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Entre a tecnologia e as tradições
by eba_pucpr
O mundo guarani em Piraquara. Histórias sobre as visitas na aldeia Araçai contam como os jovens índios estão se adaptando às influências externas e, ao mesmo tempo, preservando sua cultura
Texto: Manuella Costa Pires Fotos: Isabella Lanave Diagramação: Thiago Vilas Boas Edição: Isabella Lanave e Thiago Vilas Boas
Não muito distante de Curitiba existe uma aldeia guarani, onde vivem cerca de 90 índios oriundos do interior do Paraná. Karai Tataendy Marangaju, o Marcolino da Silva, é o grande responsável pela migração da tribo há 15 anos. Karai, que por muito tempo se manteve como cacique da aldeia, passou a responsabilidade para seu filho Wera Kangua Ju, o Laércio da Silva, há aproximadamente dois anos. Segundo Laércio, não porque ele é o filho do cacique, mas sim porque “dos homens da aldeia, ele julgou que eu fosse o mais preparado”.
O pai do cacique trabalha na secretaria da escola da aldeia, Mbyá Arandu: Sabedoria Guarani, fundada há 13 anos pelo Colégio Bom Jesus. Lugar onde as crianças têm o primeiro contato com a língua portuguesa, além de manterem aulas também em guarani. A estrutura da escola é precária: construção de madeira com duas salas de aula, uma pequena cozinha, computadores antigos e uma secretaria, construção provisória que já dura 13 anos esperando o projeto final.
Segundo o professor mais antigo da Mbyá Arandú, Fernando Vargas, 28 anos, juruá (“não índio” na língua guarani), a escola está um pouco melhor agora. “Antes o chão era de terra e os alunos do Ensino de Jovens e Adultos (EJA) tinham aula em uma estrutura de sapê e barro, improvisada na frente da escola.” Hoje, as aulas do EJA acontecem em outro espaço, construído recentemente pela própria comunidade indígena e com o auxílio dos professores.
Os jovens
“Desde o primeiro contato com o homem branco, o índio desejou ter algumas coisas que ele viu. Como é normal em nós também, ver uma sociedade diferente e querer alguma coisa que você ache importante ou ache interessante”, afirma Vargas. Nos dias atuais cabelos pintados, bonés de aba reta, tênis de marca, smartphones conectados a jogos e redes sociais fazem parte do cenário da aldeia araçai.
O processo de transfiguração do índio recebe constantemente críticas de quem não conhece a realidade indígena. “Dizer que eles não podem ir para a cidade estudar, não podem usar um boné bonitinho, não podem usar um tênis bacana, você está querendo que não ocorra esse processo de transfiguração que já tem mais de 500 anos. E você vai interromper isso como?”, argumenta o professor.
Para o cacique da aldeia, a televisão é um reflexo muito negativo da sociedade, principalmente para as crianças e adolescentes, os que mais assistem. Entretanto, “seria uma imposição ir de casa em casa e dizer que eles não podem ver”, comenta Wera. Assim como aconteceu com a senha do Wi-Fi da escola, a qual hoje quase todos possuem. “A gente tem que falar a realidade: assim, nossa cultura vai se perdendo. Mas é impossível entender a cabeça dos adolescentes daqui. Tudo é novidade para eles, é um mundo diferente. A gente nunca sabe se o próximo jovem que sair daqui vai se interessar em voltar e valorizar o que viveu anteriormente, como eu fiz”, desabafa o cacique.
Laércio da Silva, Wera Kangua Ju

“Mas o que vocês estão fazendo aqui?”, pergunta Laércio, que se sente intimidado pelo fato de não saber da nossa reportagem na aldeia. Explicamos que somos estudantes de Jornalismo e já tínhamos falado com o senhor Marcolino, que autorizou as nossas entrevistas e fotografias. Depois de tudo acertado, o cacique de 26 anos começa a se sentir mais à vontade.
De olhar tímido, Laércio é o único que saiu da Aldeia Araçai para fazer faculdade. Ficou um ano estudando Ciências Sociais na Universidade Federal do Paraná, mas o deslocamento diário de duas horas para ir, mais duas para voltar, foi desgastante. Laércio não aguentou viver longe do seu povo.
Voltou para a calmaria da aldeia, como ele próprio afirma, e hoje acumula diversas funções, cuida de toda a papelada, vai ao fórum, à prefeitura, à Secretária de Educação e a todos os lugares onde algum problema tenha que ser resolvido.
Quando morava em Guarapuava, durante o ensino médio, teve contato com antropólogos e professores que, segundo Laércio, o ajudaram a ver de fora e a entender a importância que a cultura tem no todo. E o conselho que ele tem para os jovens hoje é esse: “Valorizar a sua própria cultura, vendo do alto!”.
Ao falar sobre a gravidez de sua mulher, um sorriso se estampa no rosto do início ao fim. Para ele, o conhecimento do índio vem sempre das crianças, que representam o futuro da geração, da aldeia e do mundo. E, pelo fato de ser tão novo e já cacique, ele tem muita confiança nas próximas jovens lideranças.
Os jovens– parte 02
Existem sete jovens da aldeia Araçai que vão todos os dias até o Colégio Estadual Mário Braga, em Piraquara, com um transporte oferecido pela prefeitura da cidade, para concluir o ensino médio. Segundo o professor Fernando Vargas, continuam recebendo um acompanhamento da escola Mbyá Arandú. “A gente dá todo o apoio. Eles podem fazer as tarefas aqui, usar a internet da escola. Qualquer coisa que acontece lá, a gente fica sabendo aqui.”
Em um dos dias em que fomos visitar a aldeia, duas jovens chegaram à escola da tribo com um bilhete do Colégio Mário Braga. Elas cumprimentaram o professor e, numa breve interação, já foi possível ver a forte relação entre professor e comunidade na prática. “Eles são muito tímidos. É difícil a criançada sair conversando. Há alunos que só agora, no terceiro ano do ensino médio, estão começando a fazer amizades com o povo não índio”, comentou Vargas, depois que as meninas foram embora. A questão do nomadismo indígena ainda permanece na aldeia Araçai, principalmente com os jovens. “A gente tem um restinho de nomadismo e eu incentivo a piazada a viajar mesmo. Quer viajar, viaje, mas não pare de estudar”, afirma Vargas.
Eliane Faustino, de 18 anos, Kerexu Miri, é um bom exemplo. Durante uma das conversas, ela comentou que iria se mudar da tribo na próxima semana. Quer ir para o litoral paulista, onde moram seus sogros. Kerexu estudou até a 4.ª série e parou os estudos aos 14 anos. Com 15, teve seu primeiro filho, que hoje tem 3 anos. Ela tem também um bebê de oito meses, Pará Popy (ou Rubiane, em português). Segundo a mãe, os filhos por enquanto só entendem guarani. “Eles aprendem o guarani em casa, o português só na escola. Na nova aldeia, não tem o EJA, eu não vou poder continuar meus estudos, mas eles vão poder começar a estudar na escola de lá”, comentou Kerexu.

A cultura
Quando se entra na aldeia, dois lugares chamam atenção: a Casa de Reza e uma imagem grande na parede do posto de saúde. Laércio (Wera Kangua Ju) conta a história da imagem: “Uma galera de Portugal veio aqui e projetou na parede do posto a foto da minha avó, Emília, que faleceu faz um ano. Aí todos da aldeia ajudaram a raspar a madeira para fazer essa arte”. Já na Casa de Reza, acontecem cerimônias todas as manhãs e tardes, regidas pelo senhor Marcolino (Karai Tataendy Marangaju). O professor Vargas acredita que o local, que funciona como uma espécie de templo, é uma das principais fontes de preservação da cultura indígena dentro das tribos. “Isso é fundamental para eles. Por isso, a nossa escola dedica uma aula por semana para a Casa de Reza. Então mesmo que as crianças já frequentem o local todos os dias, tem mais um dia da semana em que eles vão de novo no horário de aula”, completa o professor.
Vargas também dá aula de ensino religioso na aldeia e utiliza esses encontros para mostrar outras religiões, mas sempre ressaltando a necessidade de preservar a religião deles. Ele disse que algumas pessoas têm uma visão superficial da questão indígena e não enxergam o que realmente se passa no dia a dia dos guaranis. “Ninguém de fora vê um pai saindo com o filho para pescar, uma menininha de 5 aninhos lavando a própria roupa, uma criança de 3, voltando

com um saquinho cheio de peixes...”, afirma Vargas.
O professor ainda contou que, depois da primeira menstruação, as meninas ficam reclusas por volta de uma semana e raspam o cabelo. “Porque o cabelo é uma questão de energia para os guaranis. Então, não adianta falar: ‘Ahh, eles pintaram o cabelo.’ Eles sabem o que
representa, eu acho que é isso que importa”, concluí. Ao contar sobre sua experiência pessoal de adaptação na tribo, o professor conta: “As pessoas não têm a paciência de tentar enxergar o tempo deles, que é bem mais calmo, bem tranquilo, com bem menos pressa”.
Já o cacique Wera Kangua Ju conta porque o nome indígena verdadeiro raramente aparece na certidão de nascimento. “A cerimônia para dar o nome da criança acontece mais ou menos um ano depois do nascimento. Um ancião, que seja o líder espiritual da aldeia — aqui é o meu pai — entra em contato com o espírito da criança e o próprio espírito conta a ele o seu nome.” A tribo está localizada numa área de preservação ambiental, então o máximo que os índios residentes podem fazer é uma horta. Por isso, segundo Wera kangua Ju, o pessoal só come produtos orgânicos nas cerimônias religiosas grandes, nas quais eles recebem índios e alimentos de outras aldeias. Ele explica, também, em relação ao preparo dos alimentos: “Aqui tem fogão a gás, fogão à lenha, fogo de chão,
tudo depende do momento. Quando tá mais frio a gente faz fogo de chão e já aproveita para se esquentar também”.
O cachimbo tradicional feito de nó de pinho também é preservado na aldeia. Para os guaranis, a fumaça tem o significado de purificação do espírito e do corpo. “Fumamos tabaco. Não é maconha, como muitos pensam. A gente só puxa a fumaça na boca e solta, não fuma igual cigarro, que vai até o pulmão, estraga, apodrece lá e volta; só pito pela boca mesmo. Claro que tem gente que já criou o hábito e pita sempre, mas quando usamos nas cerimônias, é com o significado da purificação”, conclui o cacique.


Wera Kangua Ju, cacique da tribo Araçai, sobre a Casa de Reza.