Contra o ocularcentrismo: aspectos de uma estratégia gustativa

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CONTRA FIDELIS OCULARCENTRISMO GAUDENCIO

Nunca nos esqueçamos que é a linguagem que nos distingue dentro do reino animal, no qual ela foi instituída como uma manifestação de poder político, construída pelas articulações, limitações e imbricamentos da cultura. Nessa longa e interminável jornada de expressão linguística, o ocularcentrismo foi absorvendo as reminiscências na sua origem através da receptividade auditiva, arregimentando as manifestações simbólicas da fala ao longo do caminho. Lembremo-nos ainda que a expressão histórica da fala é essencialmente dominante e hegemônica, e sua receptividade (por essa razão) feminina em essência. Nesse aspecto, o ouvinte testa (prova) a fala através de sua receptividade auditiva e confere a ela, ou não, um teor de veracidade. Reside aí mais uma vez o caráter “feminista” e, portanto, inclinado ao antiocularcentrismo, se assim desejarmos, da audição e do paladar.

COLECAO POPFILOSOFIA

Coordenada por Marcia Tiburi, a coleção Pop Filosofia se destina a apresentar novos conceitos no campo da filosofia (e das ciências humanas em geral), à qual o filósofo francês Gilles Deleuze chamou de “Pop filosofia”. Segundo Deleuze,“conceitos são como sons, cores ou imagens, são intensidades que convém ou não, que passam ou não passam”. A filosofia pop se refere a “intensidades”, às coisas que nos afetam: o cotidiano, a acontecimentos e conteúdos que historicamente são negligenciados pela filosofia acadêmica ligada à história das ideias. No entanto, não se trata de simplificar a reflexão.

Ao contrário, a Pop Filosofia diz respeito à capacidade de criar conceitos no mesmo sentido em que Andy Warhol “transfigurou” o lugar-comum com sua pop art. A filosofia pop, portanto, trata de pensar a filosofia além da filosofia.

Transformada em regra, a filosofia acadêmica tende a se tornar rígida e burocrática. O avanço do pensamento reflexivo, seu alcance social e transformador precisa estar em cena tendo em vista uma sociedade de jogos de linguagem dinâmicos. Por isso, a Pop Filosofia também é um desafio. Trata-se de um projeto que envolve a perspectiva da “filosofia criativa”, na qual os autores convidados são desafiados em sua liberdade, propondo novas leituras e até mesmo novos conceitos.

Neste quarto volume da coleção, Gaudêncio Fidelis invoca o regime do ocularcentrismo por meio do paladar, partindo dos questionamentos ao eurocentrismo que ganharam terreno nas discussões culturais desde o início dos anos 1990. Oautor utiliza o canibalismo cultural e a antropofagia como dispositivos de interpretação enquanto define o ocularcentrismo como o do -

mínio do sentido da visão sobre a produção de conhecimento e na hierarquização dos sentidos, determinante à formação do que se constitui como objeto de arte. Fundamentado na antropologia filosófica, o autor nos lembra que quando nos erguemos do solo para a posição vertical, passamos a contemplar o horizonte à distância, o que levou à transformação do mundo em uma percepção retiniana da cognição. À medida que essa inclinação biológica se transferiu para o domínio da invenção e da arte e a imagem se consolidou como um dispositivo cultural, esses determinantes se converteram em convenções impossíveis de evitar.

Retornando a outros sentidos que culturalmente são preteridos em relação à visão, através de uma sugestiva via de leitura por meio do paladar, Fidelis apresenta em Contra o ocularcentrismo um desafio às prerrogativas do cânone, que, sim, podem ser sempre questionadas.

GAUDÊNCIO FIDELIS é curador e historiador de arte especializado em arte brasileira moderna e contemporânea e arte das Américas. É mestre em arte pela New York University (NYU) e doutor em história da arte pela State University of New York ( SUNY). Publicou, entre outros, O cheiro como critério: Em direção a uma política olfatória em curadoria (Argos, 2015). É atualmente professor associado de história da arte do programa de história da arte do Hunter College da Universidade da Cidade de Nova York (CUNY).

COLECAO POP FILOSOFIA

ORGANIZAÇÃO DA COLEÇÃO

OCULARCENTRISMO GAUDENCIO O CONTRA FIDELIS

ASPECTOS DE UMA

ESTRATÉGIA GUSTATIVA

7

O bom gosto é ocularcentrista

13 A revolta de uma inteligência sensorial

21 O enquadramento da cognição pelo olhar

33 As especificidades conceituais dos sentidos

43 A supressão da visão contra o ocularcentrismo

57 Olhos que devoram e narizes que não cheiram

65 O paladar na cozinha canibal

81 A história não contada do ocularcentrismo

105 Referências bibliográficas

O BOM GOSTO

É OCULARCENTRISTA

O centro gravitacional deste livro consiste em propor uma estratégia contra o regime do ocularcentrismo através do sentido do paladar, utilizando o canibalismo cultural e a antropofagia como táticas de legibilidade interpretativa. Ambos, com sua volatilidade semântica e sua inclinação metafórica, são propícios para articular uma perturbação das prerrogativas canônicas, elas por si só relativamente estáveis, mas passíveis de intervenção.

Ao longo deste texto, utilizarei a antropofagia considerando sua conotação prescritiva, que deriva da combinação das palavras gregas antropos (“homem”) e phagein (“comer”) e é largamente definida como ingestão de carne humana por seres humanos, mas sem uma conotação pejorativa de barbárie, que geralmente o canibalismo possui. Além disso, utilizarei a expressão canibalismo cultural para designar uma perspectiva mais realista (gráfico-sanguinária) ligada

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD

F451c

Fidelis, Gaudêncio

Contra o ocularcentrismo: aspectos de uma estratégia gustativa /Gaudêncio Fidelis.

São Paulo: Editora Nós; Edições Sesc São Paulo, 2025. 112 pp.

Coleção Pop Filosofia; organizada por Marcia Tiburi.

ISBN978-65-85832-64-9 [Editora Nós]

ISBN978-85-9493-330-0 [Edições Sesc São Paulo]

1. Artes.2. Filosofia.3. Paladar.4. Canibalismo cultural.

5. Antropofagia.6. Ocularcentrismo.7. História da arte. I. Tiburi, Marcia.II. Título.III. Série.

2024-4536

CDD 700 CDU 7

Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva, CRB-8/9410

Índice para catálogo sistemático:

1. Artes 700 2. Artes 7

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