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das Cartoneras
O movimento editorial cartonero não para de crescer e se multiplicar: já atingiu ao menos vinte e um países, e só na América Latina, há mais de trezentas cartoneras contabilizadas em toda sua extensão. Elas recebem esse nome por utilizar o papelão ( cartón , em espanhol) para a produção das capas dos livros. E as editoras trabalham como um coletivo de pessoas que se reúne para fazer livros artesanais e de baixo custo, com o objetivo de driblar o sistema mercadológico editorial, que encarece o valor do livro e dificulta as relações entre o autor, o livro e o leitor. Com o valor gasto reduzido na produção, a democratização do texto se torna regra número um: autores menos conhecidos têm seus textos em circulação, leitores anônimos conseguem adquiri-lo. A primeira dessas editoras surgiu em 2003 e hoje elas são tantas que se tornaram até objeto de estudo nas universidades, com teses e livros que investigam como foi que este fenômeno surgiu e por que razão não tem nenhuma pretensão de acabar.

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Mas vamos por partes. A primeira cartonera foi fundada em Buenos Aires, na Argentina, em 2003: a Eloísa Cartonera . Criada por Washington Cucurto, Javier Barilaro e Fernanda Laguna, em resposta à grande crise financeira que assolou todo o país desde o “corralito”, o colapso político e econômico de 2001, hoje a Eloísa Cartonera é uma editora independente e autogerida. Mas a fundação da editora, mais que fazer livros, fez e faz política. Para que os livros pudessem chegar às mãos e aos olhos de qualquer leitor, em uma fase onde o livro era praticamente vendido como artigo de luxo, a Eloísa Cartonera passou a dialogar com carrinheiros que catam papelão do lixo e cooperativas de reciclagem do bairro de La Boca, em Buenos Aires. Pagando mais que as empresas de reciclagem pelo material coletado, a editora integrou os próprios catadores na produção editorial, para que estes não só elaborassem a capa dos livros, com papelão, tintas e colagens, mas montassem o livro inteiro, com ilustrações e páginas coloridas. O texto era fotocopiado, o que barateava ainda mais a reprodução em série, e a costura era feita ali mesmo. Cada livro se tornava um objeto exclusivo, e de baixíssimo custo. Resultado: uma ideia que deu certo. Hoje, a Eloísa já conta com mais de 250 livros publicados com autores de toda América e mantém um grupo fixo de trabalho.
Aqui no Brasil, o nascimento da Dulcinéia Catadora , o primeiro coletivo cartonero do país, surgiu em 2007 com uma parceria com a própria Eloísa Cartonera , na 27ª. Bienal de São Paulo. Em uma entrevista pessoal, Lucia Rosa, fundadora da Dulcinéia Catadora junto com Peterson Emboava, ela me conta que: “Nos primeiros anos, a Dulcinéia funcionou numa sala cedida, em Pinheiros e reuniu jovens, alguns deles filhos de catadores, de famílias de baixa renda; alguns em situação de vulnerabilidade.” Hoje, este trabalho em cooperação com o Movimento Nacional dos Catadores de Reciclagem funciona em outro espaço, no centro de São Paulo, ao mesmo tempo em que o coletivo desenvolve uma proposta de itinerância.
Com o objetivo de fazer uma linha editorial artesanal sem nenhuma hierarquia, trabalhando todos juntos sempre em posição de igualdade, a Dulcinéia Catadora , além de participar de feiras e projetos com comunidades carentes, promove oficinas de confecção no Brasil e no mundo, tanto para a formação de novos núcleos cartoneros, quanto para os que já existem e estão em busca de mais pessoal instruído para este trabalho. O coletivo ganhou uma visibilidade tamanha que só a Biblioteca do Congresso em Washington, nos Estados Unidos, conta com um acervo de mais de cem livros da Dulcinéia Catadora . Também nos Estados Unidos, a Biblioteca de Wiscosin conserva uma coleção de mais de mil livros cartoneros, de centenas de coletivos de todo o mundo. Aqui no Brasil, a Biblioteca do Memorial da América Latina, em São Paulo, mantém um espaço reservado para os livros cartoneros, não só nacionais, mas de dezenas de produções literárias de nossos hermanos . Lucia Rosa confirma o que vamos aprendendo: “O importante é o acesso aos livros. Conquistar novos espaços”.
Quanto ao nome das cartoneras, é bastante curioso que a maioria delas receba um nome feminino: Eloísa Cartonera, Dulcinéia Catadora, Olga Cartonera, La Sofía Cartonera, Katarina Cartonera, Severina Catadora, Juanita Cartonera; ou que ao menos o substantivo seja feminino: La Joyita cartonera, Sereia Cantadora, La Vieja Sapa , a recém criada Malha Fina Cartonera , etc... É uma reivindicação e uma mudança no sistema tradicional que vigora também no mercado de produção e distribuição dos livros. Sobre o batizado da Dulcinéia Catadora , Lucia Rosa diz: “No nosso caso, Javier, que fazia parte do Eloísa, sugeriu que escolhêssemos um nome feminino. Dulcinéia é o nome de uma catadora que trabalha na Coo pamare, uma mulher que admiro. Como também nos faz lembrar de Dulcinéia, de Miguel de Cervantes, a decisão foi unânime.”
No Nordeste do Brasil, vemos este fenômeno ganhar ainda mais força pela falta de editoras na região e, principalmente, pela falta de oportunidade que os artistas locais têm de serem publicados. Como vimos, o ativismo social faz parte da essência das cartoneras. Uma das primeiras cartoneras que surgiram por lá, e que hoje tem bastante relevância é a Mariposa Cartonera, que em 2013 no Recife, foi fundada por Wellington de Melo. Hoje já são tantas ( Severina Catadora, Cartonera del Mar, Vento Norte Cartonero, Comissão Cartonera, Carolina Cartonera , etc.) que foi criada, inclusive, a Liga Cartonera , um coletivo das editoras cartoneras, com o fim de se autoajudarem e se autopromoverem na dis- tribuição de seus trabalhos, além do contato com as cooperativas de reciclagem e de costura. O trabalho é sempre colaborativo, e é preciso que todos os envolvidos compreendam e participem dessa lógica, não só do processo de produção, mas em todo o ciclo da economia solidária e sustentável, na formação de novos leitores, na divulgação e circulação dos livros e da proposta.

Passados mais de dez anos desde o surgimento da primeira cartonera, o que nos chama muito a atenção deste projeto é, justamente, a co-edição , na qual duas ou mais editoras cartoneras fazem uma parceria e publicam o mesmo livro. Assim, as editoras se fortalecem e se apoiam na divulgação de um determinado texto e autor em regiões diferentes, ou até mesmo, em línguas diferentes. São alternativas que mantém vivos não só o próprio objeto livro, mas também a ideia do trabalho coletivo. A Malha Fina Cartonera , editora criada na faculdade de Letras da Universidade de São Paulo, por exemplo, começou justamente com um projeto de co-edição com a Mariposa Cartonera e a Yiyi Jambo .






A Yiyi Jambo , uma das cartoneras mais representativas no país, e que já publicou Wilson Bueno, Josely Vianna Baptista, Manoel de Barros, Ricardo Aleixo, entre outros grandes, foi fundada em 2007, por Douglas Diegues, já bastante conhecido pelo seu trabalho literário de produção e tradução com o portunhol selvagem, uma língua de fronteira (e também de resistência) entre o português, espanhol, guarani, inglês e o que mais tiver graça. Em entrevista pessoal, Douglas me conta, em seu característico portunhol selvagem, que dois de seus livros saíram nesse processo de co-edição: “O livro Triple frontera dreams saiu em versión pocket por Yiyi Jambo, Katarina Kartonera y Eloisa Cartonera . Depois foi lançado o Tudo lo que você non sabe es mucho más que todo lo que você sabe por seis cartoneras de seis países diferentes: México, Chile, Peru, Argentina, Espanha e Brasil”.
A Yiyi Jambo possui sede própria em Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul, e disponibiliza para quem quiser chegar um belíssimo acervo cartonero. “É uma delícia fazer um livro de poesia cartonero com las propias manos. Las capas nunca se repetem. Y los livros não tem preço: podem custar entre 10 reais y 5 mil reais. Você põe o preço. Quem quiser pagar, que lo pague. És uma arte muito livre.” – comemora Douglas Diegues.
É bastante comum que os livros tenham preços flexíveis, quando falamos de cartoneras. A Dulcinéia Catadora , por exemplo, pede somente sete reais por livro. Não é nada comparado ao preço de um exemplar nas grandes lojas e livrarias do país. Hoje, há editoras cartoneras com inúmeras propostas: de ampliar o discurso ideológico em relação a questões de gênero ou de classe, por exemplo; de fortalecer o ensino de literatura e artes nas escolas, com uma proposta educativa integrada à comunidade; de trabalhar com indígenas ou algum setor específico da população, para que, dessa forma, o livro não só dê voz às pessoas que antes não eram ouvidas, mas para que a leitura alcance um público que também não tinha acesso ao material, etc. Se cada livro é único, cada leitura também é.
O controle do número de editoras cartoneras na América Latina praticamente se perdeu: O movimento coletivo ganhou muita força e não há um só país da América sem ao menos uma cartonera fazendo a diferença. Alguns nomes são: Sarita Cartonera, Yerba Mala Cartonera, LuzAzul, Patasola Cartonera, Santa Muerte Cartonera. Na Espanha (e não só por lá), existe inclusive um movimento de montar essas cartoneras dentro do sistema carcerário. A penitenciária de Zaragoza é uma delas.
Ali, além do livro montado pelos internos, o texto também é escrito por eles: uma série de antologias de poemas, contos e crônicas já foram produzidas e distribuídas em todo o país. A França é um dos países da Europa que mais abraçou a ideia: há coletivos cartoneros nos país inteiro, sendo as mais conhecidas Cephisa Cartonera, La guêpe e a Babel para o personagem José Arcadio, do romance “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel García Márquez no princípio era o pêndulo arrefecendo suspeitas depois a prodigiosa ordem a trotar na assombrosa mecânica do mundo desfeitas as perfeições em nome da semelhança criou-se no tumulto a crença insepultável num deus infotografável com um cheiro de alfazemas agora diante de um pelotão de fuzilamento aprendeu: o amor não cura aflições. nasceu em Marabá, no Pará. É poeta e professor e já publicou diversos livros, também coordena alguns projetos voltados à promoção do livro e leitura.
Cartonnière . Na Suécia, a Poesía com C surgiu surpreendente; em Moçambique, a Kutsemba Cartão é a cartonera mais conhecida, e até na China o movimento já se estabeleceu: a Mil Hojas cartonera Sobre a proporção que as editoras cartoneras estão tomando no mundo, Douglas Diegues diz: “La editoras cartoneras podem contribuir muito ainda com la desmistificación de la literatura, de la lectura y del livro. Podem salvar la vida de muitas pessoas também. Podem trazer mais liberdade para el arte de publicar livros. La coisa está apenas começando y después del libro cartonero, los livros nunca mais serão los mesmos”.
Já não há mesmo dúvidas de que os livros nunca mais serão os mesmos. As cartoneras chegaram para ficar, para fincar e resistir.
Sarau
faço leituras noturnas em voz alta, bem pausadamente, para todas as cadeiras de minha casa.
o silêncio nelas é como o homem nelas, em ruídos de pausa já não se arrasta no chão


Vinícius Mahier natural de Campo Belo (MG), é graduando em Letras pela UFSJ. Escreve em nopasseiointimo.blogspot.com. “ Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo ”.