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É só uma palmada?

Do alicate industrial ao de unha

Rótulos de profissões masculinas e femininas rompem estereótipos e provam que competência não depende de sexo, mas de vocação e persistência Por Roberta Gonçalves

Os trabalhadores da construção civil, na década de 1970, já foram fonanos, até que tentou, mas acabou se rendendo à paixão pelas unhas: “Já tentei ser enfermeite de inspiração de grandes poetas brasileiros. Naquela época, bombava a música “Construção”, de Chico Buarque, em versos que diziam “Beijou sua mulher como se fosse a única”, além do poema “Operário em Construção”, do saudoso Vinícius de Moraes. Quase 50 anos depois, as obras de Chico e Vinícius já poderiam ser consideradas ultrapassadas.

Marineide Para Valquíria Renk, professora da de Araújo, 39 anos, aluna PUCPR, há um consenso de que a sociedos cursos de alvenaria e dade tende a aceitar essa inversão dos PVC concretá- gêneros ao longo dos anos.vel, da empresa Mulheres que reformam, que o diga: “Soube dos cursos por uma associação de habitação popular que tem perto da minha casa. Fiz minha inscrição e já participo das aulas há mais de um ano. Nós somos mais detalhistas e caprichosas, os próprios clientes falam isso!”, gaba-se. Ela faz parte de um projeto desenvolvido pelo Instituto Construa, de São Paulo, que propõe mão de obra 100% feminina para a Construção Civil. Todos os cursos são gratuitos e encaminham as alunas, após a conclusão das aulas, para o mercado profissional. Dados do Ministério do Trabalho revelam que, entre 2000 a 2010, o número de trabalhadoras na construção civil cresceu 65%. As mulheres desempenham, principalmente, serviços de acabamento, fase em que o capricho e os detalhes, destacados por Araújo, são fundamentais.

E nessa “dança das cadeiras”, eles também invadem o espaço delas. Adauto Passos, 30 ro, atendente de vídeolocadora, cobrador de ônibus, vendedor de floricultura. Mas só me realizo mesmo sendo manicure”, afirma. Funcionário de um salão de beleza no bairro Portão, em Curitiba, ele admite que, no começo, não foi fácil, mas aos poucos foi ocupando seu espaço: “Quando comecei a trabalhar aqui, as clientes nunca tinham visto um manicure masculino, até tinha um pouco de rejeição, e mas depois foram me aceitando mais”. Passos diz que sempre teve um bom relacionamento com os colegas de trabalho, que o acolheram tranquilamente. Ele se diverte ao lembrar da resistência de algumas clientes: “Sempre que chega uma senhora idosa, ela diz: ‘Ah, mas é um homem que vai fazer minha unha, não tem uma moça?’” Bem humorado, ele garante que isso não o constrange e afirma que entende o estranhamento. No entanto, passada a primeira impressão, a maior parte das clientes torna-se fiel a seus alicates. Milena Stella, cliente de Adauto há mais de dez anos, diz que a agenda do manicure é disputadíssima e que não o troca por nenhum outro profissional: “Ninguém tira as cutículas como ele, e é difícil marcar horário, no mínimo dois meses para conseguir uma vaga, é quase uma loteria”, avisa. E para aque-

les que pretendem trocar o alicate industrial pelo de unha, Passos revela os pré-requisitos: “Precisa ter sensibilidade para ouvir e dividir os problemas que contam para você. Muita gente entra nessa profissão só para ganhar dinheiro. É preciso entender que vamos lidar diretamente com pessoas”, ensina. Para gerar esse relacionamento mais próximo, o manicure não economiza no tempo de atendimento: “Fico no mínimo 40 minutos, porque tento conhecer a cliente e criar uma identificação para ela voltar.”

Motivos

Valquíria Renk, professora da disciplina de Estudos Sociológicos e Antropológicos, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), observa que as situações mudam na medida em que a sociedade apresenta uma necessidade e que o contexto histórico se manifesta: “A necessidade impinge os gêneros a mudarem de campo de trabalho e a romperem barreiras culturais. Na época das guerras, os homens saíram para lutar nos conflitos, e as mulheres tiveram de ir para as fábricas trabalhar e garantir o sustento da família”, lembra a professora.

Na construção civil, Renk destaca que mulheres ocupam espaços que antes eram predominantemente masculinos, caso de Marineide Araújo, da Mulheres que reformam. Contudo, a aprendiz de serviços na construção civil diz que, na prática, essa ocupação enfrenta dificuldades: “Por um lado, é inovador, por outro, é um desafio, porque ainda existe muito preconceito”. Confiante, Araújo não se deixa abater, e dispara um dos “mantras” de suas aulas: “Preconceito, a gente vence com competência”, orgulha-se.

A máxima de Marineide é comprovada também por Ana Maria Pacheco, 40 anos, motorista de ônibus da autoviação Redentor, em Curitiba: “Ser motorista era minha paixão desde criança, mas meus pais não deixavam, por eu ser menina”, lamenta-se. Pacheco cresceu, fez sua carteira de motorista, começou a distribuir currículos e pouco tempo depois foi chamada para a vaga: “Em janeiro de 2013, a empresa me chamou. Fui aprovada na prova escrita e no teste do volante, desde então, estou atuando”, comemora .

“Já aconteceram situações de o passageiro sair do ônibus quando me viu no volante” - Ana Maria Pacheco, motorista de ônibus

“Ser motorista era minha paixão desde criança.” - Idem

No dia a dia, ela relata que já houve situações de o passageiro entrar no ônibus e sair quando a viu no volante: “Faz parte da profissão, como motorista, tenho que saber lidar com a máquina e com as pessoas”. Mas, nem todos os constrangimentos foram driblados com tranquilidade pela motorista. Ela lembra dos momentos de tensão que passou no dia em que teve que ser escoltada para transportar a torcida organizada do Coritiba ao estádio Couto Pereira: “Foi terrível, pensei que iam quebrar tudo, mas só agitaram mesmo”.

Mercado de trabalho

A facilidade que Pacheco encontrou ao distribuir seus currículos, contudo, não traduz a realidade do mercado de trabalho, sobretudo, no que se refere à inversão de gêneros. Roberto e Jerusa Vargas, proprietários de uma agência de serviços domésticos em Curitiba, relatam que 99% dos candidatos a diarista são mulheres: “Tivemos até alguns candidatos homens para essa vaga, mas a rejeição foi muito grande”, observam. Eles descrevem o perfil dos homens cadastrados em sua agência: “Normalmente, procuram por funções como jardineiro, caseiro ou motorista; têm idade que varia entre 25 e 55 anos, experiência comprovada e buscam por colocações fixas Questionados se contratariam um babá masculino para cuidar de seus filhos, os agenciadores admitem: “Não faríamos isso, pois nesta função, a mulher gera mais confiança pela delicadeza, pela experiência e até pelo instinto maternal.”

A professora reage com naturalidade às declarações de Roberto e Jerusa apresenta hipóteses para justificar tal visão: “Quando lidamos com o impar do espaço em que vivemos ou com o alimentar de uma criança, a resistência à figura masculina é muito grande, e eles desistiram. As mulheres aprendem a cuidar desde a infância. Ganham panelinhas e bonecas com mamadeiras. Por isso, a resistência em aceitar diaristas masculinos”, analisa. Valquíria acredita que essas questões referem-se a construções sociais, que se formam ao longo dos anos de uma educação para os meninos e outra para as meninas.

Há um consenso de que a sociedade tende a aceitar essa inversão de gêneros nas profissões, na medida em que os grupos vão conquistando seus espaços. Um maquiador masculino, por exemplo, há algumas décadas, era visto com o mesmo nariz torto com que Adauto é encarado hoje por algumas clientes. As políticas educacionais já discutem questões de gênero, aceitação do diferente e talvez, em um futuro próximo, com a devida licença poética, os filhos de Marineide aprendam a cantar uma versão adaptada a música de Chico Buarque de uma maneira diferente: “Beijou seu marido como se fosse o único”...

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