Jornal Jurídico Setembro 2015

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A fim de que tenha um poder punitivo, qualquer Estado, primeiramente, tem que se organizar em seu âmbito interno. A Europa, “centro” do mundo, só conseguiu se expandir quando reorganizou as suas sociedades em uma forma hierarquizada, ou seja, militarizada. Esse imenso exército foi distribuído em células, conhecido também como pequenas sociedades, onde o comandante era e ainda é o pater e os hierarquicamente inferiores eram as mulheres, os filhos, os velhos, os escravos e os animais. Assim, primeiro aprendia a obedecer ao pater, depois aprendia a obedecer ao Estado. Rousseau24, da mesma forma, descrevia que “a mais antiga de todas as sociedades, e a única natural, é a da família. As crianças apenas permanecem ligadas ao pai o tempo necessário que dele necessitam para a sua conservação”. Nessa via, declama Beccaria (2015, p. 26):

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Cansados de só viver no meio de temores e de encontrar inimigos por toda parte, fatigados de uma liberdade que a incerteza de conservá-la tornava inútil, os homens acabaram sacrificando uma parte da liberdade para gozar do resto com mais segurança. A soma de todas essas porções de liberdade, sacrificadas assim ao bem geral, formou a soberania da nação; e aquele que foi encarregado pelas leis do depósito das liberdades e dos cuidados da administração foi proclamado o soberano do povo.

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Em Estados teocráticos, o genocídio em massa era considerado normal. No âmbito interno, inimigos eram os colonizadores rebeldes e as mulheres desordeiras. No âmbito externo, os inimigos na Europa eram os albigenses e cátaros, depois, com a extinção deles, era satã e as suas infinitas formas de se expor tanto interno quando externo em uma nação. Nesse liame, fala24 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Edição Eletrônica: Ed. Ridendo Castigat Moraes, p. 11. Disponível em: <http://www.nesua.uac. pt/uploads/uac_documento_plugin/ficheiro/0a348e9f51cbbfad351ad56 c840240030d290f67.pdf>. Acesso em: 25 jan. 2015.

-se da bruxaria que na época, consoante Kramer e Sprenger25, era identificada em quatro principais elementos: Em primeiro lugar, é necessário, de modo mais profano, renunciar à fé católica, ou negar de qualquer maneira certos dogmas da fé; em segundo lugar, é preciso dedicar-se de corpo e alma à prática do mal; em terceiro lugar, há de ofertar-se crianças não-batizadas a satã; em quarto, é necessário entregar-se a toda sorte de atos carnais com íncubos e súcubos e a toda sorte de prazeres obscenos.

Desde a sua própria origem, o poder punitivo mostrou uma formidável capacidade de perversão, montada – como sempre – como um preconceito que impõe medo. Com singular presteza, o modelo inquisitorial foi seguido pelos Tribunais laicos e generalizou-se. Quando, no século XVI, a inquisição romana entrou em decadência, o modelo permaneceu nas mãos do poder político e os inimigos eram os hereges ou os reformistas, que protagonizavam o espetáculo patibular e festivo das execuções públicas nas principais praças de todas as cidades da Europa. Na Espanha, os principais inimigos nunca foram as bruxas – embora muitas tenham sido eliminadas –, mas sim os opositores do monarca, acusados de hereges ou dissidentes, isto é, de hostis judicatus, prolongando-se a Inquisição até o século XIX (Zaffaroni, 2007, p. 34). Na Revolução Industrial, surgiu ao poder uma nova classe social: os industriais e os comerciantes, aferindo, claramente, em disputas com a nobreza e com o clero. Na tentativa de diminuir o poder punitivo dos cleros e nobres, essa nova classe social fez uma mudança na realidade operativa da punibilidade, causando, aí, um reducionismo penal. O aumento drástico populacional das cidades causou um aumento considerável de indesejáveis nas cidades. Portanto, um novo inimigo surgiu, abruptamente: os mendigos, os sem trabalhos, em geral, os 25 KRAMER, Heinrich; SPRENGER, James. O martelo das feiticeiras (malleus maleficarum). Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2014. p. 77.


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