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Uma vida sem teto por Shaiene Ramão
by eba_pucpr

...Tentando fugir da chuva
Waleski e mais um morador de rua dividem o espaço sob a marquise de uma loja

seguiu um emprego melhor: uma loja de materiais de construção precisava de funcionários. No dia marcado para a entrevista que iria mudar a situação financeira da família, um jovem sem carteira de motorista, dirigindo um fusca assassinou o rapaz a tiros. “Os meus pais ficaram revoltados, sabe? Minha mãe perdia o segundo filho e meu pai pensou em voltar pra Polônia porque o financeiro [sic] não era bom, não. Mas eu estava empregado e prometi que ia ajudar nas despesas. Foi um verão difícil. Nem o sol nos animava. Ah... Disso eu lembro bem”, conta, com um olhar distante fixado em Lupe.
Durante a conversa, um amigo de Seu Jô chega para ajudar na história. Com aparência bondosa, Moisés Pereira é um senhor de 67 anos que mora em um dos prédios próximos à praça e ajuda Seu Jô há dois anos. “Nossa, olha que chique esse Jô!”, diz Moisés anunciando sua chegada. “Desculpa atrapalhar, viu? Eu só vim ver se está tudo bem e trazer uma marmitinha”, fala, com um sorriso nos lábios e um bandeco nas mãos. Seu Jô interrompe a conversa sobre sua vida para falar sobre Moisés. “Esse cara é meu segundo pai. Ele me traz comida quase todos os dias, há uns dois anos. Tem dia que eu estou dormindo, o cachorro late e eu já penso: “Oba! Chegou o lanche! É um cara gente boa. Vai pro céu esse aqui”.

Vício e problemas na família
De acordo com a Fundação de Ação Social (FAS), Curitiba tem 3.450 pessoas vivendo nas ruas. Número 25% maior na comparação com os dados de 2008 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que aponta 2.776 pessoas nessa situação. Destes, cerca de 8,9% têm problemas familiares e, por isso, mora nas ruas. Seu Jô é um destes personagens. Depois de perder os pais, quando tinha 29 anos, José conheceu uma moça e decidiu constituir uma família. A família de sua companheira era gaúcha e, como tradição, todos os fins de semana faziam churrascos e abusavam da bebida alcóolica. Jô, que antes vivia longe da bebida, tornou-se alcoolista. “Eu me arrependo muito. Quando nós fizemos uns cinco meses de casado, eu já era alcóolatra [sic]. Bebia todo dia. Saía do trabalho e ia beber, chegava em casa e bebia. O problema é que com uns três meses vivendo assim, eu comecei a bater na mulher. Eu ficava agressivo, saía de mim, lembrava das coisas que eu vivi e descontava nela. Depois de um ano e dois meses juntos, ela me mandou pra fora de casa. Aluguei uma casa, tentei viver por mais uns três meses trabalhando, mas eu gastava tudo em bebida. A bebida me matou e eu resolvi morrer na rua mesmo”, conta. A dependência química, desentendimentos com a família e desemprego são os três fatores que mais levam pessoas para as ruas. Marcos Moura, ex-agente de Pastoral de Rua da Comunidade Aliança de Misericórdia, conta que as experiências vividas por estas pessoas vão muito além do que qualquer um pode pensar. “Trabalhei quatro anos na Pastoral de Rua, é algo completamente diferente de tudo que se pode imaginar. Vi desde crianças a idosos, se drogando, bebendo, abusando de remédios, batendo e apanhando, tentando fugir da realidade em que eles estão presos. É horrível, mas acredito que a solidariedade seja um caminho para ajudar essas pessoas.”
Marcos trabalhava levando alimentos e cobertores aos moradores de rua, com um grupo de jovens que saem às madrugadas pelas ruas da capital. Uma das suas experiências mais marcantes foi encontrar pessoas de outros países vivendo como mendigos da cidade. “Eu me lembro que uma vez encontrei um americano aqui. Quase ninguém entendia o que ele falava e ele estava bem machucado, porque era viciado em drogas e apanhou do traficante. Me impressionou, e ainda impressiona, a história dessas pessoas. Muitas vezes a gente nem imagina o que há por trás de uma barba mal feita e um cobertor velho, mas há vida ali, há gente ali. É impressionante como existe uma diversidade de pessoas que moram nas ruas, não há um único perfil”, revela. Seu Jô também faz questão de ressaltar que, apesar de existirem pessoas com mau caráter nas ruas, a maioria dos moradores busca nas drogas o alívio para suas preocupações e dificuldades. “As pessoas passam por mim e me olham como se eu fosse um bicho, pior do que cachorro. É horrível. Eu sou um doente e a maioria dos que moram nas ruas também é. São viciados, não conseguem sair do buraco em que entraram. Mais doentes ainda são os que não querem sair, né? Mas todo mundo erra. Eu errei quando entrei no álcool, uma jovem pode ter errado em se apaixonar pelo cara errado, uma mãe pode ter errado em colocar o filho numa creche e um empresário pode ter errado em contratar um economista salafrário, mas a verdade é que todo mundo erra. A diferença é o que você faz para corrigir o erro. Eu errei e não consigo corrigir, não tenho forças, não consigo, não sou capaz. Mas eu só queria que as pessoas não me julgassem por isso”, pede, em lágrimas. O morador de rua, ainda chorando, se despede de Moisés, se ajeita no edredom velho espalhado pela grama, e puxa o cobertor sujo para perto do pescoço. Enxugando as lágrimas, antes de Lupe pegar no sono, ele ainda faz questão de dizer as últimas palavras, transformando seus desejos mais íntimos em oração: “Senhor Deus, obrigado pelo meu dia, pela minha saúde e pelo Lupe. Obrigado mesmo Deus, por estar comigo e por cuidar de mim. Me perdoe pelos meus erros, mas me perdoe principalmente por ser preguiçoso e não querer consertálos. Espero que amanhã seja um dia bom e abençoado por Ti. Cuide de nós e do Moisés e de sua família. Boa noite.”