada, parece-nos oportuno reforçar a escassez. Durante séculos os jornais impressos foram as únicas fontes de informação e, mesmo depois da implementação do rádio e da televisão, eram únicos em um especial tipo de cobertura jornalística. Meyer (2007) faz uma interessante analogia entre um castelo e uma única forma de acessá-lo, através um pedágio, com o respectivo pagamento para ter acesso à construção. Durante muito tempo, para ler as notícias era necessário pagar o valor da assinatura ou o preço do exemplar nas bancas, assegurando o público-alvo das empresas jornalísticas.

Por público-alvo entende-se os leitores de um jornal que delimitam e qualificam sua circulação, o que bem atende ao segundo grupo de clientes de um jornal, os anunciantes. Num duplo movimento de aproximação, o leitor é determinante para a receita com circulação (mercado leitor) e para o mercado anunciante (receita com espaço publicitário), diretamente articulada com o perfil do leitor. Como já dito, o consumidor final é parte do financiamento no modelo editorial e no da imprensa, neste somado à publicidade.

Na passagem dos dois modelos anteriores para a lógica social cultura da onda, há alterações simultaneamente de ordem técnica e econômica. Técnica, pelo fato da


difusão ser assegurada por um sistema hertziano, sem a materialidade que caracterizava os dois modelos precedentes; econômica, porque esta modificação se traduz por uma redução dos custos de reprodução e de difusão Para Hercovici, trata-se de uma ruptura de rede:

No rádio e a televisão aberta [...] o consumo é semi-individual e instantâneo, a difusão é contínua, o financiamento pode ser assegurado por subsídios, por taxas e/ou pela venda de espaços publicitários. As atividades de programação constituem a função central: elas definem um conjunto de programas e o público que lhes corresponde. A difusão hertziana é tal que os custos ligados à difusão e ao estocagem são mínimos. A natureza econômica do serviço se modificou: trata-se de um bem público, o qual se caracteriza pela não rivalidade e pela não exclusão. A valorização econômica apresenta as especificidades das redes (HERSCOVICI, 2009).

A partir da idéia central de Economia em Rede ou Economia Digital, Tremblay (1997) busca explicar o desgaste da lógica da onda, para o autor um modelo típico da fase inicial da radiodifusão e em progressiva mutação a partir do avanço da digitalização. A oferta de produtos culturais pautados na comunicação bidirecional e interativa demandaria novas formas de remuneração do capital, resultando, não num reforço da lógica da onda, mas na emergência de uma nova lógica, por ele denominada a “ lógica de clube”.

Até a cultura de onda, cada modelo mantém características próprias, em termos de modalidades de consumo, de estrutura de custos e de modalidades de financiamento. A partir da lógica de clube, passa-se a conceber duas modalidades de financiamento das diversas atividades tornadas possíveis a partir da conexão e da digitalização em rede: o financiamento direto ligado aos pagamentos efetuados pelos usuários, os quais correspondem a uma lógica clássica de mercado, e os financiamento indiretos, ligados à venda de audiência.

Bolaño e Brittos (2006) e Herscovici (2009) estão entre os autores que vislumbram que a Economia Digital pauta-se por uma outra lógica social, onde as modalidades concretas de valorização econômica e de concorrência são totalmente diferentes daquelas que correspondem a lógica de clube. Sustenta Herscovici que o desenvolvimento deste novo


modelo – ainda a espera de uma nomeação - não está baseado na produção e na distribuição de bens econômicos privados, mas sim de bens público. Com a digitalização, os processos midiáticos, em geral, são alterados, tanto no que se refere à organização dos mercados culturais, quanto às rotinas empresariais, à criação, produção e disponibilização de conteúdos, e na relação com os consumidores.

Referindo-se especificamente ao jornalismo, Bolaño e Brittos (2006) pontuam que, enquanto grupos empresariais buscam potencializar seus arquivos, digitalizando-os, atores não-hegemônicos tentam, através da digitalização, alterar a arena midiática. No primeiro caso, por exemplo, situam-se as empresas jornalísticas consolidadas e as versões digitais dos jornais. Quanto aos atores não hegemônicos, pode-se mencionar sites alternativos, o Google (maior agregador de notícias online, sem produzir uma única palavra de conteúdo) ou as mídias sociais. Para além da eventual participação em jornais online – de referência ou alternativos – a Internet propiciou a formação de novas redes sociais e uma intensa reorganização do conceito de comunidade,

em torno do que Nogueira (2002) denomina o afã de

comentar. Ressalta-se que o surgimento e uso crescente das chamadas mídias sociais afeta a produção e o consumo da informação na sociedade, modificando os processos produtivos consolidados dos grandes conglomerados multimídia tradicionais. Ou, na síntese de Moraes (2002), a imagem clássica dos aparelhos de divulgação no topo da pirâmide e dos receptores confinados na base está se rompendo na arquitetura dos espaços descentralizados da Web 2.012.

O Brasil desponta no cenário mundial como destaque no que se refere ao potencial do mercado 2.013. Segundo o Ibope/NetRatings14, os brasileiros lideram o tempo de navegação domiciliar desde 2005 (aproximadamente 24 horas mensais), sendo que de cada dez internautas brasileiros, oito utilizam redes sociais. O relatório de março de 2009 conclui ainda que as redes sociais e os blogs estão em quarto lugar no ranking de popularidade da Internet, à frente, inclusive dos serviços de e- mail.15.


O Orkut segue ainda como a rede social com mais adeptos no país, acessada por cerca de 75% dos usuários de Internet no Brasil onde os internautas brasileiros passam, em média, 390 minutos por mês, com visitas médias de 15 minutos. Em termos comparativos, ainda segundo a empresa de métricas online Ibope Nielsen (2009), o tempo de visita ao MySpace no Brasil é, em média, de 12,6 minutos e, no Facebook, 11,1 minutos.

Neste mesmo viés, menciona-se a verdadeira explosão de uso do YouTube, que a cada minuto recebe 20 horas de vídeo16. Em comemoração aos recordes recentes da empresa, o portal criou novo recurso para aumentar ainda mais a interação social no site. Agora, após assistir a um vídeo, o internauta pode gravar vídeo-respostas na hora. Mas a sensação do momento das redes sociais é o Twitter17, ao ponto de ter sido o assunto mais comentado no Festival de Publicidade de Cannes18, em sua edição 2009.

Em termos publicitários, as redes sociais recém despontam, mas há forte tendência de crescimento em nível mundial. Nos Estados Unidos, por exemplo, em julho de 2009, as redes sociais representaram mais de 20% de todos os anúncios vistos na Internet, segundo estudo divulgado pela consultoria comScore. Somados, o Facebook e o MySpace hospedam mais de 80% de todos os anúncios em redes sociais daquele país19.

No Brasil, depois de polêmicas envolvendo publicidade na maior e mais popular rede social, em julho de 2009 o Orkut voltou a exibir anúncios nas suas páginas de comunidades e nos perfis de usuários. Os anúncios, a maioria no formato de links patrocinados, aparecem de forma contextual. Permanecendo gratuitas para o usuário, essas redes sociais seguem o modelo econômico proposto por Andersen (2009) para a Economia Digital, mas paralelamente, buscam adesão publicitária em um movimento similar à cultura da onda. Twitter, Facebook e MySpace tencionam iniciar a captação de anúncios no Brasil já em 2010.

Duas questões emergem como cruciais para a sobrevivência dos impressos em seu entrecruzamento com os webjornais, pensando-se na sinergia de recursos informativos e de sustentação: o conteúdo pago e a possibilidade de adoção de lógicas sociais hibridas.


Com relação ao conteúdo, desde seu surgimento em 1995, preparavam-se as empresas jornalísticas para atuar nos webjornais dentro da lógica social imprensa, articulando acumulação de capital com as duas bases de financiamento tradicionais: leitores (agora, usuários) e anunciantes. Os leitores-usuários pagariam uma taxa, seguindo a lógica de clube. Mas os próprios jornais online, em concorrência entre si pelas verbas publicitárias, passaram a liberar o acesso em busca de maior tráfico de usuários. Este é talvez o grande argumento por trás da meia volta da maioria dos grandes jornais em matéria de assinatura online paga Os grandes portais acreditavam que tendo visibilidade, captariam anunciantes, em uma raciocínio análogo à cultura da onda. O conteúdo atrairia usuários e a audiência qualificada, anunciantes. Em pouco tempo, os leitores passaram a obter de forma rápida e gratuita informação e notícias online, e se negaram, portanto, a pagar pelo serviço. Atualmente, há um forte debate entre os conglomerados do setor sobre a volta das assinaturas pagas, micropagamentos por acesso, ou remuneração de acesso a conteúdos parciais especializados, uma abordagem que se aproxima do modelo Cauda Longa de Anderson (2006), cuja base circunscreve-se na cultura de nicho.

Pode-se, eventualmente, imaginar que os leitores voltassem a aceitar pagar pelos acessos online, desde que todos os portais e webjornais fechassem seus conteúdos simultaneamente. Neste caso, ignorando-se que as assinaturas online são, em média, 30% mais baratas do que as similares em papel, e partindo-se da premissa otimista que os leitores que compram em banca também aceitassem pagar assinaturas de acesso, bem como que os conteúdos jornalísticos dos sites não fossem mais replicados pelos usuários, os jornais conseguiriam manter sua renda com assinantes (cerca de 25% da sua receita). Os restantes 75% referem-se, como já mencionado, à publicidade.

A publicidade, contudo, ainda não correspondeu às expectativas dos webjornais. O aporte total de publicidade online no Brasil ainda é incipiente, registrando apenas 4% do total dos recursos em janeiro de 2009. Ocorre que a publicidade que migrou para a


Internet não o fez, necessariamente, para os jornais online e não há dados disponíveis sobre as perspectivas a curto ou médio prazo.

Considerações finais Do ponto de vista do mercado-leitor, as mídias sociais representam estímulos e fontes de informação diversas, ainda que usualmente apenas republicações do que é veiculado pelas empresas jornalísticas consolidadas na Web. São sites os mais variados que disputam entre si, com as mídias tradicionais e com os conglomerados multimidiáticos os bens mais raros dos sujeitos do mercado-leitor: o tempo e a atenção, além dos recursos potencialmente provenientes das assinaturas dos jornais.

Do ponto de vista do mercado publicitário, as TICs em geral e a Internet em particular abrem espaço para novas formas de publicidade, com vantagens para os anunciantes. Segmentação, métricas confiáveis, flexibilidade e custos são apenas algumas das variáveis – agora otimizadas – que surgem como diferencial (RUBLESCKI, 2008). Além disso, pode-se presumir que a publicidade estará onde os consumidores estiverem.

Numa leitura preliminar, a ser aprofundada em trabalhos posteriores e na própria tese de doutorado ora em desenvolvimento, sustenta-se que os jornais – impressos e online – terão que adotar estratégias criativas de combinação de lógicas sociais em busca de sustentação, investindo em produtos diferenciados, que permitam a sinergia entre os diversos modelos sócio-econômicos.

1

O presente artigo é um recorte parcial da tese de doutoramento da autora. Para Amaral (2006), os jornais populares baseiam-se na valorização do cotidiano, na fruição individual do sentimento e da subjetividade. O público leitor, distante das esferas de poder, prefere ver sua cotidianidade impressa no jornal, e a informação é sinônimo de sensação. AMARAL, Márcia Franz. Jornalismo Popular. São Paulo: Contexto, 2006. 3 Os termos rede social e mídia social não são sinônimos. Neste artigo utiliza-se “mídia social” em referência às ferramentas online que permitem interação social, a criação colaborativa e o compartilhamento de informações. Já por “redes sociais” designa-se as relações entre indivíduos mediadas por computador. 4 Atribui-se a Daniel Bell, nos anos 70, a primazia da percepção de que, movido por contradições culturais, algo no capitalismo havia mudado, apostando numa transformação da própria indústria e da economia, tornadas culturais. O autor vê simbiose entre a produção material e o capital simbólico a marca distintiva de uma economia que encontra justamente nos serviços seu modelo de operação, na produção e nas trocas. LOPES, Ruy. Informação, conhecimento e valor. Sâo Paulo: Radical Livros, 2008. 2


5

O termo convergência é polissêmico. Neste sentido está sendo usado como a dissipação das “fronteiras tradicionais entre operadoras de TV a cabo, de telecomunicações, de radiodifusão e de informática. Os novos canais e suportes (Internet, DVD, TV interativa de alta definição, celulares com Web móvel e os tantos que virão) multiplicam a geração de conteúdos informativos financeiros, culturais e comerciais” (MORAES, 2004, p.10-11). 6 A Constituição brasileira permite a participação de até 30% de capital estrangeiro na composição acionária de empresa jornalística ou de radiodifusão, a partir de emenda promulgada em 2002. 7 Para Lima, a integração horizontal dos meios de comunicação constitui-se na integração das diferentes etapas da cadeia de produção, distribuição, comercialização e veiculação por parte de um mesmo grupo empresarial. A vertical refere-se a oligopolização ou monopolização que se produz dentro de uma mesma área do setor , onde, por exemplo, o grupo NET-SKY, da Globo, controla 95% da TV por satélite. Já a propriedade cruzada faz referência a propriedade por um mesmo grupo de diversos tipos de mídia do setor de comunicações. Por exemplo: TV aberta, TV por assinatura (a cabo, MMDS ou via satélite-DTH), rádio, revistas, jornais e, mais recentemente, telefonia (fixa, celular e móvel, via satélite), provedores de Internet. Por último, o monopólio em cruz, denominação atribuída ao monopólio da reprodução, em nível local e regional, dos oligopólios da propriedade cruzada. LIMA, Venício. Mídia: Teoria e Política. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2001. 8 Pesquisa consolidada de julho/2009 do Projeto Intermeios. Disponível em http://www.projetointermeios.com.br/relatorios/rel_investimento_3_0.pdf. Acesso 3 out 2009. 9 A alocação de verbas publicitárias segundo a mesma pesquisa da totalidade dos meios foi de cinema (0,37%), Guias e Listas (1,80%), Internet (4,09%), Jornal (15, 02%), Mídia Exterior (3,09%), Rádio (4,57%), Revista (7,38%), Televisão (60,24%) e TV por Assinatura (3,44%). 10 Neste artigo é utilizado o conceito de indústrias culturais, proposto por Mattelart, que remete a “um conjunto diversificado (livro, imprensa, disco, rádio, televisão, cinema, novos produtos e suportes audiovisuais, fotografia, reprodução de obras de arte, publicidade) de um novo vetor da „democratização da cultura‟, que doravante transita pelo mercado e apresenta um caráter transnacional” diverso da definição de indústria cultural de Adorno e Horkheimer, nos anos 1940. MATTELART, Armand. Diversidade cultural e mundialização. São Paulo: Parábola Editorial, 2005. p.83 11 “Por fordismo entende-se o regime de acumulação dominante nas economias capitalistas avançadas entre a Segunda Guerra Mundial e os anos 1970; e por pós-fordismo, o regime flexível hegemônico a partir dessa data. No Brasil, tanto um quanto outro regime de acumulação apresentam-se com especificidades em relação à experiência dos países avançados”. FONSECA, Virgínia. Indústria de notícias: capitalismo e novas tecnologias no jornalismo contemporâneo. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008. p.24 12 Termo cunhado por Tim O‟Reilly, em 2004, referindo-se à interatividade e a colaboração participativa propiciada pela segunda fase dos aplicativos, ferramentas e sites disponibilizados na Web. 13 Salienta-se que há uma desigualdade considerável no acesso e uso das TICs por parte da população brasileira, bem como na maioria dos países. Observa-se que há um grupo com acesso fácil , uso habitual e facilidade no trânsito entre redes sociais, geração e recuperação de conteúdo. Do outro, uma enorme contingente de infoexcluídos. Contudo, embora esta seja uma das temáticas mais caras à EPC, tal discussão extrapola os limites deste artigo. 14 Disponível em www.b2bmagazine.com.br/web/interna.asp?id_canais=digital. Acesso em 18 ago. 2009. 15 Nas primeiras colocações estão os buscadores, os portais e, em terceito lugar, serviços de download de software. 16 Pesquisa divulgada em setembro de 2009. Disponível em http://googlediscovery.com/category/youtube. 17 Os usos habituais de Twitter são: a rotina cotidiana (”What are you doing now?”, lema de Twitter), as conversações (a estilo de um chat), compartilhar informação (normalmente páginas URL) e ocasionalmente publicar notícias. 18 Disponível em http://www.canneslions.com/lions/videos.cfm?tag=101. Acesso em 28 ago. 2009 19 Pesquisa disponibilizada pela IDG-Now. Disponível em: http://idgnow.uol.com.br/internet/2009/09/01 /myspace-e-facebook-concentram-80-dos-anuncios-em-redes-sociais-nos-eua/. Acesso em 22 set. 2009

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TV PÚBLICA NO BRASIL: PROPOSTA DE EXPANSÃO ATRAVÉS DA MULTIPROGRAMAÇÃO E DA PARCERIA COM AS EMISSORAS COMERCIAS PALOMA MARIA SANTOS * Universidade Federal de Santa Catarina Programa de Pós-Graduação em Engenharia e Gestão do Conhecimento pela Universidade Federal de Santa Catarina

Resumo Este artigo busca refletir sobre a proposta de expansão da TV pública no Brasil através da parceria com as redes comerciais de televisão e do uso da multiprogramação. Um levantamento bibliográfico sobre as características constituintes da televisão pública e os principais cases de sucesso da sua implantação pelo mundo são apresentados. Com base nas condições mercadológicas atuais do país, são elucidadas alternativas para viabilizar a expansão da rede pública televisiva, tendo em vista o acesso do cidadão às diferentes tecnologias, a participação das emissoras da rede aberta e uso dos canais adicionais oferecidos pela multiprogramação. Palavras-chave: Multiprogramação, Televisão Pública, Emissoras da Rede Aberta.

Abstract This article aims to reflect on the proposal of Brazil’s public television expansion through the partnership with commercial television networks and the use of multibroadcasting. A reference survey on the constituent characteristics of public television and major cases of success of its deployment around the world are presented. Based on country’s current marketing conditions, some alternatives are elucidated to enable the public television’s expansion, in view of the citizen's access to different technologies, the participation of open networks’ broadcasters and the use of additional channels offered by multibroadcasting. Keywords: Multibroadcasting, Public Television, Open Networks’ Broadcasters

Resumen Este artículo pretende reflejar sobre la propuesta de expansión de la televisión pública en Brasil a través de la colaboración con las redes de televisión comerciales y el uso de multibroadcasting. Una investigación bibliografíca sobre las características constitutivas de la televisión pública y los principales casos de éxito de su despliegue en todo el mundo se presentan. Basándose en las condiciones de comercialización actuales en el país, se aclaran alternativas para hacer viable la expansión de la televisión pública, en vista de lo acceso de los ciudadanos a diferentes tecnologías, la participación de las emisoras de radiodifusión abierta y la utilización de los canales adicionales ofrecidos por la multibroadcasting. Palabras clave: Multibroadcasting, Televisión Pública, Emisoras de Radiodifusión Abierta.


1. Introdução Desde dezembro de 2007, o Brasil está vivenciando uma profunda transformação tecnológica, com a chegada da televisão digital. As mudanças percebidas ainda estão no âmbito da melhoria na qualidade de áudio e vídeo e a promessa de benefícios para o telespectador como a inclusão social, a interatividade e a multiprogramação, ainda não saíram do papel. Na mesma data do início da transmissão digital televisiva no país, o governo estreou a primeira televisão pública brasileira, a TV Brasil, aproveitando o momento de migração tecnológica para realizar uma antiga aspiração da sociedade, delineada desde 1988, na Constituição Federal do país. A constituição previa, no artigo 223, que o sistema de radiodifusão teria as vertentes privada, governamental e pública, de forma a se complementarem. As redes de televisão privadas já existem há mais de 50 anos. Elas são muito bem estruturadas e fornecem uma programação que segue o modelo comercial. As redes governamentais (TV Senado, TV Câmara, TV Justiça, etc) são utilizadas pelos governantes para prestação de contas a população. Já a rede pública, entretanto, nunca foi mais do que um projeto. Este artigo tem o intuito de salientar as características da tv pública, palestrar sobre cases de sucesso da sua implantação ocorridos em países como Inglaterra, França, Canadá, EUA e Chile, além de apresentar as peculiaridades e expectativas da primeira televisão pública brasileira. Baseado nestas indicações, uma análise da problemática existente no plano de expansão da TV Brasil através das parcerias com as emissoras presentes nas redes a cabo é apresentada. Em seguida, são elucidadas algumas alternativas com o intuito de viabilizar a expansão da rede pública televisiva por todo o país, considerando, além das emissoras comerciais e da multiprogramação, recurso disponível às redes que migrarem para a tecnologia digital, o maior interessado nesse processo: o telespectador. 2. Características da TV pública A televisão pública, teoricamente, deve ter em sua gestão influência direta da sociedade civil, não devendo estar subordinada nem às regras do mercado nem ao controle do poder político. De acordo com Lemos, Carlos e Barros, é um serviço público que funciona independente do Estado, tanto do ponto de vista burocrático, como de produção e emissão de conteúdos. Diferentemente da TV comercial, Cruvinel (2008) diz que a TV pública deve oferecer uma programação com ênfase na informação artística, cultural, científica e educacional. Deve ainda espelhar a diversidade territorial, abrir espaço para o debate de questões de interesse público, incorporar informações sobre as realidades regionais e valorizar a produção das TVs públicas associadas. Ela tem que representar os Brasis dentro do Brasil. Como explica Scorsim (2000), trata-se de uma modalidade de serviço de radiodifusão pública, caracterizada como não privativa do Estado, com autonomia editorial e administrativa. Assim, seu gerenciamento deve ser implementado de forma independente do Governo, o qual não deve interferir na nomeação dos dirigentes, muito menos na programação. A TV pública se apresenta como uma forma de o Estado devolver aos cidadãos uma parte dos impostos pagos, na forma de um serviço de comunicação independente, voltado para a cidadania. Dessa forma, ela deve ser vista como uma instituição da sociedade civil.


3. TV pública no Mundo A televisão pública tem origem no surgimento da televisão na Europa. Lá, todas as redes nasceram por iniciativa do Estado. O amadurecimento democrático da sociedade acabou impondo a participação dos cidadãos na gestão das emissoras, levando ao efetivo controle público. Na seqüência, são apresentadas brevemente as TVs públicas da Inglaterra, França, Canadá, EUA e Chile. 3.1. TV Pública na Inglaterra A BBC Inglesa é a rede mais conhecida e admirada. Criada em 1922, ela é dirigida por uma diretoria executiva que é nomeada por um conselho formado por 12 pessoas representativas da sociedade. Os conselheiros são independentes e não possuem vínculos com organizações ou com a TV comercial. O modelo de financiamento garante total autonomia à TV. De acordo com Fioreti, Campos e Stivanin (2007), a manutenção do sistema é feita através do pagamento de uma taxa anual de 116 libras, cobrada por domicílio com aparelho de TV. Isso equivale a um orçamento de 2,5 bilhões de libras por ano. De acordo com Filho (1997), esse sistema é bem aceito porque é a proposta desde o início, e existe mesmo participação da sociedade e o controle sobre o que deve ser exibido na TV pública. 3.2. TV Pública na França A França possui cinco canais públicos: Telefrance 2, 3, 4 e 5, além de um canal dedicado a assuntos de colônias francesas. O TF2 e TF3 são canais públicos e populares, com programas voltados para jovens. Os canais TF4 e TF5 são essencialmente culturais, mas nem por isso TVs educativas. Os diretores gerais das TVs do sistema France Television são nomeados pelo presidente do Conselho de Administração, que, por sua vez, é nomeado pelo Conselho do Audiovisual. O Conselho de Administração é formado por 14 membros: 4 parlamentares, 5 do Estado e 5 pelo Conselho do Audiovisual. Os conselheiros têm mandato de cinco anos. Cerca de 70% dos custos da TV são bancados por verbas orçamentárias. O resto vem de patrocínios, prestação de serviços e anúncios institucionais. O espectador também colabora. Uma taxa de 116 euros anuais é cobrada de cada cidadão que possui um televisor. Em 22/10/08, conforme divulgação da Agência France-Presse, o governo francês aprovou um projeto de lei que modifica o funcionamento da televisão pública. O projeto inclui a supressão da publicidade e modifica o sistema de nomeação de sua diretoria. A reforma também estabelece a integração dos canais da France Television em uma sociedade única. Para compensar a receita que a sociedade France Television deixará de receber, o governo garantiu 450 milhões de euros, obtidos de um imposto de 3% sobre os lucros com publicidade dos canais privados e de 0,9% sobre o volume de negócio dos operadores de telecomunicações. 3.3. TV Pública no Canadá


Historicamente, o Canadá sofre com a influência da máquina cultural americana desde o início das comunicações de massa. Conforme Fioreti, Campos e Stivanin (2007), a rede pública de televisão da Canadian Broadcasting Corporation (CBC) foi a solução encontrada para resguardar e promover a produção e a cultura canadense. A CBC é dirigida por um Conselho Curador de 12 integrantes, responsável por todas as atividades da corporação. O Governador-Geral indica os integrantes do conselho, sendo vedada a participação de pessoas relacionadas à área de radiodifusão. A rede pública conta com uma contribuição dos cidadãos para o financiamento da rede. Fioreti, Campos e Stivanin (2007) afirmam que cada canadense paga cerca de 30 dólares em impostos por ano para ajudar a financiar os 28 serviços de comunicação oferecidos pela CBC, que, além de redes de televisão e rádio em francês e inglês, incluem portal na internet e até uma gravadora e distribuidora de música. A venda de espaço publicitário e a exportação de programas contribuem para fechar o orçamento. 3.4. TV Pública nos EUA A PBS americana, Public Broadcasting Service, fundada em 1969, é uma federação de 354 emissoras públicas e independentes, nos Estados Unidos, Porto Rico, Ilhas Virgens, Guam e Samoa Americana. A direção executiva tem 11 membros e é presidida por um dos membros do Conselho Diretor, que por sua vez é composto por 27 representantes das emissoras associadas. O sistema de financiamento é misto: parte vem do governo e a maior parcela é de origem privada. O espectador também ajuda a manter a rede, ao colaborar com as campanhas de arrecadação de dinheiro realizadas de três a quatro vezes por ano. A verba do governo, em torno de 15% do orçamento, vem de um fundo chamado Corporation for Public Broadcasting (CPB). No quesito conteúdo, a PBS tem um papel educativo muito forte para as crianças, mas também é conhecida pelos documentários, noticiários e programação local. 3.5. TV Pública no Chile No Chile, a TV pública Nacional existe desde o início dos anos 90. Ela é pública e totalmente independente de financiamento estatal, mas adota o sistema comercial. Com 140 transmissoras no país, a TVN tem por dever zelar pela formação dos cidadãos chilenos. Líder de audiência, a Televisão Nacional está inserida no mercado competitivo do país e tem com missão apresentar programas de qualidade e mostrar a “pluralidade” do Chile. A programação vai desde para grandes reportagens, documentários e noticiários até telenovelas, séries e programas infantis. A experiência internacional mostra que as TVs públicas são viáveis e podem cumprir um importante papel na oferta de fontes diversificadas de informação e entretenimento. 4. Tv pública no Brasil No Brasil, há mais de 50 anos, a TV nasceu como concessão do Estado à iniciativa privada, embora o presidente Vargas tenha planejado uma TV Nacional que não chegou a ser implantada. Depois de 1964, o regime militar criou as primeiras TVs estatais. Só agora,


entretanto, surge o esforço para a transformação das estatais federais, em parceria com as estaduais, em uma rede pública de televisão. Pensando em democratizar os meios de comunicação, o governo teria reservado quatro canais dentro do sistema de televisão digital exclusivamente para a TV Pública. Um deles seria reservado para as comunidades locais, dando assim voz à população. Os demais se alternariam em programações culturais, educação e notícias do governo (TOVO). 4.1. Criação da EBC – Empresa Brasil de Comunicação Tendo em vista a ampliação do espectro de canais disponíveis com a implantação da TV digital, o interesse da sociedade e o cumprimento da Constituição Federal, o Governo julgou o momento oportuno para viabilizar o projeto da televisão pública no Brasil. Alguns canais estatais foram cedidos: TVEs do Rio e do Maranhão, canal de São Paulo e a empresa de comunicação Radiobrás, bem como algumas rádios (MEC, RJ, Amazônia) e a Agência Brasil (portal de internet). Essas empresas hoje estão unidas e constituem a EBC, uma sociedade de economia mista criada pelo governo federal brasileiro. As redes incorporadas deixam de transmitir a sua grade de programação e passam a transmitir apenas a TV Brasil, a rede de televisão pública brasileira. A EBC, enquanto empresa pública, responderá a um Conselho Administrativo em que a União, como acionista majoritária, é predominante. E será também supervisionada por um Conselho Fiscal, mas estes são controles administrativos. A política de comunicação da televisão estará subordinada ao Conselho Curador, formado em sua maioria por representantes da sociedade brasileira, que tem como objetivo a fiscalização do trabalho e a observância das finalidades da TV Pública. O canal estreou sua programação no dia 2 de dezembro de 2007, ao meio-dia, mesma data que se iniciaram as transmissões de TV digital no território brasileiro. 4.2. Formas de financiamento propostas Segundo Sr. De Lion, da TV Brasil, a TV tem caráter público e será mantida com o dinheiro do povo, através de uma redistribuição das receitas já existentes, proveniente do pagamento de impostos. O FUST, Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações, se comprometeu a repassar 100 milhões de reais e o governo destinou uma verba de R$ 380 milhões para a TV pública para o ano de 2008. Não será criado nenhum imposto novo para financiar a rede e a cobrança de uma taxa do usuário para acesso a TV pública está descartada. De Lion diz ainda que a EBC terá outra fonte de receita, proveniente do serviço de produção de parte do programa TV executiva NBR, disponível em algumas TVs a cabo. Receitas complementares serão estudadas: a EBC poderá veicular anúncios institucionais, fazer uso de patrocínios de programas, recorrer às leis de incentivo cultural e firmar contratos para a prestação de serviços remunerados. Os investimentos previstos pelo governo consideram a possibilidade de aproveitamento de parte da estrutura técnica da Radiobrás, que já transmite a TV Nacional para cerca de 30% dos municípios brasileiros. O ministro das comunicações Sr. Hélio Costa considera a possibilidade de envolver Câmaras Municipais e Assembléias Legislativas para compartilhar benefícios e custos. 4.3. Onde o sinal está disponível


A TV Brasil está no ar desde o dia 2 de dezembro de 2007, quando a TVE do Rio de Janeiro e a TVN de Brasília, emissora da Radiobrás, passaram a transmitir o canal público. O sinal está disponível para todo o país, via satélite, conforme configurações abaixo, e também pela internet, através do site http://www.tvbrasil.org.br/.

Figura 1 – Configurações do sinal via satélite Fonte: http://www.tvbrasil.org.br/

Nas TVs aberta e fechada (cabo), o sinal está disponível nas seguintes cidades: Rio de Janeiro: Canal 2 (VHF analógico), canal 32 (UHF analógico), canal 41 (UHF digital), canal 18 (Net Cabo analógica) e canal 116 (Sky / Direct TV). Brasília: Canal 2 (VHF analógico), canal 15 (UHF digital), canal 16 (Net Cabo) e canal 116 (Sky / Direct TV). São Luís: Canal 2 (VHF analógico), canal 34 (UHF digital), canal 18 (Net Cabo analógica) e canal 116 (Sky / Direct TV). São Paulo: Canal 68 (UHF digital), Canal 4 (Net Cabo digital) e canal 116 (Sky / Direct TV). De acordo com o Sr. De Lion, da TV Brasil, o sinal da rede aberta na cidade de SP através do canal 69 (UHF analógico) foi suspenso, pois ouve um problema de interferência com a freqüência utilizada pela Nextel (empresa de telefonia celular). Providencias, junto a Anatel, já estão sendo tomadas a respeito do assunto. Em todas essas cidades, a estrutura de transmissão é própria do governo. As cifras investidas na implantação do sistema não foram reveladas. 4.4. Plano de expansão da TV Brasil A EBC, para transmitir a TV pública em todo o país, buscará firmar convênios com outras emissoras do campo público de comunicação, como as TVs educativas estaduais, universitárias e comunitárias, com o intuito de cobrir todos os estados, espelhando suas realidades. A rede TV Cultura está sendo cotada para firmar uma parceria nesse sentido. Os contratos de parcerias terão diferentes graus de adesão: plena, associada ou parceira. A emissora que for retransmitir o sinal da rede pública terá a obrigação, conforme regulamento, de ter no mínimo 4h diárias de programação local. A parceria com o governo incluirá, além de auxílio na capacitação técnica, apoio ao financiamento das redes. Nos municípios em que a parceria for fechada, a TV Brasil será transmitida. Onde não houver parceria, caberá ao governo estudar cada caso, mas, conforme disse Sr. De Lion, da TV Brasil, não há intenção de montar rede aberta para transmissão em todas as 5.561 cidades


do país. “Isso é praticamente inviável, tanto do ponto de vista financeiro quanto do ponto de vista técnico”. 5. Dificuldades constatadas A grande dificuldade constatada para a viabilização da expansão da TV Brasil pelo país é a indisponibilidade, segundo as parceiras cogitadas, de canais nas redes abertas em todos os municípios. O Governo prevê parcerias com redes educativas, comunitárias e estatais, mas elas estão presentes apenas nas redes fechadas (pagas) de televisão. De acordo com Lemos, Carlos e Barros, a Lei do Cabo, promulgada em 1995, foi considerada passo fundamental para a criação das emissoras de interesse público. O artigo 23 obriga os operadores privados a transmitirem também o sinal de canais chamados de “interesse público”, utilizados gratuitamente – três canais legislativos, um canal universitário, um canal educativo-cultural, um canal comunitário e um canal do Poder Judiciário. O que acontece é que dos 193 milhões de habitantes do Brasil, apenas 5,4 milhões têm acesso a TV a cabo (em torno de 2,8%), segundo dados da ABTA. Se incluirmos a essa estatística o acesso ao sinal de satélite (pago), esse número sobe para 7%. A pesquisa TIC Domicílios 2007 comprova esta baixa penetração.

Base: 17.000 domicílios entrevistados em área urbana. Respostas múltiplas e estimuladas. Figura 2 – Equipamentos TIC nos domícilios FONTE: Pesquisa TIC Domicílios 2007


Conforme essa pesquisa, vemos que entre as classes menos favorecidas, classes D e E, a presença da TV a cabo + satélite (pago) mostra-se insignificante: apenas 1% dos lares. É justamente para estas classes que a TV pública traria maior impacto, quando direcionada a educação, a cultura e ao entretenimento. A falta de condições financeiras para o acesso às redes fechadas e a indisponibilidade do sinal na maioria das regiões, impede os telespectadores de usufruir da rede pública de televisão recentemente inaugurada no país, que tem como objetivo primordial, de acordo com o Presidente Lula, “somar, criar oportunidades para que do Oiapoque ao Chuí as pessoas possam ver coisas”.

6. Alternativas para expansão da TV Brasil O Governo tem, em tese, três alternativas para a expansão da rede TV Brasil pelo país: Parcerias com redes estatais, educacionais e comunitárias; Investir em parque tecnológico próprio; Parcerias com redes privadas. A primeira alternativa é a que está sendo cogitada atualmente pelo governo. Existe um grande interesse das emissoras públicas estaduais e das TVs universitárias e comunitárias pela proposta de formarem uma rede com a TV Brasil. A conquista da concessão de canais abertos por redes estaduais do governo e o início da operação efetiva, aumenta as chances de expansão do sinal da TV pública, em caso de sucesso na parceria. A TV Câmara e a TV Senado obtiveram a possibilidade de operar em sinal aberto UHF em Brasília (DF). Segundo Lemos, Carlos e Barros, o Senado começou a investir na instalação de emissoras UHF em outras capitais brasileiras. Salvador (canal 53 UHF), João Pessoa (canal 40 UHF), Recife (canal 55 UHF), Manaus (canal 57 UHF) e Fortaleza (canal 43 UHF) já assistem à programação da TV Senado sem a necessidade de parabólicas ou de assinatura de TV a cabo. Outros canais retransmissores já foram autorizados pelo Ministério das Comunicações e estão em fase de implantação. São eles: Rio de Janeiro (canais 49 e 64/UHF), Maceió (canal 35/UHF), Natal (canal 52/UHF), Goiânia (canal 21/UHF), Belém (canal 44/UHF), Cuiabá (canal 55/UHF) e Boa Vista (canal 13/VHF) (LEMOS, CARLOS e BARROS). Conforme já dito anteriormente, uma forte parceria com a TV Cultura, da Fundação Padre Anchieta, está sendo estudada. Segundo informações da Anatel, o sinal da TV Cultura está disponível nos seguintes estados: SP (Geradora), Amazonas (sinal cobre Manaus), Bahia, Goiás (sinal cobre 90% do estado), Mato Grosso do Sul, Pará, Paraíba (sinal cobre Campina Grande, Fagundes, Guarabira, Mamanguape, Monteiro, Pombal, Rio Tinto, Sousa e João Pessoa), Paraná (sinal cobre Curitiba e regiões oeste, norte, noroeste e região dos campos (11 cidades)), Piauí (sinal cobre Teresina, Timon, regiões centro sul e litoral), Rio Grande do Sul e Santa Catarina. O problema é que o sinal da maioria das parceiras cogitadas está disponível apenas no cabo ou, quando em rede aberta, em um número muito pequeno de cidades. A segunda opção seria investir em infra-estrutura própria de transmissão: encoder, multiplexador, transmissor, antena, cabos, modulador, microondas, local para instalação, concessão de canal, entre outros. Além do alto custo para montar uma rede de transmissão em


cada cidade do país, é inviável, em muitos casos, obter a concessão do canal em rede aberta, devido a alta concentração de grandes redes em determinadas localidades. A utilização dos quatro canais públicos criados pelo decreto da TV digital esbarra no mesmo problema: obtenção de recursos para investir em infra-estrutura de transmissão. A terceira alternativa seria se aliar às redes privadas comerciais, que transmitem seu sinal para a rede aberta, e se utilizar dos canais adicionais que as mesmas terão disponíveis ao migrar para a TV digital. De acordo com a Anatel, o Brasil tem hoje cerca de 600 emissoras geradoras de TV analógica, aproximadamente 3 mil retransmissoras, além de outras 12 mil repetidoras. As redes abertas estão presentes em praticamente todas as cidades do Brasil. Além disso, a maior “virtude” destas redes é que elas disponibilizam informação e acesso gratuito a população, 24h por dia. Apesar de possuírem formatos totalmente diferenciados, tanto do ponto de vista de constituição, de conteúdo e de sustentabilidade, um modelo econômico de parceria com redes de televisão aberta deve ser estudado. Uma parceria neste sentido poderia ainda viabilizar financeiramente a migração das redes abertas analógicas para a tecnologia digital. 7. Benefícios da TV digital Com a implantação da TV digital no Brasil, inúmeras possibilidades surgem através da introdução da multiprogramação e da interatividade. Com a digitalização do sinal das televisões, no espaço onde havia um canal analógico, ocupando uma banda de 6Mhz, poderão haver pelo menos quatro canais digitais. Isso é possível graças ao uso de um esquema de transmissão segmentado na freqüência, característico do sistema ISDB-T, padrão japonês de TV digital, escolhido para o Brasil. De acordo com Pederneiras, o sistema ISDB-T (Integrated Services Digital Broadcasting Terrestrial), que está sendo implantado no Brasil, utiliza a tecnologia exclusiva de modulação BST-OFDM (Band Segmented Transmission Orthogonal Frequency Division Multiplexing) que permite dividir a banda de 6 MHz em 13 segmentos. Um desses segmentos (one-seg) é reservado à transmissão para receptores móveis e portáteis, tais como celulares e notebooks. Ao mesmo tempo e no mesmo canal, os outros 12 segmentos podem ser utilizados para transmissão para receptores fixos em HDTV e/ou SDTV.


Figura 3: 13 Segmentos da TV digital FONTE: www.comunicacao.pro.br

Com o recurso da multiprogramação, é possível assistir a diferentes programas no mesmo canal, ou ver o mesmo programa com vários ângulos diferentes. Esse recurso é configurável e a emissora poderá diminuir o número de canais aumentando a resolução. A multiprogramação, sobretudo, abre espaço para oferta de conteúdos e produções alternativas, universitárias e comunitárias. 8. Características do sinal em ISDB-T O sinal digital de televisão pode ser transmitido em Full HD, HD ou SD. Para transmissão em “Full HD”, resolução de 1920 x 1080 pixels, são necessários 12 segmentos. Quando ela ocorrer, não será permitido utilizar recursos adicionais do tipo multiprogramação ou interatividade plena (com retorno de vídeo e dados), pois a banda estará totalmente “ocupada”, restando apenas o “one-seg”, para transmissão aos equipamentos móveis e portáteis. Quando em transmissão HD – High Definition, resolução de 1280 x 720 pixels, 6 segmentos serão ocupados, e quando em transmissão SD – Standart Definition, resolução de 720 x 480 pixels, 3 segmentos serão ocupados. A figura abaixo demonstra o que é possível transmitir de acordo com cada definição.

Figura 4: Características do sinal da TV digital FONTE: Próprio autor

Cabe a emissora optar pelo que é mais interessante para ela: disponibilizar ao telespectador o que há de melhor em qualidade de áudio e vídeo, transmitindo apenas um canal em “Full HD” ou, além de uma melhora significativa na imagem, proporcionada pelos canais em HD e SD, oferecer recursos adicionais como a interatividade e a multiprogramação. A emissora poderá transmitir um canal em “Full HD”, dois canais em HD, um em HD e dois em SD ou ainda quatro canais em SD. 9. Legislação sobre a multiprogramação O uso da multiprogramação na TV digital ainda depende de autorização do Ministério das Comunicações. No momento, só está sendo permitida a realização de testes científicos pela Anatel. Enquanto não sai a regulamentação, as emissoras estão autorizadas apenas a reproduzir, no canal digital, a sua programação analógica. Segundo o Ministro Hélio Costa, nenhuma das


transmissoras de TV digital poderá, pelo menos por enquanto, aproveitar o espectro disponível para, além do canal digital “espelho” do analógico, transmitir também outros canais com conteúdos diferenciados. Apesar do decreto 4.901/2003, que estabeleceu a política de TV digital, falar em “estimular a evolução das atuais exploradoras do serviço de televisão analógica, bem assim o ingresso de novas empresas”, a Globo, maior rede de televisão privada do país, se posicionou totalmente contra a idéia de usar a multiprogramação. O argumento é de que eles preferem transmitir conteúdos de alta definição ao invés de transmitir vários canais. Dessa maneira, as emissoras também evitam que novos “players” entrem no seu mercado. Segundo o diretor da rede Globo, Fernando Bittencourt, “a TV digital não trás dinheiro novo. Então, se for assumida a multiprogramação, significa que o dinheiro que já existe será usado para produzir mais programas”. Outro receio do uso deste novo recurso está em pulverizar a audiência, que ficará dividida entre uma oferta muito maior de canais e programas. Tereza Crunivel, presidente da TV Brasil, criticou a decisão de algumas emissoras em jogar todas as fichas na transmissão em alta definição. Para ela, isso é decepcionante e demonstra que as emissoras comerciais não querem pluraridade. A introdução de mecanismos de ampla comunicação e interatividade entre as emissoras e a audiência são do mais alto interesse do desenvolvimento social e cultural do país, devendo ser priorizados sobre quaisquer outras possibilidades trazidas pela nova tecnologia (BRANDT, 2005). 10. Proposta da parceria com as redes privadas A proposta da parceira entre as redes de TVs privadas comerciais e a pública é justamente no sentido aproveitar o recurso da multiprogramação para transmitir também o conteúdo da televisão pública. A TV privada parceira ficaria isenta da responsabilidade de produção dos conteúdos da televisão pública. A emissora poderia transmitir seu canal em HD e o da TV pública em SD, restando ainda mais um canal SD a ser transmitido. Isso não oneraria de forma nenhuma a parceira, pois a mesma estaria transmitindo seu conteúdo principal em alta definição. De acordo com o presidente da Radiobrás, José Roberto Garcez, “a multiprogramação é considerada um modelo estratégico, porque atende à diversidade da demanda da sociedade”. O especialista em TVD Marcelo Zuffo, citado por Baio, diz que “o Brasil ainda não sabe como colocar tanto conteúdo na televisão, não tem profissionais nem know-how. O problema está muito mais concentrado em como produzir conteúdo do que se há tecnologia para isso”. Zuffo diz ainda que “precisamos resgatar a ousadia na experimentação dos conteúdos”. Segundo Villas Boas, diretor do Ministério das Comunicações, “é preciso pensar na capacidade de produção de conteúdo das TVs públicas para ocupar os espaços digitais, na interatividade como recurso estratégico de oferta dos canais públicos, na integração dos recursos humanos e financeiros”. A TV pública precisa de um parceiro para carregar e transmitir o seu sinal para todo o país e a TV privada, ao usar o recurso da multiprogramação, precisa de conteúdo já produzido para “ocupar” seus canais adicionais. O casamento parece ser perfeito. 11. Conclusão


A criação de uma TV pública, do povo, enche de esperança muitas pessoas que sempre sonharam com a democratização dos meios de comunicação no Brasil. Para que ela tenha o cunho social esperado, ela precisa ser gratuita e atingir toda a população. Informação, cultura, entretenimento e educação são algumas das expectativas dos cidadãos frente a essa nova oportunidade. É dever do Governo disponibilizar uma televisão para todos, uma televisão efetivamente do povo. Para cumprir esta meta, está sendo estudada parceria com as redes de TVs educativas, estatais, comunitárias e universitárias. O grande problema apresentado é que estas redes estão disponíveis em apenas algumas cidades nos sistemas abertos e públicos de televisão, além dos sistemas pagos (cabo e satélite), que condiz com a realidade de apenas 7% dos brasileiros. A proposta apresentada é no sentido de considerar a parceria com as redes comerciais de televisão, tendo em vista a presença do sinal das mesmas nas redes abertas e gratuitas do país, além dos canais adicionais a serem disponibilizados com a migração da transmissão analógica para a transmissão digital. O estudo de um modelo econômico que viabilize a parceria com essas grandes redes é imprescindível para o sucesso da expansão da TV pública no Brasil. As redes públicas e comerciais não podem competir, mas talvez, a união destas, pode tornar real o sonho da televisão pública nacional para todos os cidadãos. A televisão de todos, feita por todos e acessível para todos. Isto é democracia.


REFERENCIAS Agência Nacional de Telecomunicações. Disponível em: http://www.anatel.gov.br/. Acesso em 10 out. 2008. Associação Brasileira de TV por assinatura. Disponível em: http://www.abta.com.br/. Acesso em: 08 nov. 2008. BAIO, Cintia. Interatividade e multiprogramação ainda estão fora do cardápio brasileiro. Disponível em: http://tecnologia.uol.com.br/ultnot/2007/11/30/ult4213u217.jhtm. Acesso em: 22 nov. 2008. BRANDT, Leonardo. Emissoras de televisão pública lançam carta em meio ao debate sobre a democratização da comunicação. São Paulo: Cultura e Mercado, 2005. Disponível em: http://www.culturaemercado.com.br/post/carta-manifesto-pela-radiodifusao-publica/. Acesso em: 30 out. 2008. CRUVINEL, T. Os desafios da TV Pública. Tribuna da Imprensa, 11 jan. 2008. Entrevista concedida a Marcelo Copelli. Disponível em: http://www.direitoacomunicacao.org.br/novo/content.php?option=com_content&task=view&i d=2316. Acesso em: 31 out. 2008. Empresa Brasil de Comunicação. A TV pública no mundo. Disponível em: http://www.ebc.tv.br/index.php/a-tv-publica-no-mundo/. Acesso em: 01 nov. 2008. FILHO, Laurindo. L. A Melhor TV do Mundo: O Modelo Britânico de Televisão. São Paulo: Summus, 1997. FIORETI, B.; CAMPOS, S.; STIVANIN, T. A TV pública que funciona. Disponível em: http://www.portalgens.com.br/acontece/?p=84. Acesso em: 03 nov. 2008. França aprova projeto polêmico para TV. Agência France-Presse: Out, 2008. Disponível em: http://veja.abril.com.br/noticia/variedade/franca-aprova-projeto-polemico-tv393863.shtml. Acesso em: 8 nov. 2008. LEMOS, Cláudia R. F.; CARLOS, Maíra de B.; BARROS, Antonio T. TV Câmara, TV pública? As TVs legislativas na transição para a plataforma digital. Disponível em: http://www.fafich.ufmg.br/compolitica/anais2007/gt_csc-claudia.pdf. Acesso em: 01 nov. 2008. Ministério da Cultura. Disponível em: http://www.cultura.gov.br/site/2007/05/09/mesa-dedebate-4/. Acesso em: 22 nov. 2008. PEDERNEIRAS, Murilo. ISDB-T - Um sistema de TV Digital para o Brasil. Disponível em: http://www.teleco.com.br/emdebate/murilo01.asp. Acesso em: 20 nov. 2008. SCORSIM, Ericsom M. O controle dos serviços públicos de radiodifusão (Rádio e Televisão) no Brasil. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, Curitiba, v. 34, 2000.


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Disponível

em:


Experiências de televisões públicas no mundo: distinções para o conceito de público Luiz Felipe Ferreira Stevanim 1

Resumo O presente artigo pretende analisar as características de alguns dos principais modelos de televisão pública no mundo. O passo inicial é uma reflexão sobre o próprio campo de políticas de comunicação, encarado sob o referencial da teoria democrática. Diante de experiências praticadas na Europa e nos Estados Unidos, percebe-se a diversidade de visões sobre a televisão pública, cujas contradições são acentuadas pelas mudanças tecnológicas e pelo contexto geopolítico atual, marcado tanto pela liberalização econômica quanto pelo reordenamento das identidades culturais. Assim, os modelos de radiodifusão de um país ou região não podem ser pensados para além da problemática social, política e cultural e da realidade específica de cada nação, com ênfase nas demandas da sociedade civil organizada e nas mediações sociais estabelecidas pela comunicação. Palavras-chave Políticas de comunicação; televisão pública; teoria democrática; mediações sociais

Abstract This article intents to analyze the characteristics of some of the major models of public television in the world. The first stage is a reflection about the field of communication policies themselves, seen in the benchmark of democratic theory. Toward the experiences of Europe and the United States, we find a diversity of views of public television, whose contradictions are accentuated by technological changes and the contemporary geopolitical context, marked by as economic liberalization as the reordering of cultural identities. Thus, the models of broadcasting in a country or region can not be thought apart from the political, social and cultural issues and the specific reality of each nation, with emphasis on the demands of organized civil society and the social mediation established by the communication. Key-words Communication policies; public television; democratic theory; social mediations. 1

Luiz Felipe Ferreira Stevanim é mestrando em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de

Janeiro. Graduado em Comunicação Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Membro do Grupo de Pesquisa em Políticas e Economia Política da Informação e da Comunicação (PEIC). Contato: lfstevanim@yahoo.com.br.

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Resumen Este artículo se propone a analizar las características de algunos de los principales modelos de televisión pública en el mundo. El primero paso es una reflexión sobre el propio campo de las políticas de comunicación, visto desde la referencia de la teoría democrática. Las experiencias practicadas en Europa y en Estados Unidos presentam una diversidad de puntos de vista sobre la televisión pública, cuyas contradicciones se acentúan ante las transformaciones tecnológicas y el contexto geopolítico actual, senãlado tanto por la liberalización económica cuanto por la reordenación de las identidades culturales. Así que los modelos de radiodifusión en un país o región no pueden ser pensados más allá de la problemática social, política y cultural y de la realidad específica de cada nación, con énfasis en las demandas de la sociedad civil organizada y en las mediaciones establecidas por la comunicación.

Palabras-llabes Políticas de comunicación, televisión pública, teoria democrática, mediaciones sociales.

Que televisão pública queremos?

Os debates sobre televisão pública no Brasil têm se efetivado tomando como referência experiências paradigmáticas de outros países do mundo. Apesar da existência de TVs público-estatais isoladas, como o caso notório da Cultura de São Paulo, a discussão em diversas esferas remete aos modelos nacionais presentes nos países europeus, onde a noção de serviço público foi adotada desde o advento do rádio e cujo modelo mais bem-sucedido é o do Reino Unido com a BBC. Os modelos de radiodifusão estatal surgiram nas primeiras décadas do século XX, quando o Estado assumiu para si a dupla função de regulação do setor e promoção de políticas. Na Europa, a consagração da matriz de serviço público originou experiências diversificadas, em que o contexto histórico, a realidade social e as concepções filosóficas da chamada “coisa pública” determinaram as configurações do modelo em diferentes países. Diante da complementaridade do setor público e privado no Reino Unido, em uma corporação fortemente institucionalizada como a BBC, até a estrutura 2


fragmentária e dispersa da PBS nos Estados Unidos, passando por experiências em que o Estado ou o mercado comprometem a autonomia do serviço, como na Itália, em Portugal ou na França, uma pergunta precisa ser respondida: o que justifica a diversidade de práticas para supostamente um mesmo ideal de público? Ou a concepção de público não é mesma em diferentes países, relacionando-se mais ou menos com a estrutura estatal? Nos últimos anos, a convergência tecnológica e a internacionalização da economia forçaram mudanças na estrutura dos meios de comunicação de massa, que envolveram a migração digital e a liberalização da ordem jurídica. Em um momento de desmontagem do setor público, segmentos sociais diversos reafirmam a necessidade de encontrar canais de comunicação para suas demandas, o que em última instância segue em direção oposta ao processo de desregulamentação e aumento das desigualdades. O propósito deste artigo é perceber as principais experiências ligadas ao campo público praticadas no mundo, não sem abranger as mudanças no contexto geopolítico e tecnológico atual. Esse cenário tem forçado a uma reconsideração do papel da sociedade civil e das audiências na comunicação social.

Uma abordagem das políticas de comunicação pela teoria democrática

No universo de debates sobre o que se espera da comunicação, concorrem forças que envolvem camadas representativas como empresários, órgãos de classe, pesquisadores e movimentos sociais. Alcançam a ordem do dia questões que começam pelo fato de se dever ou não esperar alguma coisa dos meios de comunicação. As motivações para os grupos que debatem os rumos da atividade ultrapassam os limites do próprio setor, ao se apoiarem em razões que vão desde o interesse privado até a concepção universal dos direitos, com as contradições sociais em espaço relevante. A disposição do campo como conjunção de forças sociais remete à noção derivada da sociologia de Talcott Parson, que encontrou no teórico alemão Niklas Luhmann seu principal continuador.

Luhmann

(2005)

desenvolve

o

conceito

de

“diferenciação

autofortificada”

(ausdifferenzierung) para caracterizar o processo no qual a comunicação torna-se autônoma como sistema e desenvolve uma identidade própria, na interação com outras instâncias sociais. Em uma perspectiva histórica, a construção discursiva de um jornalismo livre dos interesses do Estado e do

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mercado se efetivou de acordo com o amadurecimento da idéia de “público” (LEAL; STEVANIM, 2007). A compreensão da comunicação em toda sua dinâmica, sobretudo no que tange ao reconhecimento do status de atores sociais aos seus participantes, foi elaborada pelo filósofo Jürguen Habermas ao longo de seu percurso teórico. A partir de um resgate das atribuições racionais da ação social, o pensador alemão percebeu o processo no qual fluxos comunicativos dirigem-se até as instâncias de poder como demandas vindas desse universo que ele chamou de “mundo da vida” (HABERMAS, 2003), um horizonte no qual sujeitos buscam a validade de seus argumentos e, através do exercício crítico, caminham ao entendimento. No entanto, até chegar a esse ponto, a teoria habermasiana passou por um longo desenvolvimento. O nascimento da concepção moderna de público se deu com a efetivação da ordem capitalista burguesa e de um espaço de discussão intelectual que Habermas chamou de “esfera pública”. Os atores que reivindicavam participação política no cenário de privilégios do Antigo Regime passaram a encarar a livre expressão de suas idéias como um direito humano universal, legitimado no espaço crítico de opinião que o autor estudou em sua inaugural Mudança estrutural da esfera pública, publicada em 1962. Erigida “no campo tensional entre Estado e sociedade” (HABERMAS, 1984, p.44), o conceito de esfera pública como espaço politizado e de formulação subjetiva é útil para compreender os movimentos de constituição de uma comunicação independente e pluralista, pelos quais passaram e ainda passam pelo menos nos discursos os meios de comunicação no mundo inteiro, incluindo as televisões. O Estado de Direito moderno, ainda que em sua origem seja sustentado pela hegemonia burguesa, pretende-se neutro e universal. Como ideal, é um Estado de todos e para todos. Desse modo, passa a ter o significado de “poder público” (HABERMAS, 1984, p.45), ocultando a distinção inicial entre estatal e público: o primeiro é constituinte de uma política de Estado, enquanto o segundo referese a um espaço abstrato entre mercado e Estado, mas que inclui as duas esferas e, no mais das vezes, serve-se desse último como promotor de ações. No entanto, o modelo idealizado de esfera pública burguesa não se sustenta ao longo do tempo: o próprio Habermas aponta o processo de desmontagem do espaço crítico de discussão, provocado pela inserção de grandes populações nas democracias de massa e pela centralidade assumida pelos meios de 4


comunicação na atualidade. O que se nota é a “imbricação de Estado e sociedade que retirou à esfera pública a sua antiga base, sem lhe dar uma nova” (HABERMAS, 1984, p.209). Chega-se, portanto, a uma encruzilhada: qual é a validade de um conceito teórico que então é condenado pelo próprio idealizador? A resposta ao paradoxo habermasiano virá pelas mãos de seu autor, com a publicação em 1981 de Teoria da ação comunicativa, um rompimento decisivo com o olhar de desengano que a Escola de Frankfurt, da qual Habermas descende, devotava à comunicação. Aproveitando-se das contribuições de Max Weber sobre a racionalidade e a ação social, Habermas desenvolve o conceito de uma forma de ação que chama de comunicativa, pois sua realização se dá através da interação entre participantes na busca por um consenso que só se efetiva comunicativamente, ou seja, com base em argumentos racionais. Com isso, chega-se a um conceito ao mesmo tempo contemporâneo e atemporal: os sujeitos, que interagem entre si na sociedade (ou o chamado “mundo da vida”), servem-se da comunicação para se entenderem. Quando o debate envolve a própria comunicação, o risco dessas atribuições ideais se distorcerem torna-se duplo, pois se o contato entre sujeitos interessados em validar suas posições por si só envolve um longo percurso até o entendimento, imagine-se quando o objeto de discussão são os próprios canais de fala. Dentro das temáticas atuais, esse é o caso da democratização da comunicação: com que freqüência o assunto é abordado pelas grandes empresas de mídia? Assim é que se vê necessária a constituição de grupos de pressão através de canais alternativos, no que se pode chamar de “afastamento do eixo central da política”, nas palavras de Jesús Martín-Barbero (RINCÓN, 2002, p.52). Uma das principais contribuições de Habermas está, portanto, em apontar a lógica da disputa entre grupos de interesse e, ainda assim, considerar a possibilidade de consenso através do exercício racional pela comunicação. Dentro da teoria democrática, tal posição constitui uma virada importante,

na medida em que se substitui a percepção da falta da legitimidade do processo de agregação de maiorias por um formato institucional no qual maiorias e minorias, ou interesses simplesmente distintos, podem argumentar sobre as suas posições, algo que a teoria democrática convencional julgava desnecessário. (AVRITZER, 2000, p.26)

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Perceber o processo de argumentação como tão ou mais relevante do que a deliberação per se representa um deslocamento de foco dos espaços institucionais de decisão para o poder de agregação social assumido pelos atores do debate. Essa idéia ainda é mais um desafio que uma realidade. Porém, mesmo quando predominam mecanismos tradicionais na formulação de políticas, os setores sociais pressionam para verem suas demandas atendidas e, em última instância, alterar os canais decisórios. Como participantes da dinâmica da sociedade, os veículos de comunicação estabelecem com a realidade uma relação de influência mútua. Dos exemplos internacionais de televisões que se qualificam como públicas, a experiência britânica é sempre lembrada, notadamente para o bem – o que fez com que assumisse a posição de modelo ideal. Desde antes de sua fundação e ao longo de sua existência, a British Broadcasting Corporation (BBC) vivenciou o enfrentamento de interesses e concepções do modelo, inserindo-se de maneira orgânica no contexto do país. Assim foi na década de 1980, com a onda de desregulamentações encampada pelo governo conservador de Margareth Thatcher, que depois se disseminou em todo o setor das comunicações na Europa. As pressões partiam de grandes empresas interessadas na ampliação da concorrência, cujas pretensões financeiras foram freadas pela defesa do serviço público de radiodifusão por parte da sociedade civil organizada. Dentro de uma perspectiva histórica, as discussões sobre o modelo britânico de televisão estruturaram-se em torno do eixo público e privado, até se estabelecer uma situação de equilíbrio entre as duas matrizes, segundo a hipótese central de um estudo analítico empreendido por Laurindo Leal Filho (1997). Quando a radiodifusão entrou em pauta no Reino Unido, na década de 1920, uma das preocupações era evitar a configuração caótica do modelo comercial evidenciada pela experiência americana. Com esse objetivo, os britânicos afirmaram as garantias de regulamentação por parte do Estado. Essa postura se flexibilizou com a convivência dos setores público e privado, principalmente a partir da permissão de funcionamento de uma matriz comercial independente, em 1954, mas ainda sob forte controle externo (a Independent Television). A situação de equilíbrio se viu ameaçada pela emergência de temáticas neoliberais na agenda política, num movimento crescente desde os anos 1980. Entretanto, ao longo de toda sua história, o modelo britânico se sustentou em uma questão de fundo estrutural: a necessidade de se assegurar a regulação do mercado na radiodifusão. Quando se compara o modelo britânico à realidade presente em outros países, mesmo desenvolvidos, como os Estados Unidos (em que predominam as iniciativas privadas), é natural que se 6


pergunte: o que explica a diferença entre práticas? Respostas para essa indagação podem ser buscadas nos setores mais diversos da sociedade, porém todas elas esbarram em modos diferentes de conceber o público, em todas as acepções do termo, no campo da comunicação.

Relações entre os modelos de televisão e as esferas do Estado e do mercado

Apesar de o conceito de público ser definido como aquilo que pertence a uma coletividade sem pertencer exclusivamente a alguém, na prática muitos desdobramentos são possíveis. A definição de modelos de radiodifusão pública vem marcada pela especificidade histórica e pela dinâmica gestada através do conflito de interesses, porém passa despercebida a influência que as construções subjetivas e as imagens de mundo lançam sobre um cenário, a princípio, objetivo. Portanto, o modo como se entende o Estado, o mercado e a comunicação em toda sua dinâmica pode revelar divergências estruturais e contradições implícitas da prática comunicativa. A análise do papel assumido pelo Estado permite destacar duas tendências principais nas políticas de comunicação dos países desenvolvidos ocidentais, segundo Susy dos Santos e Érico da Silveira (2007). Em um dos pólos, preserva-se o valor de livre mercado ao reduzir a intervenção estatal à distribuição de concessões, ainda assim por exigência técnica do meio, que se serve de um espaço de transmissão limitado; no outro pólo, sob influência da ideologia do bem-estar social, o Estado atua como principal promotor da comunicação e a presença do mercado é permitida, porém fortemente regulada. O primeiro modelo foi a experiência por que passaram os Estados Unidos, onde as mínimas regulações sobre a radiodifusão guiaram-se por um vago pressuposto de interesse público. Já o segundo paradigma teve manifestações diferentes na Europa, a partir do Reino Unido, em países nos quais a comunicação foi considerada um serviço público como a distribuição de água e o sistema de correios. O século XX conviveu com as gradações constituídas a partir de dois padrões básicos de Estado. Tanto o modelo liberal quanto o chamado Welfare State ou Estado de Bem-estar Social descendem da matriz normativa do Estado de Direito burguês, cujo advento é percebido por Habermas (1984, p.100) a partir da eliminação da dominação e da institucionalização de mecanismos de administração racional e de justiça independente. Para as políticas públicas de comunicação, é de primeira ordem considerar o quão independente estão os modelos de televisão pública do controle

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estatal. Desse modo, é possível traçar alguma comparação entre as configurações do Estado e da radiodifusão pública? Dentro da tradição intervencionista, em que a máquina institucional exerce uma regulação incisiva sobre o mercado, desenvolveram-se experiências de televisões estatais em toda a Europa. Os resultados vão desde o paradigma da BBC, com gestão e financiamento independentes, até modelos como RTVE (Espanha), RTP (Portugal) e RAI (Itália), que passaram recentemente por profunda reformulação de programação e revisão de identidade corporativa para que os pressupostos públicos de fato fizessem parte de sua realidade. Do outro lado, o mercado de comunicações nos Estados Unidos foi entregue desde seu surgimento à iniciativa privada, ao passo que a rede de televisão pública que se constituiu ocupou um espaço marginal e fragmentado. Incapaz de competir com os grupos nacionais de TV privada, surgiu uma rede de emissoras públicas baseada em uma configuração localista. Nesse cenário, a sociedade civil pôde forçar sua entrada, ainda que quase sempre às margens das grandes corporações. Desse modo, a Public Broadcasting Service (PBS) possui atualmente uma arquitetura descentralizada que nada mais é do que uma rede com 356 estações-membro2, espalhadas em todo os territórios da federação, que desfrutam de ampla autonomia na programação e integram um serviço cujo objetivo é a promoção de educação, cultura e informação, preenchendo as arestas deixadas pela mídia comercial. Mesmo na Europa, que resguardou o serviço de radiodifusão sob proteção estatal, as políticas para o setor podem se ver ameaçadas pela confusão entre os conceitos de Estado e governo e diante do centralismo assumido pelo Executivo na representação corporativa. Assim foi em alguns momentos nos quais as opções partidárias se impuseram às políticas editorais do canal na Itália, sobretudo no governo Berlusconi, e mesmo na França. Fenômeno semelhante se dá no conjunto das experiências de agências regulatórias, nas quais a tradição européia se caracterizou por “uma cultura política não liberal, fusão de poderes em um regime parlamentarista, Estado intervencionista e supremacia da representação corporativa de interesses” (BOSCHI; LIMA, 2002, p. 224). Nesse cenário econômico, muito semelhante ao da comunicação, a qualidade das decisões só advém de uma garantia: o quão os órgãos públicos estão livres dos interesses 2

As 355 estações-membro da PBS pertencem a 168 entidades licenciadas pela Federal Communications Commission (FCC), responsável pela outorga de concessões de radiodifusão nos EUA. Dentre as organizações responsáveis, 87 são comunitárias, 56 são de universidades, 20 de poderes estaduais e cinco de autoridades municipais ou educacionais locais. Dados disponíveis em: http://www.pbs.org/aboutpbs/aboutpbs_corp.html (Último Acesso: 24/06/2009).

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do governo da vez. A solução para esse impasse costuma vir do balanceamento exercido pelos demais poderes em relação ao Executivo e pela abertura e transparência em direção à sociedade civil. Na França, o setor de radiodifusão é controlado por um órgão central, o Conselho Superior de Audiovisual (CSA), cujo leque de atuação vai desde o equilíbrio da concorrência até o zelo pela integridade dos menores em termos de conteúdo. Sua autonomia governamental não é completa, mas tende a usufruir a mesma pluralidade que há entre os poderes Legislativo e Executivo, pois os nove membros são indicados em proporções iguais pelo Senado, pela Assembléia Nacional e pela Presidência da República. Em outros países da Europa, a regulação estatal é semelhante, com menor grau de centralidade, como no Reino Unido, em que diversos órgãos são responsáveis pela tutela setorial, e na Alemanha, em que a tradição federalista delega o controle legal a cada um dos estados federados. Na Itália, a fiscalização cabe a um ouvidor nomeado pelo Parlamento. Os modelos de gestão implantados ao redor do mundo tendem a adotar um ou mais órgãos de administração, a partir da experiência mais antiga do Reino Unido. Apesar de discordarem da vocação que deve assumir uma televisão que assim se configure, Diego Portales Cifuentes e Guillermo Orozco concordam com a necessidade de institucionalizar a matriz pública. A partir do conceito de televidência, segundo o qual a televisão assume uma dimensão tanto afetiva quanto institucional junto às suas mediações, Orozco defende que um dos vínculos das audiências com a comunicação se dá por meio da instituição3, o que aponta para a necessidade de “um tipo de desenvolvimento histórico que, pelo menos, estabeleça uma diferença conceitual e prática entre Estado e governo”, nas palavras de Cifuentes4. Criada através de uma licença real em 1926, a BBC rege-se por um documento com validade de dez anos intitulado Charter (ou Carta Real), que apresenta o esqueleto institucional e seus propósitos, extremamente rígido do ponto de vista legal. O texto é complementado por um segundo estatuto (Framework Agreement), um acordo firmado com a Secretaria de Estado para Cultura, Mídia e Esporte, cuja função é especificar aspectos sobre os serviços prestados e que pode ser mais facilmente editado. Dois órgãos formam o corpo dirigente da corporação: o Truste e o Conselho Executivo. O primeiro é composto por doze controladores indicados pelo monarca e determina as estratégicas em longo prazo da instituição, além de zelar pelos interesses dos contribuintes. Já o Conselho, composto por dez 3

OROZCO GÓMEZ, Guillermo. Mediações e televisão pública: a desconstrução múltipla da televidência na era da vassalagem mediática. In: RINCÓN, Omar (org). Televisão pública: do consumidor ao cidadão. São Paulo: Friedrich Ebert-Stiftung, 2002, p. 237. 4 CIFUENTES, Diego Portales. A televisão pública na América Latina: crises e oportunidades. In: RINCÓN, Omar (org). Televisão pública: do consumidor ao cidadão. São Paulo: Friedrich Ebert-Stiftung, 2002, p.124.

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membros executivos e seis não-executivos, é um corpo de profissionais que opera os serviços prestados pela corporação, através das prioridades determinadas pelo Truste. Experiências semelhantes espalharam-se pelo mundo. Os assuntos da sociedade France Télévisions (TV France), assim como qualquer outro relacionado ao setor audiovisual, passam pelo órgão central de regulação no país, porém a administração específica cabe a um Conselho Administrativo, com metade dos membros indicados por setores representativos da sociedade e entre os funcionários5. Ainda assim, prevalece a tradição centralista francesa, pois a indicação dos membros passa pela agência reguladora do audiovisual. Na Espanha, a administração da RTVE cabe a um órgão cuja composição é recomendada pelo Parlamento, mas ainda há um Conselho Assessor constituído a partir de grupos organizados da sociedade civil, que exerce alguma influência sobre a programação. A atuação dos sindicatos de profissionais no país forçou a entrada de grupos representativos nas esferas decisórias. Em Portugal, a RTP adota um modelo análogo, com dois órgãos: um de gestão e outro de influência e fiscalização sobre os conteúdos. Quanto ao financiamento, as experiências dispõem-se em uma linha que vai desde o predomínio do mecanismo de licença paga, como no Reino Unido e em menor grau na França, até a combinação de verbas governamentais e publicidade, caso exemplificado pela Espanha. Embora constantemente questionado, o financiamento direto da população no Reino Unido, através de uma taxa cobrada aos proprietários de aparelhos de televisão (licence fee), resistiu mesmo às investidas do governo conservador de Margareth Thatcher. A Comissão Peacock de 1985, presidida pelo economista que lhe dava nome, concluiu pela manutenção do financiamento (LEAL, 1997). Inspirada na BBC, a licença paga é adotada também na Itália, na Alemanha e na França, porém sempre combinada a uma outra fonte de recurso, geralmente a publicidade. Em Portugal, o financiamento é predominantemente estatal, com presença permitida de apoio cultural e patrocínio aos programas, mas a veiculação de anúncios é restrita. A experiência mais curiosa é mesmo nos Estados Unidos, cujo modelo difere da matriz européia: a rede PBS é mantida através de um fundo da CPB (Corporation for Public Broadcasting), envolvendo inúmeras formas de arrecadação, como doações, licenças pagas, serviços de satélite, royalties e taxas cobradas pelas concessões de canais. 5

O Conselho de Administração do condomínio France Télévisions é composto por 14 membros, sendo cinco indicados pelo presidente, dois pelo Parlamento, cinco pelo Conselho Superior de Audiovisual e dois entre os funcionários da corporação. A escolha dos membros pelo Conselho Superior envolve um requisito de que devam ser personalidades reconhecidas, com participação em movimentos sociais, na área de comunicação ou nas questões dos territórios franceses. Os mandatos são de cinco anos.

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Se de um lado a independência dos governos contribui para instituir uma esfera autônoma de comunicação, a identidade da televisão pública passa por uma outra questão: que espaço será concedido ao mercado pelo Estado? A questão é que mercado e que Estado serão estes, o que se liga profundamente ao papel exercido pela sociedade civil na esfera da comunicação.

Mudanças e perspectivas

A mera presença de um marco regulatório é condição insuficiente, embora necessária, para conferir sentido à comunicação e qualificar uma televisão como efetivamente pública. Além das distorções advindas da prática, a sutileza dos textos legais e seu afastamento do próprio setor a que diz respeito criam uma situação de alienação jurídica. Ainda assim, a legislação não perde sua relevância se considerada juntamente com as disputas históricas de interesse e o modo como a opinião pública vê a comunicação. Diante das mudanças provocadas pelo neoliberalismo no sentido de flexibilização das relações econômicas, a bandeira levantada por setores favoráveis à presença do Estado destacava que a regulação não poderia ser dispensada dos compromissos estatais. Entretanto, como sustenta Robert McChesney, as políticas neoliberais reivindicam um novo significado às leis “para servir aos interesses empresariais” (2002, p.218). Nesses termos pode-se usar ainda a expressão “convergência perversa” que Evelina Dagnino (2004) cunhou para o movimento paralelo de consolidação da democracia e aumento das desigualdades. Ao seguir uma perspectiva habermasiana, o sistema normativo reflete as opções cognitivas feitas pela opinião pública, embora as leis relacionem-se ao que o autor chamou de ações orientadas por normas e os argumentos construam-se por meio da ação comunicativa (HABERMAS, 2003). O equilíbrio entre as televisões estatal e privada no Reino Unido, resguardado por prerrogativas jurídicas, tornou-se possível somente através do valor que assumiu, na realidade britânica, a BBC em particular e o serviço público de radiodifusão em geral. Diferente teor possui a legislação francesa, cuja abordagem é de estímulo à concorrência, apesar das matrizes estatal e privada coexistirem na competição. Pode-se imaginar quais são as conseqüências dessas concepções: embora os dois sistemas se assemelhem muito devido à base comum de serviço regulado, os canais estatais na França disputam espaço com o setor

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comercial, inclusive por publicidade, enquanto durante anos o Reino Unido manteve a competição entre as televisões apenas no nível da qualidade. Foi no contexto contraditório da América Latina que Jesús Martín-Barbero desenvolveu uma teoria que representou um deslocamento da comunicação formalizada “para as articulações entre práticas de comunicação e movimentos sociais, para as diferentes temporalidades e para a pluralidade de matrizes culturais” (BARBERO, 1997, p.258). Tal movimento foi explicitado no próprio título de seu livro, Dos meios às mediações. O que Barbero pretende dizer com isso é que a comunicação não se sustenta em si própria, mas lá onde ela será recebida, no terreno das mediações sociais. Desde a década de 1980, o modelo europeu de serviço público começou a ser desmontado pela liberalização empreendida em todo o continente por meio da crescente ameaça de privatização. No mesmo contexto, as mudanças tecnológicas passaram a exigir a adequação ao cenário digital das televisões consideradas estatais do ponto de vista jurídico, o que foi dificultado em alguns países como Portugal, Espanha e Itália pela predominância da burocracia institucional. Por outro lado, se o cenário da globalização favoreceu os grandes grupos privados interessados na desregulamentação da comunicação, assim também os movimentos da sociedade civil viram uma oportunidade de reivindicação e articulação de suas demandas. O contexto vivenciado atualmente pelos modelos de televisão chamadas aqui de públicas é outro em relação ao momento em que estes quadros institucionais foram concebidos. Portanto, assim como se transformaram as condições sociais, políticas e mesmo culturais, devem mudar os desenhos das instituições? O estatuto da BBC prevê em seus últimos parágrafos a adequação dos princípios que regem a corporação ao contexto vivenciado no presente6. Além de evidenciar que os padrões de políticas de comunicação possuem uma validade histórica, variável ao longo do tempo e do espaço, a atualização jurídica representa um duplo movimento em que parâmetros são buscados em experiências consagradas e novos contextos incentivam revisão conceitual – salvo o risco de ceder às pressões transitórias constituídas em situação flagrante de injustiça social. Acostumado durante décadas a formular diretrizes para o setor das comunicações, o poder público nos países europeus passou a enfrentar o desafio de que não existem mais campos e fronteiras 6

Artigo 62 (2): “Similarly, references to anything else are to be read as relating to whatever falls within the reference at whatever time is relevant. For example, the reference in article 11(b) to generally accepted principles of good corporate governance should, in the year 2010, be read as referring to principles of good corporate governance which are generally accepted in 2010, rather than what was generally accepted when this Charter was granted.”

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definidas, em uma mudança que significou um novo “paradigma comunicacional”, no qual “a linguagem digital única forja a base material para a hibridação das infraestruturas de dados, imagens e sons”, segundo Dênis de Moraes (2004, p.193). Muito além das visões alarmistas, o projeto que urge ser formulado é de como esse novo paradigma terá lugar na realidade social cada vez mais contraditória. A matriz atual (que pode não se sustentar por muito tempo) configura-se conforme a tabela abaixo:

1. Quadro comparativo entre experiências de televisões públicas no mundo Televisão

BBC

TVF

RTVE

RTP

PBS

Pública

(Reino Unido)

(França)

(Espanha)

(Portugal)

(EUA) Interesse

Missão

Serviço público Serviço público

Serviço público Serviço público

Público e Educativo

Licença paga Modelo de

(licence fee) e

Finanças

serviços prestados

Orçamento

Publicidade (1/3) e Redevance (Licença paga – 2/3)

£ 4,2 bi em

€ 2,8 bi em

2006

2006

Truste (gestão) e Conselho Gestão e

Executivo

Fiscalização

(aplicação das políticas editoriais)

Relação

Complementar

com a TV

Equilibrada

Estatal. Apoio

Diverso:

Recursos

cultural e

recursos da

públicos e

patrocínio são

CPB

publicidade. Não

permitidos.

(Corporation

há licença paga.

Publicidade

for Public

restrita.

Broadcasting)

€ 274 mi em

U$ 2,4 bi

2004

(trienal)

Conselho de

Conselho de

Administração

Diretores

(gestão) e

formado por

Conselho de

representantes

Opinião

das estações-

(programação)

membro

€ 1,5 bi em 2005 Conselho de

Conselho

Administração,

Superior de

indicado pelo

Audiovisual e

Parlamento;

Conselho

Conselho

Administrativo

Assessor (programação)

Concorrência*

Concorrência*

Complementar Complementar Desequilibrada Desequilibrada 1 3


comercial Regulação

Controle dos

Relação

Independência

(através do

Dependência

com o

em seu

Conselho

financeira

Estado

predomínio

Superior de

parcial

Audiovisual)

Dependência financeira

fundos, através da indicação dos membros da CPB

* Condição determinada pela presença da publicidade

Na direção das mudanças começaram a pensar os legisladores do setor das comunicações em diversos países europeus. No cenário concorrencial francês, a televisão pública vivenciou modificações de ordem tanto tecnológica quanto financeira, requisito necessário para não deixá-la atrás da matriz comercial. Na Espanha, a migração digital ganhou lugar de prioridade nas políticas estatais, com o intuito de caracterizar a matriz pública como pioneira na evolução tecnológica. Em última instância, o protagonismo do Estado, que marcou o cenário espanhol e de outros países europeus, converteu-se em um processo acelerado de desestatização. Também nos Estados Unidos, a migração digital foi posta na ordem do dia, através da formação de um Comitê encarregado de reformular as políticas editoriais da PBS, com ênfase na convergência multimidiática. Um outro movimento por que têm passado as televisões públicas vai no sentido da internacionalização presente no contexto geopolítico contemporâneo, o que contradiz a tradição consagrada de políticas de comunicação que tomavam como referência a idéia de nação. Essa guinada se dá justamente em países onde o nacionalismo foi tomado como um valor no passado. Nesse cenário, tem sido um marco o Tratado de Amsterdã, estabelecido em 1997, que determina diretrizes centrais para o setor no conjunto da União Européia. Ainda assim, as formações nacionais permanecem relevantes para as televisões públicas, porém em um outro sentido, que se aproxima muito mais da noção de nacionalidade como identidade narrada extraída da obra de Nestor García Canclini (1995).

Considerações finais

Ainda que a determinação de qualidade mostre-se muito mais relativa do que parece, uma televisão que seja de fato pública não pode passar distante da sociedade civil, seja através de uma fala 1 4


na qual ecoem as demandas vindas de setores sociais diversos ou por meio da abertura das esferas decisórias à representação popular. Essa compreensão aponta para a idéia que Habermas faz da comunicação como formulação racional de opinião e reivindicação ou para a percepção das demandas do público e seus diferentes usos, resituados no campo da cultura (BARBERO, 1997), o que pode ser sistematizado em estudos de audiência como os sugeridos por Guillermo Orozco, que de fato fazem uso da idéia de “ouvir o outro lado”, isto é, quem antes não fora ouvido. A experiência mais bem-sucedida nesse sentido é ainda a da BBC, por meio de seus Conselhos de Audiência que respeitam a representatividade regional das quatro nações (Escócia, Gales, Inglaterra e Irlanda do Norte) e do mecanismo pelo qual mudanças nas políticas editoriais só podem ser empreendidas após consulta pública. Em outros países, como Espanha, Portugal e Itália, foi introduzido a figura do ouvidor, uma espécie de representante do povo. No conjunto das realizações, o caso da PBS talvez seja o mais notório pela largura do desafio: fundar um espaço de experimentação cultural e educativa, aliada à preocupação localista, no setor das comunicações de um país dominado pela livre iniciativa, o que no mais das vezes é sinônimo da predominância de grandes corporações. Diante da dinâmica emergente da convergência tecnológica e de contradições sociais acentuadas, a hipótese inicialmente lançada de que as televisões públicas refletem os desenhos dos Estados tem validade relativa: mais do que a dureza dos pressupostos jurídicos, a comunicação configura-se a partir das articulações estabelecidas com a realidade social. Desse modo, as políticas públicas não podem perder de vista que é das demandas da sociedade que deve surgir o modelo de comunicação que se quer e se pode fazer.

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HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Tradução de Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984. ______. Teoría de la acción comunicativa. Versión castellana de Manuel Jiménez Redondo. Taurus Humanidades: Bogotá, 2003. LEAL, Paulo Roberto Figueira Leal; STEVANIM, Luiz Felipe Ferreira. Mídia e democratização do espaço público: reflexões sobre a necessidade de uma comunicação para além das lógicas do mercado e do Estado. In: QUEIROZ, Adolfo (org.). A Propaganda Política no Brasil Contemporâneo. São Bernardo do Campo, São Paulo: Metodista, 2008, p. 176-185. LEAL FILHO, Laurindo. A melhor TV do mundo: o modelo britânico de televisão. São Paulo: Summus, 1997. LUHMANN, Niklas. A realidade dos meios de comunicação. Tradução de Ciro Marcondes Filho. São Paulo: Paulus, 2005. MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997. MCCHESNEY, Robert. Mídia global, neoliberalismo e imperialismo. In: MORAES, Dênis (org.). Por uma outra comunicação: mídia, mundialização cultural e poder. Rio de Janeiro: Record, 2003, p.217242. RAMOS, Murilo César. Sobre a importância de repensar e renovar a idéia de sociedade civil. In: RAMOS, Murilo César; SANTOS, Susy dos (orgs.). Políticas de comunicação: buscas teóricas e práticas. São Paulo: Paulus, 2007. RINCÓN, Omar (org.). Televisão pública: do consumidor ao cidadão. São Paulo: Friedrich EbertStiftung, 2002. SANTOS, Susy dos; SILVEIRA, Érico da. Serviço público e interesse público nas comunicações. In: RAMOS, Murilo César; SANTOS, Susy dos (orgs.). Políticas de comunicação: buscas teóricas e práticas. São Paulo: Paulus, 2007.

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Mobilizações e conseqüências dos trabalhos das rádios comunitárias Orlando Maurício de Carvalho Berti*

BAHIA, Lílian Mourão. Rádios comunitárias: mobilização social e cidadania na reconfiguração da esfera pública. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008. 208p.

As rádios comunitárias atualmente começam a ganhar academicamente e editorialmente um espaço privilegiado de discussão, principalmente em estudos que procuram explanar esse tipo de comunicação no País e mostrar uma realidade diferente das apregoadas que as rádios comunitárias são instrumentos de ilegalidade ou de uma comunicação inferior aos meios comunicativos tradicionais. As emissoras comunitárias brasileiras (em suas diversas vertentes e multiplicidades), que atualmente já são majoritárias em comparação a emissoras comerciais, estatais e públicas, ganham novas tônicas em relação a seus processos comunicacionais, provocando, inclusive, reflexões e novas vivências dos pensadores em comunicação. O livro “Rádios comunitárias: mobilização social e cidadania na reconfiguração da esfera pública” é uma obra que ajuda a aumentar a compreensão sobre essa temática, ainda realizando multidisciplinaridade com perspectivas sociológicas e filosóficas, principalmente mostrando como esse tipo de emissora, em especial trazendo o caso de duas rádios de Minas Gerais, atuam na reconfiguração da esfera pública. A obra, que é o melhoramento e evolução da Dissertação de mestrado da pesquisadora Lílian Bahia, apresentado à Universidade Metodista de São

*

Mestre em Comunicação Social pela UMESP – Universidade Metodista de São Paulo. Professor e pesquisador dos cursos de Comunicação Social – habilitação em Jornalismo – da: UFPI – Universidade Federal do Piauí; UESPI – Universidade Estadual do Piauí; URSA – Universidade Raimundo Sá. E-mail: orlandoberti@yahoo.com.br.


Paulo, tendo como orientadora (e prefaciadora da obra) a professora Cicília Peruzzo, é dividida em cinco partes. Na primeira parte do livro destacam-se os conceitos de rádio comunitária para a atualidade, principalmente trazendo-se conceituações clássicas e modernas dessa forma radiofônica de propagação de idéias e ideais. Envereda-se e traz-se conceitos de comunidade, localidade e suas interações com a comunicação comunitária, bem como comparações entre comunicação popular, alternativa, comunitária e massiva, mostrando suas contradições e tensões, cobrando-se novos papéis para a mídia. No segundo momento linca-se conceitos de rádio comunitária e esfera pública,

com

suas

conseqüências

para

a

atualidade.

Envereda-se

principalmente pelos conceitos de esfera pública de Jürgen Habermas (1997) e suas reconfigurações para os atuais momentos e conjunturas. Depois trazendo-se vivências sobre a esfera pública midiatizada. Linca-se ainda a perspectiva da reconfiguração da esfera pública aos movimentos sociais No terceiro momento são destacados os aspectos identitários, cidadãos e reconhecedores das rádios comunitárias. Nessa parte da obra linca-se o conceito de identidade aos fragmentos do que seja comunidade, levando-se o trabalho comunitário à perspectiva da cidadania e suas formas de instigar a participação na esfera pública, mostrando-se como as rádios comunitárias têm a possibilidade de reconfiguração da esfera pública a partir do reconhecimento social. No quarto momento destaca-se o movimento de rádios comunitárias no Brasil levando-se um apanhado sobre o movimento de emissoras comunitárias radiofônicas na Região Metropolitana de Belo Horizonte (MG). Critica-se a legislação vigente de rádios comunitárias e como a Lei poda o movimento de rádios comunitárias no Brasil. No quinto momento aplica-se os conceitos nos exemplos de rádios comunitárias de Minas Gerais União e Inter-FM, localizadas na Grande Belo Horizonte. Sendo um momento analítico, válido e contributivo, principalmente porque o exemplo dessas duas emissoras de rádio comunitária ajuda na perspectiva do entendimento da reconfiguração da esfera pública através de rádios comunitárias.


Ambas as rádios exemplificadas nascem de movimentos comunitários, descrevendo-se suas histórias e atuais status de configuração comunicacional. O trabalho de reconfiguração dessas emissoras traz novos sentidos e práticas cidadãs, de reconhecimento da comunidade, trazendo ainda perspectivas identitárias, além de críticas construtivas sobre esse movimento. A obra de Lílian Bahia destaca-se pelo ineditismo em lincar esses dois temas e por instigar novas perspectivas da atuação das rádios comunitárias brasileiras. O livro instiga ainda o debate da perspectiva do trabalho das rádios comunitárias, sendo um excelente passo para re-leituras e aplicações das perspectivas de reconfigurações à emissoras de todas as regiões do País.

Referência

HABERMAS, Jürgen. A mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.


La vie en la terre tupiniquim! Comunicação, cultura e interfaces econômicas nas relações históricas entre Brasil e França.

Janaina Cardoso de Mello1

VIDAL, Laurent; LUCA, Tania Regina de (Orgs.) Franceses no Brasil. Séculos XIX-XX. São Paulo: Editora da UNESP, 2009. 487p.

O Ano da França no Brasil celebrado até novembro de 2009 é uma iniciativa do governo dos dois países, com o objetivo de aprofundar as relações bilaterais no âmbito cultural, acadêmico e econômico. É a continuidade do Ano do Brasil na França, ocorrido em 2005, com o mesmo propósito. Dentre as atividades que norteiam a proposta está a realização de diversos eventos como exposições, shows, concertos, ciclos de cinema, seminários e festivais, motivando o turismo e as exportações de produtos entre Brasil e França. No bojo desse intercâmbio, a publicação organizada por Laurent Vidal e Tania Regina de Luca, reune estudos que analisam a presença de imigrantes franceses no território brasileiro nos séculos XIX e XX. Vidal, é historiador e professor na Universidade de La Rochelle (França), onde dirige o Centro de Pesquisa em História Internacional e Atlântica (CRHIA) e Luca é historiadora e professora dos cursos de graduação e pósgraduação em História da Universidade Estadual Paulista, campus Assis. Os organizadores introduzem a obra, ressaltando uma pesquisa realizada em 1911 pelo Ministério das Relações Exteriores da França tentando estabelecer de forma mais precisa o número de nacionais residentes no exterior através de um censo com dados contabilizados pelos consulados da capital federal, São Paulo e Bahia, identificaram a presença de 11.583 franceses em “terras tupiniquins”. Números que conferiam ao Brasil o segundo país da América Latina em recepção de franceses. (pp.13-14).

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Doutora em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Professora Adjunta I da Área de Cultura Histórica do Núcleo de Museologia da Universidade Federal de Sergipe (UFS).


Esse livro coletivo apresenta-se dividido em cinco partes que buscam analisar a inserção social do imigrante francês em seu percurso pelo Brasil. Assim, a primeira temática “Imigrar para o Brasil: imagens e realidades” é composta por três textos versando sobre o projeto de imigração, a opção pelo Brasil e a condições dessa viagem transoceânica. Desse modo, o trabalho de Ana Luiza Martins “Presença imigrante francesa no Brasil: entre visões do paraíso e mercados de trabalho” ressalta que a primeira leva do movimento emigratório francês ocorreu com o final das guerras napoleônicas, quando a América foi percebida como um território para novas possibilidades de trabalho (p.29). Já Jorge Luís Mialhe parte de “A emigração francesa para o Brasil pelo Porto de Bordeaux: séculos XIX e XX” para traçar o itinerário de transporte de mercadorias e passageiros com a ampliação das comunicações e do tráfego marítimo após a independência das antigas colônias americanas (p.43). Enquanto Mônica Leite Lessa em co-autoria com Hugo Rogélio Suppo abordam em seu artigo “A emigração proibida: o caso França-Brasil entre 1875 e 1908” quando o governo francês através do Visconde de Meaux, Ministro da Agricultura e Comércio da França, apoiado pelos Ministros das Relações Exteriores e do Interior, emite uma circular proibindo o recrutamento de seus compatriotas pela Agência Brasileira de Imigração (p.83). A segunda parte da coletânea intitulada “Terra de refúgio, terra de utopia” traz o texto “Preciosos súditos, emigrantes atravancadores: a França e os franceses do Brasil no início do século XIX” de Julierre Dumont que analisa o papel da diplomacia francesa no favorecimento das relações comerciais com o Brasil na tentativa de contrabalançar a influência da Inglaterra na América e tendo as empresas francesas no brasil como ponto chave desse objetivo (pp.108-109). Um estudo da tragetória de “Um emigrante francês no Brasil: Jean Etienne Seraine (1827-1854)” de Jean Glénisson abordando os relatos epistolares de um francês nascido em Villenauxe – pertencente a rica família de Seraines de Conflans, comerciantes de madeira e membros da burguesia provincial – que desembarca no Rio de Janeiro em 1827 para inicialmente desenvolver suas habilidades no campo da engenharia e da arquitetura na construção de engenhos e drenagem de pântanos (pp.124126). Ivone Gallo propõe em seu texto um debate sobre “O Brasil e o socialismo do século XIX: fourieristas no Saí” – local correspondente ao atual estado de Santa Catarina – onde o médico homeopata Benoit Mure busca terras para estabelecer uma colônia industrial e um


falanstério (pp.152-153). Dando continuidade à temática, Claudio H. M. Batalha envereda pelos caminhos de “Um socialista francês diante da escravidão no Brasil: Louis-Xavier de Ricard e o Jornal Le Sud-Américain”, um semanário lançado em julho de 1885, voltado para as colônias francesas, assumindo desde o início a defesa da imigração européia e a crítica da escravidão (p.164) .Com Fania Fridman fecha-se essa parte em um artigo sobre os “Judeus-franceses no Rio de Janeiro do século XIX”, expondo nas primeiras décadas do Oitocentos uma grande onda de imigração sefaradita para o Brasil proveniente do norte da África, do Levante e dos Bálcãs para dedicarem-se ao comércio e às casas de penhores (pp.178-179). Na terceira parte da obra, apresenta-se “O Amplo leque das atividades urbanas”, dando visibilidade ao “Comércio francês e cultura material em São Paulo na segunda metade do século XIX” por Heloisa Barbuy que estuda à partir dos almanaques comerciais e anúncios em periódicos o revestimento simbólico de uma cidade que prometia transportar o consumidor ao mundo referencial do chic luxo francês. (p.199) Perpassando ainda pelo texto de Vanessa dos Santos Bodstein Bivar e Eni de Mesquita Samara abordando “Do outro lado do Atlântico: imigrantes franceses na São Paulo do século XIX”, onde constituindo-se o Brasil num dos alvos para a exportação de produtos franceses, agentes consulares através de cartas e relatórios enviados ao Ministério dos Negócios Estrangeiros formavam uma teia de informações sobre os entraves e as possibilidades de expansão comercial em São Paulo (pp.210-211). Já Lená Medeiros de Menezes nos traz as “Facetas marginais do sonho de civilização: imigração francesa e prostituição no Brasil (18161930)” revelando um outro lado do glamour, quando a emigração não era uma opção mas uma fatalidade no espaço urbano, no qual transitava-se entre a cocotte comédienne francesa, artista do Alcazar (teatro francês) e moradora nas pensions d’artistes do centro da cidade do Rio de Janeiro, dançava o cancã (p.236) e os favores sexuais ofertados por costureiras e moças pobres que buscavam uma vida melhor longe da terra natal. Enquanto Denise Mattos Monteiro reconstitui “A Casa „Boris Frères‟ no Ceará”, um prodigioso negócio de importação e exportação com matriz na França e filial no Brasil permanecendo nas mãos da mesma família por decênios (p.253). Para mais adinte nos depararmos com “O espelho francês na „Paris das Selvas‟” escrito por Maria Luiza Ugarte Pinheiro, perpassando a viagem de Charles-Marie de La Condamine à região do Alto Amazonas, as


descrições de Emille Carrey sobre a Cabanagem no Pará, as confecções e ateliês das modistas sob influência parisiense onde a elite local tentava mirar-se nos ideais de civilização e modernidade (pp.271-278). Encerrando-se com uma leitura de “O Courrier du Brésil e o conflito entre associações francesas no Rio de Janeiro por Letícia Gregório Canelas em sua pesquisa sobre o hebdomadário publicado em língua francesa no Rio de Janeiro, instalando seu escritório na Rua do Ouvidor, espaço de mercado suntuoso e elegante sociabilidade (p.290). A quarta parte, denominada “As experiências das colônias agrícolas” inicia-se com uma investigação de Maria Isabel de Jesus Chrysostomo sobre “Os colonos franceses da colônia Valão dos Veados – 1845-1854” relacionada a um conjunto de medidas adotadas pelos poderes central e provincial de estímulo ao povoamento e à civilização da região de Campos – Rio de Janeiro, buscando ampliar os lucrativos investimentos proporcionados pela exportação do açúcar e do café (p.325). Seguindo-se essa linha de estudos com o artigo de Grégory Corps sobre “A imigração contratada: o caso da colônia de Benevides no Estado do Pará, num contexto de enriquecimento econômico promovido pela comercialização da borracha e incorporação de valores europeus pela elite local, no qual a colônia deveria servir ao propósito de constituir um espaço agrícola para alimentar a população amazônica (p.345). E finalizando com uma análise sobre “Alexandre Bréthel (1862-1901) e os franceses do Carangola” de Françoise Massa que através das cartas desse bretão nascido em 1834 na pequena cidade de Douarnenez, que à partir da segunda metade do século XIX abre uma farmácia em Tombos de Carangola, no extremo norte da província do Rio de Janeiro entre povos indígenas e negros escravos (p.361). Na quinta e última parte nomeada de “Trajetórias individuais e memória” está presente a pesquisa de Júnia Ferreira Furtado sobre a “Trajetória de franceses em Minas Gerais no século XIX” como Guido Thomas Marlière, Jean-Antoine Monlevade, Claude Henri Gorceix e Paul Ferrand que contribuiram para a abertura de vastas áreas ainda não colonizadas pela Coroa portuguesa, bem como para o aprefeiçoamento da exploração mineral no contexto da necessidade de transformações tecnológicas (p.370). Sendo de autoria de Fábio Simões Cardozo e Marlice Nazareth Soares de Azevedo o artigo “Um francês no Brasil imperial do século XIX: Auguste François-Marie Glaziou” que ao chegar como um simples imigrante e com recursos quase insignificantes, exerceu diversas


atividades econômicas em seu trânsito pelas províncias brasileiras desde amolador de facas (rémouleur) até ocupar o cargo de diretor botânico do jardim do Passeio Público, iniciando sua carreira como paisagista (p.389-390). Ao encargo de Dirceu Franco Ferreira e Nelson Mendes Cantarino ficou a apresentação de “Um humanista nos trópicos: a singular trajetória de Hercule Florence no Brasil” que fora caixeiro na casa de roupas de Pierre Dillon no Rio de Janeiro e mais tarde trabalharia na tipografia e livraria de Pierre Plancher, fundador do Jornal do Commercio (p.400). Enquanto Marisa Midori Deaecto investigou “B.L. Garnier e A.L. Garraux: destinos individuais e movimentos de conjunto nas relações editoriais entre a França e o Brasil no século XIX”, estabelecendo-se o primeiro no Rio de Janeiro e o segundo em São Paulo para investirem respectivamente no mercad literário perseguido pela polícia francesa, mas de cunho altamente lucrativo como os de conteúdo erótico e na publicação de catálogos e exemplares de obras educacionais (pp. 426-431). Concluindo a coletânea Maria Bernardete Ramos Flores, Émerson César de Campos e Carina Sartori com o texto “Rastros da presença francesa nas terras do Saí: o caso da família Ledoux” que embarcara no navio La Neustrie em 1842 para em terras brasileiras constituirem numerosa descendência e liderança (pp.440-441) . São 22 artigos que evocam temas pouco ou mal conhecidos sobre os fluxos migratórios entre França e Brasil e seu consequênte intercâmbio econômico, político e cultural na interpretação do panorama da sociedade civil que se constitui entre os séculos XIX e XX. Com rica documentação textual e imagética (aquarelas, desenhos, fotografias, charges, ilustrações de revistas oitocentistas, cartografia) no percurso da obra também são apresentados dados quantitavos dos: recenseamentos de franceses no Brasil por distribuição geográfica (pp.46-49), números e perfis de profissionais franceses em território brasileiro entre 1840 e 1890 (pp.55; 58-59) e listagem de jornais publicados em língua francesa no Rio de Janeiro oitocentista (p.311-318). Desse modo, compõem-se um panorama diversificado de fontes e argumentações impulsionadores de novos estudos sobre o tema para que se possa estabelecer uma continuidade na pesquisa e no diálogo entre Brasil e França ao longo do século XXI.


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