“Burlar a Bul a pode ser uma forma de ampliar as possiBilidades da linguagem.”
Eustáquio Neves
A fotografia encontra em Eustáquio Neves um homem devoto dos dramas que envolveram e envolvem um passado atormentado e atormentador da nossa história. História de um povo que foi conduzido ao degredo humano, e de tamanha força que não se apaga, não sai da nossa alma. Não importa qual conquista se tenha atingido, o sangramento continua, não importa o degrau alcançado que a consciência clama alta e forte, muito forte, não importa o canto que ele vira consagrado à dor, não importa o riso, se a lágrima é companheira, não importa a história, ela será a mesma de milhões esquecidos na travessia.
Por que mesmo lembrar se esta é uma ferida aberta que não sara? Por que mesmo lembrar se tantos anos se passaram? Por que mesmo será preciso lembrar para esquecer?
Nunca se esquece do que dói. Nunca se esquece do que nos vem à alma, as lembranças de outros passados. Não se pode esquecer porque essa história ainda não foi totalmente descoberta. A experiência humana ainda pode revelar e revela mesmo o custo da exclusão.
E porque ela não foi toda contada é que a fotografia de Eustáquio Neves rodopia como uma ventania, trazendo com ela histórias e memórias de um tempo mais que perverso.
Por certo o seu desempenho de grande artista manipulador dessas imagens comove, penetra, sangra e une passado e presente.
Apesar do que dizem essas fotos, há nelas uma beleza contida, sintética e minimalista. Há também um sentimento de produzir o belo. Eustáquio Neves é um mestre contemporâneo dessas experiências de transcender o próprio documento. Para ele, a fotografia vai muito além do registro. Ele escancara seus sentimentos sem nenhum pudor, e aí é que sua obra adquire o verdadeiro significado de beleza.
Emanoel Araujo (1940-2022)
Diretor curador
Texto escrito para a exposição Cartas ao mar: fotografias de Eustáquio Neves, Museu Afro Brasil (2015-2016).
Tradução do inglês Rodrigo Maltez Novaes (texto das p. 188-199)
Preparação Leandro Rodrigues
Revisão Tatiana Vieira Allegro, Lígia Gurgel
Capa, projeto gráfico e diagramação Rafael Simões
Imagem da capa obra da série Retrato falado, de Eustáquio Neves
Outras imagens p. 1, 2-3, 5, 11, 200-201 e 210-211: obras da série Outros navios; e p. 15: obra da série Retrato falado, todas de Eustáquio Neves
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Eu79 Outros navios: Eustáquio Neves / Organizador: Eder Chiodetto. – São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2025. –
240 p. il.: fotografias.
ISBN: 978-85-9493-346-1
1. Artes plásticas. 2. Fotografia. 3. Fotopintura.
4.Identidade negra. 5. História brasileira. I. Título. II. Paula, José Eustáquio Neves de,
CDD 779
Elaborada por Maria Delcina Feitosa CRB/8-6187
OutrOs naviOs eustáquiO neves
O artista e sUas
De iMaGens
BONAVENTURE SOH BEJENG NDIKUNG
EDIMILSON DE ALMEIDA PEREIRA entRevista
EUSTÁQUIO
Apresentação
FaBUL aR COntRa O siLÊnCiO
LUIZ
DEOCLECIO MASSARO GALINA
Diretor Regional do Sesc São Paulo
Em Memórias da plantação, a escritora e artista Grada Kilomba discute a necessidade do protagonismo negro na enunciação da própria história, propondo levantes diante dos estereótipos mobilizados pelo racismo. Ao longo da história colonial, a produção de memória se articula diretamente com a circulação de imagens, sendo essas responsáveis por assentar discursos na estrutura social.
Eustáquio Neves envereda por sua arte de modo autodidata e, a partir de sua formação como químico industrial, encontra nos laboratórios de fotografia seu laboratório de fabulação. Sua produção enfrenta as iconografias discriminatórias e expande forma e experimentação, construindo figuras sobrepostas, atravessadas, amalgamadas, apostando, então, na expansão de narrativas sobre e a partir de pessoas negras.
CrOnOLOGia
LILIAN OLIVEIRA
Lilian Oliveira é historiadora e mestre em ciências humanas. Atua nas áreas de patrimônio cultural, educação em museus, curadoria e residência artística. É doutoranda em sociologia pela Universidade da Beira Interior (Portugal). Atualmente, pesquisa arte e cultura rural na cordilheira do Espinhaço Meridional.
Pará de Minas (MG), 1962.
1955
José Eustáquio Neves de Paula nasce em 10 de fevereiro no município de Juatuba, à época um povoado na parte oeste da região metropolitana de Belo Horizonte (MG).
Aos 6 meses de idade, tem o primeiro contato com uma câmera fotográfica, por meio de um fotógrafo amigo da família.
1962
Na cidade de Pará de Minas (MG), conhece o cinema.
1963
Em Belo Horizonte, tem contato com a projeção de cinema em 16 milímetros.
1966
Muda-se para Belo Horizonte, para viver sob os cuidados de uma tia.
1967
É aprovado no processo seletivo da Escola Municipal Imaco, na qual passa a estudar.
1970
Participa de excursão escolar para Ouro Preto (MG) carregando uma câmera fotográfica descartável.
1979
Conclui sua formação técnica em química industrial, na cidade de Belo Horizonte.
Em Serro (MG), junto com dois amigos, tem o primeiro contato com uma câmera fotográfica analógica e com um laboratório de revelação de fotos.
Juatuba (MG), 1955.
Serro (MG), 1979.
sOBRe O ORG aniZaDOR
EDER CHIODETTO (São Paulo, 1965) é mestre em comunicação pela Universidade de São Paulo, curador de fotografia independente, fundador e publisher da Fotô Editorial e diretor do Centro de Estudos Ateliê Fotô, criado em 2011.
Foi repórter fotográfico (1991-1995), editor (1995-2004) e crítico de fotografia (1996-2010) do jornal Folha de S.Paulo; membro do conselho consultivo de artes e curador de fotografia do Museu de Arte Moderna de São Paulo (2005-2021); e mentor do programa Arte na fotografia do canal Arte1 (2017-2020).
Como curador, já realizou cerca de 200 exposições em países como Brasil, Estados Unidos e Japão e em outros da América do Sul e da Europa. Suas pesquisas, que resultam em projetos curatoriais e editoriais, têm como foco as imbricações da fotografia nos processos históricos, políticos, sociais e culturais da sociedade brasileira. Nesses projetos, dedica-se a demonstrar relações formais e conceituais entre as fotografias modernista e contemporânea e entre os campos documental e experimental, que revelam uma expressão local potente e original, sobretudo a partir de traumas históricos como a herança escravagista, as fraturas sociais do processo colonialista e os escombros resultantes da ditadura militar no país entre 1964 e 1985.
É autor dos livros O lugar do escritor (Cosac Naify, 2002, Prêmio Jabuti em 2004), Geração 00: a nova fotografia brasileira (Edições Sesc São Paulo, 2011), Curadoria em fotografia: da pesquisa à exposição (Ateliê Fotô/ Funarte, 2013), Ser diretor (Ateliê Fotô, 2018), Claudia Andujar: cosmovisão (Itaú Cultural, 2024), entre outros. Já como editor e organizador, publicou mais de 70 livros de autores brasileiros em editoras como Cosac Naify, Edições Sesc São Paulo, Cobogó, Terra Brasil e Fotô Editorial.