Preta, Juliana

Preta, Juliana escrito por Deibi Maciel

Inspirado nos relatos de Ingridy Macedo

Em memória de Maria de Jesus

CENA 1 -INT/DIA - SALA DE ESTAR Iniciamos com a tela da televisão de tubo no centro da tela em zoom out; uma transmissão extraordinária ao vivo da equipe de plantão de jornalismo é posta ao ar; informações como data (21/03), temperatura e clima são expostas num canto da tela.

A tela da televisão de tubo também reflete a imagem de CÍCERO (54 anos, negro, corpo robusto e forte), sentado no sofá, com o óculos no rosto, lendo a bíblia, e PEDRO (oito anos, corpo robusto, negro), sentado ao lado de CÍCERO, usando o celular na vertical para jogar. Ao fundo, ouve-se música gospel sendo reproduzida.

JORNALISTA Após a confirmação de quinze mortes no Estado de São Paulo causadas pelo novo coronavírus, o governador decretou, através de uma edição extraordinária do Diário Oficial, quarentena em todo o estado de São Paulo, como medida para conter a contaminação pelo vírus.

O isolamento, decretada nesta manhã de sábado, passará a valer a partir da próxima terça-feira. O governador deve fazer um pronunciamento na tarde de hoje, para explicar melhor a medida.

Em posicionamentos recentes, o presidente da República afirmou que a mídia está "superestimando o poder destruidor do vírus" e "propagando uma fantasia". Também disse que cancelar atividades não impedirá a propagação do vírus e que "a economia do país não pode parar".

A televisão continua ligada, em segundo plano; CÍCERO e PEDRO continuam distraídos, cada um com sua atividade. No fundo do cômodo, um muro baixo separa a sala de estar da cozinha, onde CÉLIA (48 anos, negra, cabelo cacheado preso, veste camisa e saia jeans à altura do joelho) cozinha e cantarola em segundo plano.

CENA 2 - INT/DIA - COZINHA A carne cozida borbulha na panela conteúdo da panela com uma colher de som conectada via Bluetooth ao música gospel em volume não muito

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sobre o fogo; CÉLIA mexe o de pau e cantarola. A caixa celular de CÉLIA reproduz a alto.

2.

CENA 3 - INT/DIA - QUARTO DE JULIANA. MARIA DE JESUS (pouco mais de oitenta anos, cabelos grisalhos, negra), com o cabelo encharcado de babosa e uma toalha pendurada nos ombros, está sentada na cama ao lado direito da entrada (uma das duas camas do quarto), aplicando babosa no cabelo de JULIANA (dezoito anos, travesti, negra, cabelo cacheado pouco abaixo dos ombros), que também está com uma toalha pendurada nos ombros. À direita da cama, uma cômoda com alguns perfumes (em destaque), cremes, joias e objetos de uso pessoal. A música gospel ainda ecoa, mas muito pouco intensa.

MARIA DE JESUS (admirada) E tu botou a mão nas coisa dele assim, sem dizer nada?

JULIANA (rindo) Ah, vó, quando é assim a gente já percebe logo de cara se a pessoa quer ou não quer.

MARIA DE JESUS Mas então vocês ficaram?

JULIANA (hesitante) É... Ficamos e não ficamos.

MARIA DE JESUS (num tom de reprovação, estalando a língua) Oxente, e tem isso de ficar e não ficar?

JULIANA A gente ficou...

MARIA DE JESUS Mas não foderam?

JULIANA (rindo, mas em tom de reprovação) Ai vó, a senhora tá que tá hoje, hein... Seu pastor sabe que você fala essas coisas?

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3.

MARIA DE JESUS (num tom sereno) Eu só tô dizendo o português claro.

JULIANA A gente não fodeu não... Não tinha onde. Ele queria ir no banheiro da balada, mas é horrível... Sabia que tem amiga minha que nunca transou assim, deitada numa cama? Só em banheiro, viela, rua...

MARIA DE JESUS (desgostosa) Deus me livre...

CÉLIA (O.S.) (gritando, sua voz ecoa desde a cozinha) O almoço tá pronto, pra mesa todo mundo!

CENA 4 - INT/DIA - COZINHA CÉLIA põe a mesa, posicionando as panelas, pratos e talheres.

Enquanto isso, CÍCERO e PEDRO chegam na cozinha, vindos da sala; CÍCERO tira os óculos do rosto e deixa-o sobre um dos móveis.

CÉLIA (entregando alguns copos a PEDRO, para que ele posicione-os sobre a mesa) Ajuda aqui a mãe, filho.

CÍCERO destampada as panelas, uma por uma, checando o que CÉLIA fez para o almoço. JULIANA entra na cozinha ao lado de MARIA DE JESUS, vindas do corredor à direita da cozinha; MARIA DE JESUS se apoia em JULIANA; ambas estão com o cabelo cheio de babosa e com toalhas penduradas nos ombros.

CÍCERO (amparando MARIA DE JESUS e ajudando-a a sentar) Deixa que eu ajudo.

CÍCERO cheira MARIA DE JESUS. CÍCERO Eita que tá cheirosa.

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4.

CÍCERO e JULIANA ajudam MARIA DE JESUS a se sentar.

CÍCERO Cuidado aqui, mãe.

MARIA DE JESUS (achando o cuidado excessivo, mas não recusando-o) Meu fio, não se preocupe que eu tô é véia, não é manca não.

JULIANA se senta à direita da avó e CÍCERO à esquerda.

CÍCERO (relevando o comentário) Eita que a Dona Maria tá que tá hoje, hein.

PEDRO se senta do outro lado do pai e CÉLIA caminha para o lugar restante, mas permanece de pé. CÉLIA é a primeira a se servir, montando um prato com pouca comida; os demais se servem após CÉLIA. MARIA DE JESUS Eu só tô falando a verdade, vocês é que ficam aí. A pessoa não pode falar nada que vocês já ficam 'ui ui ui'!

Enfim, CÉLIA termina o prato.

CÉLIA (colocando o prato que montou em frente à MARIA DE JESUS) Aqui, Dona Maria.

MARIA DE JESUS (tomando os talheres para almoçar) Deus abençoe, minha filha, Deus abençoe.

CÉLIA se senta e começa a servir a própria comida; todos terminam de se servir e começam a almoçar; JULIANA não põe carne em seu prato; CÉLIA é a última a montar o próprio prato e começar a comer.

MARIA DE JESUS (indignada, para JULIANA) Tu não vai pegar mistura não?

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5.

JULIANA (mastigando) Eu não quero comer carne mas não, vó.

Tenho dó dos bichinhos.

MARIA DE JESUS (em tom de reprovação) Mulher, tem que comer carne... Ó a finura dos braço, ó.

MARIA DE JESUS segura nos bíceps de JULIANA. CÍCERO (sério, num tom de profundo desgosto, com o olhar abaixado, encarando seu prato de comida) Não tem mulher nenhuma, mãe. O nome dele é Júlio.

MARIA DE JESUS, PEDRO e CÉLIA levantam o olhar para Cícero, assustados; JULIANA encara CÍCERO com raiva.

JULIANA (num tom de voz inflexível) Mulher sim. Por que, algum problema?

CÍCERO levanta o olhar e encara JULIANA. CÍCERO Nunca vi mulher nascer com pinto entre as pernas.

CÉLIA (assustada, tentando impedir uma discussão) Já chega, Cícero!

CÍCERO volta a comer; os demais encaram-no.

JULIANA (após alguns segundos de silêncio, disfarçando sua mágoa com raiva) Não se preocupa não, que logo mais o senhor não vai mais precisar olhar pra minha cara.

JULIANA se levanta da mesa e sai da cozinha. CÉLIA abaixa o olhar, desgostosa; PEDRO volta a almoçar.

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6.

MARIA DE JESUS (brava) Isso é jeito de falar, Cícero? É essa a educação que eu te dei?

Cícero enche a boca de comida; todos permanecem em silêncio.

CENA 5 - INT/DIA - CENTRAL DE ATENDIMENTO O espaço é amplo e bem iluminado; as paredes são brancas, com exceção de uma parede frontal, amarela, com a logo da empresa estampada. A sala é preenchida por bancadas brancas com detalhes verdes, repleta de computadores e separadas em espécies de cabines, onde fica cada atendente. Sons de digitação e vozes dos demais atendentes soam de maneira caótica. JULIANA, sentada em uma das cabines, usando headset com o logo da empresa, digita no computador enquanto conversa com um cliente na linha telefônica.

JULIANA (terminando de digitar) Tudo correto, senhora. [Pausa]. O religamento da senhora será efetuado em até três dias úteis. [Pausa]. Eu que agradeço, em nome da Eletro SP, pela paciência. Uma ótima tarde para a senhora. [Pausa]. Amém. [Pausa]. Amém, a senhora também.

JULIANA encerra a ligação, abre uma aba no YouTube que estava com um vídeo de música de uma ARTISTA TRANS pausado e dá play; em seguida, ela volta a digitar no computador. A GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS se posiciona afrente na sala e chama a atenção de todos.

GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS (em tom de voz intenso) Gente! [Pausa] Gente, um minuto, por favor!

Alguns dos atendentes da sala tiram o headset. JULIANA permanece digitando.

GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS (em tom de voz intenso) Gente! [Pausa]. Presta atenção aqui, todo mundo! O recado é importante!

JULIANA dá pause no vídeo de música no YouTube e tira o headset; alguns dos atendentes chamam a atenção dos colegas; enfim, a maioria tira o headset e passa a prestar atenção à Created using Celtx

7.

GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS; silêncio.

GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS (em tom de voz intenso) Obrigada! Bem, o recado é importante porque é sobre as medidas sanitárias adotadas pela empresa em frente à pandemia do coronavírus. Graças ao início da quarentena no estado, a empresa fica impossibilitada de praticar suas atividades presencialmente. Por isso, as atividades de trabalho de vocês migrarão, provisoriamente, para o modelo Home Office, o que significa que vocês vão passar a trabalhar em casa. Quem tem computador e acesso à Internet em casa começará as atividades em Home Office ainda essa semana e pra quem não tem a empresa vai suprir a necessidade de infraestrutura a partir da próxima semana... Durante o horário de almoço de vocês a gente vai fazer uma reunião pra responder as dúvidas de todo mundo e explicar direitinho como as coisas vão passar a funcionar, tudo bem?

YURI (O.S.) (murmura para si mesmo, insatisfeito) Horário de almoço?

GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS É isso, podem voltar ao trabalho e obrigada pela atenção.

A GERENTE DE PRODUÇÃO caminha para fora da sala; uma série de murmúrios e comentários tornam-se audíveis. Alguns retomam suas atividades, outros conversam entre si. JULIANA dá play em sua música novamente e põe os headset; a música que toca, todavia, não é a correspondente do vídeo de JULIANA, mas sim uma música gospel, que soa abafada.

MATCH CUT TO: CENA 6 - INT/TARDE - QUARTO DE JULIANA A música gospel em volume intenso vinda da sala soa, já abafada, no ambiente; a porta do quarto está fechada.

JULIANA, sentada sobre uma almofada numa cadeira de madeira Created using Celtx

8. maciça, em frente ao computador e usando o headset com o logo da empresa, conversa, desconfortável, com uma cliente.

JULIANA (esforçando-se para falar num tom de voz gentil) Mas senhora... [Pausa]. Senhora...

[Pausa]. Senhora, por gentileza...

[Pausa]. Por gentileza, senhora, sem o código do atendimento fica impossível eu ter acesso às informações do religamento da senhora. [Pausa]. Eu entendo, senhora, mas... [Pausa] Mas o acordo não foi efetivado e não consta nas informações às quais eu tenho acesso, então a senhora terá que, ou me dar o código do atendimento, ou iniciar um novo processo de negociação de dívida.

JULIANA ouve à cliente, irritada; esfrega a testa com impaciência.

JULIANA (Num tom de voz um pouco menos gentil, interrompendo a cliente) Senhora, senhora, sem o código do atendimento eu não posso fazer nada, infelizmente. [Pausa]. Não posso, senhora, infelizmente eu vou ter que encerrar o atendimento.

A voz da cliente, agora em tom mais elevado, é ouvida de maneira inteligível pelo som chiado que ecoa do headset de JULIANA. O som de música gospel, todavia, torna o som do headset quase imperceptível.

JULIANA (Impaciente) Senhora, em nenhum momento eu deixei de cumprir o meu trabalho ou fui desrespeitosa com... [Interrupção].

JULIANA expressa indignação em seu rosto.

JULIANA (brava, em tom de voz alterado) Traveco não, meu nome é Juliana!

[Pausa]. Ah, é? Enquanto a senhora tá aqui me xingando, o seu marido tá na rua dando o cu pra travesti dotada, Created using Celtx

9. sua babaca!

JULIANA encerra a chamada no computador, tira o headset da cabeça num movimento só e joga-o sobre a mesa, irritada.

JULIANA respira fundo, arruma o cabelo, esfrega o rosto e funga; lágrimas escorrem de seu rosto. JULIANA chora, abaixa a cabeça, deita-se com os braços cruzados na mesa e continua chorando. Após alguns segundos, o som da porta do quarto sendo aberto e a música gospel torna-se mais intensa.

MARIA DE JESUS (O.S.) Tá na hora de almoço, mia fia.

JULIANA engole o choro, levanta-se de sobre a mesa e, ainda sentada, olha para a porta.

CENA 7 - EXT/TARDE - QUINTAL JULIANA está sentada numa cadeira de praia; ao seu lado, MARIA DE JESUS, sentada numa cadeira de balanço; ambas estão com máscaras faciais e pepinos nos olhos, à sombra. Entre as duas, dois copos de vitamina de abacate postos sobre o piso.

A música gospel toca ao fundo.

JULIANA (cansada) Eu não sei se eu aguento ficar trancada nessa casa por muito tempo não, vó. Preciso sair, ver gente, se não eu acho que eu vou ficar louca aqui.

MARIA DE JESUS (estalando a língua, como quem descorda da neta por obviedade) Aguenta sim, é claro que aguenta. Pede pra Deus acalmar o seu coração e ele acalma, você vai ver se não acalma.

JULIANA A senhora falou com o meu pai, vó?

MARIA DE JESUS Falei sim, ele concordou que vai ficar todo mundo dentro de casa mesmo. Ele vai acompanhar os cultos pelo celular.

JULIANA E ele aceitou assim fácil?

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10.

MARIA DE JESUS Fácil? Seu pai? Tu não conhece a peça.

JULIANA e MARIA DE JESUS riem.

MARIA DE JESUS Mas eu disse pra ele que se eu morresse por culpa dele, ele não ia se perdoar nunca.

JULIANA fica em silêncio.

CENA 8 - INT/NOITE - QUARTO DE JULIANA JULIANA está sentada em sua cama (posicionada do lado oposto à entrada do quarto), em frente à uma agenda e uma caneta, alguns maços de dinheiro presos com elásticos e uma lata de bombons vazia. JULIANA termina de contar uma quantia em dinheiro, separa-o num maço, prende-o com elástico e anota o valor do maço na agenda, onde há outros valores anotados; no topo da página, a data 17/04/2020 e o título escrito em letras garrafais: "MORAR SOZINHA". Enfim, JULIANA soma as quantias e anota o resultado final: 2.726,00 Reais. JULIANA fecha a agenda, guarda a agenda e os maços de dinheiro na lata e guarda a lata no guarda-roupas.

CENA 9 - INT/TARDE - SALA DE ESTAR JULIANA está sentada no sofá, lendo um livro cuja capa exibe o título em letras garrafais: "CALIBÃ E A BRUXA". Ao seu lado, MARIA DE JESUS, com óculos no rosto, mexe no celular, dando pesados toques na tela com o dedo indicador. Em segundo plano, CÍCERO vem do corredor dos quartos e entra na cozinha, procurando o que comer.

MARIA DE JESUS (olhando para a tela do celular com estranhamento) Oxente.

MARIA DE JESUS bate no braço de JULIANA, chamando-lhe a atenção. JULIANA interrompe a leitura e dirige olha para MARIA DE JESUS. MARIA DE JESUS (mostrando a tela do celular para JULIANA, com estranhamento) Ju, olha isso aqui, mulher. A irmã Ivonete mandou no grupo da igreja, tão dizendo que essa tal de claroquina é remédio pro covid.

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11.

JULIANA (olhando pra tela do celular) Cloroquina, vó. E isso aí é mentira, viu? Não tem prova nenhuma, médico nenhum que diz que isso funciona.

O celular de CÍCERO toca; ele atende à chamada e conversa, em segundo plano, simultâneo à conversa de MARIA DE JESUS E JULIANA, que ocorre em primeiro plano.

CÍCERO Alô? [Pausa] Sim, sou eu mesmo. [Pausa longa]. Afastado? Mas e o contrato?

[Pausa]. Suspenso, como assim? [Pausa longa]. Mas e o convênio, o vale alimentação, como fica? [Pausa longa].

Tudo? [Pausa]. E não tem data pra voltar, não? [Pausa longa]. Entendido.

[Pausa]. Entendido. [Pausa]. Obrigado.

MARIA DE JESUS (encarando ao celular e depois à JULIANA, admirada) E é? Mas por que que Ivonete manda uma coisa dessa no grupo?

JULIANA Porque não sabe das coisas, vó. Mas tem gente do governo que sabe e é quem manda espalhar esse tipo de mentira.

MARIA DE JESUS (num misto de indignação e confusão) Mas pra quê isso?

JULIANA Pra enganar o povo vó. Tem gente que toma isso e acha que tá protegido. Os ricos fazem isso pra impedir que os pobres parem de trabalhar, porque aí é prejuízo pra eles.

MARIA DE JESUS (indignada) E esses desgraçados brincam com a vida dos outros como se fosse nada, né?

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12.

JULIANA (levantando o livro e voltando a ler) Tem gente que acha que a gente não é gente, vó.

MARIA DE JESUS aproxima o celular da boca e grava uma mensagem de áudio.

MARIA DE JESUS (brava) Olha Ivonete, você para de mandar notícia falsa no grupo, viu. Vigia, varoa!

MARIA DE JESUS envia a mensagem de áudio; JULIANA ri, ainda lendo. CÍCERO desliga a ligação e esfrega a cabeça, aflito.

MARIA DE JESUS (percebendo o nervosismo do filho) Que foi, Cícero? Quem era no telefone, filho?

CÍCERO (desgostoso e irritado, caminhando para a sala de estar) Era da empresa... Suspenderam meu contrato.

JULIANA interrompe a leitura e observa a conversa, preocupada, variando o olhar, ora para MARIA DE JESUS, ora para CÍCERO. MARIA DE JESUS (alarmada) Vala-me, Deus! Como assim, filho? Te mandaram embora, foi?

CÍCERO (estressado) Não, não mandaram embora, mas suspenderam o meu vínculo com a empresa. Como não tô trabalhando, não vou receber.

MARIA DE JESUS (indignada) E pode isso?

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13.

CÍCERO (indignado) Aparentemente, pode. Disseram que tem uma cláusula no contrato.

JULIANA (preocupada, encarando o pai) Mas e o convênio?

CÍCERO respira fundo, põe as mãos na cintura, abaixa o rosto e balança a cabeça negativamente.

CENA 10 - INT/NOITE - QUARTO DE JULIANA JULIANA e MARIA DE JESUS estão deitadas, cada uma em sua cama, prontas para dormir; a luz do quarto está apagada e a janela aberta, iluminando fracamente o ambiente.

MARIA DE JESUS (serena) Não se preocupe, mia fia, que a gente vai dar um jeito.

JULIANA (aflita) Que jeito, vó? Cícero tá cheio de dívidas, e agora sem dinheiro, sem convênio...

MARIA DE JESUS O convênio é o de menos.

JULIANA Claro que não. Como é que a senhora vai se cuidar?

MARIA DE JESUS Mas o câncer já sumiu, minha filha.

JULIANA Mas pode voltar, vó.

MARIA DE JESUS Deus me livre, vira essa boca.

JULIANA Eu sei vó, mas precisa tomar cuidado.

A senhora sabe que o SUS é mais complicado pra tratamento de câncer.

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14.

MARIA DE JESUS (desgostosa) É.

Silêncio.

MARIA DE JESUS Mas daqui a pouco as coisas voltam ao normal e seu pai volta pro emprego.

JULIANA Tomara. Boa noite, vó.

MARIA DE JESUS Boa noite, minha fia, dorme com Deus.

JULIANA (virando-se para o outro lado) Amém.

JULIANA fecha os olhos. MARIA DE JESUS levanta-se, ajoelha-se aos pés da cama, junta as mãos, abaixa a cabeça e sussurra uma oração.

CENA 11 - INT/TARDE - CORREDOR A porta do quarto de CÍCERO e CÉLIA está aberta. CÍCERO está sentado na cama de casal; à sua frente, papéis de faturas e contas espalhados sobre a cama; CÉLIA, em pé, ao pé da cama, encara os papéis que estão entre ela e o CÍCERO. CÍCERO (desesperançoso) Não tem como, Célia. Nem ao auxílio eu tenho direito, tô de carteira assinada ainda.

CÉLIA (aflita) Mas você não tá recebendo.

CÍCERO (impaciente) Não tô recebendo, mas tô com vínculo.

CÉLIA (esforçando-se para agir de maneira racional) Calma Cícero, deixa eu pensar. Pelo menos eu consegui auxílio. Com os seiscentos reais dá pra garantir pelo Created using Celtx

15. menos a comida. As contas a gente paga o que puder e as prestações do carro... a gente fica devendo, não tem o que fazer.

CÍCERO Mas e o plano de saúde?

CÉLIA abaixa a cabeça, dá de ombros, balança a cabeça negativamente, respira fundo e bate com as mãos na cintura, sem saber o que falar.

CÍCERO Sem o plano de saúde não tem como, Celinha. Tem um monte de exame agendado.

CÉLIA Não tem jeito, Cíço. É isso ou deixar de comprar comida pra dentro de casa.

Eu disse que essa não era a hora de comprar um carro!

CÍCERO (bravo) E queria o quê, Célia? Andar de ônibus pro resto da vida? Se fosse esperar sobrar dinheiro pra comprar as coisas, a gente morria sem nada.

CÉLIA permanece calada.

CÍCERO Além do mais, eu quis comprar o carro foi pra gente ir fazer os passeios de fim de semana que você vivia planejando e a gente nunca ia.

CÉLIA Nem se faz se sonso, Cícero, que você comprou esse carro pra você, não pra mim. Você sempre decide as coisas sozinho, por você.

CÍCERO Vai começar com isso de novo, Célia?

Numa hora dessas?

CÉLIA encara CÍCERO com indignação e repulsa.

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16.

JULIANA (O. S.) Mãe!

CÉLIA encara CÍCERO por mais alguns segundos, antes de sair de seu quarto e caminhar pelo corredor até JULIANA, que está parada na porta de seu próprio quarto, segundo uma lata de bombons embaixo do braço.

CÉLIA Que foi, Ju? JULIANA tira a lata de debaixo do braço e entrega à CÉLIA, que encara JULIANA, confusa, toma a lata, abre-a e encara com admiração os maços de dinheiro.

CÉLIA (espantada) Que dinheiro é esse filha? [Estala os lábios]. Filho?

JULIANA Filha, mãe. Esse dinheiro eu tava juntando pra ir morar sozinha. Tem quase três mil aí.

CÉLIA (estendendo a lata à JULIANA) Não, Ju, esse dinheiro é seu.

JULIANA Eu sei. Eu tô dando pra ajudar com as contas e com os exames da vó.

CÉLIA A Dona Maria sabe disso?

JULIANA Não, e nem vai saber.

CÉLIA sorri, com pesar, tampa a lata e abraça JULIANA. CENA 12 - EXT/TARDE - QUINTAL O portão do quintal está aberta; um muro de altura média separa a casa da rua. Ao pé do portão, sacolas de mercado postas sobre o chão. PEDRO, usando máscara para proteger boca e nariz, toma algumas das sacolas nas mãos e caminha de volta para casa. JULIANA, também de máscara, vem desde casa e se aproxima do portão. O ENTREGADOR (vinte e dois anos, negro, magro, cabelo black power), também de máscara, aproxima-se desde o lado contrário do muro, traz algumas sacolas, abaixaCreated using Celtx

17. se e colaca-as sobre o chão.

ENTREGADOR (recuperando a postura) Essas são as últimas.

JULIANA Acabou, já?

ENTREGADOR Acabou, sim.

JULIANA E quanto ficou?

ENTREGADOR (de maneira maliciosa) Ficou muita.

JULIANA olha com estranhamento para o ENTREGADOR. ENTREGADOR Muita vontade de te ver de novo.

JULIANA dá um breve riso e revira os olhos e ri com certo desdém.

ENTREGADOR Tô falando sério, pô.

JULIANA É, mas algumas vontades são perigosas demais de realizar.

ENTREGADOR Que bom, porque eu amo um perigo.

PEDRO chega ao portão do quintal e toma algumas das sacolas nas mãos.

ENTREGADOR E aí gata, como é que eu faço pra conseguir seu telefone?

PEDRO (dando as costas e caminhando para casa) Não é gata não, é viado.

O ENTREGADOR olha com estranheza para JULIANA, que fica visivelmente desconcertada.

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18.

JULIANA Ignora o meu irmão, ele é um escroto.

Mas e aí, como que a gente fica?

O ENTREGADOR abaixa o olhar e tira a nota fiscal do bolso da calça.

ENTREGADOR (de maneira fívola) Fica trezentos e doze, e oitenta e nove centavos.

JULIANA, constrangida, tira o dinheiro do bolso, conta as notas e entrega o dinheiro ao ENTREGADOR, que vai embora logo em seguida. JULIANA fecha a portão do quintal e observa o ENTREGADOR ir embora. PEDRO retorna para pegar mais sacolas; JULIANA se põe na frente de PEDRO. JULIANA Você é louco, muleque? Por que você falou aquilo?

PEDRO Porque é a verdade, ué. Você fica fingindo que é mulher, mas é um traveco.

JULIANA segura PEDRO pelo braço, com agressividade.

JULIANA E você é um pirralho babaca que não sabe de nada da vida.

PEDRO (bravo, em tom de voz elevado) Me solta ou eu vou chamar o meu pai!

JULIANA Seu pai é outro idiota que não sabe de nada.

CÉLIA (O.S.) Juliana, solta o menino!

JULIANA encara PEDRO com raiva, solta-o num empurrão, com agressividade e caminha para dentro de casa, passando por CÉLIA, que observava a situação da porta de casa. A música vinda da televisão é ouvida.

MATCH CUT TO:

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19.

CENA 13 - INT/NOITE - SALA DE ESTAR A televisão da sala de estar transmite uma live de uma ARTISTA TRANS, que canta e performa. JULIANA e MARIA DE JESUS estão sentadas no sofá, com um balde de pipoca cada uma, assistindo à live.

MARIA DE JESUS Mas mia fia não pode dizer uma coisa dessas pro menino, tem que saber conversar com a criança.

JULIANA Ele não é nenhum bebezinho, vó.

MARIA DE JESUS Eu sei que não, o que ele fez não tá certo. Mas você tem que entender que ele não entende dessas coisas, a mente dele é diferente da sua.

CÍCERO entra na cozinha, vindo de seu quarto, abre a geladeira, pega uma garrafa d'água e toma um gole.

JULIANA Eu sei vó, mas eu tô cansada de entender todo mundo. E quem é que me entende?

MARIA DE JESUS (rindo) A vó entende, ou tenta né.

JULIANA e MARIA DE JESUS riem. CÍCERO desvia sua atenção para a televisão.

CÍCERO (escandalizado) Misericórdia.

CÍCERO vai para a sala de estar e encara a televisão por mais alguns segundos. JULIANA e MARIA DE JESUS encaram CÍCERO, assustadas.

CÍCERO Que porcaria é essa dentro da minha casa?

MARIA DE JESUS Calma, filho, é só uma apresentação que a gente tá vendo.

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20.

CÍCERO E isso é coisa que se veja, mãe? Olha isso! Essa gente deveria ter vergonha!

JULIANA Essa gente o quê? Bicha? Travesti? É esse o problema?

CÍCERO Dentro da minha casa eu não quero esse tipo de coisa.

JULIANA Esse tipo de coisa é o que eu sou, Cícero, você gostando ou não.

CÍCERO Dentro da minha casa não.

CÍCERO pega o controle da televisão, desliga-a e sai da sala de estar, com o controle remoto na mão.

CENA 14 - INT/TARDE - QUARTO DE JULIANA JULIANA está em frente ao computador, com o sistema de telemarketing aberto, usando o headset. A porta do quarto está fechada e a música gospel soa abafada, em volume intenso, vinda da sala de estar.

JULIANA (falando num tom de levemente elevado) Por gentileza, o senhor poderia me passar o número do protocolo? [Pausa].

O número do protocolo! [Pausa]. Nove.

Zero. Dois. Sete. Dois. [Pausa]. Ah, sim, doze! Sete. Zero. [Pausa]. São sete números zero?

JULIANA coça a cabeça, estressada.

JULIANA Perdão senhor, por gentileza, o senhor poderia aguardar só um segundo?

[Pausa]. Eu entendo, senhor, mas é um segundo, só um instante, por favor.

JULIANA retira o headset, impaciente, levanta-se, caminha até a entrada do quarto, abre a porta e vai até o corredor.

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21.

JULIANA (gritando) Abaixa essa merda! Eu tô trabalhando!

JULIANA volta para o seu quarto e bate a porta contra o batente. JULIANA caminha até sua mesa de trabalho e põe o headset novamente. O volume da música é abaixado.

JULIANA Obrigado por aguardar, senhor. O seu número de protocolo, por gentileza?

CENA 15 - INT/DIA - COZINHA CÉLIA está preparando o almoço, picando legumes na pia; PEDRO está na sala, deitado no sofá, de pernas para o ar, segurando o celular e assistindo uma aula online; na mesa de centro, um caderno com algumas anotações. JULIANA entra na cozinha, abre a geladeira e procura por algo, mas parece não encontrar.

JULIANA (para Célia) Mãe, cadê aquela barra de chocolate com amendoim que tava aqui no congelador?

CÉLIA Não sei, filha. Não tá aí, tem certeza?

JULIANA (procurando dentro da geladeira) Tenho, não tá aqui...

JULIANA procura um pouco mais, mas não encontra. Enfim, ela fecha a geladeira.

JULIANA Pedro, você viu o chocolate que tava aqui na geladeira?

PEDRO (abaixando as pernas e sentando no sofá) O de amendoim? Eu comi.

JULIANA Eu não acredito!

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22.

CÉLIA (em tom de desaprovação) Comeu, Pedro Henrique?

JULIANA Como assim, comeu? O chocolate era meu!

PEDRO Eu não sabia!

JULIANA É claro que sabia! Eu comprei um pra cada um, eu disse que o de amendoim era meu! Você comeu duas barras de chocolate sozinho?

CÉLIA Calma, Ju. JULIANA Calma não, mãe. Eu me mato trabalhando todo dia, ouvindo gente idiota falando merda no meu ouvido e não posso comer um chocolate porque o egoísta do seu filho não sabe pensar nos outros!

PEDRO Egoísta é você! Quem mandou não comer o chocolate logo?

JULIANA Muleque, você é muito babaca!

CÍCERO entra na cozinha.

CÍCERO Que discussão é essa? O que que tá acontecendo aqui?

JULIANA abaixa a cabeça, desgostosa.

CÉLIA Pedro comeu um chocolate que não era dele.

CÍCERO Ué, o meu filho não pode mais comer um chocolate? Desde quando comida tem dono nessa casa?

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23.

Silêncio. JULIANA permanece imóvel por dois segundos e então sai da cozinha. CÉLIA suspira, encara PEDRO e volta a cozinhar. CÍCERO vai para a sala e vê a lição de PEDRO. CÍCERO Precisa de ajuda, filho?

CENA 16 - INT/TARDE - QUARTO DOS PAIS CÍCERO está sentado na cabeceira da cama de casal; CÉLIA está em pé aos pés da cama; JULIANA está sentada numa cadeira, de frente para os pais.

CÉLIA Mas o retorno é obrigatório?

JULIANA É, mãe, não tem como continuar em Home Office não. Tá saindo caro pra empresa e o presidente já soltou decreto pra um monte de coisa voltar a funcionar.

CÉLIA Mas tem mais de mil pessoas morrendo todo dia!

JULIANA Você acha que presidente tá ligando pra isso, mãe? O cara tirou direto de auxílio pra um monte de gente, deixou de repassar dinheiro pro combate à pandemia, demitiu dois ministros da saúde em menos de um mês... Eu falei pra vocês não votarem nesse cara.

CÍCERO E o que adianta ficar falando de política agora? Eu quero saber é da gente, o que que a gente vai fazer.

JULIANA Não tem o que fazer. Eu preciso trabalhar.

CÉLIA Mas e a sua avó? É uma exposição muito grande, Juliana, até pra você... Pegar transporte público, minha filha...

JULIANA Se vocês tivessem me ajudado a tirar Created using Celtx

24. minha carteira, eu podia ir dirigindo o carro do Cícero, mas nem isso.

CÍCERO (corrigindo-se) Cícero? Eu sou seu pai, Juli...

[Hesita]. Ju. CÉLIA Seu pai pode te levar e buscar.

JULIANA Melhor não. Ia ser quatro viagens ao invés de duas, ia gastar demais. Não tem o que fazer.

CÍCERO Então você não vai poder mais dormir com a sua avó. E nem chegar perto dela.

JULIANA Como assim?

CÍCERO É pra segurança dela. Você pode ir pro quarto do Pedro e ele vai pro seu. A gente vai tomar todos os cuidados pra ninguém ficar perto de você.

JULIANA Mas eu já vou tomar todas as medidas de segurança no trabalho.

CÍCERO Mesmo assim.

JULIANA (incrédula) Eu não tô acreditando nisso. Você concorda com isso, mãe?

CÉLIA (aflita) É o melhor pra sua avó, filha...

CÍCERO encara CÉLIA com dureza quando ouve a palavra "filha".

JULIANA suspira, ri, sarcástica, e balança a cabeça negativamente.

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25.

CÍCERO Todo mundo teve que fazer sacrifício.

A gente também abriu mão dos cultos pela sua avó.

JULIANA (irônica) Ah, como se fosse um sacrifício não ir pra igreja.

CÉLIA Ju, por favor.

JULIANA respira fundo e sai do quarto dos pais.

CENA 17 - INT/NOITE -QUARTO DE JULIANA JULIANA, desgostosa, organiza suas roupas e objetos pessoais em uma mochila e uma caixa de papelão; muitas de suas coisas estão sobre a cama. Atrás de JULIANA, MARIA DE JESUS encara a neta com aflição.

MARIA DE JESUS Isso é besteira de seu pai, mulé.

Daqui a pouco ele deixa de manha.

JULIANA O pior é que ele tem razão, vó. É melhor pra senhora ficar longe de mim.

MARIA DE JESUS (dando um tapa no braço de JULIANA) Você não fala uma coisa dessas. Quando que vai ser bom pra uma avó ficar longe da neta?

JULIANA vira-se para a avó e encara-a com um sorriso ingênuo.

MARIA DE JESUS Que é?

JULIANA Acho tão bonitinho a senhora me tratando no feminino. Queria que minha mãe me chamasse assim também.

MARIA DE JESUS abaixa a cabeça, sem jeito. JULIANA vira-se para a cama novamente e organiza suas coisas.

JULIANA Mas é mais seguro pra senhora assim, Created using Celtx

26. vó. Não quero pôr a senhora em risco.

MARIA DE JESUS Com fé em Deus vai dar tudo certo. Tem que trabalhar, não tem jeito. Mas óia...

MARIA DE JESUS bate no braço de JULIANA. JULIANA se vira para MARIA DE JESUS quando sente o tapa em seu braço.

MARIA DE JESUS Não vai se isolar de todo mundo agora, hein. Não tem condições, minha fia.

JULIANA Vai ficar tudo bem, vó.

JULIANA e MARIA DE JESUS se encaram com emotividade e enfim se abraçam.

JULIANA Vou sentir saudades, vó.

MARIA DE JESUS Vai nada, que eu não vou deixar não.

Vou ficar de junto de você, tu vai ver.

PEDRO entra no quarto, trazendo uma mala com suas coisas.

MARIA DE JESUS E JULIANA desfazem o abraço e encaram PEDRO. CENA 18 - INT/NOITE - QUARTO DE PEDRO JULIANA entra no quarto de PEDRO, põe sua caixa e mochila num canto do cômodo, abre o guarda-roupa vazio e dá uma olhada.

JULIANA pega um cobertor, encara a cama baixa e em formato de carro e aperta o colchão com o pé, fazendo soar o som do plástico que reveste o colchão. JULIANA suspira, desgostosa e impaciente, e apaga a luz. Enfim, JULIANA deita-se na cama e o som do plástico do colchão é ouvido até que JULIANA se acomode. O silêncio ambiente, a respiração de JULIANA e escuro permanecem por mais alguns segundos.

CENA 19 - INT/DIA - MONTAGEM JULIANA acorda, toma banho, se veste, arruma o cabelo, prepara sua mochila, põe a máscara no rosto, sai de casa, pega um ônibus, caminha na rua e chega no trabalho. Na entrada do prédio, um segurança, também usando máscara, mede a temperatura e põe um pouco de álcool em gel na mão de cada funcionário que entra. Os funcionários também usam máscara.

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27.

CENA 20 - INT/DIA - COPA DA EMPRESA JULIANA, usando máscara, entra no cômodo (uma espécie de cozinha improvisada, com mesa, pia, geladeira e micro-ondas) tira a mochila das costas e coloca-a sobre a mesa, pega a marmita de dentro da mochila e coloca-a na geladeira. CLÁUDIA (aproximadamente 45 anos, usa óculos, cabelo curto e preso num rabo de cavalo, atitude firme) , MARIA (23 anos, olhar perdido) e YURI (25 anos, extrovertido, fala alto e rápido), todos com a máscara no queixo, com nariz e boca à mostra, conversam em frente à pia, enquanto tomam café em copos descartáveis.

MARIA Morreu a mãe e o pai, a bixinha...

CLÁUDIA (desgostosa da ideia) Imagina perder mãe e pai assim de um vez, que horror...

MARIA (fazendo o sinal da cruz, temerosa) Deus me livre e guarde.

JULIANA fecha a geladeira e retorna para a mesa, onde está sua bolsa. YURI toma um gole de café, olha para o lado e reconhece JULIANA. YURI (para JULIANA, caminhando em direção à JULIANA para abraçá-la) Menina, eu não sabia que tu vinha!

JULIANA assusta-se com a aproximação de YURI, toma sua bolsa e segura em frente ao corpo. YURI, percebendo o desconforto de JULIANA, para imediatamente sua caminhada. Desconcertada, JULIANA põe a bolsa nas costas, disfarçando seu nervosismo.

CLÁUDIA e MARIA encaram JULIANA com estranhamento.

JULIANA Yuri! Que saudade. Você tá bem?

YURI (confuso) Eu é que te pergunto, Juliana. Fui te abraçar e você fugiu de mim como se tivesse visto o capeta. Tu tá bem, mulher?

JULIANA ri.

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28.

JULIANA Desculpa, é que a minha vó mora comigo, aí já viu né... Tenho que ser cuidadosa por causa dela.

YURI (desconcertado) Ah sim... Desculpa, fui sem noção.

JULIANA O que é isso, imagina. Eu tava morrendo de saudades de você também.

Uma pena eu não poder te abraçar...

YURI Pois é... Mas a gente vai ter tempo pra isso.

JULIANA Vai sim.

JULIANA mantém um sorriso amarelo no rosto; YURI suspira, sem jeito.

JULIANA Então eu já vou indo...

YURI (sai da frente de JULIANA imediatamente) Ah sim, desculpa.

JULIANA (caminhando para a saída, numa postura desconfortável) Imagina. Eu vou lá então.

JULIANA sai do cômodo. YURI se reúne novamente com CLÁUDIA e MARIA. CLÁUDIA Muito estranho esse rapaz.

YURI Que rapaz, Claudia? O nome dela é Juliana.

CLÁUDIA encara YURI com olhar de deboche.

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29.

CLÁUDIA (soltando um murmúrio de desaprovação) Rum. MARIA (ponderando) Tá certo ele... Tem que pensar na avó mesmo.

YURI (encara MARIA com desapropriação) Ele? YURI toma o último gole de café, joga o copo descartável no lixo, põe a máscara no rosto da maneira correta e caminha para a saída.

YURI As duas madame, vou te contar, viu. Eu vou é trabalhar que meus boleto tão me esperando no fim do mês.

CENA 21 - EXT/NOITE - QUINTAL JULIANA alcança o portão de casa, pega a chave em sua bolsa, abre o portão, adentra o quintal e fecha o portão atrás de si. JULIANA tira a máscara do rosto, suspira de alívio e caminha pelo quintal até o porta de casa, que está fechada; ao lado da entrada, um balde com água e sabão e um banco com uma toalha e um pote de álcool em gel. Colada à porta, um bilhete. JULIANA encara tudo com desconfiança, toma o bilhete em mãos e lê.

JULIANA (incrédula e irritada) Puta que pariu.

Desanimada e impaciente, JULIANA amassa o bilhete e joga-o no chão. Em seguida, JULIANA passa álcool em gel nas mãos e braços. JULIANA tira a bolsa das costas e joga-a no chão.

JULIANA tira os sapatos e coloca-o num canto ao lado do banco. JULIANA, desconfortável, tira a roupa (ficando apenas com a roupa íntima), joga-a dentro do balde com água e sabão e se enrola na toalha sobre o banco. Finalmente, JULIANA toma sua bolsa e seu tênis em mãos, põe a máscara no rosto e, enrolada na toalha, entra em casa.

CENA 22 - INT/NOITE - SALA DE ESTAR MARIA DE JESUS está sentada no sofá, assistindo à novela que Created using Celtx

30. passa na televisão. Ao lado, PEDRO joga no celular. Na cozinha, CÉLIA prepara o jantar. JULIANA entra, de toalha, segurando sua mochila com uma das mãos.

MARIA DE JESUS (levantando-se e caminhando devagar em direção à JULIANA) Ó ela aí, chegou. Como tu tá, minha fia?

JULIANA (irritada) Eu pareço tá bem, vó?

JULIANA fecha a porta da casa e põe sua mochila e tênis num canto ao lado da entrada. CÉLIA percebe que MARIA DE JESUS está se aproximando de JULIANA, bota o pano de prato no ombro direito e corre para impedir.

CÉLIA (gritando e correndo para a sala) Não, Dona Maria, não pode abraçar!

CÉLIA alcança MARIA DE JESUS antes dela alcançar JULIANA. CÉLIA (forçando MARIA DE JESUS a se sentar) Senta aqui que o Ju precisa passar.

JULIANA se levanta, cruza os braços e encara CÉLIA, irritada.

JULIANA Sério isso, mãe? A senhora não acha que tá exagerando um pouquinho não?

CÉLIA (sentando MARIA DE JESUS e encarando JULIANA) Não tô, não. E pode se acostumar que vai ser assim todo dia.

JULIANA Mãe, eu não preciso usar máscara dentro de casa, eu usei o dia todo!

CÉLIA (incrédula, pondo as duas mãos na cintura) Tem certeza que não tirou, Ju?

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31.

JULIANA É claro que eu tenho, mãe. Eu deixei de almoçar com os meus amigos, de abraçar os meus amigos. Eu não sou nenhuma irresponsável não.

CÉLIA desvia o olhar e abaixa os braços, contrariada.

JULIANA E também não tem condição nenhuma eu ficar pelada lá fora.

CÉLIA (fortemente contra) Ah, mas com essa roupa suja de ônibus você não vai entrar mesmo!

JULIANA Mãe, eu já ia pro banheiro de qualquer jeito.

CÉLIA Ah, minha filha, mas até lá o estrago já tá feito!

JULIANA (surpresa, com um sorriso no rosto) O quê?

CÉLIA Vamo fazer assim: você deixa a roupa lá fora, toma um banho e depois pode tirar a máscara.

JULIANA Mãe, a senhora me chamou de filha.

CÉLIA (confusa, para por um segundo) Não chamei não.

PEDRO, JULIANA, MARIA DE JESUS (uníssonos) Chamou sim!

CÉLIA permanece sem ação, confusa.

JULIANA Me chama de filha de novo?

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32.

CÉLIA (dando de ombros e voltando à cozinha) Vai tomar banho, Ju! JULIANA (caminhando atrás de CÉLIA, estendendo os braços para ela e rindo) Me chama de novo, só mais uma vez!

CÉLIA se vira e bate em JULIANA com o pano de prato, tentando afugentá-la.

CÉLIA (brava) Vai tomar banho, Ju! JULIANA ri da CÉLIA, persegue-a até a entrada da cozinha e enfim se dirige ao banheiro.

CÉLIA (para si mesma e depois para PEDRO) Olha o que ele fez, agora vou ter que trocar o pano de prato. Pedro, meu filho, pega um pano de prato no varal pra mamãe!

CENA 23 - INT/NOITE - QUARTO DE PEDRO JULIANA tira a toalha enrolada em sua cabeça, joga-a sobre a cama, toma em mãos um pote de creme de pentear e passa o produto no cabelo. Ouve-se três batidas na porta.

JULIANA (finalizando o cabelo, de costas para a porta) Entra!

CÉLIA abre a porta e dá um passo afrente, mantendo-se na entrada.

CÉLIA Daqui a pouco eu trago seu jantar, viu filha?

JULIANA (ainda arrumando o cabelo, vira-se para trás, confusa) Ué, eu já tô indo jantar.

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33.

CÉLIA abaixa o olhar, pesarosa CÉLIA É que eu e o seu pai conversamos e a gente acha melhor você não ficar muito perto da sua avó, pra não expor ela a nada...

JULIANA (para de mexer no cabelo, mantém os braços imóveis) Mas mãe eu tomei todos os cuidados, fiz tudo que a senhora disse.

CÉLIA Eu sei filha, mas...

CÉLIA balança a cabeça negativamente e suspira, sem saber o que falar.

JULIANA (abaixa as mãos) Isso é coisa do Cícero, não é?

CÉLIA Seu pai só tá sendo cuidadoso, só isso.

JULIANA É, e eu que me foda trabalhando que nem uma cadela pra chegar em casa e ficar trancada num quarto!

CÉLIA fica calada por alguns segundos.

CÉLIA (hesitante) Se você precisar de algo é só me mandar mensagem e eu pego pra você, tá? E se for sair do quarto, não esquece a máscara, filha.

JULIANA dá as costas pra CÉLIA, irritada.

CÉLIA A mãe te ama, filha.

CÉLIA sai do quarto, segura a porta e puxa-a para fechá-la.

Antes de fechar a porta, todavia, JULIANA intervém.

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34.

JULIANA (imóvel) Mãe!

CÉLIA entra no quarto novamente.

JULIANA Como foi com a vó, no médico, hoje?

CÉLIA Foi tudo bem, mas os médicos marcaram mais exames.

JULIANA Tá bom.

CÉLIA encara JULIANA por um instante, sai do quarto e fecha a porta. JULIANA permanece imóvel.

CENA 24 - INT/TARDE - CENTRAL DE ATENDIMENTO JULIANA está em sua mesa, em frente ao computador, com os headset posto e usando máscara; JULIANA tecla brevemente e em seguida inicia mais um atendimento.

JULIANA Departamento de religamento, Eletro SP, boa tarde, meu nome é Juliana. Com quem falo?

CAROLINA (O. S.) (fala humilde, voz filtrada pelo telefone) Boa tarde, meu nome é Carolina.

JULIANA Boa tarde, Carolina. No que posso ajudar?

CAROLINA (O. S.) É que agora há pouco um moço veio aqui desligar a energia, eu acho que foi engano...

JULIANA permanece sem reação por um segundo, confusa. No instante seguinte, ela se põe alerta.

JULIANA Tudo bem, dona Carolina, a senhora pode, por gentileza, me informar o número da instalação elétrica da Created using Celtx

35. senhora?

CAROLINA (O. S.) (um pouco mais animada, apressandose) Posso sim, minha filha, eu tô vendo numa conta aqui. 96, 06, 19, 27, 30.

JULIANA digita o número no computador.

JULIANA Só um momento, dona Carolina.

CAROLINA (O. S.) Tudo bem, minha filha.

JULIANA checa o status da ligação indicada por CAROLINA no sistema; nele, consta os dados pessoais de Carolina e a pendência de três faturas não pagas: Maio, Junho e Julho de 2020.

JULIANA (sem jeito) Dona Carolina, aqui no sistema consta o não pagamento das três últimas faturas. Por esse motivo a instalação da senhora foi cortada.

CAROLINA (O. S.) (aflita) E não tem jeito de religar?

JULIANA A única maneira de ocorrer a religação é com a quitação das dívidas, dona Carolina.

CAROLINA permanece em silêncio por um segundo; JULIANA, preocupada, põe-se a ouvir atentamente a ligação.

CRIANÇA (O. S.) (três anos de idade) Conseguiu mãe? Mãe? Tá chorando, mãe?

Não chora.

CAROLINA (O. S.) (fungando) Pera aí, filho, a mãe tá no telefone.

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36.

JULIANA (preocupada) Dona Carolina, tudo bem?

CAROLINA (O. S.) (fungando novamente, com a voz embargada pelo choro) Juliana... [Funga]. Ãnn. Minha filha, eu vou te falar a verdade. Tá com quatro meses que eu fui despedida...

Tenho três filho pequeno, sou mãe solteira... Eu realmente não paguei as última conta, mas eu vou pagar. Eu vou. Mas agora eu num posso, porque meus fio precisa comer, e nem pra isso a gente tem direito. A gente tá se virando na base de marmita e doação...

Eu tô procurando emprego, mas nessa pandemia tá difícil. Num tenho com quem deixar meus filho e eles também num pode sair de casa por conta do vírus. O mais velho tá tendo aula pelo celular, a vizinha deu a senha da Internet pra ele... Mas sem luz não tem como ficar não. Como que meus filho vão estudar, passar o dia inteiro no escuro? De dia até que vai, mas e a noite? Sem tevê, sem celular, sem luz?

JULIANA (desconcertada, aflita) Dona Carolina, eu sinto muito... Mas infelizmente, sem a quitação da dívida, não tem como fazer o religamento.

CAROLINA (O. S.) (apelando) Mas minha filha, eu passei a minha vida toda pagando as contas tudo certinho, nunca devi nada pra banco, nunca tive um cartão de crédito... Tá pra mais de dez anos que eu pago a luz desse barraco, nunca devi nada, mesmo quando o valor da conta vinha absurdo!

Três criança em casa, 180 reais a conta de luz! Eu não usei tudo isso.

Uma vez a conta deu 700 e vocês quase me obrigaram a pagar, eu tive que fazer reclamação no procom! 700 reais Created using Celtx

37. numa casa com dois cômodos, uma geladeira e tevê, isso não existe!

JULIANA Dona Carolina, eu...

CAROLINA (O. S.) (continua seu apelo) Tá pra mais de dez anos que nunca deixei de pagar uma conta. E agora que eu tô passando fome vocês me deixam sem energia em casa? Eu tenho direito à energia, eu sou filha de Deus também!

JULIANA Eu entendo a senhora, Dona Carolina, mas por favor, tenta me entender também. Eu queria poder ajudar, mas eu sou só uma funcionária. Eu tô trabalhando, preciso seguir as regras da empresa.

CAROLINA (O. S.) (numa mistura de raiva e orgulho) Sabe, minha fia, a gente que é pobre é obrigada a passar a vida entendendo os outros, aguentado desaforo, humilhação, necessidade... Porque pobre é feito pra isso, pra entender, pra aguentar. Mas quem é que entende a gente? Quem é que faz as coisas pela gente?

JULIANA Eu sinto muito, Dona Carolina, mas...

CAROLINA (O. S.) Eu não preciso que tu sinta pena de mim não, minha fia. Eu preciso é de respeito.

JULIANA abaixa a cabeça, pensativa.

CAROLINA (O. S.) Mas tudo bem, minha fia. Eu entendo que tu não pode resolver os problemas do mundo, tu tem os teus também.

Obrigado pela ajuda, tenha uma boa tarde.

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38.

JULIANA se mantém calada por dois segundos.

JULIANA (agindo por impulso) Espera!

JULIANA olha ao seu redor, certificando-se de que não está sendo observada. Em seguida, JULIANA mexe no computador, iniciando um procedimento de religação por acordo e constando pagamento do valor acordado.

JULIANA Eu fiz um acordo pra senhora, e a senhora já pagou o acordo, não é, Dona Carolina?

CAROLINA (O. S.) (ri, respirando de maneira ofegante) Tá bom. O acordo.

JULIANA Então já que o acordo tá pago, eu tô dando abertura no pedido de religamento da sua instalação. No máximo daqui há dois dias a senhora tem a luz da senhora de novo, tudo bem, dona Carolina?

CAROLINA (O. S.) (chorando) Deus lhe abençoe, minha filha. Deus lhe abençoe, lhe ilumine e proteja.

Obrigada! Muito obrigada!

JULIANA (emocionada, com lágrimas escorrendo em seu rosto) Não precisa agradecer, dona Carolina, a senhora tá certa. É um direito da senhora e a gente tem que lutar pelos nossos direitos, não é?

CAROLINA (O. S.) É sim, minha filha. Obrigada, viu?

JULIANA Dá um beijo nas crianças por mim. Vai ficar tudo bem.

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39.

CAROLINA (O. S.) Dou sim, vai ficar sim. Deus lhe abençoe.

JULIANA Amém.

JULIANA encerra a ligação, olha ao redor, abaixa a cabeça, chora brevemente, engole o choro, levanta a cabeça e volta a teclar.

CENA 25 - INT/NOITE - QUARTO DE PEDRO JULIANA está sentada na cama, com as pernas cruzadas e um prato de comida em seu colo. Numa das pernas ela equilibra o celular, através do qual assiste um vídeo. A luz do quarto está apagada. JULIANA come enquanto assiste.

NARRADORA (O. S.) Em abril, o presidente da República demitiu o ministro da Saúde, que não concordava com a apologia ao uso da cloroquina para combater o covid, já que a droga é ineficaz contra o vírus e nociva ao corpo humano. Mesmo sendo contra a aprovação do auxílio emergencial, o presidente da República toma os créditos pela conquista popular. Em maio, o presidente usa decretos para boicotar o combate ao covid-19, permitindo que uma série de setores econômicos voltassem a funcionar, isentando funcionários públicos de suas responsabilidades no combate à pandemia e tirando o direito de diversas parcelas da população de receber o auxílio. O Conselho Nacional da Saúde denuncia que mais de 8 bilhões de reais destinados ao combate à pandemia deixaram de ser repassados aos estados e municípios. O novo ministro da Saúde se demite. Em junho, o presidente da República incita seus seguidores a invadir hospitais e filmar, com a justificativa de que os números de doentes está sendo exagerado pela mídia. Em Julho, o presidente tornou possível a redução de salários e jornadas, além da suspensão de contratos, durante a pandemia. Ele também acabou com a Created using Celtx

40. obrigatoriedade do uso de máscaras e álcool em gel em locais fechados. Já o Exército pagou um preço 167% maior pelo principal insumo da cloroquina, com a justificativa de “produzir esperança para corações aflitos”.

PRESIDENTE (O. S.) Lamento as mortes, quer que eu faça o quê? Ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina!

CENA 26 - INT/NOITE - COZINHA JULIANA caminha pelo corredor, trazendo consigo um prato sujo, e entra na cozinha. PEDRO, que estava na pia, servindo para si uma porção de sobremesa, assusta-se com a aproximação de JULIANA e afasta-se da irmã.

JULIANA (colocando o prato na pia) Não precisa ter medo não, eu só mordo se me chutarem antes.

JULIANA caminha para o outro extremo do cômodo, toma um copo, abre a geladeira, pega a garrafa de água e se serve. PEDRO volta para a pia, termina de se servir e pega a travessa de sobremesa para guardá-la na geladeira.

JULIANA Pode deixar aí, eu vou comer também.

PEDRO pega seu copo de sobremesa e se senta na mesa para comer. JULIANA termina de tomar água, guarda a garrafa na geladeira e vai para a pia se servir da sobremesa. O CELULAR DE CÍCERO, deixado sobre a mesa, toca, recebendo uma chamada telefônica de um contato salvo como "Olívia". PEDRO encara o CELULAR DE CÍCERO. PEDRO O celular do papai tá tocando.

JULIANA se vira para a mesa e encara o CELULAR DE CÍCERO. PEDRO (confuso) Quem é Olívia?

CÍCERO, vindo do corredor, entra na cozinha apressado e, nervoso, procura pelo celular, toma-o rapidamente e recusa a ligação. JULIANA encara CÍCERO com desconfiança; PEDRO parece Created using Celtx

41. confuso.

PEDRO Quem é Olivia?

CÍCERO (nervoso) Não é ninguém, é engano. É uma amiga.

CÍCERO dá as costas e volta pro quarto, nervoso. PEDRO e JULIANA se encaram.

PEDRO A gente não conhece ninguém com esse nome.

JULIANA (virando para a pia e voltando a se servir) Esquece isso.

PEDRO (levantando-se da mesa) Eu vou falar pra mãe.

JULIANA (virando-se rapidamente, correndo até o irmão e se ajoelhando na frente dele) Isso não! Não vai criar confusão, você nem sabe o que tá acontecendo.

PEDRO Mas a mãe precisa saber.

JULIANA Mas não é você quem vai contar. Se tiver acontecendo alguma coisa, é ela quem vai resolver. Entendeu?

PEDRO permanece calado.

JULIANA Cadê a mãe?

PEDRO No quintal, com a vó.

JULIANA Ótimo, então deixa ela lá.

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42.

JULIANA se levanta. PEDRO senta-se novamente. JULIANA volta para a pia, guarda a travessa de sobremesa na geladeira e senta-se na mesa para comer ao lado do irmão.

JULIANA Que saudades de comer na mesa.

PEDRO Se a mãe souber ela te mata.

JULIANA (encarando o irmão) Se você me chutar eu te mordo.

Entendeu?

CENA 27 - INT/DIA - QUARTO DE PEDRO As luzes estão apagadas; JULIANA está dormindo. O silêncio é quase absoluto. Ouve-se três batidas na porta; CÉLIA abre a porta do quarto e entra lentamente.

CÉLIA (chamando a filha, num tom de voz cauteloso.)

Ju. Ju. JULIANA se revira na cama, abre o olho e finalmente se apoia sobre os braços, encarando CÉLIA. CÉLIA Seu pai já tá pronto pra levar sua avó no médico, mas ela tá teimando que só vai se você for.

MARIA DE JESUS (O. S.) (voz ecoa pelo corredor, revoltada) Tô teimando mesmo! Já disse que quero ver minha neta, por que não posso ver?

JULIANA ri e levanta-se da cama.

CENA 28 - INT/DIA - CORREDOR DO HOSPITAL JULIANA, MARIA de JESUS e CÍCERO estão sentados numa fila de cadeiras, todos usando máscara e mantendo distância dos demais pacientes, aguardando serem atendidos. JULIANA e MARIA DE JESUS estão de mãos dadas, acariciando os dedos uma da outra. MARIA DE JESUS balança as pernas, ansiosa.

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43.

JULIANA (para MARIA DE JESUS) Eu tava com saudade do seu cheiro, sabia? [Pausa]. Não precisa se preocupar, vó, vai dar tudo certo. A senhora vai ver.

MARIA DE JESUS Vai dar sim, em nome de Jesus.

MARIA DE JESUS abaixa a cabeça, ansiosa, e acaricia o tecido de sua saia. Em seguida, a mulher levanta a cabeça.

MARIA DE JESUS (virando-se para JULIANA) Ô fia, pega um copo d'água pra vó, por favor?

JULIANA Pego sim, vó.

JULIANA se levanta e caminha até o final do corredor, onde há um bebedouro. Na esquina do outro corredor, perpendicular ao corredor de JULIANA, ENFERMEIRA 1 e ENFERMEIRA 2 conversam.

As enfermeiras vestem touca, máscara, face shield, avental e luvas. JULIANA se aproxima do bebedouro e ouve a conversa de ENFERMEIRA 1 e ENFERMEIRA 2, mas não há contato visual entre JULIANA e elas.

ENFERMEIRA 1 (cansada, emocionada) Ele chorou muito, não queria entubado porque dizia que ia Ele viu que as duas senhoras entubadas morreram. A esposa morreu semana passada.

ser morrer. que foram dele

JULIANA toma um copo, começa a enchê-lo e presta atenção na conversa.

ENFERMEIRA 1 (inicialmente emocionada, depois chorando) Ele não queria morrer sem ver a família. Eu liguei pros filhos dele, eles choravam muito e rezavam pelo pai. Eu entubei ele, coloquei as luvas de água morna na mão dele pra acalmar... Hoje ele me perguntou se podia dormir, porque tava com medo de morrer...

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44.

O copo transborda na mão de JULIANA; ela para de apertar o bebedouro e derrama o excesso de água, mas permanece escutando a conversa.

ENFERMEIRA 1 (chorando) Eu disse que ele podia relaxar, que a gente tava cuidando dele... Eu rezei com ele até... E ele acabou de morrer.

ENFERMEIRA 1 se rende ao choro, tentando ser discreta.

ENFERMEIRA 2 abraça a colega.

ENFERMEIRA 2 Você precisa dormir, comer um pouco...

Você dobrou o turno, tá cansada, só isso... Agora aproveita que seu turno acabou e descansa.

JULIANA retorna para as cadeiras e se aproxima de MARIA DE JESUS, oferecendo o copo de água para a avó.

JULIANA Aqui, vó.

MARIA DE JESUS (segurando o copo) Obrigada, mia fia.

JULIANA se senta ao lado de MARIA DE JESUS, que bebe a água.

CENA 29 - INT/DIA - CONSULTÓRIO MÉDICO JULIANA está sentada ao lado de MARIA DE JESUS; do outro lado da mesa, o MÉDICO 1, que usa máscara e jaleco, analisa os exames de MARIA DE JESUS. MÉDICO 1 Esse perfume todo é a senhora, dona Maria?

MARIA DE JESUS Oxente, não é à toa que todo mundo me chama de cheirosa.

MARIA DE JESUS ri e o MÉDICO 1 também.

JULIANA (aflita) Mas e os exames, Doutor? Tá tudo bem com a minha avó?

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45.

MÉDICO 1 Os exames de imagem mostram a completa regressão do câncer no intestino e não revelam nenhum tipo de metástase em outra parte do corpo.

JULIANA e MARIA DE JESUS se olham, aliviadas, e sorriem.

MARIA DE JESUS (agarrando a mão de JULIANA) Graças à Deus!

MÉDICO 1 Todavia, os índices de AFP, uma proteína do sangue, estão um pouco alto demais.

MARIA DE JESUS (aflita) E o que isso quer dizer? O câncer vai voltar?

MÉDICO 1 Por enquanto, não quer dizer nada. A gente vai esperar um tempo pra ver se esse número normaliza e, se não diminuir, a gente faz outra bateria de exames. Mas, por hora, a senhora está livre do câncer.

JULIANA (virando-se para MARIA DE JESUS e sacudindo a mão da mulher) Tá vendo, vó? Eu disse que ia dar certo!

MARIA DE JESUS (erguendo as duas mãos pro céu) Graças a Deus, meu pai! Obrigado meu Deus! Obrigado!

MARIA DE JESUS e JULIANA se abraçam.

MÉDICO 1 A senhora é uma guerreira, dona Maria.

Parabéns.

MARIA DE JESUS Obrigada, Doutor, muito obrigada!

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46.

MÉDICO 1 Não precisa me agradecer. Agora, promete que vai se cuidar, comer direitinho, descansar bem... Do jeito que a gente conversou.

JULIANA (desfazendo o abraço) Pode deixar que eu vou tomar conta dela, Doutor.

MARIA DE JESUS (indignada) Agora deu. Óia pra isso, doutor. Me tratando que nem criança. Eu, hein, sou criança não!

CENA 30 - INT/DIA - CORREDOR DO HOSPITAL JULIANA e MARIA DE JESUS se aproximam da fileira de cadeiras onde está CÍCERO; JULIANA carrega um envelope com os exames impressos. CÍCERO percebe a aproximação de JULIANA e MARIA DE JESUS, levanta-se e caminha até elas.

CÍCERO (apreensivo) E aí, o que o médico falou?

JULIANA e MARIA DE JESUS se olham, felizes. MARIA DE JESUS olha para CÍCERO, sorri e chora. CÍCERO abraça MARIA DE JESUS, chorando também.

CÍCERO (abraçado à MARIA DE JESUS, chorando) Graças a Deus, minha mãe!

Gritos ecoam desde o fim do corredor; INVASOR 1, INVASOR 2 e INVASOR 3, com câmeras nas mãos, gritam, enfurecidos, e resistem de maneira física contra os SEGURANÇA 1, SEGURANÇA 2 e SEGURANÇA 3, que arrastam os invasores desde o corredor (onde ENFERMEIRA 1 e ENFERMEIRA 2 conversavam) em direção à saída. ENFERMEIRA 1 (abalada), ENFERMEIRA 2 (assustada), MÉDICO 2 e MÉDICO 3 (indignados) acompanham os seguranças que expulsam os invasores. Todos falam ao mesmo tempo, causando uma grande confusão. CÍCERO, ao perceber a confusão no fim do corredor, desfaz o abraço com MARIA DE JESUS e tenta protegêla, assustado. JULIANA também cerca a avó, na intenção de protegê-la. Os PACIENTES que esperavam no corredor se assustam, levantando-se imediatamente e procurando uma maneira de se afastar da confusão. MÉDICO 1 e outros Created using Celtx

47.

FUNCIONÁRIOS DO HOSPITAL, aos poucos, chegam no corredor, assustados pela gritaria. Todos no hospital, com exceção dos invasores, usam máscaras.

INVASOR 1 (filmando enquanto é arrastado) Me solta, idiota! Me solta! Vagabundo!

Rato comunista!

INVASOR 2 (filmando enquanto é arrastado) Eu tenho o direito de entrar na UTI! Eu sou um deputado! Eleito legitimamente! O povo tem o direito de saber o que tá acontecendo lá dentro!

INVASOR 3 (com um celular na mão, filmando para uma live numa rede social) Não tem leito faltando coisa nenhuma!

Esses números de mortos de covid são uma fraude! É tudo mentira da grande mídia!

INVASOR 2 A gente tem o direito de entrar! O povo tem o direito de saber! Seus mentirosos!

INVASOR 1 Seus ratos! Bando de comuna filha da puta! Vai pra Cuba! Vai pra Venezuela!

O INVASOR 1 tenta arrancar a máscara do rosto do SEGURANÇA 1 e cuspir em seu rosto; INVASOR 2 e INVASOR 3 cospem nos FUNCIONÁRIOS DO HOSPITAL ao redor. CÍCERO, JULIANA, MARIA DE JESUS e todos os PACIENTES se apressam para a saída, fugindo do tumulto que vem na direção deles. MÉDICO 1 começa a gravar o tumulto; ENFERMEIRA 1 chora. Os FUNCIONÁRIOS DO HOSPITAL acompanham a situação, assustados e indignados; alguns filmam, outros respondem à ofensas dos invasores.

INVASOR 3 Traidores da nação! Raça maldita!

Vocês merecem a morte, seus canalhas!

ENFERMEIRA 2 (erguendo o punho fechado) Marielle Franco presente!

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48.

INVASOR 2 Defensora de bandido! Leva bandido pra criar em casa então!

MÉDICO 3 Presidente Genocida!

INVASOR 1 Viva o Mito!

INVASOR 1, INVASOR 2, INVASOR 3 Mito! Mito! Mito! Mito!

O tumulto se arrasta por todo o corredor, até que os invasores sejam levados até o Hall principal.

CENA 31 - INT/DIA - HALL DO HOSPITAL PACIENTES se apressam pelo Hall do hospital, vindos do corredor e espalhando-se pelo local, mais espaçoso; alguns se encaminham para a saída. CÍCERO e JULIANA andam apressados, acompanhando MARIA DE JESUS em direção à saída. Atrás deles, INVASOR 1, INVASOR 2 E INVASOR 3 são arrastados pelos SEGURANÇA 1, SEGURANÇA 2 e SEGURANÇA 3. MÉDICO 1 acompanha o tumulto, filmando; ENFERMEIRA 1, ENFERMEIRA 2, MÉDICO 2 e MÉDICO 3 seguem o tumulto. As RECEPCIONISTAS, os FUNCIONÁRIOS DO HOSPITAL e PACIENTES que estavam no Hall sobressaltam-se com a confusão.

JULIANA (escoltando MARIA DE JESUS em direção à saída) Vamos, vó.

MÉDICO 3 (para a RECEPCIONISTA) Chama a polícia! Liga pra polícia!

INVASOR 2 Pode ligar, babaca! Eu sou deputado estadual! Otário!

INVASOR 1 Chama a polícia e deixa eles entrarem na UTI, pra verem a mentira de vocês!

MÉDICO 2 (gritando para todos) Todo mundo se afasta que esses homens se aproximaram da área de tratamento de COVID! Created using Celtx

49.

PACIENTES e FUNCIONÁRIOS se assustam e recuam ainda mais; JULIANA, CÍCERO, MARIA DE JESUS e outros mais próximos à saída alcançam a área externa. ENFERMEIRA 1 chora; ENFERMEIRA 2 ampara a colega. MÉDICO 3 toma um spray de álcool sobre o balcão e borrifa sobre INVASOR 1, INVASOR 2 e INVASOR 3, que são arrastados para fora pelos SEGURANÇAS. MÉDICO 3 Toma álcool na cara, seu babaca!

INVASOR 1 (O. S.) Me larga, seu idiota! Agressão é crime! Eu tenho direito de ir e vir!

MÉDICO 3 Então vai pra sala de segurança, seu otário!

MÉDICO 2 (falando para a RECEPCIONISTA) Alguém chama a equipe de limpeza pra esterilizar o corredor, por favor?

RECEPCIONISTA toma o microfone em mãos e liga-o. MÉDICO 1 para de filmar, se junta ao MÉDICO 2 e MÉDICO 3. ENFERMEIRA 2 direciona ENFERMEIRA 1 de volta ao interior do Hospital.

RECEPCIONISTA (fala no microfone e sua voz soa através dos auto falantes) Atenção, equipe de limpeza e desinfecção, comparecer imediatamente ao Hall do Hospital. Repito, equipe de limpeza, comparecer ao Hall do Hospital.

CENA 32 - INT/TARDE - CENTRAL DE ATENDIMENTO JULIANA, usando máscara e headset, sentada em sua respectiva cabine, encerra um atendimento e continua o trabalho no computador, atenta. GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS, também usando máscara, se aproxima de JULIANA, sem que ela perceba.

GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS (colocando a mão sobre o ombro de JULIANA) Ju? JULIANA olha a mão, tira os headfones e se vira para a GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS.

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50.

JULIANA (nervosa) Pois não.

GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS A gente pode conversar na minha sala um minutinho?

JULIANA Claro, mas... Eu fiz alguma coisa de errado?

GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS (fingindo simpatia) Na minha sala, pode ser?

JULIANA (preocupada) Pode sim.

JULIANA se levanta e acompanha a GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS, que caminha adiante.

CENA 33 - INT/TARDE - SALA DO RH GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS entra na sala, segura a porta para JULIANA entrar e fecha-a em seguida.

GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS (fingindo simpatia, apontando para a cadeira) Senta.

JULIANA se senta na cadeira em frente à mesa. A GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS senta-se na cadeira do outro lado da mesa e encara JULIANA com seriedade. JULIANA, com as duas mãos apoiadas sobre as pernas, esfrega uma na outra, nervosa.

GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS Ju, você sabe que eu gosto de acompanhar de perto o trabalho dos funcionários, pra ter certeza que tudo tá funcionando da maneira correta...

JULIANA Sei sim...

GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS (falando de maneira pausada) Por isso eu tenho acompanhado o seu trabalho de perto, e notei o cuidado Created using Celtx

51. que você tem com tudo que faz. Sabe, a Paula não vai mais continuar prestando serviço pra nossa empresa. Por isso você foi escolhida para ser a nova chefe de departamento da sua equipe, no lugar dela. Você topa?

JULIANA respira aliviada e ri, ainda nervosa e um pouco incrédula.

JULIANA (rindo) É claro que topo!

GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS Perfeito! Você vai assumir o posto ainda essa semana, e obviamente o seu salário vai ser compensado também, tudo bem?

JULIANA Tudo ótimo.

JULIANA ri novamente e a GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS a olha de maneira amigável.

GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS Parabéns pela promoção, esperamos que dê tudo certo.

JULIANA Vai dar, sim. Já deu.

CENA 34 - INT/NOITE - SALA DE ESTAR CÉLIA está na cozinha, preparando o jantar. PEDRO, sentado no sofá, joga no celular enquanto CÍCERO, sentado ao lado do filho, assiste à televisão. MARIA DE JESUS, sentada sozinha no segundo sofá, encara a televisão sem muito interesse.

CÉLIA (enquanto cozinha) Eu contei pra vocês de Vanessa aqui da rua?

MARIA DE JESUS (virando o rosto para a cozinha) Contou não, o que foi?

CÉLIA Tá com covid. Os patrões chegaram de Created using Celtx

52. viagem e chamaram ela pra fazer a faxina, acabou que eles passaram o vírus pra ela...

MARIA DE JESUS Misericórdia... E ela, como tá?

CÉLIA Tá em casa, de atestado.

MARIA DE JESUS Só o sangue...

JULIANA sai do quarto, com o cabelo molhado e um pijama, com uma máscara no rosto, caminha pelo corredor, chega na sala e continua em direção ao sofá onde MARIA DE JESUS está sentada, inclinando-se no intuito de se sentar ao lado da avó.

CÍCERO (repreendendo JULIANA) Ei, nada disso.

JULIANA, que estava prestes a se sentar ao lado de MARIA DE JESUS, recupera a postura e, contrariada, encara CÉLIA, que a olha da cozinha.

CÉLIA (falando pra JULIANA e depois para PEDRO) É pra segurança da sua avó. Pedro, abre a janela da sala, por favor?

PEDRO continua jogando no celular. JULIANA encara a mãe, impaciente.

MARIA DE JESUS (levantando-se) Então a gente vai lá pra fora, que é arejado.

CÉLIA Lá fora não, que tá garoando e a senhora não pode tomar sereno.

MARIA DE JESUS Então a gente vai pro quarto.

CÉLIA Muito menos isso, os quartos todos abafados.

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53.

JULIANA Então a gente vai pra onde, mãe? Eu preciso conversar com a avó, é importante!

PEDRO (jogando no celular) Conversa aqui, ué.

JULIANA suspira, contrariada.

CENA 35 - INT/NOITE - SALA DE ESTAR CÉLIA está na cozinha; PEDRO E CÍCERO estão sentados no sofá, jogando no celular e assistindo à televisão, respectivamente.

MARIA DE JESUS está sentada no outro sofá e JULIANA, de máscara, está sentada a alguns metros da avó, no chão, de costas para a porta. Em frente à JULIANA está um ventilador ligado, que assopra no rosto dela em direção às portas e janelas, todas abertas.

MARIA DE JESUS (chocada) E foi, foi?

JULIANA (acertiva) Apois foi, vó, o maior bafão, deu até alibã.

MARIA DE JESUS (confusa) Mas a amapô não sabia que o ocó tava de equê?

JULIANA (num tom crítico) Oxe, a mapoa tava é fazendo a Kátia cega, porque a maricona é uma tata, tá na cara que é PAM. Quantas vezes a amapô não viu o ocó com os picumã dela?

MARIA DE JESUS Que uó...

JULIANA (penosa) Pois é... A mapoa só aceitou que o ocó gostava de botar o edí pra jogo quando encontrou ele cantando no microfone do Created using Celtx

54. dumdum. O pior é que a racha ficou carimbada também.

MARIA DE JESUS Tô passada... Ela devia é ter desaquendado desse demônio antes...

JULIANA Isso porque ele fazia a linha Gustavo Lima, imagina se fosse odara...

CÉLIA, CÍCERO e PEDRO encaram JULIANA e MARIA DE JESUS, confusos.

CENA 36 - INT/TARDE - CENTRAL DE ATENDIMENTO JULIANA, de máscara, agora sentada numa mesa separada dos demais, preenche uma planilha sobre os atendimentos realizados no mês de setembro. MARIA, de máscara, se aproxima da mesa de JULIANA. MARIA (temerosa) Com licença, Ju. JULIANA (levanta o olhar e desvia a atenção para MARIA) Oi, Maria, pode falar.

MARIA Desculpa atrapalhar, mas é que eu não tô sabendo resolver um problema no banco de dados e todo mundo tá ocupado fazendo atendimento... Você pode me ajudar?

JULIANA (levantando-se imediatamente, sorrindo gentilmente) Claro que posso, vamos lá ver.

JULIANA e MARIA caminham em direção à bancada de MARIA..

MARIA (andando) A Paula já tinha me explicado uma vez mas eu não entendi... tive medo de perguntar de novo porque ela não tinha muita paciência...

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55.

JULIANA (andando) Não tem problema, Maria, você pode me perguntar quantas vezes precisar.

MARIA alcança sua bancada, se senta em sua cadeira e mostra o computador à JULIANA, que permanece ao lado de MARIA. CLÁUDIA, na bancada ao lado, presta atenção ao computador de MARIA também.

MARIA (indicando as informações na tela com o mouse) Olha, eu pesquisei o número do registro do cliente no banco de dados, mas não tá aparecendo nenhuma informação. Pesquisei pelos dados pessoais do cliente mas também não apareceu nada...

JULIANA (aproximando a mão direita do mouse) Posso ver, um minutinho?

MARIA tira a mão de cima do mouse e JULIANA manuseia o objeto pela mesa.

JULIANA Você quer as informações sobre os pagamentos, é isso?

MARIA Isso.

JULIANA (enquanto pesquisa no banco de dados) Se as informações não tão aqui, provavelmente elas não foram redistribuídas, por algum motivo...

Mas essa plataforma aqui ela é pra gente fazer uma consulta rápida, ou seja, ela organiza aqui informações de outros sistemas e manda pro nosso.

Então dá pra gente ir atrás dessas informações em outro lugar. Por exemplo, se você for no sistema de segundas vias, colocar o número do registro e selecionar o mês, você consegue ver quais faturas foram pagas Created using Celtx

56. e quais estão em aberto ainda. Viu? MARIA (admirada) Ah sim, entendi. Então dá pra ver a mesma coisa aí também?

JULIANA Dá sim, mas é mais trabalhoso. Por isso a gente sempre começa pelo banco de dados, que é onde todas as informações de todos os sistemas tão reunidas. Mas, se por um acaso não estiverem, você pode buscar num sistema específico. Entendeu?

MARIA (falando com JULIANA e depois se virando para CLÁUDIA) Agora eu entendi... Entendeu, Cláudia?

JULIANA olha para o lado, confusa, e percebe CLÁUDIA, que está surpresa por ter se tornado o centro das atenções.

CLÁUDIA (desconcertada) Entendi sim...

JULIANA solta um breve riso, simpática.

JULIANA Que bom. Precisam de ajuda com mais alguma coisa? Não precisam ficar com vergonha de perguntar.

MARIA e CLÁUDIA trocam olhares desconcertados, intimidadas.

JULIANA (curiosa, rindo de nervoso) Que foi, gente? Pode falar.

MARIA (desconcertada) É que... A gente queria saber como você acha melhor que te chamem...

JULIANA (sentindo-se desconfortável, mas entendendo a boa intenção da mulher) Podem me chamar de Ju e me tratar no Created using Celtx

57. feminino.

CLÁUDIA (com um certo estranhamento, mas não numa postura de reprovação) E você é uma daquelas mulheres que nasceram no corpo errado?

JULIANA (esforçando-se para se manter calma e falar de maneira clara) Eu também me considero uma mulher trans, mas me identifico mais com o termo travesti. E não, eu não nasci num corpo errado. Eu amo o meu corpo e não tem nada de errado com ele. O erro é das pessoas que acham que podem dizer o que eu sou só por causa do meu corpo. A nossa identidade tá aqui...

JULIANA põe o dedo indicador na própria cabeça.

JULIANA (levando o dedo até a virilha) E não aqui.

MARIA exprime um breve riso cúmplice. CLÁUDIA olha para JULIANA com admiração e surpresa.

CLÁUDIA Sabe, menina, eu ainda te acho estranha...

JULIANA e MARIA riem.

CLÁUDIA Mas eu admiro a sua força.

MARIA E obrigado por ser paciente com a gente. A Paula não era nem um pouco assim.

JULIANA (com um sorriso amistoso) Bom, se a gente vai trabalhar juntas todos os dias, é bom a gente se ajudar, né. Se precisarem de qualquer coisa, é só chamar.

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58.

MARIA Obrigada, Ju. CLÁUDIA Obrigada.

JULIANA caminha de volta até sua mesa. MARIA e CLÁUDIA observam JULIANA caminhar durante alguns segundos e depois voltam a trabalhar também. JULIANA alcança a sua mesa e se senta, mas antes que possa voltar a trabalhar, MARCELO, com máscara no queixo, aborda-a, trazendo consigo um suporte de madeira, com uma caneta amarrada por uma linha de barbante e fichas impressas em folhas sulfite.

MARCELO (encarando JULIANA com estranhamento no olhar) Com licença, eu sou o Marcelo, trabalho no RH... Eu preciso preencher com você uma pesquisa sobre o perfil dos funcionários da empresa. Você tem um minuto?

JULIANA (encarando o homem com estranhamento) Tenho sim. Você vai fazer a pesquisa com todo mundo?

MARCELO (sentando-se em frente a JULIANA) Não, essa é só pros chefes de departamento...

JULIANA Ah sim, entendi...

MARCELO (preparando-se para anotar) Seu nome?

JULIANA Juliana Costa Macedo.

MARCELO levanta o olhar e encara JULIANA com desprezo.

MARCELO Seu nome de verdade.

JULIANA Esse é o meu nome social.

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59.

MARCELO Eu preciso do seu nome como tá nos seus documentos.

JULIANA respira fundo, contrariada.

JULIANA Julio Costa Macedo.

MARCELO Data de Nascimento?

JULIANA 28/11/2002.

VANESSA Gênero?

JULIANA Travesti.

MARCELO (encarando JULIANA) Aqui só tem feminino e masculino, Julio.

JULIANA Meu nome é Juliana. Anota travesti aí do lado.

MARCELO encara JULIANA e assinala o campo masculino.

MARCELO Você se identifica como branco, pardo, negro ou asiático, Júlio?

JULIANA (encarando o homem de maneira severa) Preta, Juliana.

MARCELO Negro, então. Solteiro, casado ou divorciado?

JULIANA (impaciente) Desculpa, eu tô cheia de coisa pra fazer. Deixa a folha aí que eu preencho quando puder, pode ser?

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60.

MARCELO encara JULIANA com raiva, solta a folha do suporte, coloca-a em cima da mesa de JULIANA e caminha para o RH. JULIANA encara MARCELO, pega a folha, amassa-a e joga no lixo.

CENA 37 - INT/NOITE - QUARTO DE PEDRO JULIANA está sentada na cama, coberta pelo lençol até a cintura, com as pernas estiradas. A luz está apagada e a porta fechada. JULIANA abre no celular o aplicativo Pinterest, abre a pasta intitulada "casa" e observa imagens salvas de móveis, eletrodomésticos, objetos de decoração, planejamento de ambientes, etc. JULIANA vê todas as fotos e bloqueia a tela do celular abruptamente.

CENA 38 - INT/DIA - SALA DO RH JULIANA, nervosa, está sentada à mesa, em frente à GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS, que encara-a de maneira severa. Ambas estão de máscara.

GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS Ju, a gente recebeu uma notificação do Departamento de quitação de dívidas sobre uma instalação cujas contas estão em aberto desde maio. E o mais preocupante é que um religamento indevido foi feito para esta instalação... Em julho, mesmo sem a quitação das dívidas. O que você tem a dizer sobre isso?

JULIANA ouve à GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS tentando disfarçar seu nervosismo e culpa.

JULIANA Eu não estava sabendo desse religamento, ele foi efetuado antes de eu tomar a frente do departamento.

GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS Sim, mas foi você quem efetuou o atendimento. Não se lembra?

JULIANA engole seco.

JULIANA (confusa, demorando a falar) Eu posso ver os dados do religamento?

JULIANA estende a mão para a GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS, que Created using Celtx

61. entrega a ela os papéis do religamento. JULIANA analisa os papéis fingindo dificuldade para se lembrar.

JULIANA Eu efeituei o religamento porque a cliente havia feito um acordo com a empresa, cujo pagamento constava no sistema.

GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS Sim, mas este pagamento nunca foi efetuado.

JULIANA Não era o que constava no sistema.

Aqui, olha.

JULIANA mostra os papéis à GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS. GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS Eu já chequei, este pagamento que consta nunca foi feito de fato.

JULIANA Bom, mas eu não tinha como saber isso.

Eu chequei o banco de dados, como qualquer outro procedimento. É o padrão.

GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS Sim, é o padrão. Mas alguém adicionou esta informação incorreta.

JULIANA Isso eu não posso falar.

GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS encara JULIANA de maneira severa.

GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS Mantenha-se mais atenta de agora em diante, isto não pode acontecer novamente.

JULIANA Algo mais?

GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS Não, pode voltar ao trabalho.

JULIANA se levanta e caminha em direção à porta.

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62.

GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS Concentre-se na meta deste mês, sua equipe está levemente atrasada.

JULIANA encara a GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS enquanto ela fala, assente a cabeça positivamente e sai da sala do RH. CENA 39 - INT/DIA - CENTRO DE ATENDIMENTO JULIANA sai da sala de RH e caminha para sua mesa. Alguns dos ATENDENTES estão distraídos, conversando entre si. JULIANA encara sua equipe com impaciência.

JULIANA (falando de maneira autoritária, mas não grosseira) Gente! Gente, por favor! [Pausa].

Yuri, Maria! Cada um no seu balcão, por favor! [Pausa]. Gente, eu sei que vocês estão cansados, que conversar com os amigos é muito bom, mas esse não é o momento! A nossa produtividade tá caindo! A gente foi tão bem mês passado, superamos a meta... Vocês são a melhor equipe dessa empresa, não podem se dispersar assim não. Vamo manter o foco, gente, por favor! De volta ao trabalho, todo mundo.

Os ATENDENTES voltam para suas bancadas, alguns constrangidos, outros sérios. JULIANA encara a equipe por mais alguns segundos e em seguida volta para sua mesa.

CENA 40 - INT/NOITE - COZINHA MARIA DE JESUS, CÍCERO e PEDRO estão sentados na mesa; o jantar está posto. CÍCERO e PEDRO estão se servindo; CÉLIA, em pé diante da mesa, põe o prato de MARIA DE JESUS. MARIA DE JESUS (O.S.) Você teve notícia da Vanessa, Celinha?

CÉLIA (colocando a comida no prato e entregando-o à MARIA DE JESUS) Oh, dona Maria, nem me fala... Vanessa passou mal, levaram pro hospital. Foi entubada mas não resistiu não.

CÉLIA se senta e começa a servir a própria comida.

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63.

MARIA DE JESUS (O.S.) Valha-me, Deus. E os filhos, como tão?

CÉLIA (primeiro melancólica, depois brava) Estão arrasados, né. Não puderam nem se despedir da mãe, velaram ela com o caixão fechado... Sabe o que é pior?

Que os ex patrões de Vanessa ligaram pra filha dela no dia do enterro pra oferecer a vaga de emprego que era da mãe dela. Raça de urubu desalmado!

CENA 41 - INT/DIA - COPA DA EMPRESA MARIA, CLÁUDIA e YURI conversam. Outros dois ATENDENTES saem da copa. JULIANA entra. Todos estão de máscara.

YURI (aflito) Ninguém sabe, esse é o problema!

CLÁUDIA Eles não podem esconder uma coisa dessas da gente, a gente tem o direito de saber.

JULIANA (se aproximando dos amigos e percebendo a agitação deles) O que aconteceu?

YURI (fechando a roda de amigos e falando num tom mais baixo) A líder do departamento de quitação de dívidas faltou pelo terceiro dia seguido e colocaram outra pessoa no lugar dela.

MARIA (num tom cauteloso) Mas a equipe dela disse que ela tava com sintomas de covid. E hoje outra pessoa da mesma equipe também faltou.

CLÁUDIA (num tom de raiva e repulsa) Tá todo mundo achando que a cobra do RH tá tentando abafar o caso.

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64.

JULIANA (indignada) Mas eles não podem manter a gente aqui se alguém tiver com covid.

YURI (dando de ombros) Vai dizer isso pra eles.

CENA 42 - EXT/NOITE - QUINTAL JULIANA, usando uma máscara no rosto, anda pela calçada da frente de sua casa. JULIANA leva a mão até a lateral da testa e massageia, numa expressão de desconforto. JULIANA chega no portão do quintal, abre-o, entra e fecha o portão atrás de si. JULIANA adentra o quintal e percebe que PEDRO e EDUARDO (sete anos) estão brincando juntos no quintal da casa, e nenhum dos dois usa máscara. JULIANA, ao perceber a presença de EDUARDO, tenta disfarçar a raiva que sente. JULIANA anda, agora mais rápido, pelo quintal, passando por PEDRO e EDUARDO e alcançando a entrada da sala.

CENA 43 - INT/NOITE - SALA DE ESTAR CÍCERO está sentado no sofá, assistindo um vídeo de pregação bíblica pelo celular. CÉLIA, que limpava a estante próximo à entrada, percebe quase que imediatamente a chegada de JULIANA, que põe-se na entrada e joga sua mochila no chão.

CÉLIA (virando-se para a filha) Ei, ei, ei! A roupa suja de rua dentro de casa! O que a gente combinou, Ju? JULIANA A gente combinou que a gente ia ficar em quarentena e não abrir um playground no quintal!

CÉLIA Você tá falando assim por causa do Edu? JULIANA Não, imagina!

CÍCERO (pausando o vídeo no celular) Fala direito com a sua mãe.

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65.

CÉLIA Ju, o Edu nem entrou em casa, ficou só no quintal.

JULIANA Isso, mãe, ficou no quintal sem máscara, sem manter distanciamento.

Daqui a pouco o Pedro entra e abraça a vó, e aí? Vocês não têm como saber se ele tá com o vírus ou não.

CÉLIA Não tá não, porque o meu Deus é maior.

JULIANA Isso, vai nessa. Se fosse assim ninguém tinha sido infectado, muito menos o pessoal da igreja.

CÍCERO (num tom de ameaça) Julio... Não brinca com o nome de Deus...

JULIANA Meu nome não é Julio e eu não tô de brincadeira. Eu passo o dia todo trabalhando que nem uma cachorra, aguentando gente babaca reclamando comigo, com a orelha doendo de tanto usar máscara. Aí chego em casa e ainda tenho que ficar pelada do lado de fora, trancada num quarto, e vocês trazendo vizinho pra dentro de casa?

CÍCERO (levantando-se do sofá e pondo-se ao lado de CÉLIA) O Pedro tava triste, com saudade do amigo e eu deixei eles brincarem.

Algum problema nisso?

JULIANA Muitos! Tá todo mundo triste, sozinho.

As pessoas estão morrendo, pai! Mas é melhor ficar triste por uns meses do que sair por aí matando as pessoas! O Pedro não é melhor que ninguém pra ter o direito de furar a quarentena.

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66.

CÉLIA Ju, os meninos tão brincando só, foi só hoje, não tem mal nenhum...

JULIANA A gente não sabe, mãe. Tem que aguentar o máximo que der... E se alguém aqui se contamina?

CÍCERO (num tom de desaprovação, dando as costas e voltando a sentar no sofá) Que contamina? Meu filho tava chorando pra ver o amigo, eu deixei e pronto.

JULIANA (caminhando na direção do pai) Então agora seu filho vai chorar de novo, porque eu não aceito visita nenhuma aqui.

CÍCERO (levantando-se, incrédulo) Como é que é?

JULIANA É isso mesmo que você ouviu.

CÍCERO E quem é você pra mandar e desmandar aqui, muleque?

JULIANA (batendo no próprio peito) Eu sou a pessoa que paga as contas e que bota comida na mesa. E enquanto você tiver vivendo às minhas custas, vai ter que respeitar a travesti aqui sim!

CÍCERO encara JULIANA com raiva, mas permanece calado, hesitante, até que enfim dê as costas e vá para o quarto do casal, batendo a porta assim que passa por ela.

JULIANA Cadê a minha avó?

CÉLIA Tá no quarto dormindo.

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67.

JULIANA Então pede pra esse menino ir pra casa dele e dá um banho no seu filho antes que a vó acorde. E da próxima vez que seu marido for irresponsável, você diz umas verdades pra ele, pra eu não precisar dizer.

JULIANA toma sua mochila do chão e caminha para o banheiro.

CÉLIA se senta no sofá, curva o tronco, respira fundo, leva as mãos à cabeça, e mergulha os dedos no cabelo. Enfim, ela se levanta e sai da sala.

CÉLIA (O.S.) Crianças, hora de ir pra casa!

CENA 44 - INT/NOITE - CORREDOR CÉLIA caminha até a porta do quarto de PEDRO. A porta está fechada e em frente a ela, sobre o chão, um prato de comida e um copo de suco, ambos intocados. CÉLIA encara o prato de comida, aflita, e em seguida bate na porta.

CÉLIA (bate na porta três vezes, chama e bate mais duas vezes) Ju? Ju? Tá tudo bem?

JULIANA não responde. CÉLIA espera por alguns segundos, até que abre a porta e entra no quarto.

CENA 45 - INT/NOITE - QUARTO DE PEDRO A lâmpada do quarto está apagada; a luz do corredor ilumina o quarto. JULIANA está deitada, coberta por um lençol. CÉLIA caminha até a cama.

CÉLIA (num tom de voz suave) Ju? Tá tudo bem?

JULIANA (virando na cama lentamente, com a voz abatida) Minha cabeça tá doendo.

CÉLIA Quer um comprimido?

JULIANA balança a cabeça positivamente. CÉLIA sai do quarto e alguns segundos depois volta com uma cartela de comprimidos Created using Celtx

68. na mão. CÉLIA pega o prato e copo do chão, coloca o prato sobre a mobília e entrega um comprimido e o copo à JULIANA, que se senta na cama, engole o comprimido e toma um gole do suco.

CÉLIA (pegando o prato da mobília e entregando-o à JULIANA) Come um pouco, Ju. Essa dor aí é fome.

JULIANA coloca o copo de suco no chão, toma o prato em mãos, cheira e come lentamente. CÉLIA se senta ao lado de JULIANA e faz cafuné em seus cabelos.

JULIANA (mastigando) Pelo menos o cheiro e o gosto eu tô sentindo.

CENA 46 - INT/MADRUGADA - QUARTO DE PEDRO As luzes estão apagadas. JULIANA acorda, pega o celular e vê as horas. JULIANA se levanta e caminha para a saída do quarto, movendo-se de maneira letárgica pelo sono e pela dor.

JULIANA abre a porta e caminha em direção ao banheiro.

CENA 47 - INT/MADRUGADA - SALA DE ESTAR JULIANA sai do banheiro e caminha pelo corredor, mas desiste de entrar no quarto de PEDRO quando ouve murmúrios vindos da sala de estar. JULIANA caminha até a sala de estar e encontra MARIA DE JESUS ajoelhada sobre o chão, com os braços apoiados sobre o sofá, orando. As luzes estão apagadas; a luz da lua atravessa as janelas e ilumina parcialmente o espaço.

Emocionada, JULIANA se mantém próxima à entrada da cozinha, observando MARIA DE JESUS por alguns segundos até que MARIA DE JESUS pare de orar, levante o olhar e perceba a presença de JULIANA. MARIA DE JESUS Você tá aí, fia?

JULIANA Por que a senhora saiu do quarto à essa hora, vó?

MARIA DE JESUS levanta-se lentamente.

MARIA DE JESUS (levantando-se) É que seu irmão não tava conseguindo Created using Celtx

69. dormir comigo orando... Ele tem sono leve, né? Você pelo menos não reclamava.

JULIANA (num riso leve) Eu até gostava de dormir ouvindo a senhora.

MARIA DE JESUS (com olhar de estranhamento) Mia fia tá magra... Você tá comendo direitinho?

JULIANA Tô sim, vó, não se preocupa.

MARIA DE JESUS (aproximando-se de JULIANA) Tá nada. Deixa eu ver.

JULIANA (preocupada, impedindo o caminhar de MARIA DE JESUS) A senhora não pode chegar muito perto, vó. É perigoso.

MARIA DE JESUS (estalando a língua e voltando a andar) E desde quando ver minha neta é perigoso?

MARIA DE JESUS alcança JULIANA e aperta seus braços.

MARIA DE JESUS (segurando os braços de JULIANA) Tão magrinha... Eu vou fazer uma sopa pra você amanhã.

JULIANA sorri de maneira terna; MARIA DE JESUS abraça JULIANA. MARIA DE JESUS (abraçada à JULIANA) Como eu tava com saudade desse seu abraço.

JULIANA abaixa a cabeça, apoiando-a na cabeça de MARIA DE JESUS e o abraço continua.

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70.

MARIA DE JESUS (abraçada à JULIANA) Eu sei que não tá fácil pra você, amor, mas as coisas vão melhorar, tá bom? [Pausa]. Obedece sempre seus pais e tem paciência com eles, que eles tão aprendendo a viver ainda, igual você.

[Pausa]. A vó te ama muito, viu?

[Pausa]. Quando você for embora, leva a avó com você, não esquece dela não.

JULIANA (abraçada à MARIA DE JESUS) Eu nunca vou te esquecer, vó. Eu te amo muito.

MARIA DE JESUS e JULIANA permanecem abraçadas por mais alguns segundos.

MARIA DE JESUS (desfazendo o abraço) Agora vai dormir que você tem que acordar cedo amanhã.

JULIANA (pegando nas duas mãos de MARIA DE JESUS) Eu te amo, vó.

MARIA DE JESUS Eu também te amo, minha neta.

JULIANA beija as mãos de MARIA DE JESUS, solta-as e volta para o quarto de PEDRO. MARIA DE JESUS permanece imóvel, assistindo JULIANA com um sorriso no rosto.

CENA 48 - INT/DIA - QUARTO DE PEDRO JULIANA, sentada na cama com o celular na mão, digita no celular; o som reproduzido pelo aparelho indica o envio de mensagens por aplicativo. JULIANA para de digitar e encara o celular, aflita. Após alguns segundos, a notificação sonora indica o recebimento de uma mensagem de áudio.

GERENTE DE RELAÇÕES PÚBLICAS (O.S.) (o aparelho reproduz a mensagem de voz) Não importa se a cabeça tá doendo, tem que trabalhar mesmo assim.

Outra notificação sonora.

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71.

GERENTE DE RELAÇÕES PÚBLICAS (O.S.) (o aparelho reproduz a mensagem de voz) Sem você a equipe toda fica desfocada, não tem como. Toma um remédio e vem.

JULIANA encara o celular com raiva, bloqueia a tela e joga-o na cama.

JULIANA Desgraçada.

CENA 49 - INT/DIA - COPA DA EMPRESA JULIANA coloca a marmita na geladeira e fecha o eletrodoméstico. JULIANA se vira e vê YURI, que se aproxima.

Ambos usam máscaras.

JULIANA (alerta, dando um passo atrás) Não chega muito perto não.

YURI Vish, tá mal também?

JULIANA (surpresa) Você também?

YURI (irônico) Você, eu e a empresa toda, né.

CENA 50 - INT/TARDE - MONTAGEM PARALELA JULIANA, de máscara, na central de atendimento, longe dos demais, numa esquina de corredor, liga para CÉLIA pelo celular.

Na cozinha, MARIA DE JESUS cozinha uma sopa. CÉLIA, sentada no sofá na sala de estar, atende o celular; ao lado de CÉLIA, CÍCERO está sentado.

CÉLIA Oi, Ju. JULIANA (O.S.) Oi, mãe.

CÉLIA Você tá no trabalho? O que que foi?

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72.

JULIANA (O.S.) É que eu fui dispensada...

CÉLIA Como assim? Foi demitida?

MARIA DE JESUS desvia a atenção do fogão para CÉLIA. JULIANA Não, é que a febre não passou e...

Alguns funcionários foram diagnosticados com covid aqui.

CÉLIA Ai meu deus! E você, fez o teste?

CÍCERO se aproxima de CÉLIA, percebendo a agitação dela.

MARIA DE JESUS apaga o fogo, enxuga as mãos com um pano de prato, põe o pano no ombro e caminha lentamente para a sala.

CÍCERO (para CÉLIA) O que foi?

JULIANA Ainda não, tô indo pro médico agora.

CÉLIA Eu vou com você.

JULIANA (O.S.) Não, não precisa. Eu vou com uns amigos do trabalho, a gente tá junto, não se preocupa. Só liguei pra avisar.

CÍCERO (impaciente, para CÉLIA) O que foi, mulher?

CÉLIA (para CÍCERO, afastando o celular do ouvido) Parece que o povo do trabalho de Ju pegou covid.

MARIA DE JESUS (levando as duas mãos ao peito) Valha-me Deus!

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73.

CÍCERO (preocupado com o contágio) E ele tá vindo pra cá?

CÉLIA (reprovando a postura de CÍCERO) Tá indo pro hospital.

JULIANA revira os olhos. CÉLIA põe o celular no ouvido novamente. MARIA DE JESUS sussurra uma oração.

CÉLIA Toma cuidado, filha, e vai avisando.

JULIANA Tá bom, mãe, não se preocupa. Beijo.

JULIANA encerra a chamada e encara o vazio, pesarosa.

CENA 51 - INT/NOITE - QUARTO DE JULIANA PEDRO está deitado na cama de JULIANA e arruma a coberta sobre si de maneira mais confortável. MARIA DE JESUS caminha até sua cama e senta-se nela, tirando o chinelo dos pés em seguida, no intuito de deitar-se.

PEDRO Vó, a gente vai morrer?

MARIA DE JESUS (surpresa, desiste de se deitar) O quê?

PEDRO A gente vai morrer de covid?

MARIA DE JESUS se levanta e caminha até a cama de PEDRO. MARIA DE JESUS (alcançando PEDRO, sentando-se ao seu lado e acariciando seu rosto) Oh, fio. Ninguém vai morrer não, não se preocupa.

PEDRO Mas todo mundo aqui foi infectado.

MARIA DE JESUS Mas não vai acontecer nada, você vai ver.

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74.

PEDRO Mas a senhora não sabe.

MARIA DE JESUS se mantém calada por um instante. Em seguida, MARIA DE JESUS se curva sobre PEDRO e beija o rosto dele.

MARIA DE JESUS A gente é forte, filho, e Deus é mais ainda. Agora descansa.

MARIA DE JESUS caminha até sua cama e se deita.

CENA 52 - INT/MADRUGADA - HOSPITAL JULIANA sai do consultório médico e caminha até a área de espera, onde estão YURI, MARIA e outros PACIENTES, dentre eles três ATENDENTES, todos cansados. Todos usam máscara.

YURI (levantando-se com a aproximação de JULIANA, pouco animado) E aí?

JULIANA Ele não quis fazer o teste, disse que tá em falta e que meu caso não é urgente. Deu um remédio pra febre, um atestado de duas semanas e me dispensou.

YURI O mesmo comigo, me dispensou porque a febre abaixou.

JULIANA Todo mundo foi dispensado?

YURI Menos a Cláudia, a febre dela não tá baixando e ela tá com uma falta de ar forte, foi pro inalador. Vão fazer o teste nela.

JULIANA Ela tá sozinha?

YURI Ligaram pro filho, ele tá vindo. A gente já tá indo também.

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75.

JULIANA (abatida) Eu vou com vocês.

JULIANA e YURI pegam suas respectivas mochilas, assim como os outros três ATENDENTES e todos caminham juntos para a saída.

CENA 53 - EXT/MADRUGADA - QUINTAL JULIANA, usando máscara, fecha a porta do quintal, atravessa o quintal e chega na porta de casa. JULIANA tira do bolso um potinho de álcool em gel, passa o gel nas mãos, encara a porta de casa, põe a chave na fechadura mas desiste de girála.

JULIANA caminha até a lavanderia, do outro lado do quintal, joga a bolsa no chão, tira a roupa e mergulha-a num balde com outras roupas de molho. Tremendo de frio, JULIANA toma um sabonete usado sobre o tanque de pedra e liga a torneira: não há água. Exausta, JULIANA fecha a torneira, enrola-se numa toalha que estava estendida no varal, deita-se sobre o chão de concreto e fecha os olhos.

CENA 54 - EXT/DIA - QUINTAL O CELULAR DE JULIANA toca dentro da bolsa largada no chão; JULIANA, de máscara, deitada sobre uma toalha de banho estirada no chão, dorme.

PEDRO (O.S.) Tá tocando aqui fora! Na lavanderia!

CÉLIA (O.S.) (aproximando-se) Cadê?

Três segundos depois, CÉLIA corre até JULIANA. CÉLIA (aflita, ajoelhando-se ao lado de JULIANA e acordando-a) Ju! Ju, minha filha! Cê tá bem??

CÉLIA ajuda JULIANA a se levantar; confusa e debilitada, JULIANA parece não entender completamente o que acontece.

CÉLIA se levanta com JULIANA e guia-a para dentro de casa.

CÉLIA (levando JULIANA) Você passou a noite aqui, filha? Por que você não entrou? Deixa eu ver.

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76.

[Põe a mão na testa de JULIANA]. Tá ardendo de febre. Vem, deixa eu te dar um banho.

CENA 55 - INT/DIA - BANHEIRO JULIANA, com um olhar longínquo, está nua, sob o chuveiro.

CÉLIA, vestida, usando máscara, pega o sabonete e passa pelo corpo da filha. JULIANA olha para a mãe.

JULIANA Eu não quero morrer sem ouvir a senhora me chamando de Juliana.

CÉLIA (com o olhar baixo, esfregando o corpo de JULIANA, sem dar atenção) Você não vai morrer.

JULIANA Me chama de filha de novo.

CÉLIA para de esfregar JULIANA, levanta o olhar e encara-a.

CÉLIA Filha. [Pausa]. Juliana.

JULIANA se emociona e encara a mãe, encantada. CÉLIA abaixa o olhar e volta a esfregar JULIANA, rindo pela reação da filha, julgando-a boba.

CENA 56 - INT/NOITE - QUARTO DE PEDRO JULIANA está sentada na cama, enrolada até a cintura, e está numa chamada telefônica com YURI. Um abajur ilumina o quarto.

YURI (O.S.) (através do celular) Como cê tá?

JULIANA (murcha, depois entusiasmada) Tô melhor, só um pouco de dor do no corpo. Eu te disse que minha mãe agora me chama de Juliana?

YURI (O.S.) (através do celular) Mentira? Sério?

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77.

JULIANA Sim! YURI (O.S.) (através do celular) Que bom, amiga! Tô tão feliz por você, de verdade! E como você tá se sentindo com isso?

JULIANA Ai, amigo, eu nem sei explicar. Tô tão feliz. Eu sempre disse pra mim mesma que eu sou o que sou, independente da aprovação de qualquer um. Mas ter o apoio da minha mãe... faz muita diferença. E você, como tá?

YURI (O.S.) (através do celular) Ainda sem sentir gosto de nada. E com ódio da desgraça do RH. Você acredita que eles não querem aceitar o atestado?

JULIANA Mano, eu ia te contar isso também!

Eles tão implicando com o meu atestado também, porque eu não fiz o teste.

Aquela desgraçada disse que eu tava procurando motivo pra não ir trabalhar!

YURI (O.S.) (através do celular) Ela me disse a mesma coisa! Como se metade da galera não tivesse morta numa cama por causa deles!

Três batidas na porta do quarto são ouvidas.

JULIANA Pera aí, amigo, é o meu jantar.

JULIANA põe o celular na cama, veste a máscara, levanta-se, vai até a porta, abre-a, pega o prato e o copo colocados no chão, fecha a porta novamente, tira a máscara e volta para a cama, deixando o prato e copo no chão ao lado da cama.

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78.

JULIANA (tirando a máscara e pegando o celular) Voltei, amigo. Você tem notícias da Cláudia?

YURI (O.S.) (através do celular) Eu falei com o filho dela, parece que ela tá bem mal, com medo de ser internada. Aparentemente ela não vai voltar semana que vem com a gente não.

CENA 57 - INT/TARDE - CENTRAL DE ATENDIMENTO JULIANA está em sua mesa, fazendo uma planilha, com uma expressão de cansaço e confusão. GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS chega na mesa de JULIANA. Ambas estão de máscara.

GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS (não atenciosa) Ju, eu preciso da planilha do desempenho de Novembro na minha mesa até o fim da tarde.

JULIANA (aflita, fazendo a planilha) Eu tô tentando, mas é que tem muita coisa acumulada aqui, a substituta fez tudo pela metade.

GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS Isso é pra você aprender a não ficar faltando no trabalho.

JULIANA levanta o olhar e encara a GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS. O CELULAR DE JULIANA toca, JULIANA tira-o do bolso.

O contato da chamada está salvo como "Dona Célia". JULIANA se levanta.

JULIANA (afastando-se da mesa e caminhando para o bebedouro) Eu preciso atender, é importante.

GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS (encarando JULIANA pelas costas e depois caminhando de volta para sala do RH) Agora eu entendi porque a planilha não tá pronta.

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79.

JULIANA revira os olhos e atende o celular enquanto caminha.

JULIANA (preocupada, alcançando o bebedouro) Oi, mãe, como é que ela tá?

CÉLIA (O.S.) (através do celular) Tá com febre, tossindo e com falta de ar.

JULIANA respira fundo, momentaneamente desnorteada.

JULIANA Ela precisa ir pro hospital.

CÉLIA (O.S.) (através do celular) Seu pai acha que pode ser só uma virose comum. Se for só isso, ir pro hospital pode expor ela a algo pior.

JULIANA Tá, mas não tem como saber. E se for covid?

CÉLIA (O.S.) (através do celular) Calma filha, não vai ser nada, com fé em Deus.

JULIANA (ofegante, com olhar perdido) Mãe, a culpa é minha. [Pausa]. Eu abracei ela antes de ficar doente.

CÉLIA se mantem calada por quatro segundos.

CÉLIA (O.S.) (através do celular) A culpa não é sua. Vai ficar tudo bem.

CENA 58 - INT/NOITE - SALA DE ESTAR JULIANA, usando máscara, entra na sala apressada, jogando sua mochila na entrada de casa. No canto da sala, na parede da entrada, uma árvore de natal montada. MARIA DE JESUS está sentada no sofá, abatida, ofegante, sendo vestida por CÉLIA, que apressadamente calça as sandálias nos pés de MARIA DE JESUS. Simultaneamente CÍCERO veste um casaco e toma as Created using Celtx

80. chaves do carro de cima da mobília. PEDRO, próximo da entrada da sala, assiste à situação inerte, ofegante e com os olhos e narinas dilatados.

JULIANA (O.S.) (entrando apressadamente e, em seguida, se dirigindo à MARIA DE JESUS) Como ela tá? Vó!

JULIANA corre até MARIA DE JESUS e se ajoelha ao lado dela.

JULIANA Como você tá, vó?

CÉLIA (levantando-se) Ela não consegue falar, tá sem ar.

JULIANA segura a mão de MARIA DE JESUS. CÉLIA se afasta do sofá e CÍCERO toma MARIA DE JESUS no colo e caminha para a saída da sala. JULIANA caminha atrás de CÍCERO, ainda segurando a mão da avó. CÉLIA e PEDRO seguem também, nesta ordem.

CENA 59 - EXT/NOITE - QUINTAL CÍCERO caminha com MARIA DE JESUS no colo em direção à rua, onde há um carro de modelo ultrapassado estacionado. JULIANA caminha atrás de CÍCERO, ainda segurando a mão de MARIA DE JESUS, e CÉLIA e PEDRO seguem atrás.

CÍCERO A porta, Célia.

CÍCERO para na entrada do quintal. CÉLIA se apressa, toma as chaves da mão de CÍCERO, abre a porta do carro e ajuda a posicionar MARIA DE JESUS no banco de trás. JULIANA solta a mão de MARIA DE JESUS. JULIANA (angustiada, aos prantos) Eu vou com vocês.

CÉLIA (entrando no carro) Não, você fica com o seu irmão.

CÍCERO e CÉLIA entram no carro e se vão. JULIANA se posiciona atrás do carro, dando três passos, e encara o carro enquanto ele se afasta pela rua. Em seguida, JULIANA volta à calçada, Created using Celtx

81. abaixa-se ao lado de PEDRO e abraça-o. JULIANA pega PEDRO no colo e volta para casa.

CENA 60 - INT/MADRUGADA - SALA DE ESTAR JULIANA dorme no sofá, com PEDRO deitado em seu colo. CÍCERO e CÉLIA, de máscara, entram, desanimados; CÍCERO fecha a porta. JULIANA e PEDRO acordam; JULIANA encara os pais e a entrada da sala, confusa; PEDRO encara os pais assustado; um breve silêncio se instaura.

JULIANA Cadê ela?

CÉLIA (tirando a máscara e encarando os filhos) Ela tá entubada.

Simultaneamente ao diálogo, CÍCERO, sem olhar para os filhos, joga as chaves do carro na mobília, tira a máscara e vai para o quarto.

CENA 61 - INT/TARDE - CENTRAL DE ATENDIMENTO JULIANA, de máscara, está preenchendo uma planilha no computador. CELULAR DE JULIANA recebe uma chamada de um telefone fixo. JULIANA interrompe o trabalho e atende a chamada.

JULIANA Alô? [Pausa]. Sim, é ela.

Os olhos de JULIANA se dilatam, assim como as narinas. Os olhos de JULIANA se enchem de lágrimas; sua pupila torna-se trêmula e encara o vazio. A respiração de JULIANA se torna lenta e profunda. Os sons diegéticos (telefone tocando, vozes, digitação no teclado) se tornam abafados e ficam cada vez mais longínquos, até serem substituídos por uma frequência aguda contínua. JULIANA abaixa a mão lentamente, tirando o celular do ouvido. JULIANA se levanta numa espécie de transe e caminha em direção à saída, ignorando tudo e todos ao seu redor; o ambiente se torna pouco nítido. JULIANA caminha até sair do campo focal, restando um grande borrão como imagem.

CENA 62 - INT/DIA - SALA DE VELÓRIO Uma sala de seis metros quadrados. JULIANA, YURI, CÉLIA e PEDRO, todos de máscara, mantêm-se em pé, perto do caixão fechado. CÍCERO, de máscara, permanece num canto da sala, Created using Celtx

82. sozinho, encarando o caixão. nove AMIGOS DA FAMÍLIA, todos de máscara, distribuem-se entre a sala e a área externa em frente à sala. COVEIRO, de máscara, posiciona-se na entrada da sala e faz um aceno positivo com a cabeça para CÉLIA; TODOS recuperam a postura e voltam a atenção para o caixão; PEDRO tira do bolso uma foto de MARIA DE JESUS e põe sobre o caixão. CÍCERO e outros três AMIGOS DA FAMÍLIA erguem o caixão e levam-no para fora da sala; TODOS acompanham.

CENA 63 - INT/TARDE - SALA DE ESTAR CÍCERO é o primeiro a entrar em casa, caminha direto para o quarto e fecha a porta; JULIANA entra em seguida e caminha para o quarto de PEDRO; CÉLIA e PEDRO se sentam no sofá da casa; JULIANA sai do quarto de PEDRO, com uma muda de roupa, e vai para o banheiro; PEDRO e CÉLIA choram; CÉLIA põe a cabeça de sobre seu peito.

CENA 64 - INT/DIA - CENTRAL DE ATENDIMENTO JULIANA entra na central, acompanhada de YURI, MARIA e dos demais ATENDENTES que também adentram ou já se estabeleciam no ambiente de trabalho. JULIANA caminha até a sua mesa, senta-se, liga seu computador e organiza a sua mesa de trabalho (que permaneceu intocada desde quando ela abandonou o trabalho após receber a notícia de morte de MARIA DE JESUS). GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS entra na central e caminha até a mesa de JULIANA. Todos usam máscaras.

GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS Eu pensei que você não vinha mais trabalhar. Esqueceu que tinha emprego, sua irresponsável?

YURI, MARIA e todos os ATENDENTES, aos poucos, voltam sua atenção para a discussão, estabelecendo um silêncio no ambiente.

JULIANA Eu não esqueci nada. Minha avó morreu, você sabe disso.

GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS Isso não te dá o direito de abandonar o trabalho e ainda por cima faltar no dia seguinte.

JULIANA Eu fui pro enterro da minha avó.

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83.

GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS Eu falei pra você não ir.

JULIANA Eu não ia deixar de me despedir dela.

GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS Então pode se despedir da sua mesa, porque você vai voltar a fazer atendimento, ouvir xingamento o dia todo, pra lembrar que não é melhor que ninguém aqui.

JULIANA O quê?

GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS É isso mesmo, vai voltar a atender ligação, eu já escolhi outra pessoa pro seu lugar. Quem sabe assim você não deixa de ser sonsa.

JULIANA (levantando-se de sua cadeira) Você não pode falar comigo desse jeito, tá louca?

GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS Você me chamou do quê, sua espírito de porco?

JULIANA A única porca aqui é você, sua escrota. Você sim se acha melhor que todo mundo aqui, né? A minha avó morreu por causa dessa porra dessa empresa que infectou metade dos funcionários e ainda obrigou a outra metade a trabalhar, como se nada tivesse acontecido! A Cláudia tá na UTI por culpa de vocês, seus malditos!

E vocês tratam a gente que nem animal, não tem folga, não tem comida quente, não tem açúcar no café, não tem atestado, não tem educação, não tem porra nenhuma!

GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS Abaixa a voz pra falar comigo!

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84.

JULIANA (falando por cima da GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS) Abaixa a voz é o caralho! Você não veio aqui me humilhar na frente de todo mundo? Então agora vai ouvir. Uma fudida dessa, explorada feito uma cadela, tá um cargo acima dos outros e se acha melhor que todo mundo? Sua burra, otária!

GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS Isso, xinga, xinga mesmo! Xinga que essas vão ser as suas últimas palavras aqui dentro, porque você tá demitida!

JULIANA Não tô demitida não, amor, sabe o porquê? Por que eu vou processar essa porra dessa empresa! Eu quero ver vocês me demitirem com causa aberta.

JULIANA toma os objetos pessoais de decoração de cima da mesa e caminha para a saída. YURI e MARIA se encaram e, em seguida, acompanham JULIANA, preocupados. Silêncio. GERENTE DE RELAÇÕES HUMANAS, sendo encarada por todos, dá as costas e entra em sua sala, constrangida. Murmúrios entre os ATENDENTES. CENA 65 - INT/NOITE - COZINHA JULIANA, CÍCERO e PEDRO estão sentados à mesa. Luz baixa, dando destaque para as luzes coloridas do pisca-pisca, que está ligado. O jantar está posto, mas intocado; CÉLIA aproxima-se da mesa trazendo uma última travessa com um peru assado e posiciona-o no centro da mesa. CÉLIA, ainda de pé, começa a servir o primeiro prato; CÍCERO, JULIANA e PEDRO se servem também. JULIANA não se serve de carne. CÉLIA termina de servir o prato, estende o braço que segura o prato e levanta o olhar para os familiares, como quem procura alguém para entregar o prato feito. CÉLIA hesita e no instante seguinte ela abaixa a cabeça, recolhe o braço e se senta.

TODOS terminam de se servir e comem, calados.

CENA 66 - INT/DIA - QUARTO DE PEDRO As luzes estão apagadas. JULIANA, deitada na cama, coberta por um lençol, chora de maneira não muito audível. Ouve-se três batidas na porta; JULIANA engole o choro imediatamente.

Ouve-se três batidas na porta novamente; CÍCERO abre a porta do quarto, cauteloso; a luz do corredor ilumina o quarto.

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85.

CÍCERO (segurando a porta, como quem se protege) Posso entrar, filho?

JULIANA se move na cama, trazendo ainda mais as pernas para o tronco e cobrindo o rosto com a coberta. CÍCERO sai de trás da porta, pigarreia, aproxima-se lentamente e senta-se no chão, apoiando as costas na lateral da cama, estendendo uma perna sobre o chão e dobrando a outra.

CÍCERO (hesitante) Éh... [Pausa]. Ju... [Pausa]. Você sabe que não é sua culpa, né. [Pausa].

Se não fosse por você, a gente nem teria o que comer esse ano. [Pausa]. A sua avó sabia do seu esforço. [Pausa].

A enfermeira disse que a última coisa que sua avó escreveu num papelzinho antes de morrer foi o seu nome, ela queria te ver. Tá na minha carteira o papel, quer ver?

JULIANA se move na cama, em seguida se senta. CÍCERO toma a carteira do bolso da calça e tira dela um pedaço de folha de papel dobrado muitas vezes. CÍCERO encara o papel e em seguida levanta o braço; JULIANA pega o papel e observa-o muito emocionada.

CÍCERO Tá escrito Juliana.

O choro de JULIANA torna-se audível; ofegante, ela luta para controlar a respiração.

CÍCERO Júlio fui eu quem escolhi, em homenagem ao meu avô, pai dela. Ela quem sugeriu. [Pausa]. Mas acho que eu escolhi errado, filha. Não era Júlio, era Juliana.

O choro de JULIANA se torna ainda mais intenso; ela abaixa a cabeça e apoia as duas mãos na cama.

CÍCERO A gente tem mania de achar que a morte é uma coisa ruim, mas sem morte não existe vida, não existe ciclo, transformação. Tudo que nasce morre, Created using Celtx

86.

Ju, e tudo que começa termina. Se não fosse assim não ia ter começo nem fim, não ia ter mudança. [Pausa]. Você mudou muito, filh... filha. E eu não consigo entender ainda. [Pausa; voz embargada pelo choro]. Mas eu te amo muito e eu não quero morrer sem dizer isso pra você.

CÍCERO começa a chorar; limpa as lágrimas do rosto com as palmas das mãos de maneira rude, abaixa a cabeça e junta as mãos na virilha.

CÍCERO Se existe justiça nesse mundo, mãinha tem um lugar reservado no paraíso pra ela... e você também, filha, porque você é uma pessoa boa, honesta, trabalhadora. E eu tenho muito orgulho de quem você é, filha. E eu quero que você confie em mim e tenha paciência comigo, pra gente se apoiar e ficar unido. Pra eu aprender de você.

CÍCERO se ajoelha de frente para a cama.

CÍCERO Você me perdoa, filha? Juliana?

JULIANA levanta o rosto, ajoelha-se, aproxima-se de CÍCERO e o abraça. JULIANA e CÍCERO choram.

CENA 67 - INT/DIA - QUARTO DE JULIANA JULIANA abre a porta do quarto e entra; ela caminha até a cama de MARIA DE JESUS, põe a mão sobre a cabeceira da cama, desliza-a pelo forro e enfim se senta nela. JULIANA descansa as duas mãos sobre o forro, fecha os olhos e respira fundo.

JULIANA se levanta e caminha até o móvel de cabeceira, sobre o qual estão perfumes (em destaque), cremes, joias e objetos de uso pessoal de MARIA DE JESUS. JULIANA toma um dos frascos de perfume (azul) na mão, borrifa-o no ar, fecha os olhos e respira fundo. JULIANA coloca o frasco de volta no lugar, caminha até o guarda roupas, abre-o e observa as roupas de MARIA DE JESUS penduradas nos cabides, passando os cabides um por um e parando num vestido azul, com um chapéu azul pendurado junto. CÉLIA entra no quarto e observa JULIANA. JULIANA Lembra desse vestido?

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87.

CÉLIA (sorrindo levemente) Sua avó me fez rodar a cidade toda atrás de alguém que costurasse um vestido igual o da rainha da Inglaterra.

JULIANA (sorrindo brevemente) Ela tava tão linda no aniversário de oitenta anos, com o vestido azul dela, toda perfumada. [Riso e pausa]. Foi o dia mais feliz da vida dela.

CÉLIA A família toda junta nesse dia...

JULIANA toma o chapéu em suas mãos e cheira-o.

JULIANA Ainda tá com o cheiro dela.

CÉLIA Tá na hora de você voltar pro seu quarto. Com o tempo a gente decide o que fazer com as coisas dela. [Pausa].

Eu conversei com seu pai, ele vai trabalhar como Uber até eu e ele conseguirmos algo melhor. Não queria que ele ficasse exposto, mas agora...

CÉLIA dá de ombros e balança a cabeça negativamente.

CÉLIA Você não precisa ter pressa pra trabalhar nem sair de casa, filha.

Você tem que fazer o que é melhor pra você.

JULIANA Eu tava pensando em estudar, pra não precisar passar o resto da vida sendo humilhada pelos outros. [Pausa]. Fazer faculdade. De Saúde Pública.

CÉLIA sorri.

CENA 68 - INT/TARDE - COZINHA PEDRO, na sala, observa CÉLIA, na cozinha, com um olhar de culpa. CÉLIA põe uma travessa com um pernil no fogo, abre a Created using Celtx

88. geladeira (onde há salada de maionese, salada de frutas e outros pratos de fim de ano), pega uma cebola e corta-a sobre uma tábua. PEDRO se aproxima da entrada da cozinha, hesitante; CÉLIA encara PEDRO com estranhamento.

CÉLIA (num tom desconfiado, mas irônico, esperando por uma notícia ruim) O que foi, Pedro?

PEDRO mantém o olhar contra CÉLIA, que muda de expressão e adquire uma postura mais grave.

CÉLIA (preocupada) O que foi, filho?

PEDRO Mãe, eu preciso te contar uma coisa.

CENA 69 - INT/NOITE - SALA DE ESTAR A porta e janela para o quintal estão abertas; CÉLIA, PEDRO, CÍCERO e JULIANA, nesta ordem, estão em frente à entrada da sala, olhando os fogos de artifício que explodem do céu, todos vestidos de branco. JULIANA se aparta do resto da família e entra na sala. JULIANA caminha até a frente do espelho, observa seu reflexo por alguns segundos. JULIANA pega uma tesoura em uma das gavetas dos móveis da sala, retorna ao espelho e corta seu próprio cabelo, deixando-o com apenas alguns centímetros de cumprimento desde a raiz, num formato arredondado.

CENA 70 - INT/MADRUGADA - SALA DE ESTAR CÍCERO está sentado no sofá da sala, vestido de branco. A luz da cozinha é a única acesa; eventualmente algumas poucas vozes soam abafadas desde o quintal, indicando uma fraca movimentação na rua. CÉLIA, vestida de branco, aproxima-se e senta-se no braço do sofá. Silêncio.

CÉLIA Eu acho que a gente fez um bom trabalho, Ciço.

CÍCERO (distraído, levanta a cabeça e encara CÉLIA, confuso) Como assim?

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89.

CÉLIA O casamento, nossos filhos, nossa casa, nosso carrinho. A gente conseguiu tudo o que a gente sonhava.

A gente foi feliz.

CÍCERO É, a gente conseguiu. A nossa família foi uma família feliz. Mas a morte de mãinha [Pausa]. Mudou tudo. [Pausa].

Mas a gente vai sair dessa, se Deus quiser.

CÉLIA Mudou tudo mesmo. Acho que não tem jeito mais não.

CÍCERO (inclinando o tronco afrente, na direção da esposa) Não fala assim, mulher, a gente vai superar isso, você vai ver. A gente vai voltar a ser feliz.

CÉLIA A gente já não é feliz há muito tempo, Ciço, desde antes da morte de sua mãe.

A gente se perdeu.

CÍCERO (colocando a mão na perna de CÉLIA) Não fala assim, Celinha.

CÉLIA É a verdade, Ciço. Esse casamento não tá mais dando certo.

CÍCERO Oxe, e por que tu tá dizendo isso agora? Por acaso tu tá de olho em outro?

CÉLIA (rindo brevemente) Eu? [Riso]. Eu mesma não. [Pausa]. E tu, tá?

CÍCERO (retraindo a postura) Eu? Oxe, era só o que me faltava.

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90.

CÉLIA (fechando os olhos de maneira serena) Shhhhhhh. Não precisa mentir pra mim não.

CÉLIA estende a mão para CÍCERO, entregando a ele o próprio celular. CÍCERO se sobressalta, hesita e enfim toma o celular e encosta suas costas no apoio do sofá.

CÍCERO Celinha, eu...

CÉLIA (interrompendo CÍCERO) Não precisa explicar não. Eu sei.

[Pausa]. A gente foi feliz, Ciço, conseguimos nossa casa, nosso carro, criamos nossos filhos, cuidamos da sua mãe. Mas agora tá na hora da gente cuidar da gente, da gente ficar bem.

CÍCERO Tu não acha que tem volta não?

CÉLIA Esse casamento acabou há muito tempo, Ciço. Chegou a hora da gente aceitar.

Eu não quero que a gente passe o resto da vida desgostando um do outro, infeliz.

CÍCERO Então acabou?

CÉLIA Acabou.

CÍCERO Mas eu ainda te amo, Celinha.

CÉLIA Não ama não. Tu só tá com medo de ficar só.

CÉLIA se levanta.

CÉLIA Boa noite, Ciço. Feliz ano novo.

CÉLIA caminha até seu quarto. CÍCERO abaixa a cabeça.

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91.

CENA 71 - INT/TARDE - QUARTO DE PEDRO PEDRO organiza seus brinquedos dentro de um pote plástico transparente; ouve-se três batidas na porta e em seguida JULIANA entreabre a porta lentamente, cautelosa.

JULIANA (ainda segurando a maçaneta) Oi. Posso entrar?

PEDRO acena positivamente com a cabeça. JULIANA abre a porta completamente, adentra o quarto e fecha a porta atrás de si.

PEDRO A mãe já falou comigo, não precisa você falar também.

JULIANA Eu sei, mas eu quero conversar com você também. Posso?

PEDRO caminha até a cama e senta-se sobre ela; JULIANA puxa uma cadeira da mesa de estudos e se senta também.

JULIANA Posso te fazer uma pergunta?

PEDRO acena positivamente com a cabeça.

JULIANA Foi você quem contou pra mãe?

PEDRO abaixa o olhar, receoso.

JULIANA Não precisa mentir, eu não vou brigar.

Foi você?

PEDRO acena positivamente com a cabeça.

JULIANA Eu disse pra não contar. [Pausa]. E que bom que você não me ouviu. Você fez o certo.

PEDRO levanta o olhar.

PEDRO Fiz?

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92.

JULIANA Fez sim, a mãe merecia saber. E agora que ela sabe, ela resolveu a situação.

PEDRO Mas ela tá triste.

JULIANA (hesitante) Tá sim, mas também tá aliviada, tá feliz. Não vai ser fácil, mas ela vai melhorar. E o pai também. Foi melhor assim. Algumas coisas na vida causam sofrimento, mas a gente só consegue superar se aguentar encarar a dor. Os sentimentos pesados também merecem ser sentidos.

PEDRO exibe um falso riso de contentamento.

JULIANA A gente precisa ser forte agora e se unir, pra dar força pra eles. Era isso o que a vó ia falar pra gente se ela tivesse aqui.

PEDRO Eu tô com saudade dela.

JULIANA Eu também tô. [Pausa]. Tá vendo, mais um motivo pra gente se unir.

Silêncio.

JULIANA Pedro, eu sei que eu nunca conversei com você sobre isso, mas eu queria falar, pra você conseguir me entender.

PEDRO Falar o quê?

JULIANA Sobre mim. Você sabe que eu sou... diferente. Eu sou uma travesti. Você sabe o que é isso?

PEDRO balança a cabeça negativamente.

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93.

JULIANA Significa que eu não sou menino, nem menina, eu sou uma mistura dos dois.

Eu sei que parece estranho, e talvez seja um pouco, mas é assim que eu me sinto. E as pessoas não entendem. Não é algo que eu escolhi, que eu aprendi.

Eu nasci assim, e eu não posso mudar.

Levou muito tempo até eu entender quem eu sou. E eu já sofri muito por isso, eu sofro até hoje. Porque as pessoas não entendem, não aceitam, acham que eu sou um monstro, que eu quero fazer mal pra todo mundo. Mas eu só quero viver minha vida em paz, com as pessoas que eu amo. Na rua, as pessoas me olham feio, me xingam, me tratam mal. Na escola eu era excluída, humilhada, apanhava... Eu tenho medo de apanhar até hoje, de morrer numa calçada, igual tantas outras travestis. Não é fácil ser travesti, ser negra, ser pobre. Não é fácil ser vista diferente. Mas apesar de tudo isso, eu sou só uma pessoa normal, como qualquer outra. E sabe, é muito difícil enfrentar preconceito de tanta gente lá fora, mas sofrer preconceito das pessoas que eu amo machuca mais ainda. Por isso eu quero me aproximar de você, quero que você me entenda, quero te entender também, conversar contigo. Eu não quero mais brigar com você, com a mãe ou o pai.

PEDRO Eu também não.

JULIANA Então, você me desculpa por tudo?

PEDRO balança a cabeça positivamente.

PEDRO E você me desculpa?

JULIANA balança a cabeça positivamente.

JULIANA Me dá um abraço?

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94.

PEDRO se levanta e abraça JULIANA, que chora.

CENA 72 - INT/DIA - SALA DE ESTAR JULIANA está sentada no sofá, com um caderno no colo, um livro didático de curso pré-vestibular, grande, ao lado e com um cabelo alguns centímetros maior. JULIANA escreve no caderno, põe a caneta no estojo e organiza o material escolar, fechando os livros e organizando-os na mesa de centro. CÉLIA caminha para a sala, vinda do corredor.

CÉLIA (sentando-se no sofá) Terminou?

JULIANA (organizando o material) U-hum.

CÉLIA pega o controle da televisão e liga o aparelho.

JORNALISTA Enquanto os que perderam seus familiares graças ao descaso do governo enfrentam o luto, aqueles que ainda têm seus parentes vivos correm contra o tempo para conseguir um cilindro de oxigênio em meio à crise em Manaus.

JORNALISTA vira na bancada, troca de câmera e segue o telejornal.

JORNALISTA A prefeitura de São Paulo inicia neste sábado, 27 de fevereiro, a vacinação de idosos acima de oitenta anos.

A voz da JORNALISTA continua, ao fundo, abafada, enquanto CÉLIA e JULIANA conversam.

JORNALISTA (voz abafada) O anúncio da antecipação desta etapa da vacinação foi feito na manha desta quinta feira e a expectativa é que a vacinação ocorra nos cinco postos drive-thru e nas 82 unidades de Assistência Médica Ambulatorial. A partir de segunda, primeiro de março, a imunização para esse público passa a Created using Celtx

95. ser feita, também, nas Unidades Básicas de Saúde.

JULIANA (vira para CÉLIA) A vó devia tá se vacinando agora.

CÉLIA Faltava tão pouco.

JULIANA Se o presidente tivesse respondido os e-mails da vacina, talvez ela ainda tivesse viva.

CÉLIA Muita gente ainda estaria viva.

CENA 73 - INT/DIA - COZINHA CÉLIA, com o cabelo encharcado de creme e uma toalha pendurada nos ombros, organiza a mesa do almoço.

CÉLIA (colocando uma travessa sobre a mesa) Juliana, Pedro, o almoço tá pronto!

CÉLIA termina de organizar a mesa, posicionando louça e talheres; JULIANA caminha pelo corredor e entra na cozinha, com o cabelo alguns centímetros maior, encharcado de creme, e uma toalha pendurada nos ombros; atrás dela vem PEDRO, com o cabelo encharcado de creme e uma toalha pendurada nos ombros.

JULIANA (aproximando-se de CÉLIA) Quer ajuda, mãe?

CÉLIA Agora não, mas segunda eu começo a trabalhar, então vocês vão ficar responsáveis pela casa, tá bom?

PEDRO Sem problemas, a gente já dividiu as tarefas.

JULIANA (em tom de piada, sentando-se à mesa) É, ele faz tudo e eu estudo pro Created using Celtx

96. vestibular.

PEDRO (irônico, sentando-se à mesa) Hahaha, vai sonhando.

CÉLIA senta-se também e todos começam a se servir. JULIANA não se serve de carne.

CÉLIA Esqueci de falar pra vocês, mas seu pai mandou mensagem. [Pausa, sorri].

Ele tomou a primeira dose da vacina hoje!

PEDRO e JULIANA sorriem.

PEDRO (juntando as mãos) Graças a Deus!

CÉLIA É, agora ele pode trabalhar mais tranquilo. Logo, logo é a minha vez também.

JULIANA Por falar em vacina, o contrato de compra da vacina indiana foi suspenso hoje, mas o Ministério Público já abriu investigação pra apurar o esquema de lavagem de dinheiro.

CÉLIA Infelizmente tá explicado o porque deles terem atrasado a vacinação e ignorado os oitenta e um e-mails.

PEDRO Uma hora dessa a gente podia ter voltado ao normal.

JULIANA Voltar ao normal como, Pedro? Como é que continua a vida depois de mais de quinhentas mil mortes? Como é que continua sem a avó, sem a Cláudia, sem a vizinha, sem a amiga do conhecido, sem tanta gente? Mães, pais, filhos, irmãos, primos, tios, amigos, professores, médicos, diaristas, Created using Celtx

97. garis. É muita gente morta, Pedro.

PEDRO encara a irmã, surpreso. CÉLIA larga os talheres e abaixa o olhar, desgostosa. JULIANA encara o vazio, segurando o choro.

JULIANA Eu gostaria muito de poder dizer que esses políticos vão sair do poder, que a população vai aprender com os próprios erros, que a gente vai poder voltar a viver. Mas quando eu penso na vó, eu vejo que o meu coração tá com ela. Todo esse sangue derramado é o meu sangue, podia ser eu ali. [Pausa].

Eu sei que a gente tá cansado, que uma hora a gente vai precisar seguir em frente; mas eu não quero. Eu não quero esquecer. Eu quero justiça. Justiça.

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98.

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99.

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