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O Visconde desgarra-se

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A pele do leão

A pele do leão

Ninguém notou o seguinte: quando o Visconde cantou o TRÊS e ia aspirando a pitadinha de pó, Emília, sem querer, esbarrou nele, fazendo que uns grãos de pó caíssem por terra. Coisa das mais insignificantes, que nem Emília nem Visconde perceberam — mas, bastou para que o Visconde, em vez de ir acordar no Olival, fosse acordar em ponto muito diferente: em Sérifo, um lugar que ele nem sabia onde era, e acordou bem em cima do telhado dum palácio.  Foi isso uma grande sorte, pois se caísse numa rua seria fatalmente caçado e levado para algum jardim zoológico. Todos ali na Grécia o achavam com muito jeito de aranha. Mas havendo, sem que ninguém o visse, aterrissado naquele teto, estava salvo — e se aspirasse uma pitadinha mais bem calculada iria parar no Olival.  Aconteceu, porém, uma coisa extraordinária. O Visconde era um sábio, e os sábios gostam de saber. Quis logo saber que telhado era aquele e quem morava no palácio. Algum rei?

34  O Visconde já de algum tempo andava transformado. Mudara muito. Perdera a casmurrice antiga, ria-se, dizia graças — e chegou até a dançar de contentamento — coisa que deixou Emília muito apreensiva. Pois essa mudança no Visconde estava se revelando também ali no telhado. Em vez de tirar da cintura o canudo de pó e tomar a pitadinha que o levasse ao Olival, só pensava numa coisa: levantar uma telha, esgueirar-se para o forro da casa e lá de cima espiar o que pudesse. Quanto à ida ao Olival em busca da pele do leão, nisso nem pensou.  O Visconde teve de fazer muita força para recuar uma das telhas. Suou para o conseguir. E passando pela fresta entrou no forro do palácio. Tudo bastante escuro ali, naquele intervalo entre as telhas do telhado e o forro propriamente dito. Mesmo assim encontrou várias rachinhas, pelas quais podia espiar o que se passasse lá dentro.  Era o palácio do rei Polidectes, o qual se achava celebrando um banquete por motivo de seu noivado com Hipodâmia. Nessa festa reuniam-se os principais chefes guerreiros do país e vários heróis — e ntre estes o grande Perseu. Estavam à mesa do banquete, muito alegres e rumorosos, já bastante bêbados. Em dado momento Perseu perguntou ao rei que presente desejava receber de todos eles.  — Cavalos! — respondeu Polidectes.  — Posso até presenteá-lo com a cabeça da Medusa! — exclamou Perseu, já perturbado pelos vinhos. — Dar um cavalo é pouco para mim.

 Todos riram-se de tamanha bazófia, porque a tal Medusa era o horror dos horrores. Mas ficaram sérios e com dó de Perseu quando o rei disse:  — Pois bem. Traga-me a cabeça da Medusa, em vez dum cavalo.  A Medusa era uma Górgona! Só mesmo na Grécia poderia aparecer uma coisa assim. O Visconde sabia da história das Górgonas e pôs-se a recordar.

 Eram três irmãs: Esteno, Euríale e Medusa. As duas primeiras tinham propriedades divinas: não estavam sujeitas à velhice nem à morte. Mas Medusa era mortal. E que feia, que horrenda megera! Tinha o rosto sempre convulso pela cólera e a fazer esgares. Os cabelos eram fios de bronze entrelaçados de serpentes coleantes. Nariz chato, dentes de porco, alvíssimos, e uns olhos muito redondos, que chi spavam relâmpagos. Negra. Vivia a lançar gritos — e eram os mais terríveis e espantosos gritos da Antiguidade. E ainda tinha asas e braços de bronze. O pior da Medusa, porém, era o seu poder de reduzir a pedra todas as criaturas em que fixasse os olhos.  Impossível monstro mais hediondo e mais perigoso porque com um simples olhar petrificava à distância qualquer herói que pretendesse atacá-la.  O banquete correu na maior animação até tarde da noite e por fim começaram a dispersar-se. O Visconde pensou lá consigo: “Perseu vai ver se traz a cabeça da Medusa e eu posso assistir a essa façanha” — e tratou de sair para a rua. Como não houvesse iluminação de lampiões naqueles tempos, o Visconde podia andar desembaraçadamente pela cidade, sem medo de que o descobrissem e pusessem num museu.  Os últimos convidados iam saindo, e entre eles o herói. O Visconde tinha de acompanhá-lo de longe, mas como, assim no escuro? Em resposta às suas dificuldades, a nuvem que tapava a lua se esgarçou e caiu sobre a terra um lindo luar.  O Visconde pôs-se a seguir o herói. Perseu caminhava de cabeça baixa, como quem está imerso em profunda cisma. Foi andando até sair da cidade, e encaminhou-se para uma praia ali perto. O reino de Sérifo era numa ilha.  Lá na praia sentou-se nuns arrecifes, com a cabeça entre as mãos. Num momento de entusiasmo alcoólico fora fazer aquela bravata e agora arcava com as consequências: tinha de levar ao rei Polidectes a cabeça da Medusa… Mas como, se Medusa petrificava com o olhar

36 quem dela se aproximava? Tudo isto o Visconde, escondido ali atrás dele, lhe ia lendo na expressão do rosto e nas palavras que de vez em quando lhe escapavam da boca.  E estava nisso quando, de repente, surge Hermes ou Mercúrio. Hermes era o mensageiro dos deuses, o leva e traz.  — Que é que o põe triste assim, Perseu? — perguntou Hermes.  O herói contou a sua desgraça.  — Num banquete a nós oferecido perguntamos a Polidectes que presentes queria receber. “Cavalos” foi sua resposta, e eu, já toldado pelo vinho, prometi, sabe o quê? A cabeça da Medusa…  Hermes animou-o.  — Para tudo há jeito, Perseu. Vou ajudá-lo, e farei que lá no Olimpo a deusa Palas também o ajude. Palas é sua amiga.  E sentando-se ao lado do herói, começou a formular um plano. — Escute. Há as Greias, também filhas de Fórcis, como as Górgonas. São três: Pênfredo, Ênio e Dero, e as três só possuem um dente e um olho, dos quais se servem cada uma por sua vez. Você tem de ir procurá-las; e no momento em que uma for passando o olho para outra, tem de agarrá-lo, bem agarrado. Elas vão ficar na maior ânsia para que lhes seja restituída aquela preciosidade, e então você impõe condições.  — Que condições devo impor, Hermes?  — Basta uma. Que indiquem o caminho que leva à mansão das Ninfas possuidoras dos objetos necessários para a vitória sobre a Medusa.  — Quais são esses objetos?  — A coifa de Hades, que torna invisível quem a põe na cabeça; umas sandálias de asas e um surrão.  — Para que esse surrão?  — É um surrão próprio para conduzir a cabeça da Medusa depois de cortada. Faça tudo como digo, que irá cobrir-se de fama com um dos feitos mais prodigiosos destes tempos.

38  O Visconde tudo via e ouvia. Prestou muita atenção na vestimenta do mensageiro dos deuses, que já conhecia daquela vez em que com Pedrinho e Emília penetrou no Olimpo. Hermes usava asas no calçado, para andar bem depressa. Mensageiro vagaroso não vale nada.  Bom. Hermes não tinha mais nada a fazer ali. Despediu-se e lá se foi, veloz como um patinador.  Perseu estava radiante. Nunca um socorro divino chegara tão no momento. E, levantando-se da pedra, pôs-se a caminho rumo à morada das três Greias. O Visconde seguia-o rente — e teve de fazer prodígios para acompanhá-lo. Enquanto Perseu dava uma passada o sabugo tinha de dar oito. Por felicidade o herói não mostrava pressa nenhuma — ia caminhando vagarosamente. Afinal chegaram. As Greias estavam na s ala examinando um ponto de tricô. Enquanto uma o via com o olho único da casa, as outras esperavam a vez, completamente cegas. Depois o tricô mudava de mãos e o olho também — e assim as três se arrumavam para enxergar.  Perseu entrou e apresentou-se — e enquanto uma o via com o olho único, as outras demonstravam a maior sofreguidão para receber o olho e vê-lo também.  — Dá cá o olho! Dá cá o olho! — diziam as duas cegas, espichando as mãos para pegar a preciosidade.  Outra mão também espichou — e quando a que estivera usando o olho tirou-o da órbita e estendeu-o para as irmãs, quem o apanhou foi Perseu.  O “ fecha” foi tremendo. Gritaria histérica. Desmaios. Todas falavam a um tempo e ninguém se entendia. Por fim o herói conseguiu tomar a palavra.  — Escutem, tontas! Vou restituir o olho. Para que quero este olho se tenho dois? Está claro que vou restituí-lo, mas só se me ensinarem o caminho da mansão das Ninfas…  — As que guardam os objetos necessários para a vitória sobre a Medusa? — perguntaram as três ao mesmo tempo.

 — Sim — respondeu Perseu.  Elas relutaram. Acharam que era traição. Perseu procurou convencê- -las. Disse que a Medusa era um monstro que já havia feito a desgraça de muita gente. Se ele conseguisse cortar-lhe a cabeça, era um gra nde bem para o mundo.  As três Greias conferenciaram entre si, aos cochichos e por fim concordaram.  — Pois não há dúvida. Vamos revelar o caminho para a mansão de tais Ninfas e você nos restituirá o nosso olho.  — Fechado! — exclamou Perseu.  E assim foi. Elas ensinaram-lhe o caminho e ele lhes restituiu o olho preciosíssimo.  O Visconde, atrás da porta, tudo via e ouvia.

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