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A Herança quilombola
by eba_pucpr
que o Paraná não conhece
A antiga morada de escravos em Adrianópolis, na Região Metropolitana de Curitiba, hoje preserva um modo de vida muito diferente do observado nos grandes centros urbanos
Texto e fotos por: Everton Lima


“O s homens são porcos que se alimentam de ouro.” Napoleão Bonaparte definiu assim a relação do ser humano com o metal dourado. A “fome” pelo ouro costuma cobrar um preço alto, normalmente pago com vidas e embebido de suor e sangue inocente.
Nem todos os escravos que trabalhavam nas minas de ouro em Apiaí (SP), até o século XVIII, estavam dispostos a se sacrificar. Mesmo sabendo que o castigo para o “escravo fujão” era o tronco, eles estavam dispostos a arriscar. Para quem havia sido raptado de sua terra natal, ser forte não era opção, mas sim obrigação. Lançaram-se então rumo a uma longa jornada em busca da liberdade.
O percurso pela mata fechada não era fácil. Enfrentar as águas fortes dos rios Pardo e Ribeira era o mesmo que desafiar a morte. Não fosse a amizade com os índios, talvez os negros não tivessem chegado ao seu destino.
O minerador francês João Surá, que fazia o mesmo caminho dos escravos fugidos, almejando encontrar ouro e prata, não conseguiu alcançar seu objetivo de se tornar um homem rico. Morreu ao cair de uma cachoeira. Os escravos resolveram dar ao quilombo que os abrigaria em segurança o nome do mineiro branco. Nascia então o Quilombo João Surá.
Com o passar dos anos, os moradores venceram os grileiros de terras até o descaso do governo com eles. Hoje a comunidade quilombola João Surá, localizada no município de Adrianópolis, Região Metropolitana de Curitiba, conta com orgulho as batalhas vencidas pelo seu povo.
Para chegar até o local, a equipe da CDM levou quase dez horas de viagem, partindo da capital do estado. A única parte do trajeto asfaltado é a da BR-476, o resto do percurso é feito por estradas de terra, que, em diversos pontos, obrigam o motorista a não passar de 20km/h.
A paisagem mescla trechos preservados de Mata Atlântica com plantações de pinus, que segundo o morador da cidade, Edson Souza, 43 anos, suga toda a água dos córregos menores. “Aqui era cheio de córgos (sic), mas os pinus acabam com tudo. As empresas de reflorestamento compraram quase tudo aqui”, conta Edson lamentando a mudança na paisagem.


A comunidade João Surá fica a 22 quilômetros do perímetro urbano de Adrinanópolis.

Joana de Andrade, aposentada
Os herdeiros dos cativos
A aposentada Joana de Andrade, 79 anos, recebe a equipe da revista com desconfiança. Nascida e criada na região, “nunca teve vontade de deixar o local”. Católica praticante, ela fala das romarias feitas para São Gonçalo, costume antigo que vem se perdendo, em parte por falta de interesse dos moradores mais novos da localidade.
Os quase 140 moradores de João Surá são, em grande parte, maiores de 30 anos. Os mais jovens costumam ir embora para trabalhar. Mas não dona Joana. “Nunca tive vontade de ir embora daqui. Minha família toda nasceu e morreu nessas terras”. Dona Clarinda, 62 anos, diz que a qualidade da estrada impossibilita o trajeto de alguém que queira trabalhar no centro de Adrianópolis e viver na comunidade quilombola. Para chegar à parte urbana da cidade é preciso percorrer 22 quilômetros em estrada de terra.
Silvestre de Castro, o ancião de João Surá
Seu Silvestre é o morador mais antigo do local. Com mais de 90 anos ele vive em uma casa ainda mais antiga, que possui em seu telhado algumas telhas feitas “nas coxas” dos escravos. As relíquias que sua morada guarda, como, por exemplo, um rádio com mais de 50 anos, são motivo de orgulho. Dono de uma fala tranquila e gargalhada contagiante, o patriarca de quatro gerações reclama de algumas atividades que os mais jovens mantêm, como ver tevê. “Eu assisto mais à missa. A televisão tem tanta porcaria, tem coisa boa, mas tem coisa que não vale nada”, opina. Vizinho de uma capela com mais de 40 anos ele não se envaidece por isso. Deixa claro que “a igreja é do povo”. Ao relembrar da juventude, mostra o local da casa onde eram realizados bailes, que, segundo ele, “eram algo fantástico”. Ele argumenta que sua geração “tinha mais respeito”. “Os moços tão tomando uma pinguinha e, ás vezes, por qualquer coisa, saem no tapa”, conta em meio à risadas.
Sobre sua origem quilombola, ele brinca: “Aqui nós somos todos quilombolista (SIC)” e acha estranho algumas pessoas que não reivindicam a ascendência escrava. “Têm uns vizinhos aqui, que são descendentes de escravos e não querem ser quilombolas”, revela.
Silvestre de Castro, aposentado


Cassiano Matos, secretária

Gislaine Pereira, estudante
A volta da filha pródiga
Cassiane Matos, 35 anos, foi embora do vilarejo ainda jovem. Foi trabalhar em Curitiba. Viveu na capital do estado por muitos anos, tinha casa própria e trabalho, mas quando a filha nasceu começou a analisar se a cidade grande seria o melhor lugar para cria-la. “Aqui a liberdade é outra. Lá na cidade, se vive preso, a vida é corrida”, comenta.
Trabalhando como secretária da escola da comunidade, Cassiane confessa que também pensou em ajudar a localidade onde nascera. “Havia aquela vontade de lutar pelo lugar, de vê-lo se desenvolver. Se as pessoas continuassem saindo, isso iria desmotivar o desenvolvimento”, esclarece.
Sobre a fuga dos mais jovens da vila quilombola, ela diz que “o isolamento e a falta de lazer” voltado para essa faixa etária contribui. Sendo as celebrações religiosas o principal evento do local, Cassiane reconhece que mudanças foram necessárias para atrair os mais novos. “Chegava na igreja só dava gente idosa. Não tinha gente nova, aquilo se tornava cansativo. Muita coisa mudou. Antigamente, a missa ainda era em latim”, explica.
Antigos manuscritos contendo ladainhas cantadas nas romarias estavam se perdendo. Agora, já foram digitalizados e Cassiane tenta mostrar para os adolescentes a importância da preservação da cultura. A jovem quilombola
Gislaine Neves Galvão Pereira, de 16 anos, não costuma ir ao shopping. Diferentemente dos adolescentes da sua idade, não está olhando o celular o tempo todo. Pelo contrário, na internet tem apenas um endereço de e-mail que não costuma checar com frequência. Mas engana-se quem imagina que a jovem está indiferente com o que acontece no mundo. Pelo contrário: ela usa a informação para lutar pela sua cultura.
Cursando o ensino médio no Colégio Estadual Quilombola Diogo Ramos (Diogo Ramos foi um importante professor que alfabetizou adultos na região), sua formação tem ênfase na história e na cultura negras. Atualmente, o colégio tem 24 alunos, 15, no ensino médio e nove, no fundamental. A educação é a principal ferramenta da jovem e é pela educação que ela acredita que o comportamento racista pode ser vencido. “A pessoa racista deve voltar para a escola. Eu não entendo por que uma pessoa pensa assim. Todas as pessoas são filhos de Deus”, esclarece.
Gislaine sonha em fazer faculdade e voltar para a comunidade para ajudar a fortalecer o local. “Os jovens têm a obrigação de preservar as conquistas dos antigos”. Orgulhosa das origens do seu povo, resume em uma frase a importância da cultura regional: “Não pode acabar”.

Desenvolvimento e preservação
O mestre em Tecnologia, pela Universidade Tecnológica do Paraná (UTFPR) Paulo Renato Dias desenvolveu uma pesquisa histórica sobre a comunidade João Surá. Ao mesmo tempo em que concorda que o desenvolvimento econômico na região pode prejudicar a comunidade, ele relembra que essas pessoas, descendentes de escravos, já venceram muitos problemas. “O modelo econômico vigente não leva em conta a cultura e o conhecimento das comunidades, que, para muitos, deve ser aniquilado. Mas, o mais importante é que, mesmo assim, João Surá está lá há mais de 200 anos”, conclui o professor.
Sua opinião pode ser ilustrada por um poema escrito por “Negro Olegário”, que chefiou um grupo com 50 soldados camponeses durante a Guerra do Contestado (leia a poesia abaixo).
Três gerações de quilombolas: Antônio Andrade, 67 anos, o filho Mizael, 33 anos, e o neto, Cauã, 5 anos.