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Literatura, Resistência e Desobediência
É preciso estar atento e forte Não temos tempo de temer a morte (Caetano Veloso)
Vivemos dias de retrocesso em nosso país. O recente golpe de Estado não só criou uma instabilidade política e social, como trouxe ao poder forças conservadoras, ansiosas em retirar ainda mais direitos: sociais, trabalhistas, econômicos e culturais.
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Esta não é uma publicação política, nem partidária, embora Drummond já tenha antecipado que o nosso tempo é tempo de partidos, de homens partidos . É uma publicação literária, mas decidimos (mesmo correndo risco de alguma censura, já que é uma publicação com patrocínio - para os números 11 e 12 - da Secretaria de Estado da Cultura do Estado de São Paulo) marcar nossa posição: desejamos um país melhor e mais justo para todos e todas.
Resistir e Desobedecer , nossos temas amplos, gerais e irrestritos em quase 100 páginas dedicadas à poesia e a alguns questionamentos sobre literatura e cultura.
Aproveitamos para agradecer a todos e todas que durante o último ano nos enviarem textos e poemas (recebemos centenas de colaborações de todo o país).
Desejamos ótimas leituras e, principalmente, diálogos e encontros entre aqueles que acreditam que amar e mudar as coisas ainda nos interessa mais.
por Edison Veiga fotografia Ninil Gonçalves
“Procurar novos poetas hoje é um ato de resistência: contra a massificação, contra o aparelhamento, contra os grupinhos que se formam na literatura.”
A frase vem de um dos sujeitos que mais entendem dessa decantação assimétrica do joio de tantos tipos de trigo na poesia contemporânea: Frederico Barbosa, 56 anos, que foi diretor da Casa das Rosas – Espaço Cultural Haroldo de Campos de Poesia e Literatura por quase 12 anos e, desde meados de 2016, coordena as atividades culturais do Instituto Equipe. Frederico Barbosa, 56 anos, sobretudo poeta – dos grandes, com Jabuti na estante e uma bibliografia consolidada.
Seguinte: o Edu [Eduardo Lacerda, editor da Patuá e deste Casulo, dono da Patuscada, e amigo deste entrevistador] disse que o tema do jornal vai ser resistência...
Vou dizer um poema do Lau Siqueira, chamado ‘Aos Predadores da Utopia’. Sei de cor. “Dentro de mim/ morreram muitos tigres.// Os que ficaram/ no entanto/ são livres”. Este é poema. Acho o mais significativo poema dos poetas de minha geração. É muito forte. E tem muito a ver com essa questão da resistência. É do cacete. Quantos tigres não morreram dentro de mim? Quantas decepções recor- rentes em todos os sentidos – politicamente, literariamente, pessoalmente? É um poema que diz muito.
Encontrar novos poetas é um ato de resistência por si só?
Seg uramente. Talvez pelo fato de que na literatura todo mundo perde, ninguém ganha dinheiro com poesia mesmo. Então as pessoas querem pelo menos o reconhecimento. Aí usam grupos como artifício e vem as autopromoções.
Como identificar alguém que realmente faça literatura – discernindo-o daquele que apenas gosta de escrever?
É difícil. Em primeiro lugar, acredito que ele tem de aceitar a ideia de discutir seus textos. Porque nenhum poeta nasce pronto. Todo mundo aprende. A primeira coisa é ver se a pessoa é capaz de discutir o texto, se consegue receber bem a crítica. Mas não tem nenhuma fórmula. Eu detesto fórmula. Tive um professor que dizia que poema bom é aquele que tem muita carga metafórica. Eu rebati que então [o músico] Wando [1945-2012] era o melhor poeta do mundo. Afinal, em sua música ‘Fogo e Paixão’ ele nos apresenta uma sucessão de metáforas sem fim, mas na verdade uma sucessão de lugares comuns.
O que é um bom poema, então?
Existem vários fatores. É preciso ver como a linguagem é articulada nele, qual sua capacidade para surpreender o leitor, como ele trabalha com a sonoridade, o ritmo, enfim, existem vários critérios.
Critérios um tanto subjetivos para um crivo que vem sendo perpetrado pelos grupinhos...
Sem dúvida. Em 1949, quando o [filósofo] Albert Camus [1913-1960] veio ao Brasil, pediram para que o maior poeta do Brasil na época o recebesse no Rio de Janeiro e o levasse a conhecer a cidade. Naquele ano, todos os grandes modernistas, com exceção do Mario [de Andrade, morto em 1945], que morreu muito jovem, estavam vivos. Quem foi o cicerone do Camus? Um sujeito chamado Augusto Frederico Schmidt, um poeta que ninguém mais lê. Era um poeta importante na época, mas muito fraco. Por outro lado, era milionário e dono da editora Schmidt, que publicava todos os outros caras. Ou seja: tinha muita influência.
De certa forma, exemplos que persistem em todas as épocas...
Sem dúvida. Veja o Paulo Bomfim. É um poeta horrível, que não faz o menor sentido. A única vez em que concordei de fato com o Mário Chamie [1933-2011] foi quando eu administrava a Casa Guilherme de Almeida e tive de participar de um evento na Academia Paulista de Letras. O Guilherme de Almeida [1890-1969] também foi um poeta muito fraco, de quinta categoria; por outro lado, era um tradutor interessante. Pois o tal evento era uma homenagem a ele. Bomfim começou a falar sobre o Guilherme de Almeida. Mário se levantou no meio e soltou um “nunca ouvi tanta bobagem junta”, pegou suas coisas e foi embora. Quase que eu fui embora também.
A Academia, como instituição, é a resistência desse status quo, da pose literária?
No mundo das academias predomina a mediocridade. Ali, as pessoas incensam os poetas, só que por outras razões. Não porque são grandes poetas, mas porque o cara é juiz, é importante do judiciário e tal, e por aí vai.
O mundo literário está cheio de poetastros...
Neste momento deve haver alguém elogiando a verve poética de nosso presidente ilegítimo [Michel Temer, do PMDB, que publicou o livro ‘Anônima Intimidade’ em 2012, quando ainda era vice-presidente]. Deve ter gente dizendo que ele é o maior poeta do mundo... Esse clubismo generalizado é péssimo para a literatura, as pessoas só leem os amiguinhos. O cara acha que o Paulo Bomfim é um bom poeta porque o conceito que ele tem de poesia é aquele.
No meio desse contexto, como é buscar os verdadeiros poetas?
Buscar gente boa me dá muita alegria. Também me dá muita alegria ajudar gente boa. Eu também tive ajuda de gente importante. Quando eu tinha 15 anos, comecei a escrever poesia e tinha em casa um grande leitor, um dos melhores que este País já teve [Frederico é filho de João Alexandre Barbosa, 1937-2006, ensaísta e crítico literário]. Hoje em dia, o advento da internet ajudou na busca de novos autores – antes, só se lia quem você conhecia ou quem já tivesse sido publicado.
Quem foram seus grandes incentivadores, além do seu pai?
Aos 15, tinha um professor chamado Gilson Rampazzo, que até hoje faz o Laboratório de Redação do Colégio Equipe. Ele não gostava de tudo, era muito rigoroso, e tentar fazer algo que ele julgasse bom passou a ser meu parâmetro. Eu tive um círculo muito privilegiado por conta das amizades de meu pai. Outra referência era o poeta Sebastião Uchoa Leite [1935-2003]. Eu ia ao Rio e ficava na casa dele, mostrava meus poemas – e suas críticas eram sem o menor tato, ele dizia quando achava que estava uma porcaria; era bom porque eu sentia que ele me levava a sério como escritor. Já o [tradutor, escritor e ensaísta] Boris Schnaiderman [1917-2016] foi o primeiro a publicar um poema meu, em uma revista que ele editava. O [poeta] Haroldo [de Campos, 1929-2003] também leu vários poemas meus, conversava sempre comigo sobre poesia e tal. Tive o privilégio de ter essas pessoas em torno de mim. Deste caldo veio minha formação. Por isso que não nego minha opinião quando novos escritores me procuram. Mas a pessoa precisa se despir do ego, ter a maturidade para entender que eu estou falando do texto e não dela. Infelizmente, muitos autores têm dificuldade de discernir essas coisas; há quem se ofenda, fique com raiva.
A poesia é um time?
Eu estava lançando um livro em 2001 e o poeta Ulisses Tavares voluntariosamente começou a espalhar convites, chamar pessoas. Quando disse a ele que não estava entendo o motivo de tamanha ajuda, ele rebateu com uma frase lapidar: “Na estreita praia da poesia, a vitória de um é a vitória de todos”. Adorei essa frase e é muito verdade. Se você levantar aqui [estávamos em um restaurante no bairro das Perdizes] e perguntar quem lê poesia, não vai ter ninguém. Mas, no meio literário, fica todo mundo brigando. Eu aprendi uma coisa com o melhor goleiro da história do futebol mundial [Marcos, que defendeu o Palmeiras ao longo de toda a sua carreira]. Na época, o Palmeiras vivia uma péssima fase, priscas eras em que ainda não éramos eneacampeões nacionais. Aí o time tinha perdido 10 jogos seguidos e um repórter perguntou a ele se o problema era que os jogadores não se davam bem. Ele respondeu que, pelo contrário, todos eram amigos, o clima era ótimo – o problema é que quando o time perde, as brigas aparecem; e não são as brigas que causam as derrotas. Isso tem a ver com a poesia: é um time que só perde, porque é algo que não tem valor para esta sociedade consumista, capitalista. Então é um time fadado ao fracasso, sempre. [por WhatsApp, dias depois, Frederico complementou: “A poesia é o Íbis da cultura. O pior time do mundo, com os jogadores mais maus-caracteres.”]
Há um cerceamento dos gostos, em se tratando de literatura?
Sempre gostei demais do Augusto [de Campos]. Acho que ele é o maior poeta vivo deste País e concorre com João Cabral [de Melo Neto, 1920-1999] e Gregório de Matos [1636-1696] ao posto de maior poeta que o Brasil já teve. Muitos não entendem e me criticam por esta escolha. Certamente se minha paixão fosse um Drummond [Carlos Drummond de Andrade, 1902-1987], um poeta que eu sempre curti mas que é mais unanimidade nacional, eu não teria tanta oposição, afinal é quase impossível você encontrar alguém que não goste de Drummond. Por outro lado, eu não consigo entender como alguém gosta de Adélia Prado. Não acho nada, não consigo achar poesia no que ela escreve. Se alguém conseguir me provar que ela é uma ótima poeta, eu vou agradecer porque vai me acrescentar algo, vou ficar feliz. Mesma coisa com o Ferreira Gullar [1930-2016], que eu acho medíocre. Mas do jeito que as coisas são, o texto acaba virando só um pretexto para aparecer. Então chega um ponto em que o Frederico Schmidt é considerado melhor do que um Drummond, um João Cabral. Aí não dá... Tudo por causa das relações pessoais.
Mas é preciso resistir. É preciso resistir?
A questão da resistência é muito mais “resistência pelo texto” do que qualquer outra coisa. Eu já falei que hoje em dia estou numa fase em que não quero mais ajudar ninguém. Porque eu me sinto traído por várias pessoas que eu ajudei, que buscam me esconder, como se fosse demérito. Eu falar que o Sebastião me ajudou, que o Haroldo me ajudou, isso por acaso tira os meus méritos? Não consigo achar isso. As pessoas querem achar que todo mundo é self-made man.
Escrever é resistir?
Tem vários poetas contemporâneos hoje que acham que ser poeta é ficar no bar, beber e escrever sobre isso. Gente que quer ser o [Charles] Bukowski [1920-1994] do século 21 mas o texto acaba sendo só um pretexto. É o mesmo que o cara tomar LSD e achar que vai tocar guitarra como o Jimi Hendrix. Sob tal efeito, é capaz de ele achar mesmo, mas só ele. O Hendrix era bom pra caramba não porque tomava LSD, mas porque treinava, vivia para isso. É o mesmo com a literatura.
Qualquer um pode ser poeta?
Sim. Eu não acredito em dom, eu não acredito em talento. Para mim, é trabalho, é treino. Acredito que qualquer um pode ser até Picasso, se quiser. As pessoas gostam de dizer que existe dom e talento para não sofrerem. Do ponto de vista da literatura, acho que a primeira coisa que um pretenso autor precisa se perguntar é por que ele quer escrever. Se for só uma questão de ego, melhor desistir. Se for só para mostrar ao mundo o que sente, também.
Por que você escreve?
Eu não escrevo por nenhuma razão boa. Minhas razões são sempre ruins. O [Ignácio de] Loyola Brandão falava que, para ele, escrever era se vingar, porque ele não era bom em esportes, não era o mais bonito da escola, não era o mais legal. A ele, sobrava a literatura. E ele precisava se vingar de algum jeito. Eu concordo.