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A cabeça de Medusa
Nas aventuras heroicas é o mesmo que na vida comum moderna. O meio de conseguir qualquer coisa é descobrir o jeito. Medusa abusava do seu poder porque até então só heróis pouco espertos tinham ido combatê-la. Atacavam-na como se atacassem uma fera qualquer — e iam ficando reduzidos a estátuas de pedra. Com Perseu não ia ser assim, porque aprendera o jeito certo e único. O caminho para a mansão de tais Ninfas era dos mais complicados. Tomava por ali, virava acolá, torcia à esquerda, agora à direita. Só mesmo seguindo um roteiro escrito como o que as Greias haviam dado a Perseu. Afinal o herói chegou e pediu as três coisas. As Ninfas não opuseram a menor resistência. Parece que tinham ordem de entregar aquilo ao primeiro que alcançasse chegar até lá.
42 O Visconde, sempre rente, espiando tudo, com muitas cautelas para não ser visto. Medo do jardim zoológico… A lua estava quase no fim de seu curso. Mais uns momentos e o sol a substituiria no céu — coisa que para o Visconde era o diabo. Vinha daí o seu interesse em que o herói concluísse a aventura da Górgona antes do amanhecer. E lá ia ele trotando atrás do herói já na posse dos três preciosos objetos. Não ficava muito longe a casa ou o antro de Medusa. Anda que anda, trota que trota, chegaram. Perseu espiou. Medusa estava dormindo despreocupadamente. Que horrenda era! Apesar de valoroso, o Visconde sentiu-se de pernas bambas. Teve de agarrar-se à parede. Perseu foi entrando com as maiores cautelas, apesar de ter na cabeça a coifa que o invisibilizava. Quando chegou à distância própria, tirou a faca da cintura e com um golpe de mestre decepou a cabeça do monstro. Em seguida meteu-a no surrão. Pronto! Estava realizada uma das maiores façanhas da Antiguidade. O Visconde teve ensejo de ver bem como era a tal famosa cabeça da Medusa. Os olhos não viu, porque ela os tinha fechados: morrera dormindo. Mas viu-lhe os cabelos de bronze entremeados de cobras. Era um verdadeiro ninho de cobras, das quais só apareciam a cabeça e metade do corpo. As caudas ficavam inseridas no couro cabeludo, como raiz de cabelo. Horrendo, horrendo… Quando Perseu deixou o antro da Górgona decapitada, os dedos cor-de-rosa da aurora começavam a anunciar a vinda do sol. O Visconde pôs o dedo na testa. — Inútil continuar acompanhando este herói — refletiu consigo. — Já vi o principal. O resto vai ser a entrega da cabeça da Medusa ao rei, o qual ficará com cara de bobo, admiradíssimo da façanha de Perseu. Não preciso ver mais. E assim pensando, tirou da cintura o canudinho de pó de pirlimpimpim e mediu na palma da mão a dose necessária para ir dali
44 ao Olival. Feito o quê, aspirou-o, e pronto! Foi aterrissar diante da casinha. O pastor guardava as ovelhas lá no pasto, e tocava a mesma flauta daquele dia. O Visconde encaminhou-se para ele. Quando ia chegando, o cachorro o percebeu e pôs-se, com os pelos do dorso arrepiados, a recuar e a rosnar na linguagem do “medo ao desconhecido”, própria dos cães. O pastorzinho olhou. — Oh, a aranha de cartola por aqui outra vez? Que veio fazer? — Ver se a pele do leão já está pronta. Hércules tem de apresentá-la ao rei como prova de que, de fato, matou o leão. Do contrário o rei não acredita. — Pronta? — exclamou o pastorzinho. — Você pensa que isto de cu rtir uma pele grossa como a dos leões é coisa que se faça assim do pé para a mão? Leva tempo, meu caro. Leva ainda mais uma semana, pelo menos. — Uma semana? — repetiu o Visconde coçando a cabeça. — Isso no mínimo. Pode até levar mais. Depende. Nunca curti couro de nenhum animal da lua. É possível que sejam diferentes dos nossos aqui. — E que fico eu fazendo toda uma semana neste Olival? — perguntou o Visconde. — Isso é com você. Poderá ajudar-me na tosa dos carneiros, que vai começar amanhã. Poderá colher azeitonas… O Visconde não gostou de nenhum dos dois alvitres. Ia pensar sobre o assunto. De repente o pastorzinho olhou bem para ele e deu uma risada. — Escute, aranha. Diz você que veio buscar a pele do leão? — É verdade. Para isso vim. O pastor quase morreu de tanto rir. — Ah, ah, ah… Uma pulga de animalejo desse tamanho lá pode com aquele couro de leão, o maior que ainda vi? Ora vá se lavar…
O Visconde explicou-lhe a ideia da Emília: costurar a pele sobre um carneiro bem grande e dar-lhe a cheirar uma pitada do pó. — Que pó é esse? — perguntou o pastorzinho. O Visconde explicou pachorrentamente os maravilhosos efeitos do maravilhoso pó, mas não conseguiu convencê-lo. — Vá saindo com essas histórias! — disse o rapaz. — Pó… Pó… Cara de pó tem você, sua barata tonta! E, depois, se fosse verdade, então acha que me ia levando daqui um carneiro assim sem mais nem menos? Pensa que isto aqui é a casa da sogra, onde entra todo o mundo e todos fazem o que querem? Outro ofício. O Visconde explicou que tinha de ser assim, porque ou ele levava a pele do leão com um carneiro dentro ou Hércules danava e vinha buscá-la — e o pastorzinho bem sabia que, nesse caso, em vez de perder um carneiro ele iria perder três… O argumento valeu. Os melhores argumentos são os que ameaçam o bolso das criaturas. Foram ver se a pele estava no ponto. De caminho o Visconde perguntou: — Que tanino emprega? — Tanino? — repetiu o jovem grego, que pela primeira vez ouvia essa palavra. — Sim, o tanino de curtume… O pastorzinho engasgou. Ele não usava tanino nenhum para curtir couro, porque naqueles tempos esse processo ainda não fora inventado. O Visconde explicou. — Quando você morde certas frutas verdes, não sente uma coisa que “pega” na boca? Pois é o tanino da fruta. À medida que ela vai amadurecendo, vai o tanino se transformando em outras coisas; mas enquanto a fruta está verde o tanino é muito forte. Na banana verde, por exemplo. O tanino está ali em quantidade! Pois é esse tanino a substância que lá no mundo moderno os homens usam para curtir os couros crus, ou “verdes”, como dizem os técnicos. Os couros
são mergulhados durante um ou dois meses numa solução fortíssima de tanino, e ficam curtidos, isto é, não mais apodrecem, como o couro cru, e ainda se tornam impermeáveis à água e macios. Mas aqui? De que modo vocês curtem couros? Enquanto falavam iam andando de rumo ao “curtume”. O Visconde admirou-se. Era a primeira vez que via curtir couro pelo sistema do fumeiro. Havia uma cova no chão com muita lenha acesa, uma cova tampada de modo a canalizar a fumaça para uma abertura ou chaminé. E sobre a chaminé estava estendida a pele do leão, esticada por varas e mantida suspensa por quatro esteios. — Então é assim? No fumeiro?… — Exatamente. O pastorzinho examinou o estado da pele. — Ainda não está no ponto — disse. — “Ele” quer serviço bem feito. — Quanto tempo vai demorar? O pastorzinho apalpou o couro, cheirou-o, experimentou-o entre os dentes e com a ponta da língua. Depois respondeu com a maior segurança: — Seis dias. Em seis dias deixo isto uma beleza. O Visconde arrenegou. Ficar ali seis dias caçando moscas, a matar o tempo?… Se o pastorzinho fosse de mais cultura, esse tempo de espera não queria dizer nada. Mas que adiantava a um sábio como o Visconde conversar com um ignorante? E o Visconde pensou em Sócrates 11 . “Ah, se ele estivesse aqui! Até um ano eu esperaria, na prosa com esse grande filósofo, sem perceber a passagem do tempo.”
11 Sócrates foi um filósofo que viveu em Atenas no século V a.C.


