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A pele do leão

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Os centauros

Os centauros

 Lá pelo fim do sexto dia estavam sentados à beira do ribeirão, na prosa de todas as tardes, quando subitamente um animal estranhíssimo “apareceu” a certa distância. Não veio de outro lugar, não foi chegando como um animal comum. Apareceu! E pelo aspecto não lembrava nenhum animal conhecido. Tinha um vago jeito de leão, por causa da juba, mas um leão desengonçado, com as patas bambas, ou melhor, com oito patas: quatro exteriores, enormes, bambas, verda deiras patas de leão, e outras quatro mais delicadas e firmes como as dos carneiros. — Que estranho monstro será aquele? — exclamou Hércules, passando a mão no arco.  Foi Emília quem adivinhou.  — Já sei! — berrou ela antes que o herói lançasse a flecha. É a pele do Leão da Lua!…

58  Hércules não entendeu.  — Como? Que história é essa?  — Sim — respondeu Emília. — O Visconde estava atrapalhado com o problema de trazer a pele e eu então dei essa ideia: “Você costura a pele em cima dum carneiro dos maiores e esfrega-lhe no nariz uma dose do pirlimpimpim. Ele vem voando e com ele a pele”. Juro que é isso — e correu na direção do estranho animal.  Exatamente. Era um carneiro revestido duma pele curtida; e agarrado ao pelo da juba, uma esquisita aranha: o Visconde de Sabugosa! Tinham vindo juntos os três: o carneiro, a pele e o sabugo. Mas o Visconde ainda estava desacordado. Voltou a si nos braços da Emília.  — Coitadinho… Deve estar sofrendo do coração. Já custa a sair do desmaio do pirlimpimpim…  Pedrinho descoseu a pele do leão e soltou o carneiro, que permaneceu bobo e apalermado a ponto de nem sair do lugar. Hércules aproximara-se. Tomou a pele. Examinou-a.  — Ótimo! Desta vez Euristeu vai dar-se por convencido… — e jogou a pele sobre o ombro.  Desde aquele momento nunca mais iria o herói abandonar a pele do Leão da Nemeia. Passou a usá-la como escudo, e de muitos golpes esse escudo o livrou, porque era invulnerável. Pedrinho verificou esse ponto. Não conseguiu abrir nela nem sequer um furo com a ponta das setas de Hércules.  Como então o seu canivete a cortara naquele dia? Podia ser por muita coisa. Talvez a invulnerabilidade “cochilasse” naquele momento e fosse apanhada desprevenida. O caso é que a pele “vulnerável” do dia da morte do leão estava de novo “invulnerabilíssima”.  — Bom. Tenho de voltar a Micenas para apresentar isto ao rei.  — Eu, se fosse você — disse Emília —, não apresentava nada. Ia chegando e esfregando a pele na cara dele. Aquele rei antipático o que precisa é disso: uma boa esfregação de pele nas fuças…

 Hércules lá se foi com a pele ao ombro.  O Visconde viu-se imediatamente rodeado e especulado. Todos queriam saber das suas aventuras no Olival.  — Aventura no Olival não tive nenhuma, mas de caminho para lá aconteceu-me a coisa mais inesperada e prodigiosa…  — Que foi? — indagaram todos na maior ansiedade.  O Visconde gozou aquilo e não teve pressa em contar. Queria irritar-lhes ainda mais a curiosidade.  — Ah, uma coisa que nem queiram saber. Uma coisa tremenda!…  Emília, indignada, agarrou-o pelo pescoço.  — Conte já tudo, depressa, se não eu o depeno…  O Visconde contou.  — De caminho para lá caí em cima do telhado dum palácio…  — Como? Então errou no cálculo da pitada?  — No cálculo não errei, mas agora me lembro que no momento de aspirar o pó você deu uma cotoveladinha sem querer. Bastou isso. Uns grãos de pó caíram e eu não aspirei a pitada certa. Resultado: em vez de aterrissar no Olival, aterrissei no telhado do palácio de um rei…  — Como há reis nesta Grécia! — observou Emília. — Até parece livro de contos da carochinha…  — Aterrissei no telhado e resolvi espiar… — e o Visconde contou tudo quanto vira no palácio do rei Polidectes, e foi contando, até referir-se à cabeça da Medusa.  Ao ouvir essa palavra, Pedrinho arrepiou-se, pois sabia da história.  — A cabeça da Medusa? — exclamou ele. — Pois teve Perseu a coragem de espontaneamente oferecer ao rei a cabeça dessa Górgona, em vez de um simples cavalo como os outros?  — Ele estava bêbedo — resolveu Emília.  — Pois ofereceu — continuou o Visconde. E contou tudo: a saída de Perseu para fora da cidade, suas meditações lá na praia, sentado no rochedo; o aparecimento de Hermes…

60  Ao falar em Hermes, Emília perguntou:  — Ainda usa aquelas asinhas nos pés?  — Sim — respondeu o Visconde —, e também inventou uma moda de asinhas no capacete. Mas apareceu Hermes, sentou-se ao lado dele e…  E o Visconde contou tudo quanto já sabemos. Ao chegar ao ponto da entrada de Perseu na casa da Medusa, descreveu com cores tão vivas a cabeça do horrendo monstro que Emília desmaiou…  — Olhe o que você fez, Visconde! — ralhou Pedrinho, amparando-a. — Emília já não é aquela mesma de outrora, do tempo de boneca, quando não tinha nem uma isca de coração. Virou gentinha e das que têm coração de banana…  Mas não demorou muito o desmaio da criaturinha. Com uns borrifos d’água voltou a si.  O Visconde contou o resto, mas sem carregar muito nas cores, de medo de outro desmaio.  — E foi assim — concluiu ele —, que tive a sorte de ver o que ninguém no mundo viu. Ver, ver, ver… Ver a Medusa viva, dormindo! Ver o herói cortar-lhe a cabeça dum só golpe, antes que ela tivesse tempo de abrir os olhos petrificadores. E vê-lo botar aquela cabeça de cabelos de cobra dentro do surrão mágico… Tudo isso eu vi, e ninguém no mundo viu nem verá. A minha maior glória vai ser essa…  A curiosidade em torno de tão prodigiosa aventura não se satisfez com a narrativa do Visconde. Emília reclamava detalhes.  — Como era a inserção dos cabelos-cobras?  — Tinham a cauda enfiada no couro cabeludo.  — E moviam-se, esses cabelos-cobras?  — Logo que entramos, Medusa estava dormindo e as cobras também. Mas depois que Perseu a decapitou, as cobras acordaram, assanhadíssimas, e não pararam mais de se mover dum lado para outro.

 — Com as bocas e as línguas de fora?  — Sim. Umas boquinhas muito vermelhas e aquelas linguinhas nervosas.  — E os olhos da Medusa?  — Não pude vê-los, porque a encontrei dormindo. Mas são muito redondos.  — E petrificavam as pessoas…  — Sim, isso posso atestar. Ali pelas redondezas do antro da Medusa vi muitas estátuas de pedra estranhíssimas, cada qual numa atitude de ataque. Uma tinha o braço erguido, no gesto de quem vai arremessar uma lança. Outra era a dum bonito herói com o arco distendido e a flecha apontada. Outra era de outro herói com a clava no ar. Eu não entendi aquilo. Julguei que aquela paragem fosse algum grande parque em abandono, ainda cheio de estátuas de pedra. Depois compreendi tudo: eram os heróis que haviam procurado destruir a Medusa e que com um simples olhar dos seus terríveis olhos redondos ela transformara em pedra.  — Que horror! E quantas estátuas dessas viu lá? — quis saber Pedrinho.  O Visconde franziu a testa, como quem calcula mentalmente. Depois disse:  — Umas cem…  — Cem?…  — Talvez haja mais. Umas cem visíveis. Deve haver muitas outras ocultas pelo mato.  Pedrinho ficou cismativo. Estava ali uma coisa que ele queria ver: o parque de heróis petrificados pelo tremendo olhar da Medusa…  Depois mudaram de assunto. Pedrinho perguntou:  — E como se arranjou com o pastorzinho para que cedesse sem pagamento esse carneirão?  — Provei-lhe a maravilha que é o pó de pirlimpimpim e dei-lhe

62 uma dose. Mas tenho medo de que o bobinho haja desrespeitado as minhas instruções e a estas horas esteja a umas mil léguas de lá, em um século muito distante deste…  Estavam nesse ponto de prosa, quando Hércules apontou. Vinha de volta. Todos ficaram muito atentos, à espera das novidades.  — E então? — exclamou Pedrinho.  Hércules tinha o ar preocupado.  — Aconteceu exatamente o que eu receava — disse ele. — O rei mostrou-se visivelmente contrariado quando verificou que a pele era mesmo de leão e duma espécie de leão que não há na terra. Logo, só podia ser o leão caído da Lua. E então me disse: “Muito bem, grande herói. Vejo que é deveras valente e forte, e que há de gostar de sair ao encontro de inimigos ainda mais fortes que o Leão da Nemeia. Ordeno, portanto, que se apreste e vá destruir a Hidra de Lerna. Esse monstro anda a arrasar aldeias, e a fazer estragos horríveis. Informe-se de tudo e traga-me aqui as cabeças da hidra…”.  — E isso o preocupa, Hércules? — perguntou Emília.  — Sim, porque essa hidra tem nove cabeças, uma das quais imortal. Como um ente mortal como eu pode vencer um imortal?  Os picapauzinhos já haviam assistido a essa façanha de Hércules e pois não compartilhavam dos receios do herói. Mas nada disseram. Seria a maior das complicações explicar-lhe a história da primeira estada deles ali naquela mesma Grécia Heroica. E Emília disse:  — Ótimo. Pois vamos atrás dessa porcaria de hidra. Juro que Hércules vai matá-la bem matada e limpar aqueles pântanos de Lerna de tão horrendo monstro. Mas como essa aventura não nos interessa, apenas o acompanharemos até lá; e enquanto ele mata a cobra, nós brincaremos de pega-pega com Meioameio.  E assim foi. Partiram dali para Lerna só fazendo pouso para dormir e comer.

 Quando avistaram os pântanos, Pedrinho disse:  — Amigo Hércules, como a aventura da hidra não nos seduz, vamos acampar aqui, e aqui ficaremos à sua espera. Vá, mate a hidra e em seguida venha ter conosco. Nós o esperaremos com três carneiros assados.  Hércules afastou-se, muito triste de ter de deixar a companhia de seus novos e preciosos amigos. De vez em quando voltava os olhos para trás. Da última vez que o fez pareceu-lhe que estavam inventando um brinquedo novo. E era verdade. Emília havia dito:  — Chega de cartola! Isto não passa dum pedaço queimado. Temos de variar. O brinquedo de hoje vai ser a “ciranda-cirandinha” — e ensinou a Meioameio como era.  O centaurinho vivia no maior enlevo. Lá no rebanho ele era o único da sua idade, de modo que vivia sorumbático por falta de companheiros de brinquedo. Mas ali, oh delícias! Emília, uma louca no brinquedo, chegava até a ficar fora de si. Pedrinho não o era menos, e o Visconde, no seu começo de loucura heroica, dera de brincar com tal espetaculosidade que chegou a dar na vista.  — Pedrinho — cochichou Emília —, não acha que o Visconde está se excedendo?  — Sim, acho que está muito mudado e que continua a mudar…  — Pois isso está me preocupando bastante — confessou Emília. — Ele também é um heroizinho e todos os heróis passam por um períod o de loucura. Não viu Dom Quixote?  — É verdade, sim, Emília. Dom Quixote, Rolando, e até o nosso amigo Hércules, quase todos os heróis enlouquecem. Sobre a loucura de Rolando até há aquele célebre poema de Ariosto que vovó tem lá numa edição de luxo, com desenhos de Gustavo Doré, “Orlando furioso”. Orlando é o nome de Rolando em italiano.  Dali a pouco estavam na ciranda-cirandinha, e quem cirandava com maior fúria era justamente o Visconde de Sabugosa, o

ex-grave e cartoludo sabinho lá do Sítio. Até nem mais de cartola andava. Com um pontapé havia jogado a velha cartolinha nos pântanos de Lerna, berrando:  — Chega de cartola! Isto não passa dum pedaço de canudo de chaminé com abas. Por que cartola? Para que cartola? — e pôs-se a dançar uma rumba…

Como Emília explicou, a luta de Hércules contra a Hidra de Lerna  é “coisa já vista e contada”, pois na primeira vez que visitaram a  Grécia os picapauzinhos assistiram a esse trabalho do herói. Para  que você também possa saber como foi o combate, leia a seguir um  trecho do capítulo dezesseis de  O Minotauro em que ele é narrado.

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