
6 minute read
Meioameio
Enquanto lá no Olival, o Visconde procurava meios de matar o tempo, na cidade de Micenas Hércules acolhera muito bem o conselho de Emília e estava se preparando para a mudança. — Sim, o campo aberto… O ar livre… Os horizontes… As carneiradas… Esse ambiente para uma criatura excepcional como o herói, no qual tudo era imenso — as cóleras, as lutas, o apetite, as venetas… Hércules só se sentia bem quando solto na plena e larga natureza. Partiram. Pedrinho na frente trotava no gracioso potro semi-humano, com Emília e a canastra no colo. Hércules vinha atrás, a sorrir, com os olhos no lindo quadro. Ele já estava querendo bem àquelas criaturas do século XX. E como as admirava! A inteligência daquele menino, a habilidade e a esperteza de Emília, a ciência do seu escudeiro saído em busca da pele do leão… Notável, tudo notável… E Meioameio era também um encanto.
50 Hércules sempre vivera em luta com os centauros, já tendo abatido muitos. Mas pela primeira vez via bem de perto e a cômodo um desses entes, e conhecia-o na intimidade, e nada encontrou em Meioameio que justificasse o seu antigo ódio aos centauros. Sim, se eram uns brutos, isso vinha apenas da falta de educação. Que diferença entre eles e os homens também sem educação? E Hércules, com toda a sua burrice, “teve uma ideia”, talvez a primeira ideia de sua vida: que é a educação que faz as criaturas. Saídos da cidade, Hércules tomou certo rumo e foi ter a uma bela campina a duas léguas dali. Topografia ondulante, belos trechos de floresta nas baixadas, pasto rasteiro nas mansas encostas. Um rio de águas cristalinas passava por ali. — Que lindo ponto para uma fazenda! — exclamou Pedrinho. — Se fossem minhas estas terras, eu erguia a casa naquele tope — e indicou certa elevação a pouca distância do rio. Hércules chegou até à margem e bebeu pelas mãos em cuia. Bebeu como um elefante. Pedrinho teve a impressão da existência dentro dele de verdadeira “caixa-d’água” — e para enchê-la só mesmo nos ribeirões. Beber e comer. Hércules tinha bebido, precisava agora comer. O seu apetite estava já de bom tamanho. Pôs-se a sondar os longes daquela pradaria. Não tardou a sorrir: tinha visto um rebanho de carneiros. — Lá está o meu almoço — disse ele; e voltando-se para o centaurinho: — Vá lá e me traga três carneiros de bom ponto. O centaurinho partiu no galope. Emília estranhou aquela sem-cerimônia. — Como vá lá e traga? — disse ela. — Aqueles animais têm dono. Quem quer carneiros, compra-os. Não entendo esta moda aqui na Grécia. Hércules deu uma risada hercúlea. — Ah, ah, ah… Comigo é assim. Quando quero, pego. Isso de comprar as coisas com dinheiro é para os que não podem pegá-las. — E não acontece nada?
— Claro que não — respondeu o herói. — Lá no Olival, por exemplo: que aconteceu depois que comi os três carneiros? Nada. Pedrinho entrou na conversa. — Sim, mas isso foi porque eu paguei os carneiros. Hércules fez cara de surpreendido. — Com que moeda? — Dei em troca dos carneiros o meu canivete Rodger, afiado que nem navalha. Hércules comoveu-se ao saber daquilo. O pobre menino sacrificara uma prenda querida para sanar a brutalidade que ele, Hércules, havia cometido, qual a de tomar os carneiros sem consentimento do dono. E sentiu que aquele menino já era um produto da educa ção que a ele, Hércules, faltava. A ideia da educação que momentos antes havia concebido estava a aperfeiçoar-se em seu cérebro. E Hércules disse: — Estou achando bonito esse sistema de respeitar o que é dos outros. Bonito, sim. Só hoje botei o pensamento no caso, e aprovo. E se ainda fosse criança como você, era o caminho que eu ia seguir. Na idade que tenho já não posso mudar. Muito difícil… — Quer dizer que vai continuar pegando o que quer sem dar satisfação ao dono? — Sim. — Por quê? — Porque é tarde. A varinha nova, o jardineiro verga e lhe dá esta ou aquela forma, mas que jardineiro dá forma ao tronco duma oliveira velha? Meioameio havia alcançado o rebanho e abatido a coices três carneiros. Os outros fugiram por aqueles campos, tomados do maior pânico. Nada mais imprevisto que a aparição de um centaurinho. Minutos depois Meioameio chegava com os três carneiros às costas. Jogou-os aos pés do herói. Hércules sorriu o bom sorriso da fome que vê chegar o prato. Mas

54 na hora de abrir os carneiros surgiu uma dificuldade. Não havia faca e Pedrinho estava sem o seu precioso canivete. Que fazer? Emília salvou a situação. — Tenho na canastrinha uma lâmina Gillette — e foi buscá-la. Quando a apresentou a Hércules, o herói arregalou os olhos. — Que é isto? — Uma lâmina boa para abrir carneiros — respondeu Emília. Hércules tentou pegar na lâmina, mas deixou-a cair. Fina demais, delicada demais para aquelas mãos tremendas. E veio-lhe uma risada hercúlea. — Ah, ah, ah. Então quer você abrir os carneiros com esta coisinha tão mimosa? Que bobagem! Mas Pedrinho ia mostrar que não era bobagem. Apesar da sua velha repugnância pelo sangue, foi ele quem abriu os carneiros. Só fez isso. O resto, a tirada da pele e das entranhas, foi serviço do centaurinho. — Por que não trouxe quatro? — perguntou-lhe Hércules. — A ordem foi para três — respondeu o obediente Meioameio, que também estava com fome e esperançoso de que pelo menos um quarto de carne Hércules lhe daria. E foi o que aconteceu. Depois de assada toda aquela carnaria, o herói mediu Meioameio de alto a baixo e disse: — Para você um quarto basta — e deu-lhe um quarto de carneiro. — E você, Pedrinho? E você, Emília… Sirvam-se. Pedrinho e Emília juntos comiam tão pouco em comparação com os seus companheiros, que Hércules arregalou os olhos ao ver o menino tirar a sua parte. — Só isso? — Isto me enche o papo por um dia inteiro, e ainda sobra para encher o papinho da Emília… Foi um regalo aquele almoço ao ar livre, à margem do ribeirão de águas cristalinas. Hércules confessou jamais ter comido uma carne tão deliciosa.
— Que fizeram vocês neste carneiro que ficou tão bom? — perguntou. — É que trouxemos da cidade uma boa dose de sal — respondeu Emília. — Nós dos tempos modernos não comemos carne sem sal. Hércules nunca prestava atenção a essas pequeninas coisas, e muitos bois e carneiros assados comera sem sal nenhum. Agora estava verificando como a carne melhora com o salgamento. Vendo aquilo, Emília suspirou: — Ai que saudades… — De quem, Emília? — De Tia Nastácia. Estou imaginando o maravilhoso assado que ela faria com estes carneiros, se estivesse aqui conosco. Ah, aquilo é que é cozinheira. Hércules interessou-se pelo assunto. — Quem é essa dama? — Não é dama nenhuma — respondeu Emília. — É simplesmente Tia Nastácia, a maior quituteira do mundo — e tais coisas contou das proezas culinárias da negra, que um fio d’água começou a pingar da boca do herói e do centaurinho. — Um dia há de conhecê-la, Senhor Hércules. Não perco a esperança de vê-lo aparecer lá pelo Picapau Amarelo. Lembre-se de que já me prometeu.

