Tratado de Tireoide e Paratireoides, 2ª ed. | Marcos Brasilino de Carvalho

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do defeito de síntese, o que torna o diagnóstico clinicolaboratorial fundamental para direcionar o estudo molecular.

Defeito no Transporte de Iodeto Defeito no transporte de iodeto (DTI) é causa rara de hipotireoidismo com bócio congênito. O padrão de herança parece ser autossômico recessivo. O acúmulo ativo do íon na glândula é mediado por um simporte (carreador) proteico transmembrana intrínseco Na+/I– (conhecido sob o acrônimo NIS),4 cujo símbolo oficial é SLC5A5. O gene SLC5A5 está localizado no cromossomo 19p13.11 e codifica uma proteína de 643 aminoácidos. A proteína se expressa principalmente na tireoide, mas também nas glândulas salivares, mucosa gástrica, mucosa do intestino delgado, glândula lacrimal, nasofaringe, timo, pele, pulmão, plexo coroide, corpo ciliar, útero, tecido mamário lactante, de carcinoma da mama e células da placenta. O transporte de iodeto é regulado pelo TSH apenas nas células tireóideas. Após a clonagem do gene NIS, foram descritas pelo menos 12 mutações inativadoras em homozigose ou em heterozigose composta em indivíduos portadores de DTI.5 O aparecimento de hipotireoidismo varia desde o nascimento até a infância, a depender, possivelmente, da quantidade de iodo na dieta, e parece se correlacionar com a atividade in vitro do transportador mutado.3 Essas crianças tornam-se gravemente hipotireóideas se mantidas em dieta normal de iodo, enquanto a suplementação de quantidade elevada de iodeto na alimentação tende a compensar a falta de transporte de iodeto. A maioria dos indivíduos acometidos exibe bócio difuso ou nodular, Tg no soro aumentada e pouca ou nenhuma captação glandular de radioiodo. Na presença de captação baixa ou ausente, deve ser descartada a contaminação por iodo, por meio de aferição da iodúria, ou o paciente deve ser submetido a uma dieta pobre em iodo por pelo menos quatro semanas. Como a perda de função do SLC5A5 é generalizada, implica também captação reduzida de iodeto em células parietais gástricas e glândulas salivares. Daí a incapacidade de visualizarmos esses órgãos durante a cintilografia com I131. Em consonância, a aferição da razão entre saliva e plasma de I131 é cerca de 1. Em crianças, a tireoide pode, inicialmente, apresentar-se com tamanho normal ou ligeiramente aumentado à ultrassonografia, e os valores de Tg no soro estarão sempre elevados. Além de estabelecer um diagnóstico definitivo, a identificação de mutações no SLC5A5 tem outras implicações. A identificação de um caso-índice permitirá diagnósticos pré-clínicos posteriores de outros casos na mesma família, particularmente em indivíduos com HC mais tardio no DTI que exibam sinais de atraso no desenvolvimento por ocasião do diagnóstico.6

Defeitos na Incorporação de Iodeto e Conjugação das Iodotirosinas Após sua captação, o iodeto é oxidado a iodo orgânico e ligado aos resíduos tirosínicos da matriz proteica da Tg. Essas etapas da síntese hormonal dependem da atividade da enzima-chave TPO, da geração do agente oxidante H2O2, da disponibilidade

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de substratos (iodeto e Tg) e da organização espacial adequada desses componentes. A TPO é uma hemeproteína ligada à membrana apical da célula folicular, ativa somente na presença de H2O2. Apresenta dois locais reativos adjacentes – um para a tirosina e outro para o iodeto –, onde são oxidados. O iodeto dá origem a um intermediário ativo [radical livre iodofenol ou ao íon iodínio (I+)], que se une covalentemente à tirosina, formando iodotirosinas (MIT e DIT). A TPO catalisa também a conjugação destas para a formação de T3 e T4. O gene TPO humano está localizado no cromossomo 2p25.3 e codifica uma proteína com 933 aminoácidos. Defeitos da TPO são os mais frequentes entre os erros inatos da síntese hormonal na tireoide. A atividade da TPO mutada dependerá do tipo e da localização da mutação no gene. Os indivíduos com incorporação de iodeto comprometida tipicamente exibem perda de iodeto radioativo intratireóideo após administração de perclorato, que compete com o iodeto bloqueando sua entrada na célula tireóidea. No teste de perclorato padrão, administra-se iodo radioativo (I131 ou I123) e, após 2h, realiza-se contagem cervical e administração de 1g de perclorato de potássio (KClO4) por via oral. As contagens tireóideas são obtidas a intervalos frequentes (a cada 10 a 15min) por mais 2h. Em indivíduos normais, o acúmulo de iodo radioativo na tireoide cessa após a administração do KCLO4, com pouca perda da radioatividade tireóidea acumulada antes da indução de bloqueio da captação. Em indivíduos normais, o perclorato não libera mais que 5% do iodo radioativo. O teste é positivo quando há perda maior que 20%, indicando um defeito na organificação. A gravidade do defeito é proporcional à extensão da descarga de iodo radioativo da glândula, e é completa quando praticamente toda a atividade acumulada pela glândula é perdida. Em geral, uma descarga de 20% a 50% é compatível com defeito parcial na organificação (DPII), enquanto descarga maior que 50% condiz com defeito completo (DTII). Existem descrições de diversas mutações no gene TPO em várias famílias, causando DPII ou DTII.7-10 A Tabela 10.3 traz um resumo da natureza diversa do defeito bioquímico. Existe grande heterogeneidade clínica e bioquímica nos portadores do defeito. Indivíduos com DTII podem apresentar algum grau de deficiência física ou mental, bócio e hipotireoidismo. Em outros casos, há uma compensação do defeito de incorporação de iodeto, tal como aumento do volume da glândula, formando grandes bócios capazes de manter eutireoidismo no limite, geralmente com valores elevados de T3 e normais ou baixos de T4. Em estudos que envolveram famílias, encontra-se o defeito em ambos os sexos e em irmandades. Com frequência, os pais não acometidos são consanguíneos, o que sugere uma herança autossômica recessiva.

Tabela 10.3 Heterogeneidade dos defeitos na incorporação do iodeto e conjugação das iodotirosinas Defeito total de incorporação de iodeto Defeito parcial de incorporação de iodeto Geração deficiente de H2O2 (genes DUOX2 e DUOXA2)

C o p y r i g h t ©2 0 1 8E d i t o r aR u b i oL t d a . B r a s i l i n o . T r a t a d od eT i r e o i d eeP a r a t i r e o i d e s , 2 ª e d . Al g u ma sp á g i n a s , n ã os e q u e n c i a i s , ee mb a i x ar e s o l u ç ã o .

Bases Genéticas, Fisiopatologia e Diagnóstico de Disormonogênese da Tireoide

03/04/2018 15:16:14


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