O Exame Psiquiátrico

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Marcelo Caixeta Médico Psiquiatra. Professor de Exame Psiquiátrico da Liga Acadêmica de Medicina Psiquiátrica (LAMEP) da Pontifícia Universidade Católica (PUC), GO.

Leonardo Caixeta Médico Psiquiatra. Professor de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade Católica (PUC), GO.

Ciro Vargas Médico Residente de Psiquiatria do Hospital Médico-Psiquiátrico de Goiânia, GO.

Victor Melo Acadêmico de Medicina da Universidade Federal de Goiás (UFG).

Cedric Melo

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Os autores conduzem a ideia de exame psiquiátrico para além da mera coleta e do registro de sinais e sintomas psicopatológicos e seu correspondente diagnóstico classificado e catalogado, lançando as bases para um entendimento do paciente nos contextos patológico, biológico, psicológico e social. A psicopatologia permeia toda a obra, mas foi colocada como um meio, ou como uma bancada de trabalho, e não como um fim em si mesmo. Nesse contexto, espera-se que o ser humano consiga emergir em toda a sua complexidade existencial. No inal do livro, há um valioso resumo com informações precisas para uma anamnese e um completo diagnóstico diferencial entre os transtornos psiquiátricos e as lesões cerebrais, que se utiliza da experiência dos autores nesse assunto, pouco explorado nos cursos de residência e tão visto na prática clínica. O livro busca, portanto, mostrar o quanto a psiquiatria é uma especialidade médica e humana fascinante e imprevisível, e como necessita de envolvimento intelectual e existencial para atingir o objetivo maior dos psiquiatras: cuidar da pessoa acometida de transtorno mental tendo os psiquiatras como principal instrumento da psiquiatria.

Marcelo Caixeta | Leonardo Caixeta Ciro Vargas | Victor Melo | Cedric Melo

Acadêmico de Medicina da Pontifícia Universidade Católica (PUC), GO.

M

O Exame Psiquiátrico

Sobre os Autores

ais que prover informações objetivas e técnicas já bem repetidas e conhecidas, este livro introduz o leitor à prática do exame psiquiátrico e fornece uma base sólida nessa etapa crucial e disseminada em todo o processo psiquiátrico.

Outros Títulos de Interesse ABEAD (Associação Brasileira de Estudo do Álcool e Outras Drogas) Analice Gigliotti Angela Guimarães Diretrizes Gerais para o Tratamento da Dependência Química

O Exame Psiquiátrico

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Marcelo Caixeta Leonardo Caixeta Ciro Vargas Victor Melo Cedric Melo

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Marcelo Caixeta Médico Psiquiatra. Professor de Exame Psiquiátrico da Liga Acadêmica de Medicina Psiquiátrica (LAMEP) da Pontifícia Universidade Católica (PUC), GO.

Leonardo Caixeta Médico Psiquiatra. Professor de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade Católica (PUC), GO.

CIRO VARGAS Médico Residente de Psiquiatria do Hospital Médico-Psiquiátrico de Goiânia, GO.

VICTOR MELO Acadêmico de Medicina da Universidade Federal de Goiás (UFG).

CEDRIC MELO Acadêmico de Medicina da Pontifícia Universidade Católica (PUC), GO.


O Exame Psiquiátrico Copyright © 2011 Editora Rubio Ltda. ISBN 978-85-7771-077-5 Todos os direitos reservados. É expressamente proibida a reprodução desta obra, no todo ou em partes, sem a autorização por escrito da Editora. Produção e Capa Equipe Rubio Editoração Eletrônica Elza Maria da Silveira Ramos

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) O Exame Psiquiátrico / Marcelo Caixeta... [et al.].    -- Rio de Janeiro: Editora Rubio, 2011.   Outros autores: Leonardo Caixeta, Ciro Vargas, Victor Melo, Cedric Melo   Bibliografia   ISBN 978-85-7771-077-5   1. Doenças mentais – Diagnóstico 2. Entrevistas 3. Psicodiagnóstico 4. Caixeta, Marcelo. II. Caixeta, Leonardo. III. Vargas, Ciro. IV. Melo, Victor. V. Melo, Cedric. 11-05581

CDD-616.89075 NLM-WM-141 Índices para catálogo sistemático: 1. Diagnóstico psiquiátrico : Medicina  616.89075 2. Exame psiquiátrico : Medicina  616.89075 3. Diagnóstico psiquiátrico : Medicina  WM-141

Editora Rubio Ltda. Av. Franklin Roosevelt, 194 sala 204 – Castelo 20021-120 – Rio de Janeiro – RJ Telefax: 55(21)2262-3779 • 2262-1783 E-mail: rubio@rubio.com.br www.rubio.com.br Impresso no Brasil Printed in Brazil


“Então, o que há de mais próximo de mim do que eu mesmo? Decerto eu trabalho aqui, trabalho em mim mesmo, transformei-me numa terra de dificuldades e de suor copioso.” Santo Agostinho



Colaboradores

Cláudio Reimer Professor de Psiquiatria da Pontifícia Universidade Católica (PUC), GO. Fernando Barros Médico Psiquiatra da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Giovana Amorin Médica Psiquiatra do Estado de Manitoba, Canadá. Magno de Nóbrega Médico Psiquiatra da Fundação Hospitalar do Distrito Federal (FHDF). Moisés Chaves Professor de Psiquiatria da Universidade Regional de Gurupi, TO. Paulo Verlaine A. Borges Professor de Psiquiatria da Pontifícia Universidade Católica (PUC), GO. Rebeca Vargas Psicológa formada pela Universidade de Brasília (UnB).



Apresentação

Mais do que informações objetivas e técnicas já bem repetidas e conhecidas, é nosso intuito introduzir o leitor à prática do exame psiquiátrico e fornecer uma base sólida nessa etapa crucial e disseminada em todo o processo psiquiátrico. Levaremos a ideia de exame psiquiátrico para além da mera coleta e registro de sinais e sintomas psicopatológicos e seu correspondente diagnóstico classificado e catalogado. Lançaremos as bases para um entendimento do paciente no contexto patológico, biológico, psicológico e social. A psicopatologia permeia toda a obra, mas foi colocada como um meio, ou como uma bancada de trabalho, e não como um fim em si mesmo. Nesse contexto, queremos que o ser humano consiga emergir em toda a sua complexidade existencial. A prática será usada no sentido grego do termo, ou seja, uma forma de conhecimento ou arte que necessita de dom, intuição, sensibilidade e originalidade, além de determinação. Algo muito diferente da prática hodierna: sistematizada, mecânica, condicionada e que não “pensa” em analisar originalmente cada paciente. Quanto à teoria, será dividida em duas partes de seu amplo espectro de análise: em um polo, ora usaremos pequenos comentários analíticos que servirão de apoio e registro ao aspecto prático específico. Em outro polo do espectro, serão discutidos aspectos dos grandes modelos explicativos, arcabouços sociais, psicológicos e científicos da psiquiatria. No final do livro, há um valioso resumo com informações objetivas para uma anamnese e um completo diagnóstico diferencial entre os transtornos psiquiátricos e as lesões cerebrais, aproveitando a nossa experiência nesse assunto, pouco explorado nos cursos de residência e tão visto na prática clínica. Queremos, com este livro, dizer o quanto a psiquiatria é uma especialidade médica e humana fascinante e imprevisível, e como necessita de envolvimento intelectual e existencial para que nosso trabalho atinja nosso maior objetivo: cuidar da pessoa acometida de transtorno mental e que nós, psiquiatras, sejamos o principal instrumento da psiquiatria. Os Autores



Introdução

A psiquiatria é, de modo muito básico, uma atividade humana transformadora, com várias dimensões de análises, inúmeros estudos e procedimentos científicos, tecnológicos e humanísticos de cuidado do corpo, da mente e da existência do ser humano. Para o diagnóstico de um transtorno mental simples, na maioria das vezes, basta um inventário de sintomas baseados em algumas das classificações diagnósticas psiquiátricas (CID-10, DSM-IV). Desse modo, para um simples diagnóstico de um transtorno mental, uma listagem dos sinais e sintomas pode ser suficiente. Porém, quando se aborda o tratamento da pessoa em sua existência, as coisas se complicam muito, pois são necessários o conhecimento da psicopatologia do paciente e o seu contexto biológico e sociofamiliar, e, para isso, não basta uma lista de sinais e sintomas. Outra abordagem, profunda, faz-se necessária, e o desconhecimento dessa abordagem torna a psiquiatria uma prática médica tosca e claudicante, muitas vezes prejudicial ao tratamento do paciente. O conhecimento da psicopatologia não se adquire com o domínio do seu vocabulário técnico, como os livros de psicopatologia implicitamente queiram significar. O verdadeiro conhecimento psicopatológico está na vivência empática dos sentimentos e pensamentos do paciente e da sua pessoa, algo paradoxalmente etéreo e muito sólido para a real psiquiatria. A psiquiatria como ciência médica e humanista deve ainda contar com um contexto constitucional, emocional e social na composição do diagnóstico do paciente. Desse modo, abordaremos esse problema com profundidade: o estudo do imbricamento entre o aspecto biológico e o psicossocial na vida mental e comportamental do paciente. De fato, sem conhecer as nuanças do que é biológico e do que é psicossocial na psicopatologia do paciente, não há como o psiquiatra ter verdadeiro sucesso em cuidar do paciente; ou então o faz de modo aparentemente parcelar, ineficaz e iatrogênico.


Por exemplo, não basta fazer um simples diagnóstico de transtorno afetivo bipolar e administrar um estabilizador de humor para um paciente que tem sérios problemas familiares. Estando fragilizado pela doença, os problemas psicológicos e familiares podem atuar muito negativamente sobre a patologia, levando à falta de resposta terapêutica, à cronificação, ao excesso de recidivas, à falta de aderência do paciente e da própria família ao tratamento. A parte mais importante é aquela que se inicia depois do diagnóstico: o manejo terapêutico do paciente e, para esse, o estudo do imbricamento psicobiológico é fundamental. Portanto, sem ter uma compreensão ou pelo menos uma noção do que se deve à biologia ou à psicossocialidade, fica muito difícil manejar esses problemas (quando não são conhecidos adequadamente, tende-se a biologizar os problemas psicossociais ou, ao contrário, tende-se a psicossociabilizar os problemas biológicos). Tudo isso, portanto, faz parte do exame psiquiátrico e do tratamento, e o diagnóstico é apenas a parte inicial do processo de cuidar do paciente.


Sumário

Pranchas de Rorschach....................................................... XV Parte I – Bases do Exame Psiquiátrico . ............................ 1 1

Breve história comparativa do exame psiquiátrico . .................. 3

2

Fenomenologia de alguns casos básicos .................................. 7

3

A psicologia do exame psiquiátrico ......................................... 11

4

A diferença entre o normal e o patológico . ............................. 17

5

Relação entre o orgânico e o social . ....................................... 21

6

Escolha da metodologia do exame psiquiátrico . .................... 37

7

Instrumentos auxiliares para o exame psiquiátrico ................. 59

Parte II – Prática do Exame Psiquiátrico ......................... 69 8

Esquizofrenia . .......................................................................... 71

9

Psicoses passionais . ............................................................... 79

10

Psicose interpretativa . ............................................................. 99

11

Psicose enxertada . ................................................................. 107

12

Estado misto afetivo bipolar ................................................... 115

13

Hipomania ............................................................................... 125

14

Alterações patológicas de personalidade associada à hipomania ............................................................................ 131

15

Depressão ............................................................................... 135

16

Ansiedade ............................................................................... 143

17

Transtorno alimentar ............................................................... 149

18

Transtorno de personalidade antissocial ................................ 155


19

Transtorno conversivo-dissociativo ....................................... 161

20

Dependência de álcool .......................................................... 169

21

Transtornos mentais orgânicos ............................................. 173

22

Transtorno de controle de impulso ........................................ 197

23

Síndrome hipercinética .......................................................... 203

24

Exame psiquiátrico na adolescência ..................................... 213

25

Cleptomania ........................................................................... 231

26

Avaliação de risco de suicídio ............................................... 241

27

Dados para um quadro sinóptico do exame neuropsiquiátrico.................................................................... 245

Considerações finais ......................................................... 253 Referências.......................................................................... 273 Índice Remissivo................................................................. 283


Pranchas de Rorschach

Prancha I

Prancha II


Prancha III

Prancha IV

Prancha V


Prancha VI

Prancha VII

Prancha VIII


Prancha IX

Prancha X


Parte I – Bases do Exame Psiquiátrico 1. Breve História Comparativa do Exame Psiquiátrico 2. Fenomenologia de Alguns Casos Básicos 3. A Psicologia do Exame Psiquiátrico 4. A Diferença entre o Normal e o Patológico 5. Relação entre o Orgânico e o Social 6. Escolha da Metodologia do Exame Psiquiátrico 7. Instrumentos Auxiliares para o Exame Psiquiátrico



Breve história comparativa do exame psiquiátrico

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Sem dúvida, a semente do exame psiquiátrico começou com a medicina na Grécia antiga, consubstanciada primeiro na relação médico-paciente, na qual existiam intuição, interesse e empatia pelo sofrimento do paciente em sua doença ou situação. É óbvio que não existiam, nessa época, técnicas ou métodos do que posteriormente seria chamado de exame psiquiátrico, mas o seu germe já estava instalado na medicina geral de modo independente da própria psiquiatria. Neste capítulo, vamos discutir o exame psiquiátrico como um processo de compreensão do paciente, cujos elementos objetivos e científicos adquiridos são incorporados à intuição e à empatia (inatas) do médico, visando a melhor eficiência do trabalho do psiquiatra e, assim, conseguindo ajudar o paciente de maneira concreta. Empatia, em sua essência, é algo bem diverso de simpatia, que é uma atitude nobre de “sofrer com o doente”, sentir o seu sofrimento, mas com uma ação um tanto inócua ou passiva em ajudar o paciente. Já a empatia é a compreensão e o entendimento racional do sofrimento ou doença do paciente; busca imediatamente linhas de ações de ajuda real ao paciente, transformando-se, desse modo, em um poderoso instrumento da psiquiatria. Tanto a empatia quanto a simpatia não devem ser confundidas com a piedade: esta é uma forma de sentimento para o próximo, passiva, às vezes perversa e totalmente dispensável, não trazendo qualquer benefício ao tratamento do paciente. O exame psiquiátrico como um corpo teórico e funcional começou a ser delineado de maneira pouco precisa com a própria psiquiatria moderna no começo do século XX. Vamos esboçar algumas formas de exame psiquiátrico, levando em conta, em sua evolução, os elementos subjetivos e objetivos


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Parte I – Bases do Exame Psiquiátrico

do médico ou pesquisador: personalidade, concepções pessoais, fatores ambientais, além de elementos sociais e culturais de uma época ou país em que o psiquiatra está implacavelmente inserido. Na chamada escola neurológica de Wernicke, no final do século XIX, o psiquiatra e neurologista Carl Wernicke praticava exame psiquiátrico como observação puramente “externa”: neurológica, motora, do paciente psiquiátrico. Por exemplo: a catatonia era “um estado de hipertonia, catalepsia, estupor...”. No começo do século XX, o médico e semiólogo francês Philippe Chaslin, médico em Bicêtre, França, publicou, em 1912, seu Eléments de sémiologie et de cliniques mentales, em que o comportamento era descrito como portador de uma intencionalidade e de uma ação motora correspondente. Por exemplo: “o paciente respondeu de modo brusco...” (até aqui é uma descrição do tipo Wernicke) e agressivo (uma descrição psicopatológica de um fato psíquico, mesmo que externamente). Em seu livro, noções de psicopatologia, semiologia e elementos de nosografia já eram delineados, ainda que débeis. Avançando de maneira mais precisa para uma “internalização” da descrição do fato psíquico, Jules Séglas (1983), psiquiatra da renomada escola francesa de Salpêtrière, utilizando-se de uma linguagem psicopatológica, descreve estados internos do paciente. Por exemplo: “o paciente demonstrou muita raiva, agressividade indiscriminada, gritando, dando murros nas pernas e abdome, avançando para as paredes e se chocando contra elas; estava em estado de grande exasperação, chorando, ansioso e angustiado, gritando para que ‘Deus o levasse embora logo’. Quando estava sentado, levantava-se rapidamente e se sentava de novo, repetidas vezes, passava a mão pela cabeça, cabisbaixo, com fácies de desespero.”

O que se nota aqui, portanto, é que, no exame do “tipo Séglas”, o comportamento é descrito de modo a remeter, por analogia, a uma vivência interior do próprio leitor, o mais próximo possível de como foi vivenciado psicologicamente pelo autor do exame psiquiátrico. O que Séglas queria era passar para o leitor, por meio de suas descrições comportamentais, as vivências psicológicas internas que ele, autor, teve no decorrer do exame. O autor utiliza quase a mesma linguagem do “descritor externo” – o “tipo Chaslin” –, mas com um objetivo suplementar: fazer com que o leitor, por meio da observação dos “atos externos” do paciente, gere


Relação entre o orgânico e o social

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O social no exame psiquiátrico A força do “social” em nossa mente é tão grande que, muitas vezes, deixamos de ver o que há de biológico por trás de muitos comportamentos. Em hospitais psiquiátricos, por exemplo, é muito comum que médicos e enfermeiros atribuam a “caráter e personalidade difíceis” certos comportamentos manipuladores de pacientes com lesões cerebrais que, em decorrência disso, têm seu caráter e sua personalidade completamente deformados. Médicos e enfermeiros sempre tendem a achar, em princípio, que “ele fez isto não foi por doença, foi por falta de vergonha mesmo”, ou, então, “isto não é uma doença, é um problema de caráter”. Como somos psicologicamente egoístas, tendemos a ver a psicologia dos outros como uma psicologia repleta de voluntarismo, de interesses e de caprichos. Na maioria das vezes, não conseguimos entender esses pacientes como portadores de tendências inatas, temperamentos, necessidades neurofisiológicas e traços congênitos. Em uma pesquisa realizada na década de 1990, Livesley e cols. (1993) publicaram um artigo em que analisaram o comportamento de uma centena de gêmeos idênticos: metade criada com os pais biológicos, e a outra metade criada com pais adotivos. Dessa pesquisa, resultaram dados surpreendentes no que diz respeito às características de personalidade: de 11 componentes estudados, apenas o comportamento ligado a atos delinquenciais não teve uma carga de herança maior do que 60% (ou seja, os comportamentos delinquenciais foram os únicos que sofreram mais influência do meio familiar do que da genética). Até o comportamento do narcisismo, algo aparentemente tão psicológico, mostrou-se fortemente herdado.


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Parte I – Bases do Exame Psiquiátrico

Dois métodos psicopatológicos históricos: Jaspers e Wallon Com a intenção de aprofundar o conceito de compreensão, abordaremos dois métodos psicopatológicos criados pelos mestres Karl Jaspers (escola alemã) e Henri Wallon (escola francesa), importantes na formação da própria psiquiatria clínica. Também tentaremos, ao mesmo tempo, mostrar a aplicação harmoniosa e íntima que a noção de compreensão pode ter com os conceitos de empatia e comparação em um exame psiquiátrico. Jaspers (1984), em seus primeiros escritos psicopatológicos, estudou algumas doenças em que havia espaço para o estudo tanto da biologia patológica quanto da psicologia patológica e da interação entre ambos (estudou, entre outras coisas, os ciúmes patológicos e os sentimentos de nostalgia patológica). Jaspers, assim como todo psicopatólogo profundo, estava em busca dos limites interacionais entre o biológico e o, psicossocial; padecia, no entanto, de delimitações metodológicas: era muito pouco clínico e muito mais um filósofo do que um médico. Tanto que, além de pouco clinicar, logo depois de seus escritos psicopatológicos, deixou a psiquiatria, primeiro em direção ao ensino da psicologia e depois em direção ao ensino da filosofia existencialista. Os estudos de Jaspers sobre os ciúmes são reproduzidos e seguidos por Lagache (1997). Uma grande parte dos estudos de Jaspers e seu epígono, Lagache, é dedicada aos “desenvolvimentos” anormais de personalidade ligados aos ciúmes patológicos. Em um dos capítulos de seu livro dedicado a esses transtornos, Lagache deixa transparecer todos os problemas metodológicos de seu mestre. Por exemplo, em um determinado caso, ao descrever uma paciente com ciúmes patológicos, o autor afirma que ela se apresenta hipomaníaca, logorreica e agitada. E depois, na conclusão do caso, revela tratar-se de um “desenvolvimento de personalidade”, baseando-se, para isso, no estudo da história de vida da paciente (para Lagache fica claro que os ciúmes foram piorando com o tempo). Ora, já se nota a incongruência: como é que alguém com a descrição de hipomania tem apenas um desenvolvimento anormal de personalidade? Lagache e Jaspers cometem o erro que assinalamos anteriormente: o preenchimento de “lacunas biológicas” com “histórias psicossociais”, assim como tenta fazer a mente de qualquer pessoa leiga (o psiquiatra não pode cair nessa armadilha).


Parte II – Prática do Exame Psiquiátrico   8. Esquizofrenia   9. Psicoses passionais 10. Psicose interpretativa 11. Psicose enxertada 12. Estado misto afetivo bipolar 13. Hipomania 14. Alterações patológicas de personalidade associada à hipomania 15. Depressão 16. Ansiedade 17. Transtorno alimentar 18. Transtorno de personalidade antissocial 19. Transtorno conversivo-dissociativo 20. Dependência ao álcool 21. Transtornos mentais orgânicos 22. Transtorno de controle de impulso 23. Síndrome hipercinética 24. Exame psiquiátrico na adolescência 25. Cleptomania 26. Avaliação de risco de suicídio 27. Dados para um quadro sinóptico do exame neuropsiquiátrico



Esquizofrenia

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Psicopatologia da esquizofrenia A psicopatologia e a neuropsicologia atuais da esquizofrenia apresentam grandes avanços (Frith, 1996). Sabe-se hoje que é uma doença onde existem problemas de conexão entre as áreas frontais e temporolímbicas do cérebro. Com isso, o paciente passa a interpretar determinadas vivências emocionais, existenciais, oníricas, corporais, como se não lhe pertencessem. Imputa essa vivência de autoestranheza a pessoas, instituições, máquinas, aparelhos, que o estariam influenciando, prejudicando, modificando. As disfunções frontais executivas, disfunções na memória de trabalho, podem produzir também, nos casos mais graves, alterações da forma do pensamento, alterações da lógica do discurso, na formação e junção dos conceitos: dislogia, neologismos, pensamento vago, desagregado.

Caso clínico Hélio, 56 anos, ensino médio completo, gráfico, divorciado, é trazido por um irmão para avaliação psiquiátrica. Segundo relatos, 20 anos atrás, foi internado com um quadro psicótico a esclarecer; há relatos de que esteve, nessa época, agressivo, agitado e “atrapalhado”. Durante o período da primeira internação, morava em São Paulo, onde trabalhava em sua profissão e já veio de lá “ruim”, conforme relata a família. Foi sua primeira internação. Depois se instalou junto com a mãe no interior de Goiás, ficou morando em um pequeno quarto e “se transformou em uma pessoa ‘mais simples’”, segundo os dizeres da família, passando apenas a realizar pequenos trabalhos domésticos, como cultivar hortaliças, capinar lotes, roçar matos, ou seja, apenas serviços muito simples e grosseiros, considerando-se sua profissão e capacidade cognitiva anterior.


Transtorno de personalidade antissocial

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Psicopatologia do transtorno de personalidade antissocial Nas classificações das doenças psiquiátricas, transtorno de conduta (em menores de idade) e transtorno de personalidade antissocial (em maiores de idade) dizem respeito a pacientes que apresentam um padrão crônico de comportamento instável, delinquente, agressivo. Mudam de trabalho, escola, namorada, cônjuge, não se fixam, têm um padrão repetitivo de excessos de toda natureza. Os comportamentos desviantes, contraventores, são abundantes: furtos, roubos, assaltos, gosto pela “vida bandida”, vagabundagem, orgias, manipulação, extorsão, mesmo das pessoas mais próximas e queridas. Configuram o que se chamava antigamente, e na linguagem “leiga”, de “psicopata”. Em outro capítulo deste livro, estudamos esse mesmo caso clínico só que dentro de outra perspectiva: aquela de sua relação nosográfica com outras patologias, como hiperatividade, bipolaridade, ansiedade, depressão, obsessividade. Neste capítulo, o foco será mais centrado nos distúrbios de conduta desse paciente, transtornos que, conforme será visto, fazem pensar em uma evolução grave rumo a um transtorno antissocial.

Caso clínico Wagner, 17 anos de idade, foi encaminhado há algum tempo para o tratamento de uma toxicomania grave (maconha, cocaína e nicotina), provável quadro depressivo, hiperatividade e transtorno de ansiedade. Todas essas comorbidades foram adequadamente tratadas, e foi estabelecida uma psicoterapia no decorrer de um ano e meio, mas restou um comportamento extremamente grave: o desrespeito completo pelas leis e regras morais. Tanto o psicoterapeuta como a mãe lhe eram muito solícitos,


Dados para um quadro sinóptico do exame neuropsiquiátrico

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Introdução Neste capítulo, apresenta-se um resumo inicial para o estudante que está iniciando o exame psiquiátrico. A linguagem é bem simplificada, coloquial, a abordagem dos temas é bem superficial, ligeira, servindo apenas de roteiro.

Semiologia neurológica aplicada à psiquiatria: noções gerais para uma boa avaliação psiquiátrica A anamnese, quando bem feita, responde por 95% do exame neurológico; pode ser útil também para o diagnóstico psiquiátrico em doenças que geram dúvidas entre o orgânico e o psicossocial; assim como pode ajudar na solicitação adequada de exames de imagem ou no encaminhamento para outra especialidade, dependendo da hipótese de base aventada.

Principais questões neurológicas a serem respondidas no exame psiquiátrico Encefalopatias fixas versus encefalopatias evolutivas As encefalopatias evolutivas correspondem a aproximadamente 5% da demanda de um serviço universitário hospitalar de neurologia clínica infantil (Lyon, 1987). Caracterizam-se por perdas de funções que o paciente já tinha adquirido (perdas cognitivo-motoras). São erros inatos do metabolismo (doenças metabólicas), degenerações corticais e subcorticais (demências), degenerações musculares, doenças autoimunes (esclerose em placas), tumores cerebrais, doenças cerebrovasculares de repetição, doenças sistê-



Referências

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Parte II – Prática do Exame Psiquiátrico

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